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São Paulo, Sábado, 13 de Fevereiro de 1999

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A chuva universal de Flusser


BENTO PRADO JR.

Numa carta endereçada a Maria L. Leão, em 1983, V. Flusser


dá a melhor pista para a compreensão de seus escritos e do
estilo de "Ficções Filosóficas": "Participo da desconfiança
por analogias que tendem rapidamente a se transformar em
metáforas, isto é, transferências de raciocínio adequado a um
dado contexto para contexto inadequado. No entanto nada
captaremos sem modelo". Por meio dessas frases, o leitor
pode perceber que o título do livro é menos paradoxal ou
subversivo do que parece. Ou que o adjetivo "filosófica"
pode modificar o substantivo "ficção" sem engendrar
contradição. Poderíamos dizer, ao contrário, que, na
afirmação dessa inquietante proximidade, encontramos uma
cumplicidade perfeitamente clássica, fixada exemplarmente
na "alegoria da caverna" da "República" de Platão.
Mas é claro que Flusser não é um "neoclássico" e que, em
sua reflexão, há algo como uma fratura ou uma tensão,
típicas do pensamento moderno, alguma forma de
dilaceramento ignorada pelo pensamento antigo. Mesmo se
podemos falar (como H. Vaihinger, que certamente era
familiar a nosso autor) em "ficções" para designar os
construtos ou os modelos das teorias científicas, é claro que a
estruturação epistêmica da experiência não é paralela à sua
estruturação artística. Ao contrário da continuidade grega
clássica entre "epistéme" e "téchne" (cf. o ensaio nº 30,
págs.171-176), não podemos ignorar, hoje, a divergência
estilística que comanda a construção dos sistemas simbólicos
da ciência e da arte.
Assim, se o livro se abre com uma "fábula" (págs. 23-27) e
com um "mito" (págs. 29-34) -na verdade com duas
alegorias-, o segundo texto se encerra com as seguintes
palavras: "Assim, intelectualizado, não será aniquilado o
mito e não será libertado o homem de seu peso, mas teremos
aumentado o território do intelecto, o território (...) mais
nobre do homem". Conclusão indispensável, já que ilumina
retrospectivamente a fábula inicial (que contrapõe, com os
personagens do octópodo, da solitária e do embrião humano,
os princípios do élan vital, da libido e do espírito que nasce
da limitação dos princípios anteriores), impedindo o leitor de
compreendê-la (mal) como poderia, num espírito mais ou
menos irracionalista e vitalista à maneira de Klages, que via
no espírito algo como uma "perda de vida".
Aqui, portanto, o recurso ao mito ou à fabulação não aspira
jamais a alguma verdade "literal" ou metafísica, que
substituísse o pensamento científico supostamente deficiente.
Pelo contrário, é a complementaridade problemática, a
diferença entre imaginação e entendimento que é visada.
Tenho a impressão que desde sempre Flusser se viu seduzido
pelos modelos aparentemente opostos da Razão, tal como
expostos pela filosofia analítica e pela fenomenologia,
especialmente na sua versão heideggeriana. Que, aliás,
rivalizavam na Europa de língua alemã e certamente o
marcaram em seus anos de formação, entre as duas grandes
guerras. Surpreendia-me ele em 1958 ou 59 com a
aproximação que fazia entre os pensamentos de Heidegger e
de Wittgenstein. Mais tarde, em 1965, eu ouviria, numa aula
de Michel Foucault a que Flusser também estava presente, a
seguinte frase provocadora: "É preciso ser uma mosca cega
para não ver que as filosofias de Heidegger e de Wittgenstein
são uma e a mesma filosofia".
Mas é o mesmo cuidado que o guiava na sua frequentação
dessas tradições diferentes: o cuidado com os limites da
linguagem, tanto no pólo objetivante da ciência como no
pólo expressivo da arte. Uma "situação teórica" ou um
horizonte problemático que seriam "sobredeterminados" por
sua experiência de imigrante, de falante e de escritor em
múltiplas línguas (assim como a experiência limite de
"tradutor de si mesmo", que introduz a pluralidade e a
diferença na unidade e na identidade do próprio sujeito).
Preocupação que o levaria a considerar a tradução como o
problema central da filosofia. Não apenas, como muitos
filósofos (Croce, por exemplo, que tematizava a questão da
"intradutibilidade" como característica essencial da poesia),
como um problema entre outros, mas como uma nova versão
da questão kantiana sobre os limites da Razão, como o
problema "crítico" por excelência. Não apenas a questão da
tradução da poesia, ou de uma linguagem natural para outra.
Mas a questão da problemática superposição dos diferentes
sistemas simbólicos com que exploramos o mundo, dos
limites que os encerram cada um em si mesmo e dos abismos
que os separam, mesmo se podem comunicar-se mediante
fronteiras muitas vezes porosas.
Desde quando o conheci, Flusser gostava de deslumbrar a
audiência (como um mágico que tira um coelho da sua
cartola) ao demonstrar para um público perplexo, a partir da
tese da não-equivalência entre expressões como "it rains",
"Es regnet", "chove", que nenhuma chuva universal ou "em-
si" molha o mundo lá fora. É esse o "Leitmotiv" de toda sua
obra e desse livro que o leitor tem agora em mãos, embora
apareça aqui, no proscênio, diretamente visado apenas no
penúltimo texto, consagrado ao "pontificar", isto é, às
tentativas de estabelecer "pontes" entre espaços, universos e
linguagens diferentes -numa palavra, à "pontifícia" vocação
da filosofia, que seria sua vocação essencial. Mesmo se essa
tarefa sempre se choca com o limite que separa a ordem do
caos. Nas suas próprias palavras: "E isto permite
curiosamente especificar o lugar ôntico dos pontífices do
futuro: estarão eles sentados no extremo limite da fé, lá onde
liberdade e necessidade se co-implicam. O que vem a ser
outra maneira de dizer que os futuros pontífices estarão
sentados nos limites entre a ordem e o caos".
Na desenvoltura, na verve de sua escrita, o leitor haverá de
recuperar algo da presença desse "Retor" (rapsodo?) que, de
viva voz, era capaz de encantar mesmo os interlocutores que
não partilhavam suas perspectivas.

A OBRA
Ficções Filosóficas
Vilém Flusser Edusp (Tel.011/818-4149) 204 págs., R$ 17,00

Bento Prado Jr. é professor da Universidade Federal de São Carlos e


autor, entre outros livros, de "Presença e Campo Transcendental:
Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson" (Edusp).

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