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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA

FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA E SOCIEDADE

A NOVA HISTÓRIA CULTURAL: caminhos e descaminhos da


historiografia moderna (1970-1990)

Matheus Valdemir Germino

Trabalho final apresentado ao


Programa de Pós-Graduação “História
e Sociedade” da Universidade Estadual
Paulista (UNESP) para a conclusão da
disciplina Teoria e Método. Docente
Responsável: Prof. Dr. Milton Carlos
Costa.

Assis-SP
2018

1
A Nova História Cultural: caminhos e descaminhos da historiografia
moderna (1970-1990)

Resumo
As transformações ocorridas na produção historiográfica entre 1970 e 1990 levaram a
novas abordagens teóricas e metodológicas cujo enfoque principal se reorientou para o
campo da cultura a partir de um intenso diálogo interdisciplinar com as ciências sociais,
em especial a antropologia, constituindo a chamada Nova História Cultural. O objetivo
desse trabalho é, a partir de algumas reflexões, traçar o caminho desse “moderno” modo
de pensar e fazer história que se legitimou nos últimos anos e que ainda hoje se faz
presente de forma dominante. Para tanto, busca-se discutir sucintamente alguns conceitos
e interpretações realizadas por um dos historiadores considerados fundamentais para esse
movimento, notadamente, Carlo Ginzburg. As discussões apresentadas destacam os
diálogos e as tensões interdisciplinares presentes no interior de suas abordagens bem
como as particularidades e contribuições à operação historiográfica contemporânea.
Palavras-chave: Carlo Ginzburg; Nova História Cultural; Teoria da História;
Historiografia.

Os historiadores, conquanto microcósmicos, devem se


posicionar em favor do universalismo, não por fidelidade a um
ideal ao qual muitos de nós permanecemos vinculados, mas
porque essa é a condição necessária para o entendimento da
história da humanidade, inclusive a de qualquer fração
específica da humanidade. Pois todas as coletividades
humanas são e foram necessariamente parte de um mundo
mais amplo e mais complexo. Um história que seja destinada
apenas para judeus (ou afro-americanos, ou gregos, ou
mulheres, ou proletários, ou homossexuais) não pode ser boa
história, embora possa ser uma história confortadora para
aqueles que a praticam. Infelizmente, como demonstra a
situação em áreas enormes do mundo no final de nosso
milênio, a história ruim não é inofensiva. Ela é perigosa. As
frases digitadas em teclados aparentemente inócuos podem
ser sentenças de morte.

Eric Hobsbawm, 1994.

1. Introdução

A definição de história ao longo do século XX se modificou profundamente no


que diz respeito às questões de ordem teórica e metodológica. A revista Annales d’histoire
économique et sciale (1929) se constituiu ao lado das ciências sociais como um dos

2
principais modelos de um movimento historiográfico revolucionário.1 Como destacou
François Dosse, “a criação da revista Annales resulta da dupla mutação que perturbou
tanto a situação mundial no pós 1914-1918 quanto o campo das ciências sociais.”2 As
abordagens políticas construídas pela consciência histórica do século XIX foram
reorientadas, porém, não desapareceram definitivamente. A história passou a ser pensada
e produzida a partir de uma forte intersecção com as emergentes ciências sociais, tais
como a antropologia, economia, psicologia, linguística, ciência política e, sobretudo, a
sociologia de matriz durkheimiana.3 A “historiografia tradicional” do século XIX
lentamente, sede lugar à uma “historiografia moderna” que se apresenta com força até os
dias atuais.
Todo esse processo de abertura interdisciplinar e de transformação da
historiografia, em particular desde 1929, foi de extrema importância para a construção da
chamada Nova História4, que tomou forma entre 1970 e 1980. A diversificação e
ampliação de análise que se configurou na historiografia a partir da segunda metade do
século XX abriu e consolidou perspectivas para “novos objetos”, “novos problemas” e
“novas abordagens”.5 Os temas a serem tratados se mostaram diferentes e inovadores,
tais como “História da Cultura Material”, “História das Mentalidades”, “Antropologia
Histórica”, “História dos Marginais”, “História dos Imaginários”.6 Foram importantes
avanços que ampliaram de maneira notável a agenda dos historiadores franceses dos anos
1970 que nesse período ainda viviam sob forte influência dos “anos Braudel”.7
A crise de paradigmas colocou em cheque as orientações delineadas pelo
estruturalismo nos anos de 1950. A partir da experiência de contestações anunciadas pelos
movimentos de 1968 é que se pode compreender como se deu a afirmação das inovações
propostas pela Nova História. De forma que as abordagens e o diálogo com as ciências
sociais começaram a se mostrar mais próximos da antropologia. O marxismo, como
modelo histórico-explicativo dominante, encontra na conjuntura pós-guerra fria um

1
C.f. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. São
Paulo: Editora UNESP, 1991.
2
DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à nova história. Bauru-SP: Editora EDUSC,
2003, p. 33.
3
Ibid., p. 35
4
NOVAIS, Fernando & SILVA, Rogério Fostarieri da. (orgs.). Nova História: em perspectiva. Propostas
e desdobramentos. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
5
C.f. LE GOFF, Jaques e NORA, Pierre (org.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1995.
6
C.f. LE GOFF, Jaques (org.). A nova história. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
7
DOSSE, François. Op.cit., p. 149.

3
momento de crise e retrações embaladas pelo enfraquecimento notável do regime
soviético. As aberturas temáticas apresentadas pelo movimento da Nova História podem
ser melhor compreendidas se pensadas em conjunto com a dinâmica política vivenciada
em escala mundial, de forma que ela buscou se mostrar como uma superação ou mesmo
uma alternativa definitiva ao marxismo. Essa constatação se constitui como um problema
geral da história da historiografia.
O momento de uma “virada cultural” nos anos 1970 salientam a redescoberta da
história cultural, outrora praticada por historiadores tradicionais consagrados do século
XIX como Jabob Burckhardt, autor de A cultura do Renascimento na Itália (1860) e Johan
Huizinga que presenteou a literatura histórica com a grande obra Outono da Idade Média
(1919), livros que sem dúvida ainda são válidos no que diz respeito aos cânones
historiográficos modernos.8 O que se considera uma Nova História Cultural se constitui
no movimento da Nova História e se consolida, sobretudo, nos anos de 1970, com a
publicação de obras significativas que tornaram-se, posteriormente, verdadeiras matrizes
da historiografia cultural moderna, como Religião e o Declínio da Magia (1971) de Keith
Thomas; Montaillou (1975), do eminente representante dos Annales Emanuel Le Roy
Ladurie; O Queijo e os Vermes (1976) do italiano Carlo Ginzburg e Cultura Popular na
Idade Moderna (1978) do inglês Peter Burke.
Obviamente que outras obras também podem ser incorporadas nessa seara
historiográfica, algumas publicadas nos anos 1950 e 1960 que estavam ainda fortemente
marcadas pelas concepções materialistas da história, porém já apresentavam alguns
aspectos inovadores, como História social do Jazz (1959) de Eric Hobsbawm (porém
publicada sob o pseudônimo de Francis Newton) e A formação da classe operária inglesa
(1963) do destacado historiador Edward P. Thompson. Ainda nesse aspecto, a obra
Magistrados e Feiticeiros na França do século XVII (1968) de Robert Mandrou
apresentou interessantes perspectivas para o estudo das mentalidades. Esse movimento
da historiografia moderna será objeto de análise desse trabalho.
Nesse sentido, o objetivo central do trabalho é, a partir de algumas reflexões traçar
o caminho desse “moderno” modo de pensar e fazer história que se legitimou nos últimos
anos e que ainda hoje se faz presente de forma dominante. Para tanto, busca-se discutir
sucintamente alguns conceitos e interpretações realizadas por um dos historiadores
considerados fundamentais para esse movimento, notadamente, Carlo Ginzburg. As

8
BURKE, Peter. O que é história cultural? 2ª ed. ver e ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 16.

4
discussões apresentadas pelo historiador italiano destacam os diálogos e as tensões
interdisciplinares presentes no interior de suas abordagens bem como as particularidades
e contribuições para a operação historiográfica contemporânea.9
A escolha do referido historiador se deu a partir das questões discutidas no curso
de pós-graduação “Teoria e Método” ministrado no programa “História e Sociedade” na
UNESP/Assis-SP ao longo do segundo semestre de 2017. Compreende-se que as
interpretações realizadas nos últimos anos por Ginzburg se mostraram inovadoras no que
diz respeito ao diálogo estabelecido com as ciências sociais e configuram, desse modo,
como uma das maiores expressões da Nova História Cultural, embora o próprio autor
descarte esse rótulo. Como sublinhou Fernando Novais em suas linhas iniciais,

Lenta e imperceptivelmente, também a Nova História vai se tornando


História, e portanto se constituindo como objeto da historiografia.
Intensa, evidentemente, a tentação de situar a nova escola no quadro
geral a que pertence, e destarte realizar a historiografia da Nova
História.10

O que leva à um exame de consciência sobre os caminhos percorridos pela Nova


História e seu impacto na história da historiografia, sobretudo, da Nova História Cultural
que nos últimos trinta anos se legitimou frente os estudos históricos e ocupa atualmente
lugar de destaque em inúmeras instituições de pesquisa. Esse modelo de pensar e fazer
história, necessita de um exame de consciência dos historiadores afim de refletir sobre o
seu ofício, como ensinou há mais de setenta anos o mestre Marc Bloch.11

2. A Nova História e os (des)caminhos da historiografia moderna: a “virada


cultural” e a encruzilhada teórica

A constituição da Nova História como um modelo historiográfico atualmente


dominante se deu ao longo de um processo de “tensões” e diálogos com as ciências sociais
que emergiram no auge da formação das sociedades modernas. Desde século XIX,

9
C.f. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: A escrita da história. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010, p. 77. A importância nas análises de Certeau a respeito da produção da história
e sua relação com um “lugar social” é fundamental para compreender os limites do possível e do impossível
impostos pelas instituições em suas mais variadas particularidades. Para ele, a história se define por sua
relação com a “linguagem” que esse “corpo” institucional impõe à escrita da história. De modo que “a
articulação da história com um lugar é a condição de uma análise da sociedade”.
10
NOVAIS, Fernando & SILVA, Rogério Fostarieri da. (orgs.). Op.cit., p. 7.
11
C.f. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, o ofício de historiador. Trad. André Telles. Rio de
Janeiro: Zahar, 2001.

5
considerado como o “século da história” foi também o “século das ciências”.12 O discurso
histórico “tradicional” se transforma de maneira definitiva em um discurso historiográfico
“moderno”, observado já nos primeiros manifestos dos Annales.13 Porém, a Nova História
se configurou, sobretudo, nos anos 1970, com a publicação do manifesto faire de
l’histoire (1974)14, ainda sob o impacto de maio de 1968. O elemento principal dessa
metamorfose historiográfica se apresentou com maior amplitude mais por uma inovação
temática do que por mudanças teórico metodológicas. Como acentuou com precisão
Fernando Novais: “a Nova História caracteriza-se, portanto, pela ampla abertura temática,
e esta é a sua grandeza”.15
As contraposições observadas no interior do movimento da Nova História se
apresentam por meio de dualidades importantes para o discurso historiográfico moderno,
como por exemplo narrativa/explicação. Há uma característica de continuidade com os
aspectos primevos da historiografia que não desaparecem de forma definitiva, mas se
incorporam aos novos caminhos percorridos na tentativa de superação da chamada crise
dos paradigmas. O desenho performático da Nova História compreendido a partir de
problemáticas e questões que não podem ser respondidas em um nível puramente teórico
da história da historiografia moderna, se caracterizam principalmente:

Para além da abertura temática, da busca de novos objetos, ela se


contrapõe à tendência dominante do momento que a precedeu,
acentuando a vertente narrativa em detrimento da explicativa, e levando
ao limite essa tendência, isto é, beirando à desconceitualização total [...]
Em muitos de seus cultores, parte-se do pressuposto de que os novos
temas não podem ser tratados a partir de “velhos” conceitos, e muitas
vezes não se procuram novos conceitos; daí resulta, às vezes, como que
uma recusa à análise conceitual, tangenciando a narrativa pura,
voltando curiosamente às formas primitivas da historiografia. No nível

12
A emergências das ciências sociais no longo século XIX se configuraram em compasso com as avanços
materiais da história civilizacional do Ocidente moderno. As condições impostas pelas transformações
trazidas pelo advento das Revoluções Industrial e Francesa, a constituição de uma sociedade urbano-
industrial e a investida imperialista nos continentes asiáticos e africanos, ensejaram uma compreensão
racional de tais fenômenos e abriram definitivamente espaços para abordagens em torno da economia
política, sociologia e antropologia. Para tanto, ver: HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789-
1848. São Paulo: Paz e Terra, 2014., Bem como os outros dois volumes que completam sua trilogia das
eras: “A era do capital: 1848-1875” e “A era dos impérios: 1875-1914”.
13
Nesse aspecto, pode-se observar as inovações apresentadas pelos “pais fundadores”, Marc Bloch e Lucien
Febvre, em interpretações paradigmáticas para o período, observadas em obras elaboradas ainda na primeira
metade do século XX, especialmente Les Rois Thaumaturges: Étude sur Le caractère surnaturel attribué
à la puissane royale, particulièrement en France et em Angleterre (1924) e Rebelais ou Le problème de
l’incroyance au XVI siècle (1942). DOSSE, François. Op.cit., p. 126.
14
NOVAIS, Fernando & SILVA, Rogério Fostarieri da. (orgs.). Op.cit., p. 34.
15
Ibid., p. 33.

6
teórico, essa tendência envolve o não relacionamento com as estruturas
porque (supõe-se) não há estruturas.16

Seguindo de perto as reflexões propostas por Fernando Novais a respeito da Nova


História, torna-se necessário ressaltar a sua insistência em situar uma questão de suma
importância para a história geral da historiografia e, consequentemente, para os
horizontes propostos pela Nova História: a relação da operação historiográfica com o
marxismo. Como já mencionado anteriormente, as questões levantadas pela Nova
História, novos objetos, novos problemas e novas abordagens, colocaram as
interpretações ancoradas no materialismo histórico na periferia teórica do ofício do
historiador. Essa concepção adotada com maior ênfase na terceira fase da revista Annales
rompe de maneira brutal com as perspectivas apresentadas pelos integrantes anteriores.
Mesmo que o marxismo tenha se difundido de maneira tímida entre os Annales, com
exceção de Pierre Vilar, ele sempre esteve presente, de forma indireta (as vezes até direta),
nas análises econômicas e sociológicas de obras monumentais como as Ernest Lebrousse
e fundamentalmente Fernand Braudel.17
Os limites das análises históricas presentes tanto da Nova História como do
marxismo devem ser equacionados e repensados na tentativa de elaboração de caminhos
que contemplem aspectos de um e de outro, sempre levando em consideração as tensões.
Ao que tudo indica essa dinâmica parece estar tomando forma:

Nem a redução da História à análise das estruturas, nem seu


confinamento à narrativa, ainda que densa, de suas migalhas
acontecimentais. No primeiro caso, a História desaparece, ou não é
alcançada; no segundo, a História é amputada de sua dimensão de maior
duração. Entre um e outro extremo, abre-se espaço para experiências e
esforços de realização do ofício. Notemos nesse compasso, que a
perspectiva aqui esboçada ajuda a entender, no plano teórico, a
permanência do grupo dos Annales de historiadores de linhagem
marxista. Abandonadas as posições extremadas, abrem-se os caminhos
para a interpretação dos procedimentos; essa tendência – somos
otimistas – já se vem manifestando recentemente. Por isso, insistimos
no diálogo.18

No afã dos debates teóricos sobre os caminhos da historiografia moderna, Emilia


Viotti da Costa constatatou aspectos que definiu como antidialéticos, denunciando as

16
Ibid., p. 37.
17
FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Trad. L. Roncari. Bauru, SP: Editora
EDUSC, 1998, p. 204.
18
NOVAIS, Fernando & SILVA, Rogério Fostarieri da. (orgs.). Op.cit., p. 57.

7
orientações e inovações reducionistas que acabam por transformar o exercício
historiográfico em algo puramente estético ou retórico.19 Os rumos traçados pela
historiografia que fora abalada pela crise de paradigmas necessita de uma síntese que
englobe aspectos fundamentais para compreensão e reconstituição da história da
humanidade afim de evitar todas as formas de reducionismos.20 A grande questão é tentar
compreender até que ponto a Nova História e sua consequência direta, a Nova História
Cultural, podem equacionar essa dinâmica de abordagens (Nova História e Marxismo), o
que para muitos ainda aparecem como pontos equidistantes que não se tocam.
O desenvolvimento da Nova História Cultural21 direcionou as reflexões acerca da
sociedade para um campo de maior sensibilidade e possibilidades. As reflexões de
Antoine Prost por exemplo, apontam para uma perspectiva de história cultural constituída
em seus entrelaces com uma história das “representações coletivas”, dos grupos sociais e
suas transformações culturais, de forma que “em primeiro lugar, a história cultural não
deve ser confundida com a dos objetos culturais”.22
A história cultural diverge da história dos “objetos culturais”, como uma história
do teatro, da música, da literatura, da escultura, estes possuem um campo constituído,
com métodos próprios. Os historiadores anseiam uma explicação global, pois, “a história
cultural de hoje, aspira em substituir a história total de ontem”.23 Esse empreendimento
não pode ser realizado, segundo Jacques Le Goff, sem a noção e percepção de que toda
história é sempre uma história social.24 Essa proposta busca um retorno à uma
reconstiuição total, sem, contudo, desconsideras aspectos singulares da história da
humanidade, como se pode perceber nas elaborações que são verdadeiras exceções.

19
COSTA, Emilia Viotti da. A dialética invertida e outros ensaios. São Paulo: Editora UNESP, 2004, p.
11.
20
Ibid., p. 28.
21
A história cultural compreende diferentes aspectos conceituais e concepções de abordagens, vistas em:
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003;
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Editora
Universidade/UFRGS, 2002; GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001; HUNT, Lynn (org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins
Fontes, 1992; VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de
Janeiro: Editora Campus, 1997, p. 127-162.
22
PROST, Antoine. Social e cultural indissociavelmente. In: RIOUX, Jean-Pierre e SIRINELLI, Jean-
François (dir.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p. 123.
23
Ibid., p. 124.
24
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas-SP: Editora UNICAMP, 1990, p. 12. REVEL,
Jacques. A invenção da sociedade. Trad. Vanda Anastácio. Lisboa: DIFEL, 1989, p. 7.

8
Especialmente as de Carlo Ginzburg, O Queijo e os Vermes (1976) e Natalie Zemon Davis
com O Retorno de Martin Guerre (1983).25
É indispensável ao historiador da cultura utilizar-se de um amplo conjunto de
conceitos e referências que o possibilite compreender os diferentes processos sociais.
“Para o conseguir, passará a ser uma história social das representações, ou, se preferir,
uma história das representações colectivas. Esta definição, que tende hoje a impor-se,
constitui a finalidade provisória de uma evolução lexical interessante, que os termos
‘civilização’ e ‘mentalidades’ delimitam.”26
A maneira de pensar e fazer história ampliou-se de modo significativo a partir do
diálogo interdisciplinar constituído ao longo do século XX. A história da cultura
encontrou nas ciências sociais – sobretudo, na antropologia27 – abordagens e
interpretações que reequacionaram as dimensões teóricas do materialismo histórico28,
permitindo um mergulho nas sensibilidades dos diferentes grupos sociais, bem como a
compreensão de um conjunto de atitudes, experiências e ações simbólicas das dinâmicas
culturais29, porém sem perder do horizontes historiográficos aspectos mais totalizantes.
A partir dessa perspectiva, as investigações e análises empreendidas pelo
historiador por meio das representações sociais e simbólicas serão realizadas e orientadas
por métodos específicos.30 A maneira de interrogar os textos se modificou, pois, ao
historiador “interessará menos pelo que eles dizem do que pela maneira como dizem,
pelos termos que utilizam, pelos campos semânticos que traçam.”31 O texto tomado pelo
historiador como documento é lavado ao “banco dos réus” e interrogado a partir de
métodos críticos embalados pela tensão dialógica com as ciências sociais.
Os interesses dos historiadores culturais voltaram-se, sobretudo, para os “arquivos
sensíveis”. Explorando possibilidades dentro do campo simbólico, com a finalidade de
compreender as representações sociais dos diferentes grupos e extraindo explicações de
suas mais diversas vozes, partindo de uma perspectiva na qual a história cultural é
indissociavelmente social.32 As experiências estéticas dos grupos sociais possuem

25
COSTA, Emilia Viotti da. Op.cit., p. 15.
26
PROST, Antoine. Op. Cit., p. 126.
27
C.f. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
28
Para compreensão do materialismo histórico em suas aberturas para perspectivas antropológicas na
historiografia moderna, ver: THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e História Social. In: As
peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 227-267;
WILLIANS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
29
PROST, Antoine. Op.cit., p. 127.
30
Ibid., p. 129.
31
Ibid., p. 130.
32
Ibid., p. 134.

9
relevância, pois, é por meio de sua reconstrução que o historiador busca capturar, com
profundidade, as vivências e as sensibilidades dos indivíduos na história. Não há
compreensão histórica sem a percepção crítica das mudanças que ocorrem nas sociedades,
nas transformações das culturas e na própria forma de analisá-las. O historiador assume
os riscos de uma história da cultura pensada de maneira ampla, consciente dos
deslocamentos de problemas e questões em seus múltiplos aspectos.33
Essa perspectiva de história cultural está ligada a uma corrente francesa das
décadas de 1980/1990, considerada como resposta direta da historiografia ao linguistic
turn e ao relativismo pós-moderno34, além de se impor com uma proposta de renovar a
história social através do cultural. “Essa corrente de história social, muito diversificada,
permanece muito viva na França, em particular ao redor da revista Le Mouvement Social
e da principal instituição da história social renovada, o Centre d’Histoire Sociale du XX
siècle (CHS), ligado à Universidade de Paris I”.35 Além de uma história cultural
indissociavelmente social, ligada às representações, essa corrente histórica, se aproxima
dos “imaginários sociais” e das “culturas sensíveis”, através das representações da
paisagem e dos “comportamentos coletivos”.36 Dos modelos historiográficos que se
constituíram nesse movimento, a micro-história italiana e suas reduções na escala de
observação, se apresenta como um dos mais interessantes no que diz respeito a diálogos,
tensões e reconstruções.

3. Carlo Ginzburg: a micro-história em perspectiva

“Poucos historiadores hoje vivos são tão originais como Carlo Ginzburg, poucos
escrevem tão bem quanto ele e ainda menos compartilham de sua notável amplitude de
interesses”.37 Carlo Ginzburg, de ascendência judia, nasceu em Turim, Itália, no ano de
1939. Cresceu em um ambiente intelectual extremamente favorável, sendo o seu pai,
Leone Ginzburg, ex-professor de literatura russa que lutou contra o fascismo e foi morto
na prisão em 1944. Sua mãe, uma celebre romancista, Natalia Ginzburg, foi amplamente

33
Ibid., p. 137.
34
Sobre o debate epistemológico que envolve o linguistic turn e o relativismo na historiografia moderna,
ver: GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras,
2002; WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1992.
35
DELACROIX, Christian, et. alli. As correntes históricas na França: séculos XIX e XX. São Paulo:
Rio de Janeiro: Editora FGV; São Paulo: Editora UNESP, 2012, p. 401.
36
Idem.
37
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história. Nove entrevistas. São Paulo:
Editora Unesp, 2000.

10
reconhecida no âmbito literário italiano. Ginzburg estudou na Scuola Normale Superiore
de Pisa, onde graduou-se em História e Antropologia. Foi durante muito tempo professor
titular de História Moderna na Universidade de Bolonha. Atualmente é considerado um
dos maiores intelectuais da segunda metade do século XX.
Entre suas contribuições de grande impacto na historiografia cultural moderna,
estão: Os Andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII (1966),
O queijo e os Vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição
(1976), Investigando Piero (1981), Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História
(1989), História Noturna: Decifrando o Sabá (1991), , Relações de Força (2001), Olhos
de madeira (2003), O fio e os Rastros (2007) e Medo, Reverência, Terror (2014), entre
outros ensaios que compõem uma série de estudos desafiadores e inovadores acerca do
sentido da historiografia moderna e do ofício do historiador.
A importância de Carlo Ginzburg para a historiografia moderna pode ser medida
pela forma como aborda diferentes temas, fontes e problemas. Ela demonstrou algumas
possibilidades de realização de uma “síntese” entre os caminhos delineados pela Nova
História Cultural e o materialismo histórico, o qual nunca perdeu completamente de vista,
dado os percursos de sua formação como historiador e intelectual.38 O impacto de seus
estudos culturais sobre as perseguições em torno da bruxaria entre os século XVI e XVII
introduziu um novo olhar na historiografia que ainda estava delimitada no conceito de
“mentalidade coletiva”, o que se revelou insuficiente para compreensão da complexa
relação entre “cultura erudita” e “cultura popular”, dilema enfrentado por Ginzburg,
sobretudo, em O Queijo e os Vermes (1976).
Porém, foi em sua primeira aventura intelectual, Os Andarilhos do Bem (1966),
no qual apresenta a análise de um processo inquisitorial do Friul em que observa a
sobrevivência de cultos de fertilidade das colheitas agrárias, os benandanti que foram
interpretados e julgados como cultos de bruxaria39, ele utiliza o termo “mentalidade
coletiva”, se propondo a correr todos os riscos que ele carregava. Posteriormente, em
1972, na ocasião de um pós-escrito da obra, comenta: “hoje não repetiria mais a ingênua

38
As referências intelectuais de Ginzburg são as mais variadas possíveis, mas se forem pensadas de maneira
sintética, pode-se dizer que estão concentradas entre a forte influência que teve o pensamento de Antonio
Gramsci na Itália do pós-guerra, de historiadores como Benedetto Croce e Delio Cantimore e,
fundamentalmente, da leitura realizada ainda na juventude de Marc Bloch, familiarizando-o com a
movimento historiográfico dos Annales. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da
história. Nove entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
39
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.

11
contraposição entre ‘mentalidade coletiva’ e ‘atitudes individuais”. 40 No entanto, a obra
carrega em si uma originalidade inquestionável, pois, contribuiu de forma definitiva para
e reconstituição e recuperação da memória coletiva italiana.
As “batalhas noturnas” analisadas por Ginzburg são reconstruídas desde que se
iniciou um processo de investigação pelo Santo Ofício a respeito de Paolo Gasparutto,
sujeito que supostamente seria capaz de curar enfeitiçados e afirmava “vagabundear” pela
noite, juntamente com feiticeiros e duendes. Ao ser interrogado, Gasparutto afirma poder
combater os malefícios causados por bruxas e feiticeiros e,

Na quinta-feira de cada um dos quatro tempos do ano, eles deviam


andar junto com esses feiticeiros por diversos campos, como Cormons,
diante da igreja de Iassico, e até pelo campo de Verona, onde
combatiam, brincavam, pulavam e cavalgavam diversos animais e
faziam diversas coisas entre si, e as mulheres batiam com caules de
sorgo nos homens que estavam com elas, os quais só carregavam nas
mãos ramos de erva-doce.41

Pode-se observar como esses ritos possuíam um caráter agrário, compondo um


conjunto de crenças folclóricas que estavam voltadas essencialmente para a fertilidade
das colheitas de trigo. A construção de um discurso demonológico pelo Santo Ofício
começa a ser arquitetado, devido à incredulidade dos depoimentos de Gasparutto, que se
mostram contraditórios, em relação a outros interrogados. O sujeito Battista Moduco, por
exemplo, afirmou ser benandanti42 em praça pública e afirmou que “costuma sair à noite,
especialmente na quarta feira, para combater com os feiticeiros do mal”. 43 Através de
uma série de interrogações chegou-se à conclusão que todos tinham algo em comum em
seus depoimentos: afirmavam ser benandanti e sair à noite em “êxtase” para combater os
malandanti44, em prol de uma boa colheita, além disso, para ser um benandanti era
preciso ter nascido “empelicado”:

Quanto ao “pelico”, que já declarou ser sinal distintivo dos benandanti,


Moduco afirma tê-lo carregado sempre em torno do pescoço, até o
momento em que, tendo-o perdido, deixou de sair à noite, já que
“aqueles que têm o pelico e não o vestem não vão.45

40
Ibid., p. 15-16.
41
Ibid., p. 19.
42
Vocábulo utilizado referente a “andarilhos do bem”, praticantes dos ritos de fertilidade.
43
GINZBURG, Carlo. Op.cit., 1988, p. 20.
44
Termo designado para “andarilhos maléficos” que remete aos feiticeiros que são combatidos pelos
benandanti.
45
GINZBURG, Carlo. Op.cit., 1988, p. 31.

12
Ginzburg demonstra ao longo de sua narrativa que as interrogações supostamente
ocorreram em regiões muito próximas, de modo que muitos depoimentos apresentaram
semelhanças em suas particularidades. Em “as procissões dos mortos”, observa-se como
esse conjunto de crenças remetia ao contato com os mortos e como pessoas que habitavam
a região do Friul foram interpretadas como praticantes de feitiçarias, pois

O falar com os mortos” foi acrescentado às viagens, em êxtase, noturnas


realizadas pelos benandanti sendo associado a uma prática ligada ao
demônio. Dessa forma o conjunto de crenças vai sendo direcionado pelo
discurso Clerical, que faz a ligação de que “[...] quem vê os mortos,
quem caminha com eles, é um benandanti.46

É possível perceber claramente como essas crenças populares, simbólicas, que


pertenciam a uma determinada região foram interpretadas de acordo com uma
“mentalidade” do tribunal do Santo Ofício, ou seja, não estavam configuradas nos moldes
do cristianismo, por isso eram vinculadas ao pacto com o demônio. “[...] O mito dos
benandanti liga-se, portanto, por múltiplos laços, a um conjunto de tradições, mais vasto,
largamente difundidas durante quase três séculos, numa área bem delimitada”.47 O
desdobramento dessa trajetória de pesquisas a respeito culminou anos depois na tentativa
de elucidar a relação entre feiticeiros e xamãs na construção de mitos com os processos
de exclusão por trás das reuniões noturnas que se configuraram como sabá na cultura
euroasiática.48
Mas foi somente depois que trouxe a público a instigante trajetória de Domenico
Scandella, o Menochio, que Ginzburg se insere de maneira definitiva na historiografia
moderna dedicada aos estudos da cultura popular.49 A narrativa trata de um moleiro
julgado e queimado como herege pelo Tribunal do Santo Ofício. As leituras
cosmogônicas feitas pelo simples sujeito, um “extraordinário homem comum”, lhe deram
uma visão de mundo particular acerca da realidade, na qual afirmava que a criação de
tudo havia ocorrido de forma caótica “do mesmo modo que o queijo é feito de leite, do

46
Ibid., p. 61.
47
Ibid., p. 83.
48
C.f. GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
49
C.f. BURKE, Peter. Cultura popular da Idade Moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989; DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história
cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986; LADURIE, Emanuel Le Roy. O carnaval de Romans:
da candelária à quarta-feira de cinzas, 1579-1580. São Paulo: Companhia das Letas, 2002.

13
qual nascem os vermes.”50 Ou seja, para se chegar ao mundo cultural dos acusados, foi
necessário atravessar o filtro que é ponto de vista do inquisidor do século XVI, ele mesmo
mergulhado em uma cultura própria, particular, colocando assim a necessidade, por parte
do historiador, de compreensão do mundo através do outro.51 O impacto da narrativa
sobre Menochio consolidou a chamada “história vista de baixo” e redefiniu as discussões
a respeito do conceito de cultura popular.52
Ao se deparar com a problemática que envolve as ambiguidades nas aplicações
conceituais de “cultura erudita” e “cultura popular”, Ginzburg recorre ao prodigioso
estudo de Mikhail Bakhtin, sobretudo, sua obra de maior expressão: Cultura Popular da
Idade Média e no Renascimento (1965). A partir desse diálogo, constata que a existência
de culturas hegemônicas relacionadas ao popular e ao erudito constituem-se numa
armadilha bastante comum entre os historiadores. O que se apresenta com maior
coerência nos estudos sobre cultura seria então o conceito de “circularidade cultural”
formulado por Bakhtin,53 que consiste em uma “influência recíproca entre a cultura das
classes subalternas e a cultura dominante.”54 Ou seja, ao elaborar uma obra como O
Queijo e os Vermes, Ginzburg reorienta a historiografia e questiona o ofício do historiador
frente aos problemas apresentados pela documentação, que no caso da cultura popular se
mostra quase sempre de maneira indireta. Esse procedimento definidor da micro-
história55 pode ser melhor compreendido a partir da análise do “paradigma indiciário”.
Ao procurar delinear os caminhos e a maneira como reconstrói os eventos
históricos, Ginzburg retorna para o final do século XIX para definir o que é, de fato, o
método indiciário. O objetivo de trazer a luz esse modelo epistemológico, ou seja, um
paradigma, é esclarecido logo no início: “a análise desse paradigma, amplamente
operante de fato, ainda que não teorizado explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos

50
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
51
GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso fictício.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 280.
52
BURKE, Peter. Op.cit., 2008, p. 62.
53
C.f. BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
54
GINZBURG, Carlo. Op.cit., 1987, p. 23.
55
C.f. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989; LEVI, Giovanni.
Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:
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indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006; REVEL, Jacques (org.). Jogos de
escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.

14
incômodos da contraposição entre ‘racionalismo’ e ‘irracionalismo”.56 Para isso, ele vai
equacionar três principais modelos interpretativos que utilizam o método indiciário: a
história da arte italiana, por meio de Giovanni Morelli, a psicanálise de Sigmund Freud e
as aventuras detetivescas de Sherlock Holmes representadas na literatura de Arthur Conan
Doyle. A ligação entre eles, segundo Ginzburg, estaria no fato dos três apresentarem
ligações com a semiótica médica na busca de “pistas”, “sintomas” e “indícios”.57
A constituição desse “patrimônio” cognoscitivo, que permitiu a Morelli elaborar
um método de catalogação de obras de arte por meio da descrição detalhada de aspectos
imperceptíveis nas cópias, como os “lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos
das mãos e dos pés.”58 Já Freud buscou em sua interpretação dos sonhos os resíduos,
sobre os dados marginais do inconsciente, considerados reveladores do espírito humano.59
Nos romances de Sherlock Holmes e seus variados exemplos de perspicácia para
desvendar crimes se baseia, sobretudo, no ato “de interpretar pegadas na lama e cinzas de
cigarro.”60 Todo esse procedimento baseado na semiótica se afirma no século XIX,
porém, suas raízes podem ser buscadas num passado muito mais distante na história da
humanidade:

Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele


aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis
pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de
pelos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar,
registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de
barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez
fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de
ciladas.61

Dessa forma, o bom historiador pode ser comparado ao detetive que descobre o
autor de um crime por meio das mais diversas pistas; ao médico que elabora um
diagnóstico de um paciente, ou mesmo a um caçador que fareja sua presa. Como acentuou
Marc Bloch, o historiador se parece com “ogro da lenda, onde fareja carne humana, sabe
que ali está sua caça”.62 Esses procedimentos estão no interior das reconstruções dos

56
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia
e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143.
57
Ibid., p. 150-151.
58
Ibid., p. 144.
59
Ibid., p. 149-150.
60
Ibid., p. 145.
61
Ibid., p. 151.
62
BLOCH, Marc. Op.cit., p. 54.

15
micro-historiadores, mas não somente. Se apresentam para o pensamento historiográfico
de uma maneira geral como uma resposta à contraposição racionalismo e irracionalismo
e destacam, sobretudo, a importância da sensibilidade do ofício de historiador ao se
deparar com os “fios e os rastros” das evidências, qual seja, a de “destrinchar o
entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama de nosso estar no mundo.”63

4. Considerações finais

As considerações acerca da Nova História no movimento da historiografia


moderna e a constituição de um modelo voltado, sobretudo, para abordagens em torno de
aspectos culturais com um forte diálogo com a antropologia, foram fundamentais para
caracterização de como os caminhos de se pensar e fazer história se transformaram
profundamente nos últimos trinta anos. Atualmente, a predominância de pesquisas
históricas aparenta uma preocupante relação com a “verdade” e a “realidade”, com
análises que caminham no sentido de uma “história em migalhas” ainda mais
intensificada, produzindo, muitas vezes, um diálogo de surdos.
A história não pode se curvar de maneira definitiva à fragmentação, sem deixar
de levar em conta análises de processos mais gerais da história da humanidade.
Atualmente há uma demanda que cresce a cada dia e busca responder questões
relacionadas à identidade de grupos específicos, considerados a margem da sociedade,
como uma “História das Mulheres”, “História dos Homossexuais” e “História dos
Afrodescendentes”, para ficar apenas em alguns dos mais expressivos exemplos. Cabe
questionar, como fez Eric Hobsbawm, será que basta uma história das identidades? De
fato, a importância em compreender e dar voz a essas demandas é fundamental para o
avanço da historiografia, porém, tal empreitada não deve ser feita sem estabelecer um
diálogo teórico-metodológico que não perca de seus horizontes historiográficos aspectos
universais, sem o qual não há uma compreensão e, portanto, uma reconstrução pertinente
do passado e da história das sociedades da qual esses grupos estão irremediavelmente
inseridos.
As reconstruções e projeções teóricas realizadas por Carlo Ginzburg são um
exemplo de como é possível realizar um trabalho historiográfico dotado de preocupações
com questões específicas, fragmentárias, mas que não abandoam aspectos totais que as

63
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso fictício. São Paulo: Companhia das Letras,
2007, p. 14.

16
envolve. A reivindicação cética proposta pelas ondas do relativismos pós-moderno que
invadiram as ciências humanas é de fato um problema a ser enfrentado pelos historiadores
contemporâneos preocupados com o sentido e os efeitos que a escrita da história produz
na sociedade, qual seja, a da reconstrução que busca em última instância a recuperação e
consolidação da memória coletiva.
Nesse aspecto, as colocações de Emilia Viotti da Costa e Fernando Novais se
apresentam como das mais coerentes e significativas, pois, uma história que não
vislumbre uma síntese entre os caminhos delineados pela Nova História e as críticas
estruturais realizadas pelo materialismo histórico pode colocar em cheque o caráter
reflexivo e social da análise do passado. Nesse sentido, pensando no movimento da
historiografia, percebe-se que a operação histórica ainda vai trazer grandes mudanças e
apresentar novos problemas à comunidade de historiadores. Para o bem ou para o mal, a
história não é estática, está sempre em movimento, porque os problemas e dilemas
vivenciados pelas sociedades mudam com certa frequência e com eles os caminhos e
descaminhos de nossa historiografia.

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