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ISSN: 19837429 n.

11 – março de 2013 - Linguagens

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: UMA PROPOSTA DE LEITURA DA CONDIÇÃO


FEMININA NA SOCIEDADE ATUAL

Adriele Gehring1 (UEM)


447
Maiara Cristina Segato2 ( UEM)
Wilma dos Santos Coqueiro3 ( UFPR/UEM)

RESUMO: Este artigo propõe um trabalho para as aulas de Língua Portuguesa e


Literatura, no ensino médio, sob a perspectiva da Estética da recepção.
Progressivamente, partimos de propagandas publicitárias, em seguida, músicas
populares e, por fim, chegamos ao conto “I love my husband” de Nélida Piñon. O
objetivo principal consiste em levar os alunos a refletirem criticamente sobre a
representação da mulher na sociedade, por meio de papéis estereotipados, ampliando
seus horizontes de expectativas em relação à temática, conforme propõe o método
recepcional. Desse modo, este trabalho respalda-se nos postulados da Estética da
recepção (JAUSS, 1994; BORDINI, AGUIAR, 1993) e nos estudos da Teoria Crítica
feminista (BADINTER, 1986; ZOLIN, 2009; XAVIER, 1998, 1999).
PALAVRAS-CHAVE: Estética da Recepção; Ensino de literatura; Crítica feminista;
Representação Cultural Feminina; Conto.

ABSTRACT: This article proposes a work for the classes of Portuguese and Literature
in the high school, under the perspective of Aesthetics of reception. In a progressive
way, the work started with advertisement genre, then, popular songs and at last, the tale
“I love my husband” by Nélida Pinõn. The main objective consists of leading the
students to meditate critically about the representation of women in the society, through
stereotyped roles magnifying their horizons of expectations regarding to the thematic,
according to the proposal of the method of reception. This way, this work backboards
the postulate of the Aesthetics of reception (JAUSS, 1994; BORDINI, AGUIAR, 1993)

1
Mestranda em Estudos Literários (Universidade Estadual de Maringá (UEM) – PR, Brasil). Integrante
do Grupo de Pesquisa Diálogos Literários. E-mail: adrielegehring@hotmail.com. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8676094425864708
2
Mestranda em Estudos Literários (Universidade Estadual de Maringá (UEM) – PR, Brasil). Integrante
do Grupo de Pesquisa Diálogos Literários. E-mail: maiarasegatoletras@gmail.com. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5617085151078381
3
Docente do Departamento de Letras (Universidade Estadual do Paraná – Campus de Campo Mourão
(UNESPAR/FECILCAM) – PR, Brasil). Doutoranda em Estudos Literários (Universidade Estadual de
Maringá (UEM) – PR, Brasil). Membro dos Grupos de Pesquisa em Diálogos Literários, GELBC e
LAFEB. E-mail: wilmacoqueiro@ibest.com.br. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0153461918591041
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and on the studies of the Feminist Critical Theory (BADINTER, 1986, ZOLIN, 2009;
XAVIER, 1998, 1999).
KEYWORDS: Aesthetic of Reception; Teaching of Literature; Feminist Criticism;
Feminine Cultural Representation; Tale.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 448

A escola se reformula a cada dia, funcionando como um elemento de iniciação à


sociedade, pregando valores ideológicos e inserindo novos cidadãos. Dessa forma, a
expansão cultural que vivemos assinala o início de novas oportunidades de acesso ao
saber, sendo que a maior de todas elas é o direito de todos de frequentar a escola e
usufruir dela tudo o que lhe for necessário. Uma das melhores e principais
consequências da escola na vida de uma pessoa é o domínio da habilidade de ler, fato
que percebemos essencial para a democratização do saber. A partir disso, podemos
utilizar o caráter humanizador da literatura, que é segundo Candido (1989), a principal
função da literatura.
Justamente por desencadear esse processo de democratização do saber e maior
contato com nossos bens culturais, a escola não pode negligenciar de seu papel de
transformação social, partindo daquilo que seu aluno traz em sua bagagem e ampliando
seus horizontes e expectativas. Nesse sentido, um trabalho bem elaborado de recepção
de leitura pode auxiliar alunos e professores na busca pelo saber, pois, conforme
Bragatto Filho (1999, p.14), “o texto literário não constitui, a priori, um texto utilitário.
São os seus leitores que, a partir do diálogo com o mesmo, lhe atribuem diferentes
funções ou finalidade”, sendo este o objetivo fundamental do trabalho com a leitura:
permitir que os alunos sejam capazes de utilizar suas leituras em diferentes níveis e
situações.
Nessa perspectiva, o trabalho com a Estética da Recepção se mostra eficiente, se
levarmos em consideração o fato de que esse método busca não só a apresentação de
grandes textos literários, mas que parte do conhecimento prévio do aluno, utilizando-se
de todas as suas leituras de mundo até chegar, então, ao novo, que deveria ser
desconhecido, mas que após esse processo, torna-se mais fácil e agradável.

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Por força da ordem patriarcal, que tem caracterizado a nossa sociedade ao longo
dos séculos, ainda são comuns as piadas, músicas, comerciais, filmes, novelas, etc., que
disseminam representações degradantes e constrangedoras sobre mulheres, reforçando a
rotulação feminina. Podemos notar a imagem da mulher como “objeto”, como dona de
449
casa submissa, sem identidade própria, que vive para o marido e para o lar, como
símbolo sexual, como no caso de propagandas de cervejas nas quais, com raras
exceções, a estrutura dos comerciais não muda: a mulher quase desnuda, a cerveja
gelada e o homem ávido de sede. A mulher não é “como se fosse a cerveja”: ela é a
própria cerveja. Está ali para ser consumida silenciosamente, passivamente, sem esboçar
reação, pelo homem. A mulher é vista ainda como promíscua e, ao mesmo, tempo
independente e liberada, retratada nas músicas de forma depreciativa, representando
mulheres que cedem prontamente aos convites sexuais masculinos.
Portanto, a escolha temática da representação social feminina, como objeto de
reflexão nas aulas de Língua Portuguesa e Literatura, no Ensino Médio, nos gêneros
propaganda, música e conto, deve-se ao fato de que estão explícitas as representações
dos estereótipos femininos em tais gêneros.
A seguir, discutiremos tanto a orientação teórica, a qual sustenta a Estética da
recepção e a Teoria crítica feminista, quanto apresentaremos encaminhamentos práticos
para efeito de trabalho em sala de aula.

1 A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E O ENSINO DE LITERATURA

A escrita é a vitória da memória, presente em todas as sociedades ágrafas e cada


vez mais valorizada nas sociedades mais desenvolvidas. A apropriação do
conhecimento, através da leitura, tem sido um dos grandes meios de aprendizado
utilizado pelas classes que detém o poder dentro das sociedades. Assim, o domínio do
código linguístico escrito divide os segmentos sociais em “cultos” e “incultos”,
estabelecendo um padrão de desigualdade entre indivíduos alfabetizados e analfabetos,
que são obrigados a viver em uma mesma sociedade, tomada de elementos que os
colocam em confronto contínuo.
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A escola, lugar de socialização do conhecimento sistematizado, deve ser também


o lugar para a identificação, leitura e trabalho de textos escritos, a todos que a ela tem
acesso. Sendo assim, “conferindo à escola a função de formar o leitor, destruiu-se a
noção de texto como representação simbólica de todas as produções humanas, restando
450
o livro para mediação de qualquer conhecimento” (BORDINI & AGUIAR, 1993, p.11).
O acesso aos livros que, em anos passados, era exclusividade de uma pequena elite
dominante e detentora do conhecimento, agora passa a ser mais democrático, com o
acesso facilitado que se tem à escola e os diferentes métodos de trabalho desenvolvidos
por professores de todas as áreas.
Em nossa sociedade desigual, seja no âmbito financeiro, seja no do
conhecimento, uma possível solução para a igualdade na leitura seria o pluralismo
cultural, com a oferta de diversos tipos de textos, que deem conta de nossas diferentes
classes sociais, com diferentes gostos e diferentes níveis de saberes. “Uma das unidades
fundamentais do homem é dar sentido ao mundo e a si mesmo e o livro, seja
informativo ou ficcional, permanece como veículo primordial para esse diálogo”
(BORDINI & AGUIAR, 1993, p.13). Assim sendo, tornamos mais fácil esse contato
com a leitura, quando a trabalhamos desde cedo, com métodos específicos, que visem
valorizar o leitor e seu conhecimento de mundo.
Esse método surge com a Estética da recepção, teoria literária oriunda de um
movimento estudantil, no ano de 1967, que pedia reformas educacionais e questionava
os métodos tradicionais de ensino de leitura, pois, na concepção de seu criador, Hans
Robert Jauss (1994, p.23), “ambos os métodos o formalista e o marxista, ignoram o
leitor em seu papel genuíno”. A Estética da recepção surge como uma tentativa de
superar o formalismo, pois, para Jauss (1967), a obra de arte não está somente nos
textos, nem somente nas leituras, mas entre os dois. Acontece um ponto de
convergência entre o texto e o leitor, mas que não era levado em conta nos métodos
utilizados até então, pelo meio dos quais os alunos tentavam entender “o que o autor
quis dizer”, ou aceitavam a leitura que era feita pelo professor ou pelo crítico literário,
detentores de todo o saber.

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Nessa perspectiva, o autor não é mais considerado o dono do sentido de seu


texto, mas um mero personagem dele. Por outro lado, o texto também não é mais uma
mera organização linguística, que transmite as ideias de seu autor. Assim, “o leitor é a
instância responsável por atribuir sentido àquilo que ele lê. A materialidade do texto, o
451
preto no branco do papel, só se transforma em sentido quando alguém resolve ler”
(ZAPPONE apud BONNICI; ZOLIN, 2009, p.154). Dessa forma, podemos dizer que o
princípio da estética da recepção, seja qual for sua vertente, é recuperar os
conhecimentos prévios do leitor e utilizar isso a favor de sua leitura e do estudo da
história literária, já que ler é também criar o texto.
O trabalho com a leitura, por meio da estética da recepção, se dá a partir de
textos que corroborem para o aprendizado e assimilação dos conhecimentos dos alunos,
pois cada obra que surge “não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio,
mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou
condições implícitas, que predispõem seu público para recebê-la” (JAUSS, 1994, p.28).
Essas leituras prévias despertam lembranças de conhecimentos prévios que auxiliam no
processo de aquisição do conhecimento. Além disso, ensejam expectativas no leitor,
antecipando seu horizonte de compreensão e determinando sua postura emocional, com
relação ao que virá posteriormente.
De acordo com essa nova vertente, temos uma nova categoria para pensar no que
realmente seria a literatura e como pode ser trabalhada de maneira eficiente, visto o
grande déficit que se tem na educação pública em todo o país. Percebemos, então, que
os textos são passíveis de diferentes recepções, quando lidos por públicos de diferentes
idades, credos, sexo, classe social, o que modifica o status do texto e nos dá novos
critérios para definição do que é ou não é literatura. Para Jauss (1994, p.24), esses novos
critérios são estabelecidos através do “experiênciar dinâmico da obra literária por parte
de seus leitores”.
Nesse viés, o autor aponta um novo modo de ver a literatura, por meio da
recepção de seu público, pensando-a como uma categoria histórica e social, que está em
contínua transformação, privilegiando não mais componentes estáticos, que se

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apresentem isoladamente na composição do significado, mas um conjunto indispensável


a todo trabalho com leitura, que não pode ser visto separadamente: autor/obra/leitor.
Desse modo, baseados no trabalho com a estética da recepção, as autoras, Maria
da Glória Bordini e Vera Teixeira Aguiar, criaram o método recepcional, a fim de
452
formular possibilidades mais eficientes ao ensino de literatura. Esse método fundamenta
o ensino de literatura nas escolas, conforme os critérios pré-estabelecidos pelas DCEs
(2008).

Sob esse enfoque sugere-se, nestas Diretrizes, que o ensino da


literatura seja pensado a partir dos pressupostos teóricos da Estética da
Recepção e da Teoria do Efeito, visto que essas teorias buscam formar
um leitor capaz de sentir e de expressar o que sentiu, com condições
de reconhecer, nas aulas de literatura, um envolvimento de
subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor, por meio
de uma interação que está presente na prática de leitura. (DCEs, 2008,
p.58)

Para esse trabalho, utilizaremos como embasamento teórico-metodológico o


Método Recepcional, a partir da Estética da Recepção. O Método Recepcional
fundamenta-se na atitude participativa do aluno com os diferentes textos, do qual ao
defrontar-se com esses textos, mobiliza as lacunas nele existentes, através das suas
experiências linguísticas e sociais. O Método Recepcional é composto por cinco etapas,
sendo elas: (1) Determinação do Horizonte de Expectativas; (2) Atendimento do
horizonte de expectativas; (3) Ruptura do horizonte de expectativas; (4)
Questionamento do horizonte de expectativas e (5) Ampliação do horizonte de
expectativas.
Através do Método Recepcional, o primeiro passo a ser tomado é o de
determinar o horizonte de expectativas da classe, como valores, crenças, estilos,
preferência de leitura, interesses e etc. O segundo passo é atender o horizonte de
expectativas, permitindo o acesso e experiências com os textos que satisfaçam suas
necessidades. Em seguida, o terceiro passo é abalar as certezas dos alunos, fazendo
uma ruptura no horizonte de expectativas, levando-os às diferentes interpretações, às
discussões e reflexões, a fim de que, no quarto passo, questionem o horizonte de
expectativas, resultando, no quinto passo, em uma tomada de consciência, ou seja, uma
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ampliação do horizonte de expectativas. Essa tomada de consciência é uma atitude


individual e grupal dos próprios alunos. Deve-se salientar que sua verbalização acontece
por iniciativa dos mesmos, sem intervenção direta do professor. O papel do professor é
o de provocar seus alunos e criar condições para que eles avaliem o que foi alcançado e
453
o que resta a fazer. Desse estágio em diante, reinicia-se todo o processo do método,
com a ressalva de que a etapa inicial já conta com a participação dos estudantes e,
portanto, proporciona uma carga de motivação bem mais elevada.
Ao final da etapa proposta no método, objetiva-se o aprimoramento da leitura
numa percepção estética e ideológica mais aguda e com a visão crítica sobre sua atuação
e a de seu grupo. Portanto, o aluno torna-se agente de aprendizagem, determinando ele
mesmo a continuidade do processo, num constante enriquecimento cultural e social.

2 A CONDIÇÃO FEMININA NA SOCIEDADE E A EMERGÊNCIA DA


LITERATURA DE AUTORIA FEMININA

A crítica feminista, Elisabeth Badinter, afirma que, no decorrer da história, em


diferentes sociedades, o patriarcado mostrou faces diversificadas, mas sempre marcadas
pela exclusão da mulher. Para ela, esse não foi “um simples sistema de opressão sexual.
Também é a expressão de um sistema político que, em nossas sociedades, se apoiou
numa teologia” (BADINTER, 1986, p. 125). Desse modo, ela evidencia o papel das
religiões na dominação masculina. Na opinião da autora, “a relação homem-mulher
inscreve-se num sistema geral de poder que comanda as relações dos homens entre si”
(BADINTER, 1986, p. 125).
Isso fez com que, historicamente, a mulher sempre ocupasse uma posição de
inferioridade e submissão no meio social e na hierarquia familiar. Sendo assim, em
meados da década de 60, em meio a vários movimentos de contestação, começam a
emergir lutas, conquistas e inquietações femininas na busca por um espaço, por
autonomia, por uma identidade própria, questionando os valores conservadores
impostos e mostrando a insatisfação com o lugar ocupado.

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As mulheres se tonam libertárias e revolucionárias, passam a ter controle sobre o


próprio corpo, em virtude das pílulas anticoncepcionais, conquistam um espaço no
mercado de trabalho, ocupando profissões tidas como masculinas. De certa forma,
ocorre a emancipação política e social feminina. Nesse contexto, surgem discussões e
454
estudos feministas, dos quais se observam um interesse pela questão da alteridade. O
espaço relegado à mulher, na sociedade, fez com que seu papel, tanto no âmbito social
quanto no acadêmico, ficasse à margem do papel central ocupado pelo homem,
atribuindo-lhe assim, uma alteridade, ou seja, uma exterioridade em relação ao que é
considerado centro.
A partir do movimento político e social feminista, nasce a crítica feminista que
atua interferindo na ordem social, pois trabalha no sentido de desconstruir as ideologias
de gênero construídas e sustentadas pela cultura, desmistificar a oposição homem-
dominador/mulher-dominada, desestabilizar a legitimidade da representação, ideológica
e tradicional, da mulher na literatura canônica, despertando, assim, o senso crítico em
relação às convenções sociais e transformando a condição de subjugada da mulher:

Trata-se de romper com os discursos sacralizados pela tradição, nos


quais a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar ocupado pelo homem,
marcado pela marginalidade, pela submissão e pela resignação. Tais
discursos não só interferem no cotidiano feminino, mas também
acabam por fundamentar os cânones críticos e teóricos tradicionais e
masculinos que regem o saber sobre a literatura. Assim, a crítica
feminista trabalha no sentido de desconstruir a oposição
homem/mulher e as demais oposições associadas a esta, numa espécie
de pós-estruturalismo. (ZOLIN apud BONNICI; ZOLIN, 2009, p.
218)

A mulher não existia como sujeito social, tampouco como sujeito literário, pois
se manteve por muito tempo invisível, no que se refere à produção literária e à produção
crítica e teórica, espaço tradicionalmente demarcado pelo homem. Do mesmo modo, as
produções literárias canônicas sempre foram ocupadas por escritores masculinos, os
quais representavam a mulher, ideologicamente, sob um estereótipo negativo, por meio
de emblemáticos papéis femininos associados à passividade e à objetificação,
chancelando a ideologia patriarcal e legitimando as ligações entre sexo e poder.

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A crítica feminista tem o objetivo de contestar o patriarcado, reivindicando a


visibilidade e legitimidade da mulher como sujeito histórico nos contextos sociais e
literários, “questionando fatores como poder, valor, hierarquia, responsáveis pela
canonização de uns e pela exclusão de outros” (XAVIER apud RAMALHO, 1999,
455
p.15). Entretanto, a crítica feminista não prega a abolição do cânone, mas sim a sua
flexibilidade, permitindo a valorização de obras invisíveis, até então.
Embora não tenha aparecido na historiografia literária, a mulher sempre
produziu literatura. Desse modo, a norte-americana Elaine Showalter investiga a
trajetória da literatura de autoria feminina no romance inglês a fim de “perceber a
recorrência de geração para geração, a determinados padrões, temas, problemas e
imagens” (ZOLIN apud BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 329), ou seja, as características
dos textos femininos de cada época, denominada por ela de: “female literary tradition”.
Elaine Showalter descreve, então, três fases percorridas: “a de imitação e de
internalização dos padrões dominantes; a fase de protesto contra tais padrões e valores;
e a fase de autodescoberta, marcada pela busca da identidade própria” (ZOLIN apud
BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 330).
A partir do estudo de Elaine Showalter, a pesquisadora carioca Elódia Xavier
(1998) pesquisa a trajetória da narrativa de autoria feminina na literatura brasileira e
observa que esta é marcada pela: fase feminina, em que as mulheres, enquadrando-se
nos padrões românticos, baseavam-se nos escritores masculinos, iniciada pela
publicação de Úrsula (1859), de Maria Firmino dos Reis; pela fase feminista,
representada por contestações aos valores dominantes, apresentando a repressão
feminina nas práticas sociais e pondo em questão a relação de gêneros, inaugurada pela
escritora Clarice Lispector com a publicação Perto do coração selvagem (1944); e pela
fase fêmea, iniciando-se nos anos 90, fase de autodescoberta, de construção de uma
nova identidade, englobando temas existenciais e universais, marcada por erotismo,
sedução e contestação.
No cenário brasileiro, é a escritora Clarice Lispector a precursora da tradição
literária feminina. A partir do espaço aberto por Clarice, as contribuições literárias
femininas que estiveram por muito tempo escondidas e isoladas na história da literatura,
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começam a aparecer nos anos 70 e 80, ao lado de consagrados escritores masculinos.


Para citarmos apenas algumas: Lígia Fagundes Telles, Lya Luft, Marina Colasanti,
Márcia Denser e Nélida Piñon, autora do conto “I Love my husband”, utilizado como
instrumento didático em nosso trabalho.
456

3 PROPOSTA DE LEITURA PARA AS AULAS DE LITERATURA, COM BASE


NA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

Para a concretização dessa proposta, a qual tem como tema a representação


social feminina, a fim de analisar a configuração do papel da mulher na sociedade,
fazem-se necessários: uma propaganda televisiva da cerveja “Kaiser”; uma propaganda
televisiva do chinelo “Havaianas”; uma propaganda televisiva da margarina “Delícia”;
uma propaganda televisiva do tempero “Sazon”; uma música funk “Piriguete” (DJ
Thiago); uma música MPB “Cotidiano” (Chico Buarque); e o conto “I love my
husband”, de autoria da escritora contemporânea Nélida Piñon.
A partir do Método Recepcional, determinaríamos, na primeira etapa, quais são
os horizontes de expectativas dos alunos para que pudéssemos elaborar estratégias de
ruptura e transformação desses horizontes. Consideraríamos nesta etapa, os valores
prezados pelos alunos, suas ideias, preferências e comportamentos. Para tanto,
utilizaríamos algumas questões referentes ao tema e ao conhecimento prévio dos alunos,
instigando-os a discutir sobre o termo patriarcal, sobre as diferenças estabelecidas,
culturalmente, entre homens e mulheres e sobre a posição ocupada pela mulher
antigamente. Após as discussões, faríamos uma explicação sobre o sistema patriarcal, o
qual o homem é a maior autoridade e os outros indivíduos subordinados a ele, fazendo
com que as relações entre as pessoas (seja em uma família ou uma comunidade) sejam
desiguais e hierarquizadas. Ao dar continuidade a essa etapa, refletiríamos com os
alunos sobre a posição ocupada pela mulher na sociedade atual, se, de fato, hoje, as
mulheres conquistaram uma independência em relação ao homem e liberdade na
sociedade ou se ainda podemos ver resquícios ideológicos do sistema patriarcal na
representação da mulher como estereótipos.
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Tendo detectado as aspirações dos alunos em relação ao tema proposto,


consideraríamos dois aspectos importantes: primeiro, ofereceríamos aos alunos textos
que correspondam ao esperado por eles. Segundo, organizaríamos estratégias de ensino
que sejam do conhecimento dos alunos para, aos poucos, acrescentarmos elementos
457
novos nas atividades desenvolvidas.
Nesse sentido, inicialmente, apresentaríamos duas propagandas televisivas que
são da realidade e de conhecimento dos alunos: cerveja “Kaiser” e chinelo “Havaianas”,
as quais representam a mulher sob um estereótipo de símbolo sexual. Contemplaríamos
esta etapa com alguns questionamentos sobre a representação das duas mulheres nas
duas propagandas, a qual contribui para demarcar um estereótipo feminino, tendo em
vista as estratégias publicitárias, fazendo com que o consumidor veja a cerveja como um
poderoso afrodisíaco, tornando os homens irresistíveis às mulheres lindas, jovens e de
corpos mais que perfeitos.
Para reforçar a ideia da representação do papel feminino visto a partir de um
estereótipo ideológico deixado como herança do sistema falocêntrico, apresentaríamos
mais duas propagandas televisivas: margarina “Delícia” e tempero “Sazon”. Após a
apresentação das duas propagandas, as quais representam a mulher como dona de casa,
esposa, mãe, vivendo em múltiplas funcionalidades a serviço da família, realizaríamos
mais alguns questionamentos/discussão sobre as características e diferenças entre a
mulher nas propagandas cerveja “Kaiser”, chinelo “Havainas”, margarina “Delícia” e
tempero “Sazon”. Nesse momento, refletiríamos com os alunos sobre os dois
estereótipos femininos presentes hoje em nossa sociedade, ressaltando a característica
multifuncional da mulher moderna.
Ainda atendendo ao horizonte de expectativas dos alunos sobre o tema em
questão, abordaríamos duas músicas que representam a mulher sob os dois estereótipos:
Símbolo sexual e mulher submissa ao homem e a serviço do lar, a fim de confirmar
essas duas representações conferidas à mulher, de acordo com os padrões da sociedade
patriarcal, que perduram ainda hoje, na sociedade contemporânea. Primeiro,
apresentaríamos a música “Cotidiano”, de autoria de Chico Buaque, representando a
mulher que vive reduzida aos limites do lar. Segundo, apresentaríamos a música funk
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“Piriguete”, escrita por MC Thiago, na qual ocorre uma distorção da imagem da mulher,
ao utilizar expressões que reforçam o estigma da mulher como objeto sexual e do corpo
como valor de troca, denegrindo sua imagem.
Para esta etapa, faríamos uma discussão em relação às duas músicas. Quanto a
458
musica “Piriguete”, discutiríamos a respeito das representações identitárias femininas
construídas nas letras de músicas funk; do papel social prescrito para mulheres e homens
nesses textos; e dos recursos linguísticos/discursivos presentes na música que mostram
as representações ideológicas sexistas sobre a mulher. Quanto à música “Cotidiano”,
discutiríamos a respeito da mulher que todos os dias faz tudo sempre igual e espera o
marido no portão, como se fosse algo prescrito e mecanizado.
Atendido devidamente o horizonte de expectativas dos alunos, iniciaríamos a
terceira etapa prevista no método. Assim, introduziríamos o conto “I Love my
husband”, publicado por Nélida Pinõn, em 1980, a fim de propiciar uma ruptura no
horizonte de expectativas. Faríamos a leitura do conto e suscitaríamos questões que
criem condições para que os próprios alunos percebam que há algo de estranho e de
novo no modo de proceder no, até então, conhecido. Promoveríamos tal ruptura tanto
pelo conteúdo do conto, que visa a representação feminina sob uma nova perspectiva,
quanto por trabalharmos o gênero conto, ou seja, não midiático, que estava sendo
trabalhado.
Esse conto pode ser lido como uma metáfora do casamento burguês no qual a
mulher era alienada. No conto, há duas vozes: a social, do pai e do marido que a
protagonista, inserida no espaço patriarcal e reduzida às atividades de mãe e esposa,
repete e reproduz, e a voz dela que questiona esse modelo. Desse modo, por meio de
uma profunda ironia, a narrativa engendra uma figura feminina que busca
independência e libertação, mas, por medo de não se enquadrar socialmente, ainda
sente-se presa ao modelo patriarcal.
Após a leitura coletiva do conto, suscitaríamos novamente algumas questões
reflexivas acerca da representação das relações de gênero; da reprodução dos valores da
sociedade patriarcal, por meio do discurso do pai e do marido; dos valores da
protagonista que se sente em dúvida entre os deveres e desejos; do ambiente em que a
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protagonista está inserida; do foco narrativo, como um fator que influencia no modo
como são narrados os fatos; dos “atos de pássaros” a que a protagonista faz alusão; da
não nomeação da personagem durante toda a narrativa; da contradição entre os sonhos e
a realidade da personagem; e da (in) certeza do amor da personagem pelo marido.
459
Na quarta etapa, que se trata do questionamento do horizonte de expectativas, os
alunos já deverão estar aptos para refletirem sobre o trabalho desenvolvido com o tema,
comparando as etapas anteriores, a fim de julgar qual delas exigiu maior grau de
dificuldade e qual lhes proporcionou maior satisfação. Dessa forma, provocaríamos um
debate para que os estudantes possam comparar as propagandas e músicas com o conto
ora apresentado. Nesse momento, solicitaríamos aos alunos a produção de um texto no
qual houvesse uma reflexão fecunda sobre quais as semelhanças e diferenças entre as
figuras femininas representadas nas propagandas, nas músicas e no conto.
No processo dinâmico da recepção, previsto no Método Recepcional, a quinta e
última etapa, que consiste na ampliação do horizonte de expectativas, coincide com o
início de uma nova aplicação do método, porém, com a grande vantagem de poder
contar com a participação dos alunos desde o início do processo. A partir do conteúdo
previamente trabalhado, tendo os alunos elevado o nível de conhecimento e relação ao
tema abordado, proporíamos, para a ampliação do horizonte de expectativas, uma
atividade na qual os alunos escolheriam duas músicas, uma antiga e outra mais atual,
que representassem a mulher sob os estereótipos vistos até então. A partir das duas
músicas escolhidas, eles deveriam fazer uma produção textual, analisando a
representação feminina, bem como uma apresentação oral para a turma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho com a Estética da Recepção propõe um olhar à literatura e o modo


como é ensinada. Partimos dos conhecimentos prévios dos alunos, o que nos dá um
norte para o trabalho e direciona o conteúdo de maneira eficiente, mostrando àquele que
recebe o conteúdo, que não se trata de algo novo e inacessível, mas de algo cotidiano,
conhecido e que pode ser facilmente discutido. O conhecimento de mundo não apenas
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nos motiva a um novo conhecimento que esteja relacionado, mas também nos antecipa
possibilidades de novas análises daquilo que já se apresenta como consolidado.
A literatura, quando bem trabalhada, nos permite fazer diferentes leituras do
meio em que vivemos. Nesse sentido, por meio da Estética da recepção, propomos a
460
desconstrução de estereótipos acerca da representação feminina, que são passados de
geração a geração e reforçados por um sistema patriarcal, que perdurou por séculos e
ainda apresenta alguns resquícios na sociedade atual, com o intuito de abrir novos
horizontes de discussão e interpretação do tema, mais críticos, mais humanos e mais
sociais.
Os encaminhamentos de leitura ora propostos, sob a perspectiva da Estética da
recepção, não se esgota nos elementos aqui abordados, mas pretendemos demonstrar, a
título de exemplificação, como seria possível orientar-nos por essa prática em contexto
de ensino e aprendizagem nas aulas de Língua Portuguesa/Literatura.

REFERÊNCIAS

BADINTER, Elisabeth. Um é o outro: Relações entre homens e mulheres. São Paulo:


Círculo do Livro, 1986.

BORDINI, Maria da Glória & AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do
leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Ática, 1993.

BRAGATTO FILHO, Paulo. Pela leitura literária na escola de 1º grau. São Paulo:
Ática, 1999.

BUARQUE, Chico. Cotidiano. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=FB4IaqWITB8. Acesso em: 10/11/2012.

CANDIDO, Antonio. Direitos humanos e literatura. São Paulo: Brasiliense, 1989

DCEs: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da Educação.


Departamento de Educação Básica. Diretrizes Curriculares da Educação Básica.
Português. Curitiba, 2008.

DJ Thiago. Piriguete. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=i1x-y4-


CFBI. Acesso em: 11/11/2012.

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JAUSS, Hans Robert. A História da literatura como provocação à teoria literária.


(Trad. de Sérgio Tellaroli). São Paulo: Ática, 1994.

PIÑON, Nélida. I Love my husband. In: O Calor das Coisas. Rio de janeiro: Editora
Record, 1998.
461
Propaganda cerveja “kaiser”. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=vXndJMcbSdE. Acesso em: 13/11/2012.

Propaganda chinelo “Havaianas”. Disponível em:


http://www.youtube.com/watch?v=8xUFYnXvNRs&feature=related. Acesso em
13/11/2012.

Propaganda margarina “Delícia”. Disponível em: http://youtu.be/Wxt_S02gZwk.


Acesso em: 13/11/2012.

Propaganda tempero “Sazon”. Disponível em:


http://www.youtube.com/watch?v=EQoAtJCDcHw. Acesso em: 13/11/2012.

ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi. “Estética da Recepção”. In: BONNICI, Thomas;


ZOLIN, Lúcia Osana. (Orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 3 ed. Maringá: Eduem, 2009.

ZILBERMAN, Regina (org). Leitura em crise na escola: As alternativas do professor.


4º ed. Porto Alegre: Mercado aberto, 1985.

ZOLIN, Lucia Osana. Desconstruindo a opressão: A imagem feminina em A


República dos Sonhos de Nélida Piñon. Maringá: Eduem, 2003.

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ANEXO:

“I love my husband”
462
Nélida Piñon

Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele
suspira exausto da noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta
três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não
quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas
vezes por semana, especialmente no sábado.
Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a
parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranquilo, capaz de enfrentar a vida
lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto.
Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por
cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda
que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de
criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis.
A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-
grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a
sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para
dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele não me cumprimente
pelos objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que
não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão. Eu peço
então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela
mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que
envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento.
O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E
dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir,

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percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado


com regras ditadas no convívio comum.
Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes
que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele
463
aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o
passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranquilo, gerisse o futuro.
Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia
pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais,
além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas.
Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês que
recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A ideia de que eu não
podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o
primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o
homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a
vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas mãos, para minhas
mãos não sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz
baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo, e
com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal?
Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de
tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo.
Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por
revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou
porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto
surpreende-se com uma face que Ihe é estranha, que ele cobriu de mistério para não me
ter inteira?
De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia
para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe
enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no
chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer

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que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que


os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo.
Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe
daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer a casa,
464
que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa?
Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com
cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-
iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu
abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto
Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o
meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre
que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar.
A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela
primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com
seu ritual e seus pelos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia
sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore,
lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me
assaltara as forças, evitando as quedas d'água, aos gritos proclamando liberdade, a mais
antiga e miríade das heranças.
O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão,
pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranquilidade,
enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se
deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te
entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe
permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah,
marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo
sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te?
Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do
cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele
no nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que
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estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam
magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia
recuperar-se para a jornada seguinte.
Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele
465
aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma
ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha
colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de
um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria
sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada
sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com
cheque que não se poderia contabilizar.
Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sentimentos,
que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu
era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa sala, ele
subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos.
Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque
matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a
olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo
que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se
no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a
condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da
mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.
Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém
colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram
graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao
não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia,
era-lhe assegurada em troca a juventude.
Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás
a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre.
Eu não sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao
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seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não


ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia
converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela
expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma
466
de homem, antes de ter dormido com mulher.
Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido
seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma
ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa
da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes.
Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me
haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As
mãos do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal
generosidade? Por isso talvez sejamos tão felizes como podem ser duas criaturas em que
uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma
família.
Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de
atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe
traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras
inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são
aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um
vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento.
Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha
felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus
excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar
em busca das esponjas. E para que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos,
multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar? Quero
um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta
de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos.
Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que
não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço,
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como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria,
nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro,
olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde.
Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a
467
minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho
da minha casa.
Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido.
Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais
tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano
feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha,
não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os votos
conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que
ruborizam o corpo, mas não marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as
rugas que me vieram através do seu arrebato.
Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria
o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora,
pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem
justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas
vezes e com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre
mergulhada.
Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espelho.
Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as
rugas com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude.
É gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu
esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que no
fim do dia já não sei quantos anos tenho.
E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não visto os
modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente
apreciados. Às sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado

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estou à sua espera. E quando a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara
no jornal, no mundo só nós existimos.
Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda
que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um
468
desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca
por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará
amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos
pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher.
Ah, sim, eu amo meu marido.

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