Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Giovanni Levi1
1.
Pensei em dizer algumas coisas provocativas, um pouco exageradas assim
podemos discutir. Primeiramente, gostaria de abordar a definição de história como
ciência. Muitas das dificuldades que temos derivam de não sabermos definir nossa
profissão. História é o estudo do passado, mas eu creio que o tema mesmo deste
colóquio nos sugere uma reflexão mais refinada que nos guia a uma definição. A
história é a ciência das perguntas gerais e das respostas particulares. Tem que ter ao
mesmo tempo a potencialidade de formular perguntas com amplo grau de generalização
e preservar a “localidade” a especificidade das coisas que se discute. Um exemplo é o
livro da Verónica, que é um trabalho sobre as fronteiras entre Brasil e Argentina, diz que
J. F. Turner propôs uma pergunta geral muito interessante sobre a abundância de terras
1
Professor Emérito da Universidade Ca’Foscari de Veneza.
livres e seu significado; porém essa é uma boa pergunta geral sem que as suas
conclusões sejam generalizáveis, uma vez que levada ao caso brasileiro ou argentino
não encontra concordância em outros casos nos quais é relevante mas com
consequências diferentes. A tese principal de Turner era que a disponibilidade de terras
gera uma sociedade mais democrática ao mesmo tempo que as fronteiras dissipa as
tensões sociais ao funcionar como válvula de escape.
Muitas das coisas que discutimos estes dias nos coloca este problema. É
pertinente estudar uma biografia qualquer de um grande homem, ou de um pequeno
homem, se nos permite perguntar coisas gerais. Não é estudar alguém relevante, senão
todos estudaremos Napoleão: porque as relevâncias devem ser construídas. A ausência
dessa perspectiva ignora que homens muito importantes para o Brasil não o sejam para a
China. Ao contrário, um moleiro friulano – refiro-me ao personagem do livro de
Ginzburg que foi traduzido em vários idiomas inclusive o chinês2 - gerou interesse até
na China. Por que? Claro que não é este moleiro que importa, mas sim este sujeito
minúsculo que permite propor problemas que na China terá respostas diferentes. As
questões gerais de Menocchio são as que fascinam, como sua particular forma de ler, e
etc, etc. Desculpando-me pela comparação, me estremece a recepção de meu exorcista
na China. Por que Chiesa, o exorcista piemontês completamente estúpido – uma
prefiguração de Berlusconni – é seguido pelos camponeses? As perguntas que procurei
2
GINZBURG, C., 1987
fazer por meio de meu personagem são gerais e por isso podem interessar aos chineses
para dar respostas diferentes3 e pessoalmente devo dizer que penso que meu
personagem é uma nulidade; porém tenho por ele uma adesão sentimental como ser
humano. Creio que é outra a regra fundamental da atividade histórica, não a simpatia.
Chiesa era muito antipático, mas me permitia interrogar os comportamentos humanos.
Assim podemos dividir a historiografia que considero boa em duas correntes - e isto
sem dúvida é ideológico -, ética e estética.
2.
Creio que vale uma referência a minha religião judaica como metáfora, ou, ou se
preferem, como analogia. Para um judeu não se pode dizer que Deus existe porque
temos um Deus particularmente nervoso que diz: vocês existem mas não pode um
homem ou uma mulher entender a existência de Deus, pois é uma coisa incompreensível
e incomensurável. Apesar desta incompreensão, devemos trabalhar toda a vida para
entender e nos aproximarmos da compreensão de Deus. Assim é a vida dos
3
LEVI, G., 2000
4
MOMIGLIANO, A., 1984
historiadores, devemos trabalhar toda a vida sobre Felipe II sem poder dizer “isto é
Felipe II”, quando muito esta é uma compreensão, um ponto de vista novo sobre Felipe
II. E nisto a história se diferencia da ficção, nós podemos escrever a mesma história,
ainda que devamos nos conformar que haja um único “Guerra e Paz” ou um único
“Vermelho e Negro”. Isto é importante também para dizer que no interior da história
cultural não podemos admitir os pós-modernos. Os pós-modernos negam que nós
podemos trabalhar sobre a verdade, que há uma realidade ali fora, somente nossa
linguagem aqui. Para os pós-modernos nem a verdade, nem a realidade se pode
entender, se trata de uma negação patológica. É uma mescla de petulância com
modéstia. Pensam que os homens ou sabem tudo ou não sabem nada. Eu creio que os
homens não podem saber tudo e sabem algo. Isto define nossa profissão: trabalhar sobre
uma verdade parcial. Não creio que seja justo o que faz Peter Burke que inclui tudo
como história cultural. Creio que a definição de Chartier é boa porque é muito
específica: os homens vivem de representações, são animais simbólicos, e a história
cultural é a história social da cultura. Se nos perguntarmos o que é a história cultural
para Peter Burke, podemos responder que é praticamente tudo. Ë paradoxalmente como
o pecado original, não existe, mas é importante.
Esquecer-se desses pais é terrível. Freud é a base de autores que vocês citaram:
Norbert Elias (1897-1990) que repete o ensaio de 1927 sobre a dificuldade da
civilização – o “futuro de uma ilusão”, 1927 – o outro autor Mikhail Bakhtin (1895-
1975), que com o pseudônimo de V. Voloshinov escreveu um livro chamado O
Freudismo5. Livro escrito em russo de forma clandestina.
Dois dos pais de nossa historiografia são filhos de Freud, assim como muitos
outros pais de nossa historiografia são filhos de Marx. Esquecermos destes dois
pensadores é grave. Frequentei duas vezes o congresso brasileiro de História Cultural
que se realiza a cada dois anos em diferentes localidades do Brasil, e o que eu escutava
me soava como um triunfo da história cultural sobre a história social, como se
finalmente fizéssemos somente história cultural.
Isto me levou a recordar que quando eu era muito jovem e estudava com meu
grande mestre Franco Venturi (1914-1994), ele me dizia que a ele só interessava o que
ocorria aqui, e tocava a cabeça, e a mim só interessava o que ocorria aqui, e eu tocava o
estômago, e, portanto, era muito difícil que nos entendêssemos. Logo, pensei que
devemos nos interessar pelo que ocorre em todo o corpo humano. É muito perigoso
5
BAKHTIN, M., 2001.
construir uma imagem da história cultural que não tenha parâmetros, que faça seu
refúgio contra uma visão global da história. Nós fazemos uma história social da cultura
ou uma história cultural da sociedade, porém sempre nos protegendo dos perigos da
indefinição.
3.
Um dos desafios que nos propõe Freud, e talvez tenha sido Elias que reconheceu
de maneira mais explícita este fato, é o de utilizar a psicanálise para interpretar a
sociedade, não no sentido de aplicar a psicanálise à história, mas de levar em conta as
perguntas que a psicanálise – e também as outras ciências sociais – fazem à realidade
humana.
Vou colocar, como negativo, o exemplo de um livro muito ruim de Daniel Roche
sobre um mestre vidreiro, um fabricante de vidro, que tem uma autobiografia do final do
século XVIII, início do XIX. Daniel Roche toma a maravilhosa autobiografia que falava
da conduta “irregular” do mestre que bebia e saía com prostitutas, que vivia a sua vida
particular, e a normatiza, retira tudo o que era pessoal e o transforma em um tipo 6. Nós
não podemos tipificar nós mesmos. Devemos preservar a especificidade, mas atentos ao
que pode indicar nossa especificidade a respeito de outras situações: não somos
interessantes enquanto tipo geral, somente como pessoas singulares que dão respostas
singulares a problemas que se podem transformar em perguntas gerais.
Cabe aqui uma crítica a Gramsci, em parte responsável por uma leitura etapista
da história. Gramsci também pensava que existiam leis históricas obrigatórias. O partido
comunista italiano também defendia que depois do feudalismo, viria o capitalismo e por
último o comunismo. Dentro de seu diagnóstico a Itália não era capitalista, ou pelo
menos, não era inteiramente capitalista, tinha resíduos de feudalismo, estas eram
palavras de Gramsci e de Emilio Sereni. Toda a política do partido comunista era
direcionada para eliminar os resíduos feudais, para o qual era necessário ajudar a
expandir o capitalismo não monopolista. Este foi um dos grandes erros da história
política italiana: a ideia de que os resíduos feudais era fruto de um pensamento único,
era uma prioridade que definia como obrigatória uma série de etapas, já que só um
capitalismo moderno produz um proletariado moderno capaz de fazer a revolução.
Quando nós começamos a fazer história nós nos conduzimos por algo semelhante ao
que define Jacques Revel na introdução de A herança imaterial, em sua edição francesa:
por que fazer as coisas simples se as podemos fazer complexas? Eu creio que devemos
construir a complexidade. Quando fazemos biografia, o problema é este. Freud utilizou
o recurso da biografia, pequenas biografias de pacientes, biografias muito patológicas, e
sobre estas coloca a pergunta da relevância de patologias e sintomas destes casos. E a
partir desta pergunta sobre a relevância constrói sua explicação da importância das
pulsões definindo que o controle das mesmas pode levar a destruição da civilização,
porém a ausência de controle também é desastrosa. Norbert Elias trata especificamente
das mudanças dos costumes entre os séculos XVIII e XIX e esse processo de mudança
pode ser descrito como o avanço do processo civilizador através do qual o homem
controla seus impulsos, desenvolve seu sentimento de vergonha e culpa, e etc.
4.
8
REVEL, J. e FARGE, A.
9
KRACAUER, 2006
conceitual dos períodos históricos. Uma tendência homogeneizadora leva a identificar a
ordem cronológica do tempo com o tempo da história.
10
KUBLER, 1988.
Vi muitas abordagens e poucas perspectivas. O seminário nos deixa como
desafio refletir sobre as perspectivas que as abordagens nos deixaram.
Bibliografía: