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REFLEXOS DE MEDÉIA

Criação coletiva feita a partir das obras


Medéa, de Dario Fo e Franca Rama;
Gota d’água, de Paulo Pontes e Chico Buarque
e livremente inspirado na tragédia Medéia, de Eurípedes.

Autoria coletiva de Ana Clara Cavalcanti Barbosa, Bruna Botelho, Clara Pombo Guimarães, Eduarda
Breves, Elena Cardoso Mendes, Joana Torres, Julia Machado Faial, Kelly Cristina Abraão Porcina, Lia
Magalhães, Livia da Silva Santos, Luísa de Marilac, Thaiana Telles. Mediador do processo: Ivan Faria.

Setembro de 2017

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ABERTURA
Entrada ritualística. Mulheres preparam o seu ritual mágico teatral.

Sacerdotisa
Bem vindos ao museu da antiguidade clássica!
Hécate: deusa da magia, feitiçaria, vidência, profecia e alucinação. Mãe de Circe.
Circe: deusa da lua nova, dos sonhos, feiticeira poderosíssima. Realiza encantamentos, maldições,
vingança, magia negra, especialista em venenos e é tia de Medéia.
Medéia: princesa de Colchis. Traiu sua família por Jasão a quem deu dois filhos. Matou os próprios filhos
envenenados por vingança Jasão e também envenenou sua Jasão.

Essa será a verdadeira história? Verdadeira? Verdadeira para quem? Se toda história é uma construção
quem constrói nossas verdades?

*****

Mulher do Coro
Socorro! Socorro! Acudam mulheres! Depressa! Medéia se trancou em casa com os dois filhos pequenos
e está gritando e uivando como louca. Ela perdeu a razão. Tem os olhos esbugalhados, selvagens, prestes a
saltar do rosto Tudo por ciúmes de seu marido Jasão, que a abandonou por uma mulher mais jovem. Ele
resolveu se casar novamente e Medéa não consegue aceitar isso. Não ouve mais ninguém, não escuta mais
ninguém.
Corina
Minha filha, só vendo
Tem resto de comida
Nas paredes fedendo
A bosta, tem bebida
Com talco, vaselina,
Barata, escova, pente
Sem dente. E ali, menina,
Brincando calmamente
Co’os cacos dos espelhos,
Estão os dois fedelhos...
É ver sobra de feira,
Ramo de arruda, espada

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De São Jorge, bandeira
Do Flamengo, rasgada
Por cima da cadeira
E ali, se lambuzando,
Não entendendo nada,
Um pouco se espantando
Co’o espanto dos vizinhos,
Estão os dois anjinhos...
É ver um terremoto
Que só deixa aprumado
No lugar certo a foto
Daquele desgraçado
Posando pro futuro
E pra posteridade
E ali, num canto escuro,
Na foto da verdade,
Brincando nos esgotos,
Estão os dois garotos...
Os dois abortos...
Mulheres do coro
Medéia! Medéa! Somos nós, suas amigas. Queremos falar com você. Escuta mulher! Seja sensata. Pense
nos seus filhos. Eles vão ficar muito melhor depois do novo casamento do seu marido. Se esqueceu que
todas nós já passamos pela mesma dor e que choramos as mesmas lágrimas quando fomos abandonadas? Se
esqueceu que nossos homens também nos traíram? Vejam! Ela vem vindo. Ela nos ouviu. Meu Deus, como
está pálida! E como suas mãos estão brancas. Parece que todo o sangue se saiu de seu corpo! Abram espaço,
mulheres, abram espaço, Medéa, precisa respirar. Quietas! Medéa vai falar!
Medéia
Mulheres... minhas amigas... como é ela?... A nova esposa do meu marido? Eu só a vi uma vez, á
distância. Ela me pareceu muito bonita... muito jovem. Eu também já fui jovem... jovem e bela... Vocês se
lembram como eu era? Tinha dezesseis anos quando Jasão me viu pela primeira vez. Cabelos pretos,
compridos , pele clara, macia, rosto bem moldado.
Mulheres do Coro
É verdade! É verdade, Medéa! Mas agora o tempo passou. Isso ficou no passado, Medéa. Acabou!
Somente uma coisa é certa para nós mulheres: nosos homens mais cedo ou mais tarde, acabam sempre

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partindo à procura de novos seios redondos, de uma boca mais jovem, rosada e umida. É a lei da vida. (Cena
com os bastões) É o destino, Medéia!
Medéia
Lei? Que espécie de lei é essaque me condena? Foram vocês que inventaram essa lei, minhas amigas?
Foram vocês que a ditaram e proclamaram ao mundo? Não! Foram os homens que fizeram rufar os tambores
e a anunciaram pelos mercados como lei sagrada. Foram eles que criaram essa lei para usar contra nós.
Mulher do Coro
Não, Medéa, não. É a natureza. O homem demora mais para envelhecer. Homem amadurece com a idade.
Nós, com a idade, murchamos, enquanto ele fica mais sábio. Nós perdemos a força, ele ganha essa força. É a
natureza, Medéa. Essa é a lei que governa o mundo.
Coro de mulheres
Nós somos mulheres.
Você quer e eu faço.
Serei sua para sempre.
Ou até você romper o laço.
Se não sou útil, você segue.
Juventude lhe convém.
Eu, mulher, só aceito.
Seguir a lei, sair bem.
Sou esquecida?
Claro que não!
Apenas renovada.
Ter tido meus filhos.
Já me deixa aliviada.

Filha
Eu tenho dez anos e vivo na correria junto com a minha mãe, que é modelo. Ela vive fazendo ensaios
fotográficos, provando várias roupas, sapatos e desfila na frente de uma porção de gente importante. Aprendi
que para ser modelo tem que se cuidar, fazer dieta, exercícios e estar sempre arrumada.
Eu já perdi as contas de quantas plásticas a minha mãe já fez. Ela afinou o nariz e a cintura, colocou
silicone nas coxas, seios e nádegas, fez Botox e várias outras cirurgias.
Eu fico tentando imitar as maquiagens que ela faz, seguir as dietas e sempre vou fazer compras com a
minha mãe.
Quando eu crescer, quero ser como a minha mãe! Ser uma modelo famosa, ter um closet gigante, um
armário só para maquiagens e fazer 4 plásticas no rosto, 9 no corpo e preenchimento capilar.

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Medéia
Eu sou mulher, eu existo!
Gero vida mas também a sou.
Não quero ser trocada.
Mas você já me trocou.
Não aceito facilmente.
Amigas, nós somos mais!
Eu sou mais que um rosto.
Sou um espírito, sou sagaz.
Se eu mostrar minha revolta
Serei logo abafada.
Mesmo sendo uma alma.
Para eles, sou um nada.
Mulheres, que lei errada!
Nos bota de lado quando der vontade.
Não sou bruxa, não sou demônio.
Eu sou mulher de verdade!

Medéia
Vivendo? Chama isso de viver? Na minha casa não há mais amor, não ouço mais as vozes e os sorrisos do
meu marido e dos meus filhos. Vivo vagando pela casa sozinha, como um cadáver.
Mas ninguém vai sambar na minha caveira.
Vocês tão de prova: eu não sou mulher
para macho chegar e usar como quer,
depois dizer tchau, deixando poeira
e meleira na cama desmanchada.
Mulher de malandro? Comigo, não
Eu sou de arrancar a força guardada
cá dentro, toda a força do meu peito,
pra fazer forte o homem que me ama.
Assim, eu sei que quem me leva é um homem feito
e foi assim que eu fiz Jasão um dia
Agora, não sei... Quero a vaidade
de volta, minha tesão, minha vontade

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de viver, meu sono, minha alegria,
quero tudo contado bem direito...
Vocês não levaram meu homem fronte
a fronte, coxa a coxa, peito a peito
Vocês me roubaram Jasão co’o brilho
da estrela que cega e perturba a vida
de quem vive na banda apodrecida
do mundo... Mas tem volta, velho filho
da mãe! Assim é que não vai ficar
Tá me ouvindo?
Você também, Jasão, vê se me escuta
Eu descubro um jeito de me vingar...

Eu descubro um jeito de me vingar...


Pra não ser trapo nem lixo,
Nem sombra, objeto, nada.
Eu prefiro ser um bicho,
Ser essa besta danada.
Me arrasto, berro, me xingo,
Me mordo, babo, me bato,
Me mato, mato, me vingo,
Me vingo, me mato e me mato.
Me mato, mato, me vingo,
Me vingo, me mato e me mato.

Mulher do coro
Meu Deus! Ela está fora de si! Ficou louca! Medéia, pensa mulher! Não pode ser ela amigas, não é a
Medéia que conhecemos, não é a mãe carinhosa que está falando. É a voz do demônio que se apossou dela.
É o cão raivoso que ladra nos seus lábios feitos só para amor.
Mulher do coro
Áiiii!! Ajudem! Todos! Acudam, rápido! Tragam cordas para amarrar essa mãe alucinada e demente.
Tragam cordas para amarrar Medéia. O demônio tomou conta de sua língua. Não são dela, são do demônio
as palavras que saem de sua boca.
Mulher do coro

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Afastem-se! Fujam todas! Corram! Ela está vindo atrás de nós! Corram! Não, parem! Olhem! Aí vem
Jasão! Ele deve saber como lidar com sua mulher. Abram caminho. Deixem Jasão passar. Acalme-se,
Medéia, tenha calma. Veja, é o seu marido. Está vendo? Jasão!
(Medéia vê Jasão que se aproxima. Num misto de felicidade e riva.)

Ofélia
Vocês conhecem a história de Hamlet? Hamlet era o príncipe da Dinamarca. Ele era apaixonado por
Ofélia e ela o amava de volta. Quando ele descobre que seu pai, o Rei, foi assassinado, ele inventa um plano
para descobrir o assassino: se passar por louco. Para que todos acreditassem no seu plano ele passa a rejeitar
Ofélia que, desiludida de amor, se mata afogada.

Olá, milorde. Como vai vossa honra por esses muitos dias?
Milorde, tenho lembranças suas que a tempos desejo dar-te. Rogo-te, receba-as agora... Seu cheiro, seu
rosto, seu corpo, sua pele... Milorde, por que me deixas-te? Eu, a mais servil, a mais dedicada...
Agora vejo aquela doce e soberana razão como doces sinos mal tocados, desafinados e estridentes... Oh
desgraçada que sou de ter visto o que vi, ver o que vejo, ver o amor em ti. De fato, milorde, fizeste-me
acreditar nisso.

Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou, a mulher na forca, com as veias abertas, a mulher com
excesso de dose sobre os lábios de neve. Ontem deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas
coxas, meu ventre. Rebento os instrumentos do meu cativeiro – a cadeira, a mesa, a cama. Destruo o campo
de batalha que foi o meu lar. Com as mãos sangrando rasgo as fotografias do homem que amei, e que se
serviu de mim sobre a cama, a mesa, a cadeira e o chão. Atiro fogo na minha prisão, vou para a rua vestida
em meu sangue.

Cantora - Bem querer


Quando o meu bem-querer me vir
Estou certa que há de vir atrás
Há de me seguir por todos
Todos, todos, todos os umbrais
E quando o seu bem-querer mentir
Que não vai haver adeus jamais
Há que responder com juras
Juras, juras, juras imorais
E quando o meu bem-querer sentir

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Que o amor é coisa tão fugaz
Há de me abraçar co’a garra
A garra, a garra, a garra dos mortais
E quando o seu bem-querer pedir
Pra você ficar um pouco mais
Há que me afagar co’a calma
A calma, a calma. a calma dos casais
E quando o meu bem-querer ouvir
O meu coração bater demais
Há de me rasgar co’a fúria
A fúria, a fúria, a fúria assim dos animais
E quando o seu bem-querer dormir
Tome conta que ele sonhe em paz
Como alguém que lhe apagasse a luz,
Vedasse a porta e abrisse o gás

Medéia – Monólogo Veneno


(Medéia prepara uma poção para se vingar de Jasão)
Tudo está na natureza
encadeado e em movimento —
cuspe, veneno, tristeza,
carne, moinho, lamento,
ódio, dor, cebola e coentro,
gordura, sangue, frieza,
isso tudo está no centro
de uma mesma e estranha mesa
Misture cada elemento —
uma pitada de dor,
uma colher de fomento,
uma gota de terror
O suco dos sentimentos,
raiva, medo ou desamor,
produz novos condimentos,
lágrima, pus e suor
Mas, inverta o segmento,

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intensifique a mistura,
temperódio, lagrimento,
sangalho com tristezura,
carnento, venemoinho,
remexa tudo por dentro,
passe tudo no moinho,
moa a carne, sangue e coentro,
chore e envenene a gordura
Você terá um ungüento,
uma baba, grossa e escura,
essência do meu tormento
e molho de uma fritura
de paladar violento
que, engolindo, a criatura
repara o meu sofrimento
co’a morte, lenta e segura

(Ao terminar de preparar o veneno ela chama os filhos)


Medéia
Meus filhos, venham cá!
Vocês vão lá na solenidade de casamento de seu pai,
digam à moça que mamãe está contente,
tanto assim que lhe preparou este presente
pra que ela prove como prova de amizade
Beijem seu pai, lhe desejem felicidade
co’a moça e voltem correndo, que eu e vocês
também vamos comemorar, sós, só nós três,
(Entrega o pacote; grita:)
Corina, Corina... (Corina aparece vestida para o casamento.)
Vem cá, pode levar os meninos à festa...

(Corina leva as crianças com o embrulho)

Medéia
Eles pensam que a maré vai mas nunca volta

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Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
e tão forte quanto eles me imaginam fraca
Quando eles virem invertida a correnteza,
quero saber se eles resistem à surpresa,
quero ver como eles reagem à ressaca

(Chega Corina com as crianças, que deixam o pacote e correm para dentro.)
Medéia - (Vendo que elas não entregaram o pacote) Que foi?...
CORINA — Jasão não quis receber
Medéia - Não...
Corina - Pensou que era feitiço, mulher...
Medéia - Não...
Corina - Jasão não quis nem acolher as crianças na festa de casamento dele...
Medéia - Não... Não conta mais, Corina. Você quer me deixar sozinha um pouco? Eu estou
meio tonta...
Corina - Comadre, olha o que faz...
Medéia -Tá bem...
Corina - Joana, se quiser dormir, vá sossegada que eu fico olhando as crianças...
Medéia -Tá bem, mulher... Tá bem... Mas agora me deixa só...
(Corina sai. Joana apanha o pacote de bolo e começa a abrir.)

Medéia
Meu senhor, olhe pra mim, tenha dó,
Pai, por quê, meu Pai? Você não deixou?
Eu tenho que sair ferida,
abandonada, doida, sem abrigo.
Não, não pode fazer isso comigo.
Não, não pode ser. Você
quer eles vivos para quê? Por quê?
O senhor quer dizer que há sofrimento maior
do que morrer com veneno cortando
as entranhas... escorrendo, arruinando,

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fazendo a carne virar uma pasta
por dentro?... (Grita:) Não, Senhor... É isso? Afasta
de mim essa idéia, meu Pai...
Mas não, é pior... Pior, tem razão
Esse é o caminho que o Senhor me aponta
Aí em cima você toma conta
das crianças?... (Grita:) Não!...
(Com o grito as crianças aparecem.)
Vêm, meus filhos, vêm...
(Os filhos chegam perto; ela abraça os dois.)
FILHO 1 — Queria comer...
FILHO 2 — Tou com fome...
JOANA — Tem
comida, vem... Isso é o que o Senhor quer?
(Abraça os filhos profundamente um tempo.)
Meus filhos, mamãe queria dizer
uma coisa a vocês. Chegou a hora
de descansar. Fiquem perto de mim
que nós três, juntinhos, vamos embora
prum lugar que parece que é assim:
é um campo muito macio e suave,
tem jogo de bola e confeitaria
Tem circo, música, tem muita ave
e tem aniversário todo dia
Lá ninguém briga, lá ninguém espera,
ninguém empurra ninguém, meus amores
Não chove nunca, é sempre primavera
A gente deita em beliche de flores
mas não dorme, fica olhando as estrelas
Ninguém fica sozinho. Lá não dói,
lá ninguém vai nunca embora. As janelas
vivem cheias de gente dizendo oi
Não tem susto, é tudo bem devagar
E a gente fica lá tomando sol
Tem sempre um cheirinho de éter no ar,

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a infância perpetuada em formol
(Dá um bolinho e põe guaraná na boca dos filhos.)
A Creonte, à filha, a Jasão e companhia
vou deixar esse presente de casamento
Eu transfiro pra vocês a nossa agonia
porque, meu Pai, eu compreendi que o sofrimento
de conviver com a tragédia todo dia
é pior que a morte por envenenamento.

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