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O que faz a histéria oral diferente’ Alessandro Portelli Tradugdo: Maria Therezinha Janine Ribeiro Revisdo técnica: Dea Ribeiro Fenelon “Sim”, disse Mrs. Oliver, “e enti quando vieram falar sobre isto muito tempo depois, haviam encontrado a solugo que eles proprios tinham criado. Aquilo néo é excessivamente henéfico, 62” “Isto & benéfico” disse Poirot... “é importante conhecer certos fatos que tém se arrastado na meméria do povo embora sem que saibam exatamente de que fato se trata, por que aconteceu ou 0 que levou a isso. Mas eles podem facilmente saber alo que ndo sabemos & que néo temos meios de aprender. Assim nisso tem havido memérias guiando para teorias: Agatha Christie Elefantes podem lembrar Suas pesquisas histdricas, entretanto, ndo se situavam tanto entre livros como entre homens; pois os primeiros eram lamentavelmente extguos em seus t6picos favoritos; ao passo que encontrou velhos muntcipes, e ainda mais suas esposas, ricas naquele legendério saber, tdo sem valor para a verdadeira historia. Sempre que, em seguida, acontecia deparar-se com uma familia genuinamente alema, comodamente agasalhada em sua casa de fazenda de teto baixo, sobre um sicdmoro expandido, considerava a situagao como um pequeno volume afivelado de letras géticas, e 0 estudava com o zelo de um alfarrabista’’. Washington Irving Rip Van Winkle * Uma primeira versio, “Sulla specifita della storia orale”, apareceu em Primo Maggio, 13 (Milano, Itélia, 1979), pp. 54-60; foi reimpressa como “On the peculiaridades of oral history”, em History Workshop Joumal, 12 (Oxford, England, 1981), pp. 96-107. ** NT. Aqui também poderia ser traduzido figurativamente como trabalho de uma traga de biblioteca. Proj. Histéria, Sao Paulo, (14), fev. 1997 25 Memorias levando a teorias Um espectro esté assombrando 0s muros da academia: 0 espectro da hist6ria oral. A comunidade intelectual italiana, sempre suspeitosa das novidades de fora - ¢ ainda assim to subserviente para “descobertas estrangeiras” -, se apressou a por de lado a historia oral antes de procurar entendé-la ¢ saber como usé-la. O método empregado foi o de imputar a historia oral pretensdes que esta nao possuia, de modo a deixar a mente de todos & vontade para mais intelectual ¢ internacionalmente orientado, precipitou-se a destituir “descri¢des cusé-las. Por exemplo, La Repubblica, 0 jomal diério populares € 0s pacotes artificiais da hist6ria oral em que as coisas parecem mover ¢ 0 coisa falar por clas mesmas”, sem se deter em explicar que nao 5 . mas sim 0 pove (nao obstante © povo sempre ter sido considerado como “coisa”) que a hist6ria oral espera que “se movimente e fale por si mesmo”! Parece se temer que uma vez aberlos os portées da oralidade, a escrita (¢ a racio- nalidade junto com ela) sera varrida como que por uma massa espontinea incontrolavel de fluidos, material amorfo. Mas esta atitude cega-nos para 0 fato de que nosso temor respeitoso de escrever tenha distorcide nossa percepgao de linguagem e comunicagao até 0 ponto em que n&o mais se entendem quer a oralidade quer a prépria natureza da escrita, Na realidade, as fontes escritas ¢ orais nao sao mutuamente excludentes. Elas tém em comum caracteristicas aut6nomas ¢ fungdes especifi “as que somente uma ou outra pode preencher (ou que um conjunto de fontes preenche melhor que a outra) Desta forma, requerem instrumentos especificos, Mas a de- interpretativos diferentes © preciagio © a supervalorizagao das fontes orais terminam por cancelar as qualidade: especificas, tornando estas fontcs ou meros suportes para fontes tradicionais escritas, ou cura iluséria para todas as docngas. Este capitulo tentard sugerir algum dos caminhos nos quais histéria oral ¢ diferente, intrinsecamente ¢, portanto, wtil, especificamente A oralidade das fontes orais Fontes orais sao fontes orais. Os académicos esti querendo admitir que 0 docu- mento real ¢ 0 teipe gravado; mas quase tudo fica para o trabalho das transcrigoes, ¢ 1 Beniamino, P. La Republica, outubro de 26 Proj. Historia, Sao Paulo, (14), fer. 1997 somente os transcritos so publicados.’ Ocasionalmente, tcipes so realmente destruidos: um caso simbélico da destruigaéo da palavra falada. A transcrigao transforma objetos auditivos em visuais, 0 que inevitavelmente im- plica mudangas ¢ interpretagao. A eficdcia diferente de gravagdes, quando comparadas a transcrigdes — para propésitos de sala de aula, por exemplo — pode somente ser apre- ciada por experiéncia direta. Esta ¢ uma razdio por que creio ser desnecessério dar Jo aos novos e mais fechados métodos de wanscrigao. A expectativa da io substituir o teipe para propésitos cientificos ¢ equivalente a fazer critica de arte em reprodugées, ou critica literaria em traduges. A mais literal uadugao ¢ dificil- mente a melhor, ¢ uma tradugio verdadeiramente fiel sempre implica certa quantidade de invengao, O mesmo pode ser verdade para a transcrigao de fontes orais. Siva aten A desatengao a oralidade das fontes orais tem sustentagao direta na tcoria interpre- tativa. O primeiro aspecto que é usualmente destacado é sobre a origem: as fontes orais dao-nos informagées sobre 0 povo iletrado ou grupos sociais cuja hist6ria escrita € ou falha ou distorcida, Outro aspecto diz respeito ao contetido: a vida didria ¢ a cultura material destas pessoas ¢ grupos. Entrctanto, nao ha referéncias especfficas a fontes is. Cartas de cmigrantes. por cxemplo, tém a mesma origem c¢ teor, mas foram es- ora critas. Por outro lado, muitos projetos de hist6ria oral tém coletado entrevistas com membros de grupos sociais que usam a escrita, ¢ dizem respeito a t6picos usualmente cobertos por material de arquivo de escrita padrdo. Nao obstante, a origem ¢ a satisfagio nao sao suficientes para distinguir fontes orais do leque de fontes utilizadas pela histéria social em geral; assim, muitas teorias da histéria oral sio de fato teorias de histéria social como um todo.’ Na busca de um fator discernente, podemos conseqiientemente recuar para meto- dizar. Nao ¢ provavel que necessitemos repetir que a escrita representa a linguagem quase exclusivamente por meio de tragos scgmentirios (grafemas, sflabas, palavras ¢ sentengas), Mas a linguagem também € composta por outro conjunto de tragos, que nao 2 Uma excegio italiana & 0 Instituto Emesto De Martina, uma organizagio radical independente de pesquisa que publicou “arquivos sonoros” em discos long-playing desde meados dos anos 60 — sem que houvesse qualquer noticia no establishment cultural, Ver Coggiola, F. “L'ativité dell Instituto Emesto de Martino”, In: Carpitella, D. (ed). L'etnomusicologia in Malia, Palermo, Mlaccovio, 1975, pp. 268-70, sediada em M 1 Luisa Passerini (‘Sull utilité ¢ il danno delle fontiorali per la storia”, Introdugao a Passerini, L. (ed.). Storia Orale. Vita quotidiana e cultura materiale delle classi subalterne, Torino, Rosemberg ¢ Sellier, 1978) discute o relacionamento da histéria social. Proj. Histéria, Sda Paulo, (14), fev. 1997 27

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