Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Subjetividade Objetividade em Textos Academicos PDF
Subjetividade Objetividade em Textos Academicos PDF
Adail Sobral1
Rosaura Soligo2
Guilherme do Val Toledo Prado3
ABSTRACT: Based on theoretical proposals by Bakhtin and Bruner and considering the
experience of writing and academic practice of its authors, this speculative essay aims to
present a discussion about the relationship of what might be considered subjective and
objective in the academic sphere, more specifically regarding authorial subjectivity in
academic texts. Our discussion examines practical examples and considers the question
in terms of linguistic (textual materiality) and enunciative marks (relations between
enunciators and interlocutors and the enunciator‟s evaluative positioning). We examine
so-called non-canonical forms for presentation of dissertations and theses, today
accepted in some institutions. We explore implications of this alteration of attitude
considering the possible relations between ways of thinking and forms of saying, in terms
of Bakhtin‟s definition of genres (and “new science) and Bruner‟s distinction between
paradigmatic and narrative modes of thinking. We make efforts to show for showing that
it is not linguistic marks in the text that indicate the higher or lesser degree of
subjectivation in the discursive construction of authors, but their possible enunciative
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas
(UCPEL). E-mail: adail.sobral@gmail.com.
2
Professora do Instituto de Educação e Cultura ABAPORU – Salvador-BA. E-mail:
rosaurasoligo@gmail.com.
3
Professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-
mail: gvptoledo@gmail.com.
Sobral, A.; Soligo, R.; Prado, G. V. T. A subjetividade autoral em textos acadêmicos: 175
algumas considerações. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017.
pp. 174-193.
Introdução
Talvez os homens não sejamos outra coisa que não um modo particular de
contarmos o que somos. E, para isso, para contarmos o que somos, talvez
não tenhamos outra possibilidade senão percorrermos de novo as ruínas de
nossa biblioteca, para aí tentar recolher as palavras que falem por nós
...Que podemos cada um de nós fazer sem transformar nossa inquietude
numa história? E, para essa transformação, para esse alívio, acaso
contamos com outra coisa a não ser os restos desordenados das histórias
recebidas? E isso a que chamamos autoconsciência ou identidade pessoal,
isso que ao que parece tem uma forma essencialmente narrativa não será
talvez a forma sempre provisória e a ponto de desmoronar que damos ao
trabalho infinito de distrair, de consolar ou de acalmar com histórias
pessoais aquilo que nos inquieta? (Jorge Larrosa)
Este texto é uma reflexão sobre uma questão cuja base são tanto
propostas teóricas de Bakhtin e Bruner como a experiência discursiva de
seus três autores, que aqui se afirmam em um “nós” autoral que revela, em
lugar de esconder, a existência de sujeitos, eus de fato afinados numa
mesma fundamentação teórica em relação aos textos acadêmicos, ainda que
partindo de posições distintas. Nos últimos anos temos praticado uma
escrita de textos que não ambiciona, enganosamente, a isenção objetiva,
uma vez que nem mesmo o tempo e o espaço estão isentos de valores (como
o provou Einstein com a Teoria da Relatividade), mas que busca não ser
subjetivista, sem bases ou fundamento, e revelar ou desvelar o
posicionamento valorativo do autor.
Todo autor pretende sempre legitimar de algum modo a presença
de suas próprias convicções pessoais. E o faz porque, como “a” verdade não
existe, tem-se de assumir, sem distorções além das inerentes à condição
humana – marcada por um aqui-agora singulares, porém com um pé na
universalidade –, as nossas verdades como verdades provisórias, porém
válidas, que outras não anulam, mas compõem. Em russo (e essa observação
vem do fato de um de nossos autores de base ser Bakhtin) há duas palavras
para “verdade”; uma para as verdades ditas universais, istina, e outra, pravda,
para as verdades “contextuais”, ou seja, para a veridicidade, aquela que é
verdade situadamente e não em termos universais (BAKHTIN, 2003,
passim). O que seria, de fato, uma verdade universal? Talvez a afirmação de
que a Terra se move? No mundo do sentido, mundo da linguagem em uso,
das relações entre sujeitos via linguagem, no qual há pouco de fixo e muito
Sobral, A.; Soligo, R.; Prado, G. V. T. A subjetividade autoral em textos acadêmicos: 176
algumas considerações. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017.
pp. 174-193.
4
Dissertação de Mestrado de Rosaura Soligo, intitulada “Quem forma quem? – Instituição dos
sujeitos” orientada por Guilherme do Val Toledo Prado, defendida em 2007 na Faculdade de
Educação da Unicamp.
Sobral, A.; Soligo, R.; Prado, G. V. T. A subjetividade autoral em textos acadêmicos: 178
algumas considerações. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017.
pp. 174-193.
que se pode discutir sobre graus de presença autoral, que teriam como
possíveis extremos o formulário do Imposto de Renda e a ficção, mas o que
importa é que, embora as marcas de pessoa num texto sejam relevantes, é
no todo do texto, que as inclui, que está o autor.
Destaca-se aqui a ação autoral arquitetônica. A posição do autor
com relação ao conteúdo de seu enunciado é ativa, mas não o coloca acima
de todas as marcas, discursivas ou não, que incidem sobre seu agir em seu
ambiente sócio-histórico. Ser autor de um texto escrito envolve dizer tudo
em termos pragmático-referenciais, isto é, cabe explicitar as circunstâncias
do texto produzido e seu objeto, pois faltam aos enunciados escritos as
circunstâncias concretas que permitem identificar o dito e o presumido de
modo relativamente imediato como o seria na interação face-a-face (ainda
que nem sempre se identifiquem todos os ditos e presumidos nesta última).
O estilo também é interativo, e vem da relação entre o autor e o
grupo social de que faz parte, em seu representante autorizado, ou típico,
definindo-se a partir da imagem social do interlocutor, que também é
constitutivo da obra. Tem relações com a forma do conteúdo, o modo como
o conteúdo é organizado, sendo determinado pelas inter-relações da escala
avaliativa do evento descrito (ou seja, as posições relativas do eu e tu
envolvidos), e de seu agente (a imagem social do autor) cujo peso depende
do “contexto não articulado de avaliações básicas da obra” (BAKHTIN,
1997, p. 11), isto é, das possibilidades sociais de avaliação. Isso se liga ao
modo como o mundo social e histórico se faz presente na obra. Para
Bakhtin, a avaliação não se resume a um ou outro enunciado do autor, mas,
pelo contrário, manifesta-se “na própria maneira como o material artístico é
visto e disposto” (BAKHTIN, 1997, p. 12), o que descarta de uma vez por
todas a ideia de que só são avaliações autorais os elementos apresentados
como tais nos discursos, como usar a primeira pessoa, por exemplo.
Para os propósitos deste ensaio – problematizar a questão da
subjetividade autoral em textos acadêmicos – não será demais considerar
que, partindo da necessidade de haver dois participantes “para ocasionar
um acontecimento estético”, Bakhtin (1997, 42) afirma que o evento
estético pressupõe, para realizar-se, “duas consciências que não coincidem”,
algo que na verdade se aplica a todo evento discursivo. Os vários graus de
distanciamento entre o autor (como figura discursiva e não autor pessoa
física) e o tópico produzem diferentes gêneros, mas permanece o fato de
que o autor se ocupa de um dado tópico a fim de produzir o tema do
enunciado como um todo, ou seu sentido. Para deixar mais clara a questão,
recorremos a um exemplo: o autor pode falar da cigarra e da formiga (seu
tópico) a fim de dar uma lição de moral (seu tema).
O posicionamento do autor ao lado do tópico, o compartilhamento
por eles de um valor comum, ou mesmo sua oposição, produzem diferentes
eventos discursivos. Portanto, o que marca o gênero dos textos não são as
palavras usadas, as formas comuns etc., mas a relação entre o autor, seu
tópico e seu interlocutor, bem como a ação que o gênero realiza, algo que se
Sobral, A.; Soligo, R.; Prado, G. V. T. A subjetividade autoral em textos acadêmicos: 181
algumas considerações. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017.
pp. 174-193.
5
Cf. AUTOR1, 2012, p.133, para a formulação original aqui parafraseada.
Sobral, A.; Soligo, R.; Prado, G. V. T. A subjetividade autoral em textos acadêmicos: 182
algumas considerações. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017.
pp. 174-193.
presença ou ausência de “eu” não é o fator determinante, mas sim o que essa
presença indica sobre o texto (a materialidade) do ponto de vista do
discurso (a organização dessa materialidade por um locutor/autor com
relação a um dado interlocutor, sendo esses os elementos que vão constituir
o gênero (as formas relativamente estáveis doas enunciados nas diversas
esferas).
Bakhtin não destaca em sua principal formulação de gênero do
discurso a questão do estilo, da forma de composição e da unidade temática
(aquilo a que o texto remete, seja qual for o tópico abordado), mas as
relações enunciativas dos gêneros, o projeto enunciativo: é a partir deste
que esses outros elementos formais se organizam. Cabe por isso diferenciar
tópico e tema. O tópico aponta para o assunto tratado por um texto e o
tema para o sentido que se deseja atribuir a esse texto. Três textos com o
mesmo tema em uma mesa redonda em geral têm três tópicos distintos.
Digamos que o tema da mesa seja “educação básica: desafios”; os três textos
vão abordá-lo de diferentes maneiras, de acordo com diferentes tópicos.
Digamos que um aborde a legislação da educação básica, outro os dilemas
da educação básica e o terceiro a relação entre educação básica e formação
de professores. Nenhum desses tópicos esgota o tema; o tema é a integração
entre esses vários tópicos. Assim, o mesmo tema terá sido tratado segundo
diferentes posições enunciativas, e por isso o que constitui o sentido do
tema da mesa é a integração entre esses tópicos, logo, dessas três posições
enunciativas. Mesmo que os três membros concordem em sua avaliação do
tema, suas posições enunciativas não coincidem.
Em termos do “texto” final da mesa, esses três tópicos vão criar seu
tema como um todo: partindo do mesmo tema, os textos vão abordar
distintos aspectos deste, e a unidade resultante dos três será o tema geral da
mesa, aquilo que esse evento como um todo enunciou a partir dos tópicos.
Resumindo, o tópico dos textos é o assunto diretamente abordado por eles,
ao passo que o tema é a perspectiva a partir da qual abordam esse assunto.
Em nosso exemplo, a unidade, tensa e contraditória que seja, entre esses
tópicos vai gerar o tema, aquilo que, quando o interlocutor deixa o recinto
onde as pessoas falaram, fica ressoando nele, aquilo que não foi dito
diretamente nos textos, mas que resultou daquilo que o foi, o ponto alto de
tudo o que se disse, o que ficou por assim dizer fixado para os
interlocutores.
Cabe agora estabelecer o elemento que marca efetivamente um
gênero, sem menosprezar os demais componentes Segundo Bakhtin, trata-
se da relação entre os interlocutores; é esta que integra todos os outros
elementos:
6
Uma análise detalhada da referida dissertação foi feita na dissertação de mestrado de Fernanda
Taís Brignol Guimarães (GUIMARÃES, 2015).
Sobral, A.; Soligo, R.; Prado, G. V. T. A subjetividade autoral em textos acadêmicos: 190
algumas considerações. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017.
pp. 174-193.
Especulações finais
universais (o Sol brilha, a Lua reflete o sol...) que não competem umas com
as outras, como (por paradoxal que pareça) a várias verdades universais
concorrentes, conflitantes, o que na prática as transforma em pravdas, essas
sim sempre plurais, por definição, e sempre constituindo um problema para
as istinas... Essa realidade narrativa implica uma produção de pensamento
coadunado com um modo de produção textual que amplia o horizonte de
possibilidades a partir de diferentes posições enunciativas (Bakhtin, 2003)
provenientes do diálogo com diversos modos de conhecimento, acadêmicos
ou não, como os artísticos, cotidianos, ficcionais, poéticos, imagéticos,
sensoriais e, até mesmo, extrassensoriais...
Sendo um “eu” que se manifesta, sempre em diálogo com outros
“eus”, inclusive os “eus” de si próprio, o “eu” da narrativa, em toda a sua
potencialidade e limitação, no contexto acadêmico, poderia gerar diálogos
mais potentes com as esferas de comunicação cotidianas, porque
impregnadas de uma similar subjetividade que mais aproxima os
interlocutores do que os afasta, como ocorreria quando marcadas pela
produção de uma suposta objetividade calcada no modo de pensamento
paradigmático.
A narrativa, concebida como espaço de afeto e afetação, tem como
projeto último não só impregnar as memórias ancestrais humanas, como
indicou Bruner (2002), como também gerar, nos processos de produção de
sentidos, uma verossimilhança que cativa e convida os interlocutores a
narrarem também suas histórias pessoais e coletivas, realizando o que tão
bem apresentou Benjamin (1987) como a arte de intercambiar experiências.
E a verossimilhança da verdade contextual (pravda) pode gerar,
entre autores e leitores – interlocutores em diálogo – a busca, em coletivo e
em constante comunicação tensa e intensa, pela verdade universal (istina)
eternamente por vir... Verdades materiais necessárias existem, como a do
movimento da Terra, mas as verdades do mundo humano são eternas
pravdas que têm a inalcançável istina postulada como horizonte, ponto
móvel que nos faz seguir uma direção com esperança de lá chegar.
Talvez correndo o risco de uma analogia indevida, pode-se dizer
que talvez esteja em jogo, naquilo que chamamos aqui de narrativa, ou
modo narrativo de produção acadêmica, uma batalha (que foi travada pelo
Círculo de Bakhtin, como vemos nas quatro palavras russas aqui usadas)
entre a nauka (ciência acadêmica) e a inonauka (um outro tipo de ciência) –
que são diferentes tanto da antinauka, ou anticiência, como da nenauka, ou
não ciência. Essa proposta de inonauka busca identificar o que há em comum
entre enunciados, aquilo que aparece em todos os enunciados proferidos
(sua istina?), e ao mesmo tempo apontar o que eles têm de singulares, aquilo
que os distingue uns dos outros (suas pravdas).
Não se trata nem de um fechamento do sentido nem de uma
abertura que nos deixasse sem chão. A narrativa é um momento
privilegiado em que, para um dado eu, todas as pravdas são istinas ainda não
Sobral, A.; Soligo, R.; Prado, G. V. T. A subjetividade autoral em textos acadêmicos: 192
algumas considerações. Nonada: Letras em Revista, n. 28, vol. 1. Maio de 2017.
pp. 174-193.
Referências