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O Papa Pio XII e o

Tratado Teológico sobre a


Igreja
(dezembro de 1958)
Monsenhor Joseph Clifford FENTON

Na brilhante prolixidade de seus escritos e alocuções, o saudoso e


amado Soberano Pontífice, o Papa Pio XII, fez importantes
contribuições para muitas áreas dentro do campo da doutrina católica.
Um tratado teológico, todavia, parece ter sido influenciado e
aprimorado mais marcantemente do que qualquer outro por aquilo que
ele escreveu e disse na qualidade de Vigário de Jesus Cristo na terra.
Esse tratado é o tractatus de Ecclesia Christi.
Durante os anos iniciais do século vinte, havia mais confusão e mal-
entendidos sobre a Igreja do que sobre qualquer outra realidade
estudada na ciência da sagrada teologia. Três fatores foram
responsáveis pela qualidade comparativamente imperfeita dos escritos
populares acerca do reino de Deus na terra. Primeiro, vinha o fato de
o tratado sobre a verdadeira Igreja de Jesus Cristo ter tido uma história
bastante diferente da que tiveram, em sua maioria, os outros tratados
individuais dentro dos confins da teologia dogmática.[1] O segundo
desses fatores foi a fatídica má interpretação da terminologia utilizada
no clássico De Ecclesia militante de São Roberto Belarmino, ao longo
do período que vai do século dezesseis ao dezenove.[2] O último fator,
e o mais importante, foi a influência de literatura religiosa superficial e
popular fortemente influenciada pelo catolicismo liberal.[ 3]
Esses três fatores, atuando conjuntamente, produziram uma situação
em que os livros religiosos de alguns autores católicos bastante
influentes tendiam, durante a primeira metade do século vinte, a falar
de uma espécie de super-Igreja, um Corpo Místico de Jesus Cristo de
algum modo distinto da —e superior à— Igreja Católica visível
presidida pelo Bispo de Roma como cabeça visível e Vigário de Nosso
Senhor Jesus Cristo na terra. Basicamente, foi essa a condição que o
falecido e grande Soberano Pontífice foi chamado a remediar. E, em
virtude de seus escritos e alocuções de grande peso, ele cumpriu essa
tarefa de modo admirabilíssimo.
Em meio às literalmente milhares de entradas nos Acta oficiais do Papa
Pio XII, há centenas de documentos em que ele publicou ensinamento
acerca da natureza e dignidade da Igreja Católica como a verdadeira
Igreja de Jesus Cristo. Como resultado, qualquer estudo amplo dos
efeitos de Pio XII no campo da eclesiologia teria de ser exprimido num
volume bastante imponente. Todavia, dentre os numerosíssimos
documentos que certamente teriam de ser examinados a fundo numa
obra dessas, há alguns seletíssimos pronunciamentos seus que tiveram
particular gravidade para todos os teólogos interessados no tratado
sobre a Igreja. Ele parecia ter uma afeição especial por essas
declarações. Não consigo pensar num meio mais eficaz de homenagear
sua diletíssima memória, na presente edição da Revista Eclesiástica
Americana, do que reunindo os mais marcantes ensinamentos dele
sobre a Igreja que ele tanto amou e tão bem guiou.

Mystici Corporis Christi


A Mystici Corporis Christi e a encíclica subsequente, Humani Generis,
bem podem entrar para a história como os dois mais importantes
pronunciamentos doutrinais emitidos pelo Papa Pio XII durante o curso
de seu longo e glorioso reinado como o Vigário de Cristo na terra.
Ambas exerceram uma influência reguladora extraordinariamente
poderosa no interior do tractatus de Ecclesia Christi.
O Papa Pio XII promulgou a Mystici Corporis Christi em 29 de junho de
1943. A primeira e mais fundamental contribuição feita por ela ao
pensamento católico sobre a Igreja está contida na seguinte sentença:
“A fim de definir e de descrever esta verdadeira Igreja de Jesus Cristo
—que é a Una, Santa, Católica, Apostólica Romana Igreja—, nada
encontraremos que seja mais nobre, ou mais sublime, ou mais divino
do que a expressão “o Corpo Místico de Jesus Cristo”; expressão esta
que brota, e é como a fina flor, do reiterado ensinamento das Sagradas
Escrituras e dos Santos Padres.”[4]
Depois dessa declaração forte e superlativamente clara, não poderia
haver nem sombra de desculpa para qualquer tática que tendesse a
descrever o Corpo Místico de Nosso Senhor como de qualquer modo
distinto da —ou superior à— Igreja Católica visível, a sociedade
religiosa sobre a qual o Vigário de Cristo governa como o cabeça
visível. A expressão “Corpo Místico de Cristo” se mostra, nesse
pronunciamento retumbante de Pio XII, como a descrição e mesmo
como a definição da Una, Santa, Católica e Apostólica Romana Igreja.
A Mystici Corporis dá então o golpe de misericórdia nos ensinamentos
de que a verdadeira Igreja de Jesus Cristo seja outra coisa que não
uma sociedade visível e verdadeiramente organizada neste mundo; ela
o faz através do seguinte pronunciamento:
“Erram, portanto, em matéria de verdade divina, os que imaginam que
a Igreja seja invisível, intangível, alguma coisa meramente
“pneumática”, como dizem eles, pela qual muitas comunidades cristãs,
embora difiram umas das outras na profissão de fé, estejam unidas por
um vínculo invisível.”[5]
De igual maneira, esta grandiosa carta encíclica reprova o erro e a
confusão ínsitos nos escritos daqueles católicos que ensinaram a
existência de uma dúplice Igreja de Deus neste mundo:
“Por essa razão, Nós deploramos e condenamos o erro pernicioso dos
que sonham uma Igreja imaginária, espécie de sociedade que tenha
origem e crescimento na caridade e à qual, um tanto
desdenhosamente, eles opõem uma outra, que chamam de jurídica.
Mas essa distinção que introduzem é falsa; pois falham em entender
que a razão que levou nosso Divino Redentor a dar à comunidade de
homens que Ele fundou a constituição de uma Sociedade, perfeita em
seu gênero e contendo todos os elementos jurídicos e sociais —a saber,
a fim de que Ele perpetue na terra a obra salvífica da Redenção—, foi
também a razão pela qual Ele a quis enriquecida com os dons celestes
do Paráclito.”[6]
Finalmente, o Papa Pio XII, ao redigir a Mystici Corporis Christi,
manifestou a verdade de que a Igreja Católica visível é realmente o
Corpo Místico de Jesus Cristo, a verdadeira Igreja de Deus de que falam
as Escrituras, quando ele sublinhou o fato de que os membros da Igreja
Católica reconhecíveis como tais —ou, noutras palavras, os membros
da Igreja Católica visível— são os verdadeiros e únicos membros da
verdadeira Igreja. Ele escreveu:
“Realmente só devem ser contados (annumerandi) como membros da
Igreja aqueles que foram batizados e que professam a verdadeira fé,
e que não tiveram a miséria de se separar da unidade do Corpo (neque
a Corporis compage semet ipsos misere separarunt) nem foram dele
excluídos pela legítima autoridade por graves faltas cometidas.”[7]
Outro ponto magnificamente esclarecido pelo finado Soberano Pontífice
no texto da Mystici Corporis Christi foi o ensinamento sobre a
necessidade da Igreja Católica para alcançar a eterna salvação. A
seguinte passagem administra preciosa instrução sobre a situação dos
que estejam ligados à verdadeira Igreja por uma intenção ou desejo
meramente implícito ou inconsciente de entrar nesta sociedade.
“Como sabeis, Veneráveis Irmãos, desde o princípio do Nosso
Pontificado Nós confiamos à proteção e ao governo do Céu aqueles que
não pertencem ao visível Corpo da Igreja Católica (qui ad
adspectabilem, non pertinent Catholicae Ecclesiae compagem),
declarando solenemente que, a exemplo do Bom Pastor, Nós nada
desejamos mais ardentemente do que isto: que eles tenham vida, e
vida em maior abundância. Implorando as orações de toda a Igreja,
Nós desejamos repetir essa solene declaração nesta Carta Encíclica na
qual Nós proclamamos os louvores do “grande e glorioso Corpo de
Cristo”, e, com um coração transbordante de amor, Nós convidamos
cada um e todos eles a corresponder às moções interiores da graça e
procurar sair desse estado em que não podem estar seguros de sua
própria salvação (in quo de sempiterna cuiusque propria salute securi
esse non possunt). Pois ainda que por um desejo e anseio inconsciente
(inscio quodam desiderio ac voto) tenham uma certa relação
(ordinentur) com o Corpo Místico do Redentor, ainda assim
permanecem carentes daqueles muitos dons e auxílios celestes que só
podem ser desfrutados na Igreja Católica. Portanto, entrem na unidade
católica e, unidos conosco no único, orgânico Corpo de Jesus Cristo (in
una Iesu Christi Corporis compagine coniuncti), possam junto de Nós
confluir para o único Cabeça na Sociedade do amor glorioso.
Perseverando em oração ao Espírito de amor e verdade, Nós
aguardamos de braços bem abertos que venham para a casa não de
um estranho, mas para a sua própria, o lar de seu pai.”[8]
Há outro item importante sobre o qual a Mystici Corporis Christi profere
decisão doutrinal. Previamente à promulgação da encíclica, os teólogos
católicos tinham debatido acerca de se os bispos residenciais da Igreja
Católica derivavam o poder de jurisdição deles imediatamente de
Nosso Senhor, ou então d’Ele por intermédio do Romano Pontífice.
Nesse documento, o Papa Pio XII aproveitou a oportunidade para tratar
do poder de jurisdição dos Bispos e o descreveu como algo “que eles
recebem diretamente (immediate) do mesmo Sumo Pontífice.”[9] Na
edição de suas Institutiones Iuris Publici Ecclesiastici que saiu à luz
após a promulgação da Mystici Corporis Christi, o Cardeal Ottaviani não
perdeu o ensejo de declarar que esse ensinamento, que tinha sido
considerado, até então, como o mais provável ou mesmo como
doutrina comum, agora necessita de ser aceito como dotado de inteira
certeza, em razão das palavras do Soberano Pontífice Pio XII.[ 10]

Humani Generis
Erros doutrinais que eram ensinados ou no mínimo vistos com bons
olhos nalguns círculos católicos depois do encerramento da segunda
guerra mundial foram assinalados e reprovados na carta
encíclica Humani Generis, datada de 12 de agosto de 1950. Tal como
o Juramento contra os Erros do Modernismo, contido na Sacrorum
Antistitum de São Pio X, a Humani Generis lidou principalmente com
erros que se opunham ao ensinamento que se encontra na constituição
dogmática Dei Filius do Concílio Vaticano. Assim, boa parte do material
exposto na Humani Generis diz respeito a introdução à sagrada
teologia e a outros loci theologici além da Igreja. Alguns dos
ensinamentos mais preciosos dessa encíclica, todavia, referem-se
diretamente ao tractatus de Ecclesia.
A mais importante contribuição específica feita na Humani generis à
eclesiologia diz respeito ao magistério da Igreja. Nessa encíclica, o
Papa Pio XII recordou aos estudiosos católicos que “em matérias de fé
e costumes este sagrado magisterium deve ser o critério de verdade
próximo e universal para todos os teólogos, visto que a ele foi confiado
por Cristo Nosso Senhor o inteiro depósito da fé —Sagrada Escritura e
Divina Tradição— para ser preservado, resguardado e
interpretado.”[ ] Lembrou também os estudantes católicos do dever
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deles “de fugir também daqueles erros que em maior ou menor medida
se aproximam da heresia”, e por conseguinte [do dever deles] “de
observância também das constituições e decretos pelos quais tais
opiniões perversas são proscritas e proibidas pela Santa Sé.”[12]
Especialmente, ele ensinou acerca da autoridade das cartas encíclicas
e outros atos do magistério ordinário do Soberano Pontífice.
“Nem se deve pensar que o que é exposto em Cartas Encíclicas não
exija, por si, o consentimento, porque os Papas não exerçam nelas o
supremo poder de sua autoridade de ensinar (assensum per se non
postulare, cum in iis Pontifices supremam sui Magisterii potestatem
non exerceant). Pois essas coisas são ensinadas com a autoridade
docente ordinária, da qual também é verdadeiro dizer: “Quem vos ouve
a mim ouve”; e geralmente o que é exposto e inculcado nas Cartas
Encíclicas, já por outras razões pertence à doutrina católica. Ora, se os
Romanos Pontífices em seus documentos oficiais (in actis suis)
pronunciam de caso pensado um juízo em matéria até então disputada,
é óbvio que essa matéria, segundo a intenção e vontade dos mesmos
Pontífices, já não pode mais ser considerada questão aberta à
discussão entre os teólogos.”[13]
Na Humani Generis, o pranteado Santo Padre viu-se forçado a
protestar contra a rejeição da tese central da Mystici Corporis
Christi por alguns escritores dentro do redil católico. Assinalou também
a existência de ensinamentos inadmissíveis sobre outro ponto da
doutrina católica acerca da verdadeira Igreja.
“Alguns dizem que não estão obrigados pela doutrina, explicada em
Nossa Carta Encíclica de poucos anos atrás e baseada nas fontes da
Revelação, que ensina que o Corpo Místico de Cristo e a Igreja Católica
Romana são uma só e mesma coisa. Reduzem alguns a uma fórmula
vazia a necessidade de pertencer à verdadeira Igreja para obter a
eterna salvação.” [14]

Suprema Haec Sacra


Um ano antes da publicação da Humani Generis, a Suprema Sagrada
Congregação do Santo Ofício enviou ao Revmo. Arcebispo de Boston
uma carta contendo explicações a respeito do dogma de que ninguém
pode ser salvo fora da Igreja Católica. Esse documento sumamente
importante foi aprovado pelo Papa Pio XII. Não obstante o fato de ter
sido enviado antes da promulgação da Humani Generis, foi publicado
apenas dois anos depois da publicação da encíclica. Esta Carta do Santo
Ofício é a Suprema Haec Sacra, uma das mais importantes declarações
doutrinais que saíram à luz durante o reinado do falecido e amado
Soberano Pontífice.[15] [15bis]
Este documento expôs com clareza e detalhadamente, e como
ensinamento autêntico da Santa Sé, a explanação do dogma sobre a
necessidade da Igreja Católica para obtenção da salvação eterna que
vinha sendo apresentada já fazia tempo como doutrina comum no
ensinamento teológico sobre a Igreja mesma. Os elementos da
exposição contida na Suprema Haec Sacra já tinham sido, é claro,
expostos desde há muito aos fiéis em prévias declarações autoritativas
do magistério da Igreja. A inteira doutrina, contudo, nunca fora antes
sintetizada e apresentada tão claramente e com tal minúcia científica
completa, em nenhum documento anterior.
A Suprema Haec Sacra reiterou novamente o fato de que a declaração
“fora da Igreja não há salvação” é uma afirmação infalível que a Igreja
sempre pregou e jamais cessará de pregar, e qualificou essa
proposição como dogma. Explicou que a Igreja entendia esse dogma
no sentido de que a Igreja é necessária à obtenção da eterna salvação
com, ambas, necessidade de preceito e necessidade de meio. Ensinou,
além disso, que a Igreja era um meio de salvação a ser classificado
entre aqueles quae divina sola institutione, non vero intrinseca
necessitate, ad finem ultimum ordinantur [“que se ordenam ao fim
último do homem não por necessidade intrínseca, mas somente por
instituição divina” – ndt], e que por isso, sob certas circunstâncias, a
salvação pode ser alcançada quando a Igreja mesma é utilizada ou
adentrada voto solummodo vel desiderio[“unicamente por voto ou
desejo” – ndt]. Salientou, uma vez mais, o ensinamento católico de
que em casos nos quais os homens estejam invencivelmente
ignorantes da verdadeira Igreja, “Deus também aceita um implícito
desejo (votum), assim chamado por estar incluído naquela boa
disposição de alma pela qual uma pessoa deseja que a sua vontade
esteja conforme à vontade de Deus.”[16]
A porção estritamente doutrinal da Suprema Haec Sacra conclui-se
com este ensinamento essencial:
“Mas não se deve pensar que é suficiente qualquer espécie de desejo
de entrar na Igreja, para alguém ser salvo. É necessário que o desejo
pelo qual alguém está ligado à Igreja seja animado de perfeita
caridade. Nem, tampouco, um desejo implícito pode produzir o seu
efeito caso a pessoa não possua a fé sobrenatural: “Pois aquele que se
aproxima de Deus deve crer que Deus existe e é remunerador daqueles
que O procuram” (Hebreus, 11, 6). O Concílio de Trento declara
(Sessão VI, cap. 8): “A fé é o início da salvação do homem e o
fundamento e raiz de toda justificação; sem ela, é impossível de
agradar a Deus e de chegar à irmandade de Seus filhos” (Denzinger,
n. 801).[17]
Ci Riesce
A Ci Riesce é uma alocução proferida pelo Papa Pio XII em 6 de
dezembro de 1953 à convenção nacional da Unione dei Giuristi Cattolici
Italiani, em audiência com o Santo Padre. A primeira seção desse
documento trata da natureza e das propriedades de uma comunidade
jurídica internacional de Estados soberanos. Não tem relevância
imediata para o tratado teológicode Ecclesia Christi. A segunda seção
analisa e dá a solução de um casus moralis com que os homens de
estado católicos e os estados católicos podem se deparar em razão de
possíveis ações futuras de uma comunidade internacional. Essa parte
da Ci Riesce decidiu autoritativamente diversas questões que vinham
sendo disputadas no decorrer de uma discussão sobre Igreja e Estado
levada adiante por teólogos católicos previamente ao pronunciamento
da alocução.
Um artigo no fascículo de fevereiro de 1954 de The American
Ecclesiastical Review assim resume o efeito da Ci Riesce sobre certos
pontos que foram previamente debatidos entre teólogos aqui nos
E.U.A.:
(1) A alocução emprega o termo “Stato cattolico”. Com efeito, o
conceito de estado Católico é uma das noções chave utilizadas nesse
documento. O termo é aplicado aos estados modernos, a sociedades
civis que terão relações com uma comunidade internacional e jurídica
de estados soberanos. Portanto, pareceria ocioso sustentar no futuro
que esse termo seja inepto, ou que só possa se referir legitimamente
a sociedades civis ou reinos de tempos passados.
(2) A alocução assevera que “aquilo que não corresponde à verdade e
aos critérios morais não tem, objetivamente, direito algum de existir,
de ser ensinado ou de ser feito”. Como resultado podemos esperar que,
no futuro, não haverá objeções incitadas contra o ensinamento ou a
terminologia dos escritores que mantêm que, de si mesmo, o erro não
tem direitos. Incidentalmente, é interessante notar que o Cardeal
Ottaviani, no seu artigo na edição de maio de 1953 de The American
Ecclesiastical Review[17bis], comentou desfavoravelmente a prática de
objetar ao tipo de asserção que agora aparece nesta alocução
pontifícia.
(3) Certamente já não é viável reprovar o ensinamento segundo o qual,
objetivamente, uma completa separação entre Igreja e Estado é um
mal. Pareceria igualmente que, doravante, se reconhecerá a
legitimidade das explicações [acerca das relações] entre Igreja e
Estado em termos de tese e hipótese.[18]
Si Diligis
Si Diligis é a alocução proferida pelo Papa Pio XII em 31 de maio de
1954 aos Cardeais, Arcebispos e Bispos que estavam presentes em
Roma para a canonização de São Pio X. Contém uma magnífica
explicação sobre a relação do Soberano Pontífice e dos outros membros
do colégio apostólico com os homens que eles empregam para auxiliá-
los na obra deles de instruir os fiéis. Como tal, ela trouxe
esclarecimentos necessários a uma parte do tratado teológico sobre a
Igreja de Cristo.
“Cristo Nosso Senhor confiou a verdade que Ele trouxera do Céu aos
Apóstolos, e por meio deles aos seus sucessores. Ele enviou Seus
Apóstolos, tal como Ele fora enviado pelo Pai (João, 20, 21), para
ensinarem a todas as nações tudo o que d’Ele tinham ouvido
(cf.Mateus, 28, 19s.). Os Apóstolos são, portanto, por direito divino os
verdadeiros doutores e docentes na Igreja. Além dos legítimos
sucessores dos Apóstolos —a saber: o Papa, quanto à Igreja Universal,
e os Bispos, quanto aos fiéis confiados aos cuidados deles (cf. cân.
1326)—, não existem outros mestres divinamente constituídos na
Igreja de Cristo. Mas tanto os Bispos como, acima de tudo, o Supremo
Docente e Vigário de Cristo na terra podem associar outros a si próprios
na sua obra de ensinantes, e usar o conselho deles; delegam a estes a
faculdade de ensinar, quer por concessão especial ou conferindo um
ofício ao qual essa faculdade esteja atrelada (cf. cân. 1328). Aqueles
que são assim chamados não ensinam em seu próprio nome, nem em
razão de seu conhecimento teológico, mas em razão do mandato que
receberam da legítima Autoridade Docente. A faculdade deles
permanece sempre sujeita àquela Autoridade, nem jamais é exercida
‘sui juris’ [por seu próprio direito] ou independentemente. Os Bispos,
por sua vez, ao conferirem essa faculdade não ficam privados do direito
de ensinar; conservam a gravíssima obrigação de supervisionar a
doutrina que os outros propõem, para ajudá-los e garantir a
integridade e segurança dela. Por isso, a legítima Autoridade Ensinante
da Igreja não é culpada de qualquer lesão ou ofensa a qualquer um
daqueles a quem ela deu missão canônica, se ela desejar averiguar o
que é que eles, a quem ela confiou a missão de ensinar, estão propondo
ou defendendo nas suas lições orais, livros, notas e resenhas para uso
de seus alunos, bem como nos livros e outras publicações voltadas
para o público geral.”[19] [19bis]
Previamente à promulgação da Si Diligis, havia uma tendência por
parte de alguns escritores populares no campo da religião a imaginar
que a qualquer momento qualquer um podia se apresentar como
professor de doutrina cristã no seio da Igreja Católica. A alocução
magistral pronunciada pelo Papa Pio XII efetivamente deu cabo desse
erro pernicioso.
A Carta sobre a Caridade Fraterna Dentro da
Igreja
e Dentro do Sacerdócio
As contribuições ao tractatus de Ecclesia Christi feitas pelo Papa Pio XII
nas suas cartas e nas suas alocuções foram muitas e excelentes.
Aquela que, para este escritor, parece a maior de todas elas veio em
forma de uma carta, redigida sob a direção do Soberano Pontífice por
Monsenhor Dell’Acqua, ao Cardeal Elia Dalla Costa, Arcebispo de
Florença. Essa carta visava orientar a VII Settimana Sociale di
Aggiornamento Pastorale. Foi datada de 3 de julho de 1957 e publicada
no Osservatore Romano, edição de 4 de agosto do ano passado [1957].
O tema central do encontro para o qual a carta foi enviada era “A
Caridade na Comunidade Cristã”. O Papa Pio XII chamou-o de “um
tema que é, a uma só vez, o mais elevado e o mais relevante para a
renovação cristão da sociedade”.[20] Nos comentários dele sobre o
tema, ele lembrou vigorosamente aos seus leitores a função essencial
da caridade dentro da Igreja.
Primeiro que tudo, insistiu que a única caridade genuína no interior da
comunidade cristã “é a virtude teologal da caridade, a qual tem como
objeto a Deus mesmo, que é ‘Caridade’ e ‘Amor’ infinito e digno de ser
amado por Si mesmo e acima de todas as coisas.”[21] Ele mostrou que
basicamente e essencialmente o amor de caridade que deve existir e
operar dentro da comunidade cristã é esse amor sobrenatural de
amizade para com o Deus Triuno, que primeiro nos amou tão
enternecidamente. Em seguida, indicou ele o fato de que essa caridade
para com Deus deve carregar consigo um amor uns pelos outros na
sociedade dos discípulos de Nosso Senhor.
“O amor infinito com que Deus ama a Si Mesmo no inefável mistério
da Trindade é manifestado a nós por meio do Verbo Encarnado, que
nos deu o novo mandamento de nos amarmos uns aos outros como
Deus nos amou.
Antes mesmo da Última Ceia e da Paixão, Jesus recordara que o
preceito do amor a Deus devia ser integrado com o do amor ao
próximo. Após ter afirmado o primado do amor a Deus, disse Ele: “O
segundo [mandamento] é semelhante a este: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo”. Ora, no discurso depois da Última Ceia, falando do
“novo mandamento”, Ele deu uma explicação mais precisa e profunda
dos termos. “Como o Pai me amou, assim eu vos amei”; “Nisto todos
os homens conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns
aos outros”.”[22]
Quando lemos o Novo Testamento atentamente, logo ficamos cientes
do fato de que o mandamento mais frequentemente e vigorosamente
imposto aos membros da Igreja pelo próprio Nosso Senhor e pelos
escritores inspirados foi o preceito de amarmos uns aos outros. De
fato, como o Santo Padre ressaltou, esse mútuo amor de caridade
dentro da Igreja foi proposto pelo próprio Nosso Senhor como prova
de discipulado. Os discípulos receberam instrução e ordem de
perdoarem uns aos outros, de suportarem uns aos outros e de
buscarem o perdão uns dos outros. Deviam pôr de lado tudo aquilo que
fosse obstáculo ao mútuo amor de caridade entre eles.
No entanto, quando o estudante contemporâneo lê o tratado sobre a
Igreja (ou, a propósito, o tratado de caritate na teologia moral),
encontra pouco ou nada acerca dessa conexão intimíssima entre a
caridade sobrenatural e a vida da Igreja. O tractatus de caritate fala
da necessidade de um amor de caridade pelo próximo, mas não indica
o fato de que o “novo” mandamento de Nosso Senhor, do amor mútuo
entre Seus discípulos, foi uma explicação mais profunda e mais precisa
da segunda lei da caridade. O tractatus de Ecclesia menciona a
caridade como pertencente ao elo interior de união dentro da Igreja,
mas ordinariamente não cuida de ressaltar que a Igreja mesma é uma
sociedade de homens e mulheres que Deus mesmo quis que tivessem
um amor especial e fraterno uns aos outros em virtude mesma de sua
afeição por Ele.
A carta ao Cardeal Dalla Costa recordou aos homens de nosso tempo
o lugar preeminente da mútua caridade entre os membros da Igreja
Católica. Em última análise, essa carta mostrou a obrigação e a
necessidade da caridade fraterna entre os sacerdotes da Igreja
Católica. A caridade fraterna que Deus manda e que Ele espera dentro
do sacerdócio católico é apenas o despontar e o centro do amor
fraterno mútuo que deve existir entre todos os membros da verdadeira
Igreja.
Em nossos tempos mesmos, tem havido uma tendência manifesta, e
amplamente disseminada, a ignorar a verdade central enfatizada nesta
carta. Foi quiçá a coroação das conquistas do Papa Pio XII insistir
fortemente no fato de que o “novo” mandamento do Salvador de que
Seus discípulos amem uns aos outros é, essencialmente, apenas a
aplicação mais precisa e mais profunda, ao interior do Corpo Místico,
do segundo preceito da divina caridade.
*****
Em 1956, o Pe. Domenico Bertetto editou um volume intitulado Il
magistero Mariano di Pio XII.[23] É uma obra de 1.015 páginas, que
citain extenso aquelas seções dos Acta de Pio XII relacionadas à
doutrina e à devoção referentes a Nossa Senhora. Até aos primeiros
meses de 1956, havia 910 pronunciamentos desses, dignos de
menção. Quem quer que esteja familiarizado, ainda que de maneira
superficial, com as contribuições do falecido Soberano Pontífice ao
tratado teológico de Ecclesia Christi sabe muito bem que uma obra
desse tipo (ainda que não necessariamente uma obra tão volumosa
quanto o livro do Padre Bertetto) seria necessária para fazer plena
justiça ao que Pio XII ensinou acerca do reino de Deus na terra.
Declarações proveitosas e esclarecedoras acerca da natureza e das
propriedades da Igreja de Nosso Senhor abundam em muitos dos
documentos emitidos pelo Papa Pio XII. Pareceria, contudo, que os
esclarecimentos mais importantes e mais urgentemente necessários
que ele fez podem ser encontrados nos documentos mencionados no
decorrer deste breve tributo. Principalmente em razão das declarações
contidas nestes documentos, é que a tarefa de ensinar o tratado
teológico sobre a Igreja foi favorecida no decorrer de seu longo e
glorioso reinado como Vigário de Cristo na terra.
Aqueles de nós que fomos privilegiados de ensinar o tractatus de
Ecclesia Christi durante todo o pontificado do Papa Pio XII sabemos por
experiência o quão brilhantemente e eficazmente ele contribuiu para o
avanço dos estudos clericais nesse campo. Com sua clara afirmação da
doutrina católica e seu vigoroso repúdio de ensinamentos
extravagantes sobre o tema, ele fez progredir a causa da verdade
revelada de Deus como poucos homens fizeram antes dele.

Notas
1. Cf. Fenton, The Catholic Church and Salvation [A Igreja Católica e a
Salvação] (Westminster, Maryland: The Newman Press, 1958), pp.
165-70.
2. Cf. ibid., pp. 171-88.
3. A tendência chamada de “catolicismo liberal” se baseia no
indiferentismo religioso e envolve oposição aos dogmas da necessidade
da verdadeira fé e da verdadeira Igreja para alcançar a eterna
salvação. Cf. “The Components of Liberal Catholicism” [Os integrantes
do catolicismo-liberal], in AER, CXXXIX, 1 (jul., 1958), 36-53.
4. Tradução da NCWC [= National Catholic Welfare Council, embrião
da Conferência Nacional dos Bispos dos E.U.A. – ndt], n. 13.
5. Ibid., n. 14.
6. Ibid., n. 65.
7. Ibid., n. 22.
8. Ibid., n. 103.
9. Ibid., n. 42.
10. Cf. Ottaviani, Institutiones Iuris Publici Ecclesiastici, 3ª. ed. (Typis
Polyglottis Vaticanis, 1947), I, 413; e Fenton, “The Doctrinal Authority
of Papal Encyclicals”, in AER, CXXI, 2, 3 (ag., set., 1949), 136-50; 210-
20[respectivamente, parte I e parte II de “A Autoridade Doutrinal das
Encíclicas Papais”, trad. br. no blog Acies Ordinata de 27 dez. 2013
(“wp.me/pw2MJ-2aL”) e 6 abr. 2015 (“wp.me/pw2MJ-2×9”). – Ndt].

11. Cf. tradução da NCWC, n. 18.


12. Cf. ibid. Nesta passagem o Papa Pio XII usou as palavras que o
Concílio do Vaticano anexou como apêndice aos cânons referentes à
Constituição Dei Filius. Cf. Denz., 1820.
13. Tradução da NCWC, n. 20.
14. Ibid., n. 27.
15. O texto original em latim e a tradução oficial em inglês desse
documento se encontram em AER, CXXVII, 4 (out., 1952), 307-15.
[15bis. (Ndt) Há tradução em português da íntegra da Suprema Haec
Sacra no blog Acies Ordinata, no endereço: “wp.me/pw2MJ-2np”; faz parte
do artigo de set. 2014 do Pe. Hervé Belmont traduzido aqui em 26 de janeiro
último, sob o título: “Por que e como o Santo Ofício fulminou com
excomunhão em 13 fev. 1953 o Pe. Leonard Feeney”.]

16. Ibid., 313.


17. Ibid., 314.
[17bis. (Ndt) Em português esse artigo, intitulado “Deveres religiosos do
Estado Católico”, foi publicado na edição de jul.-ag. 1953 da revista Vozes
de Petrópolis(vol. 11, fasc. 4, p. 350-67) e depois na de set. 1953 da Revista
Eclesiástica Brasileira (vol. 13, fasc. 3, p. 537-54). Foi transcrito online em 5
out. 2011 no blog Acies Ordinata, no endereço: “wp.me/pw2MJ-10O”; cf.
também aqui a trad. br. de 18 out. 2011 do artigo de Mons. Di Meglio
publicado na edição de jun. 1954 daAmerican Ecclesiastical Review: “A Ci
Riesce e o Discurso do Cardeal Ottaviani”, em: “wp.me/pw2MJ-11Q”.]

18. “The Teachings of the Ci riesce” [“Os Ensinamentos da Ci Riesce”],


inAER, CXXX, 2 (fev., 1954), 114-23. A passagem citada se acha nas
pp. 122 s.
19. O texto e a tradução em inglês da Si Diligis são trazidos pela AER,
CXXXI, 2 (agosto, 1954), 127-37. A passagem citada está nas pp. 133
s.
[19bis. (Ndt) A tradução da Si Diligis em português pelos Serviços de
Imprensa da Rádio Vaticano foi publicada no vol. 109 da coleção Documentos
Pontifícios da editora Vozes de Petrópolis (na 2ª. ed., de 1955, p. 3-9),
seguida de sua prometida continuação, a alocução Magnificate Dominum de
2 de novembro de 1954 (p. 9-24), reunidas ambas sob o título “Sobre o
Tríplice Poder da Hierarquia Eclesiástica: duas Alocuções”, volume que
se acha transcrito online no site da Fraternidade S. Pio X no Brasil:
“fsspx.com.br/alocucoes-sobre-o-triplice-poder-da-hierarquia-
eclesiastica/”.]
20. A tradução em inglês dessa carta é trazida por AER, CXXXVII, 4
(out., 1957), 274-80. A citação é da p. 275.
21. Ibid.
22. Ibid., 275 s.
23. Esse livro foi publicado pelas Edizioni Paoline de Turim.

_____________

SUMÁRIO

[Introdução]
Mystici Corporis Christi
Humani Generis
Suprema Haec Sacra
Ci Riesce
Si Diligis
A Carta sobre a Caridade Fraterna
Dentro da Igreja e Dentro do Sacerdócio
[Conclusão]
Notas

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PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:
Mons. Joseph Clifford FENTON, O Papa Pio XII e o Tratado
Teológico sobre a Igreja, dez. 1958; trad. br. por F. Coelho, São
Paulo, abr. 2015, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-2yg
de: “Pope Pius XII and the Theological Treatise on the Church”, in: The American
Ecclesiastical Review 139 (dez. 1958) 407-419.
Cf. “catholicculture.org/culture/library/view.cfm?recnum=5086”.

CRÍTICAS E CORREÇÕES SÃO BEM-VINDAS:


f.a.coelho@gmail.com

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