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Resumo
O texto discute a dimensão artística e cômica do boi-de-mamão paranaense a partir
das contribuições de Ernst Cassirer (1994) e Georges Minois (2003). A investigação,
ainda em andamento, é orientada pela abordagem fenomenológica, fundamentada na
análise documental, bibliográfica e pesquisa de campo. O texto assinala as principais
distinções entre os quatro grupos de boi-de-mamão localizados no litoral paranaense,
apontando possíveis significados que os sujeitos atribuem ao folguedo.
Abstract
The text discusses the artistic and comic dimension of the boi-de-mamão from the
Paraná State (Brazil) having as starting points the contributions of Ernst Cassirer
(1994) and Georges Minois (2003). This investigation, still in progress, is guided by the
phenomenological approach, based on documentary analysis and field research. The
text points out the main distinctions between the boi-de-mamão groups of Paraná,
presenting possible meanings that the subjects assign to the party.
INTRODUÇÃO
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Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná. Pianista
e professora assistente da UNESPAR, Campus I - Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
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Folguedos são festas populares de espírito lúdico que se realizam anualmente, em datas determinadas,
em diversas regiões do Brasil. Para Meyer (1993) e Câmara Cascudo (1954, 1967) o bumba-meu-boi é
um folguedo. Andrade (1959) classifica o bumba-meu-boi como uma dança dramática, relacionando-o ao
Reisado, uma apresentação dramático-coreográfica de romances e cantigas populares.
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Conhecido anteriormente como boi-de-pau, boi-de-palha, boi-de-pano, boi-de-melão e finalmente boi-de-
mamão, essa designação foi atribuída porque eram utilizados mamões verdes para confeccionar a
cabeça do boi, conforme Melo (1949), Câmara Cascudo (1954) e Soares (1978).
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“Na linguagem, na religião, na arte e na ciência, o homem não pode fazer mais
que construir seu próprio universo – um universo simbólico que lhe permite entender,
interpretar, articular e organizar, sintetizar e universalizar sua experiência humana”
(CASSIRER, 1994, p. 359).
De acordo com o autor, o sistema simbólico é a condição para ordenação do
pensamento e da ação. Todo conhecimento se dá no âmbito das diversas formas
simbólicas, ou seja, a relação do homem com a realidade não é imediata, mas mediata
pelas várias construções simbólicas. Portanto, o homem vive em um universo
simbólico e todas as atividades humanas podem ser definidas, em última instância,
como criações de símbolos.
Os símbolos são elementos formais universais que constituem a trama na qual
a realidade pode ser articulada, apreendida e recriada. Símbolos e sinais pertencem a
universos diferentes de discurso: “um sinal faz parte do mundo físico do ser; um
símbolo é parte do mundo humano do significado. Os sinais são operadores e os
símbolos são designadores”, afirma Cassirer (1994, p.58).
Os símbolos têm um valor funcional, e a função simbólica é um princípio de
aplicabilidade universal que abarca todo o campo do pensamento humano. O princípio
do simbolismo, com sua universalidade e aplicabilidade geral, dá acesso ao mundo da
cultura humana.
As formas simbólicas – como a ciência, a arte, a religião, o mito, a história –
são construções efetudas pelos sujeitos e representam determinadas formas de
compreensão do mundo. Cada forma simbólica constrói sua própria realidade de
forma específica, com diferentes perspectivas e valores. Portanto, na perspectiva
cassireriana, a arte é uma das formas através das quais o homem expressa e
sistematiza simbolicamente seu conhecimento de mundo.
O sistema simbólico transforma o conjunto da vida humana: o homem não
pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente, e passa a viver em uma nova
dimensão de realidade, em um universo simbólico.
Na interação com os símbolos, o indivíduo lança mão de processos não
apenas racionais, mas também emocionais. São as instâncias do pensar, sentir e agir
que conjuntamente, ao se depararem com a multiplicidade simbólica existente no
mundo, interpretam e ressignificam esses elementos.
Assim, a apreensão das manifestações artísticas possibilita valorizar os
produtos culturais físicos e imaginários que dão sentido à vida dos indivíduos em seu
mundo particular. Nesse sentido, o boi-de-mamão paranaense pode revelar os
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significados particulares tecidos por cada indivíduo, bem como os atributos culturais de
determinadas comunidades em escala local, e também regional.
Atualmente, há quatro grupos paranaenses de boi-de-mamão: Boi do Norte e
Boi Barroso na cidade de Antonina, Boi Mandicuera na Ilha dos Valadares, em
Paranaguá, e Boi-de-mamão do Grupo Folclórico de Guaratuba. O Boi do Norte
remonta quase um século de tradição, o grupo de Guaratuba foi criado na década de
1960, enquanto o Boi Mandicuera e o Boi Barroso foram constituídos há poucos anos,
em 2003 e 2007, respectivamente.
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Ao lado dos personagens principais, em cada região do Brasil aparecem diferentes personagens
secundários, que podem ser divididos em três tipos, conforme Alvarenga (1982): Humanos, como o
Capitão-do-mato, a Velha, a Rosa, a Sinh’Aninha, o Fiscal, Pai Francisco, os Galantes e as Damas;
Animais, entre eles o Urubu, a Ema, a Burrinha, o Sapo e a Cobra Verde; Fantásticos, como a Caipora ou
Caiporinha, o Gigante, o Babau, o Diabo, o Guriabá, o Morto-e-vivo, o Mané-pequenino.
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A Dança do Pau-de-fita é exatamente igual ao Reisado do Folguedo da Trança, dança popular em
Portugal e na Espanha, descrito por Alvarenga (1982, p. 34): “uma coreografia desenvolvida em torno de
um pau ou de um mastro, a que se prendem fitas no topo. Cada figurante segura a ponta de uma fita e o
grupo evolui enrolando-as ou trançando-as”. A autora encontrou essa dança com o nome de Trancelim
em Pernambuco, nas festas da véspera de Reis; e com a denominação de Vilão em Goiás, no sul de
Minas, interior e litoral de São Paulo. É interessante observar que, em Goiás, o Vilão dança-se com
lenços, em vez de fitas, presos por uma das pontas a paus ou segurados pelas duas pontas pelos
figurantes, formados em uma grande roda. Nesta região também há o Vilão de Faca, em que os lenços ou
paus são substituídos por facas. Isso ilustra as modificações regionais ou em escala local, que as danças
populares podem adquirir.
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A Balainha é uma dança da região litorânea dos Estados do Paraná e de Santa Catarina, trazida ao
Brasil pelos portugueses de origem açoriana. Também conhecida com o nome de Arcos Floridos ou
Jardineira, desenvolve-se com os pares de dançantes, cada um deles sustentando um arco florido.
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Todas as fotos desse texto foram capturadas pela autora, em um evento realizado na cidade de
Paranaguá em julho de 2012, no qual se apresentaram os quatro grupos paranaenses de boi-de-mamão.
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Personagem que pode ter sido inspirado no guará, uma ave de plumagem vermelha, presente no litoral
brasileiro, que existia em abundância na cidade de Guaratuba, denominação esta que significa “muitos
guarás”.
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A arte cômica possui no mais alto grau uma faculdade comum a toda a arte, a visão solidária. Em
virtude dessa faculdade, ela é capaz de aceitar a vida humana com todos os seus defeitos e suas
fraquezas, sua insensatez e seus vícios. A grande arte cômica sempre foi uma espécie de
encomium moriae, um elogio à insensatez. Na perspectiva cômica todas as coisas começam a
assumir um rosto novo (CASSIRER, 1994, p. 246).
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catártico, não no sentido de uma purificação, mas uma mudança na alma humana,
proporcionando um alívio, uma libertação.
Nas apresentações dos quatro grupos paranaenses de boi-de-mamão, o riso se
mostra como elemento de coesão social: as peripécias dos personagens do folguedo
despertam muitas risadas, promovendo um momento de interação festiva e jocosa
entre os atores e o público em geral.
Para Minois (2003, p. 612), o riso é ambivalente, esconde e revela ao mesmo
tempo, e “pode ser associado a uma multidão de elementos positivos e negativos”.
Diante disso, questiona-se: Quais os significados mais profundos do riso no folguedo
do boi? O que se mostra e se oculta sob a comicidade dos grupos paranaenses de
boi-de-mamão?
Considerando a especificidade e a riqueza cultural de cada grupo, certamente
são possíveis muitas leituras diferentes e simultâneas. Portanto, pretende-se apenas
apontar algumas reflexões sobre os grupos de Antonina.
O Boi do Norte e o Boi Barroso são conhecidos como “boi pobre” e “boi rico”,
respectivamente, pois o primeiro grupo é constituído, em sua maioria, por moradores
dos locais periféricos da cidade que possuem baixo poder aquisitivo, enquanto no
segundo prevalece a participação de turistas e pessoas da comunidade com uma
situação econômica mais favorável. Os brincantes dos dois grupos atribuem ao boi-de-
mamão os sentimentos de alegria, uma forma de convívio social e familiar, e o valor da
tradição. Além destes atributos, a solidariedade e a luta pela sobrevivência se
destacam no discurso dos integrantes do Boi do Norte.
Sendo uma tradição quase centenária na cidade, o boi-de-mamão faz parte da
vida e da história dos antoninenses. Tendo sido constituídos como blocos folclóricos
carnavalescos, os grupos acabam sendo associados à festa e ao seu amplo perímetro
de sentidos, que incluem a alegria e a sociabilidade.
Importa ressaltar que o carnaval antoninense se destaca como uma festa
tradicional no Estado do Paraná, frequentada por crianças, jovens e adultos. Percebe-
se que a maioria das famílias locais, bem como os turistas, comparecem às ruas para
assistir ou participar dos desfiles carnavalescos. Assim, os valores promovidos pela
festa do boi-de-mamão, como a alegria, a sociabilidade e a família, parecem promover
o sentido de vinculação entre os antoninenses e reforçar o sentimento de
pertencimento ao lugar.
O bufão, segundo Chevalier (2009, p. 148), mais que um personagem cômico,
“é a expressão da multiplicidade íntima da pessoa e de suas discordâncias ocultas”,
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ou seja, revela a dualidade de todo ser e da face de bufão que existe em cada um.
No Boi do Norte e no Boi Barroso, o palhaço é o personagem que sorri em qualquer
circunstância.
O riso se mostra multifacetado no boi-de-mamão e, se visivelmente revela a
alegria, a beleza e a união entre os brincantes antoninenses, parece ocultar, no Boi do
Norte, a tristeza, a luta, a denúncia e a possibilidade de libertação.
“Talvez seja verdade que todos os risos, sonoros ou insinuados, altos ou
abafados, participam, em última instância, da consolidação de ordem social, moral e
política, desempenhando a função de válcula de escape” (MINOIS, 2003, p. 460).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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