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NOVEMBRO PELE – Uma viagem pelo mundo sensorial artístico afrodescendente brasileiro

PROJETO de Rona Neves e Eleonora Ignez

1º evento – A PALAVRA DA MULHER NEGRA NA CONTEMPORANEIDADE

Seleção Básica – sugiro que se for possível, seja feita uma pesquisa complementar sobre cada artista.
Seria bom que se entrasse em contato também.
Os poemas com número ao lado, significa a ordem sugerida de leitura.
Os poemas sem indicação numérica devem compor o cenário.

CONCEIÇÃO EVARISTO

Para a menina (2)

Desmancho as tranças da menina


e os meus dedos tremem
medos nos caminhos
repartidos de seus cabelos.
Lavo o corpo da menina
e as minhas mãos tropeçam
dores nas marcas-lembranças
de um chicote traiçoeiro.
Visto a menina
e aos meus olhos
a cor de sua veste
insiste e se confunde
com o sangue que escorre
do corpo-solo de um povo.
Sonho os dias da menina
e a vida surge grata descruzando as tranças
e a veste surge farta
justa e definida
e o sangue se estanca
passeando tranqüilo
na veia de novos caminhos,
esperança.

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NOVEMBRO PELE – Uma viagem pelo mundo sensorial artístico afrodescendente brasileiro
PROJETO de Rona Neves e Eleonora Ignez

Malungo, brother, irmão

No fundo do calumbé
nossas mãos ainda
espalmam cascalhos
nem ouro nem diamante
espalham enfeites
em nossos seios e dedos. Tudo se foi
mas a cobra
deixa o seu rastro
nos caminhos aonde passa
e a lesma lenta
em seu passo-arrasto
larga uma gosma dourada
que brilha no sol.
um dia antes
um dia avante
a dívida acumula
e fere o tempo tenso
da paciência gasta
de quem há muito espera.
Os homens constroem
no tempo o lastro,
laços de esperanças
que amarram e sustentam
o mastro que passa
da vida em vida.
no fundo do calumbé
nossas mãos sempre e sempre
espalmam nossas outras mãos
moldando fortalezas e esperanças,

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PROJETO de Rona Neves e Eleonora Ignez

heranças nossas divididas com você:


malungo, brother, irmão.

Meia lágrima
Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.
Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro. Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.

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Vozes mulheres (6)


A voz da minha bisavó
Ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida. A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha

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se fará ouvir a ressonância


o eco da vida-liberdade.

Do fogo que em mim arde (3)


Sim, eu trago o fogo,
o outro,
não aquele que te apraz.
Ele queima sim,
é chama voraz
que derrete o bivo de teu pincel
incendiando até ás cinzas
O desejo-desenho que fazes de mim.

Sim, eu trago o fogo,


o outro,
aquele que me faz,
e que molda a dura pena
de minha escrita.
é este o fogo,
o meu, o que me arde
e cunha a minha face
na letra desenho
do auto-retrato meu.

Todas as manhãs
Todas as manhãs acoito sonhos
e acalento entre a unha e a carne
uma agudíssima dor.

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PROJETO de Rona Neves e Eleonora Ignez

Todas as manhãs tenho os punhos


sangrando e dormentes
tal é a minha lida cavando, cavando torrões de terra,
até lá, onde os homens enterram
a esperança roubada de outros homens.
Todas as manhãs junto ao nascente dia
ouço a minha voz-banzo,
âncora dos navios de nossa memória.
E acredito, acredito sim
que os nossos sonhos protegidos
pelos lençóis da noite
ao se abrirem um a um
no varal de um novo tempo
escorrem as nossas lágrimas
fertilizando toda a terra
onde negras sementes resistem
reamanhecendo esperanças em nós.

FONTES

http://www.elfikurten.com.br/2015/05/conceicao-evaristo.html . Acesso outubro/2016

http://www.psiupoetico.com.br/?page_id=1296 . Acesso outubro/2016.

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FÁTIMA TRINCHÃO

A pele (1)

Esta pele que me cobre,

Esta pele que me envolve

O corpo,

Esta pele que me marca

E me faz único

Em meio a tantos,

Esta pele que me define,

Manto de extrema

Leveza,

Como a noite

Repleta d’estrelas,

Cobre o mundo,

A terra inteira,

Pele preta

Preta pele,

Beleza que me acaricia.

Esta pele que me veste,

Em claro e sereno rito,

Esta pele que me encobre,

Manto de extrema grandeza

Esta pele que me marca,

Que me marca e me comove

Esta pele que me encobre

Como a noite a terra inteira

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Em claro e profundo rito

Manto de extrema grandeza

É esta a pele que habito.

A minha fé (7)

Que meus receios não me impeçam de seguir adiante.

Que a minha fé não fraqueje ante os obstáculos,

Que minha palavra não silencie diante do que acredito,

Que eu não me acovarde frente ao horror das injustiças.

Que eu não compactue com as iniquidades.

Que eu sempre me surpreenda com o calor e o brilho do sol a cada dia que nasce,

plenitude da luz do nosso pai Oxalá;

Que eu me alegre com o murmúrio das águas dos rios,

águas que deslizam mansamente por sobre grandes pedras e pequenos seixos, morada

sagrada de Mamãe Oxum.

Que eu sinta no rosto o frescor da brisa leve ao final da tarde, carícia doce de Mãe Oyá;

Que eu humano, não perca nunca a essência da minha humanidade;

Que a minha crença seja tão forte que jamais me permita duvidar Daquele que É.

E que o meu respeito pelos meus Deuses - Orixás, cresça e amplie-se tanto e de tal

maneira,

Que será amor e outra forma não haverá de ser,

nesse mundo e em qualquer outro,

que não seja sempre, AMOR!

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Rimar

Olho para o papel em branco ,


e Ele me olha,
Durante alguns segundos, Nós nos olhamos.
Até que a empatia rola,
Até que a poesia desfila,
Solene e garbosa,
E o poema destila suas
Rimas ricas,
Seus versos nobres
suas prosas

A ARTE DE VIVER

Bela arte a dos navegantes!

De tudo que posso e possuo

Neste mar da vida inconstante

Amo muito o meu navegar,

Agora e a todo o instante.

Nas ondas revoltas ou calmas,

Onde sopram fortes brisas,

Revolvo do fundo d’alma

Barcos, portos, velas, risos

Sabendo prudentemente,

Que navegar é preciso!

Preciso como é o tempo,

Que traz as vozes do vento,

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Clamando serenidade.

Nas ondas em desalinho,

Vejo nos portos, caminhos;

Nas pontes, maturidade;

Nas suas pás e moinhos,

Movimento e unidade.

Bela arte a dos navegantes,

Neste mar da vida inconstante,

Marinheiros, Marujos, plebeus

Beatos, crentes e ateus,

Unidos num só pensar,

Num pensamento indiviso,

De que é preciso navegar,

Por que viver, é impreciso!

Fonte:
http://rebra.org/escritora/escritora_ptbr.php?assunto=texto&id=1597. Acesso outubro/2016

http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=45477&categoria=7. Acesso outubro/2016

http://www.fatimatrinchao.net/visualizar.php?idt=5540633. Acesso outubro/2016.

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ELIZANDRA SOUZA

Comigo-Ninguém-Pode

Assentei no meu portão


Uma erva poderosa
Planta milagreira
De banir Olho de Seca Pimenteira
Para reforçar Espada de São Jorge
Arruda e Alecrim
Não há olho gordo que me derrube
Não há mal que me assole
Pois na minha casa o que não falta
É Comigo-Ninguém-Pode

Águas da Cabaça (4)

Esse fruto seco que tudo carrega


Elixir dos deuses e do diabo
Águas para o banho
Águas que matam a sede
É vida, é ventre

Quando pensam que morri


Renasço nas mãos de uma mulher

Ser cabaça, ser fértil


simples, discreta
suave, dura e impermeável
Reverberar o som com suas sementes

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Calar o grito/gritar o silêncio…

Entoa a canção…
Harmoniza os passos descompassados
Pulsam de vida: a voz, a vida e a rima
As crianças ouvem o silêncio das palavras
Os homens insultam os gritos das crianças
As mulheres desejam os silêncios e os gritos
Os gritos e os silêncios….
Neste ritmo…
O silêncio…
O grito…
O silêncio…
O grito…
O grito…
O silêncio…
No fundo elas vão calar o grito…
E gritar o silêncio…
Calar o grito!
Gritar o silêncio!

FONTE

http://www.polifoniaperiferica.com.br/2012/10/entrevista-conheca-um-pouco-da-poetisa-elizandra-

souza/. Acesso outubro/2016

http://www.afreaka.com.br/notas/mulher-negra-centro-da-poesia-de-elizandra-souza/. Acesso

outubro/2016

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ALZIRA RUFINO

Reflexos (8)

Apropriar-se do meu DNA

Acordo, durmo.

Escovo os dentes.

Apropriar-se dos manuscritos de ontem.

Fazer releituras ...

Apropriando- me da realidade dos rebanhos

Leituras em determinados momentos com a ferramenta possível.

Horizontalizo.

Me refaço no meu espelho diário.

Aproprio-me dos fenômenos que mudam o destino ,com olhos e face de produção

caseira.

Aproprio-me da minha identidade, metas que aguardam mudanças não só para

diversão.

Aproprio- me da humanidade que me surpreende.

Aproprio-me do calor do útero finalizando a produção.

Aproprio-me do fazer e refazer as malas

Aproprio-me da liberdade de me dar voz de prisão e ordem de recolher para o meu

cérebro e sentidos.

Apropriar-se do aceitar esse corpo carrasco que no suor do meu corpo transpira

pensamentos.

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em teu olho escuro

cesira na tarde
dor no sangue
com medo da noite
incomodas o povo
que não vê
em teu olho escuro
a íris do amanhecer

tiraste o ferrolho das grades


tiraste os pés do chão
cesira
perdida

Resisto (12)

De onde vem este medo?

Sou

sem mistérios existo

Busco gestos de parecer

Atando os feitos que me contam

Grito de onde vem esta vergonha sobre mim?

Eu, mulher negra,resisto

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Resisto (12)

Sou negra ponto final

devolvo-me a identidade

rasgo a minha certidão

sou negra

sem reticências

sem vírgulas

sem ausências

sou negra balacobaco

sou negra noite cansaço

sou negra

ponto final

FONTE

http://negrasjovensfeministas.blogspot.com.br/2009/11/mulher-negra-e-representacao.html. Acesso

outubro/2016

http://veronicabenesi.blogspot.com.br/2008/05/poesia-afro-brasileira-contempornea.html. Acesso

outubro/2016

http://latitudeslatinas.com/poesias-de-alzira-rufino/. Acesso outubro/2016

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ELISA LUCINDA

O poema do semelhante (5)

O Deus da parecença
que nos costura em igualdade
que nos papel-carboniza
em sentimento
que nos pluraliza
que nos banaliza
por baixo e por dentro,
foi este Deus que deu
destino aos meus versos,

Foi Ele quem arrancou deles


a roupa de indivíduo
e deu-lhes outra de indivíduo
ainda maior, embora mais justa.

Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante
espelho, semelhante
ser a boca
ser a dona da palavra sem dono
de tanto dono que tem.

Esse Deus sabe que alguém é apenas


o singular da palavra multidão
É mundão
todo mundo beija
todo mundo almeja
todo mundo deseja
todo mundo chora

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alguns por dentro


alguns por fora
alguém sempre chega
alguém sempre demora.

O Deus que cuida do


não-desperdício dos poetas
deu-me essa festa
de similitude
bateu-me no peito do meu amigo
encostou-me a ele
em atitude de verso beijo e umbigos,
extirpou de mim o exclusivo:
a solidão da bravura
a solidão do medo
a solidão da usura
a solidão da coragem
a solidão da bobagem
a solidão da virtude
a solidão da viagem
a solidão do erro
a solidão do sexo
a solidão do zelo
a solidão do nexo.

O Deus soprador de carmas


deu de eu ser parecida
Aparecida
santa
puta
criança
deu de me fazer
diferente
pra que eu provasse

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da alegria
de ser igual a toda gente

Esse Deus deu coletivo


ao meu particular
sem eu nem reclamar
Foi Ele, o Deus da par-essência
O Deus da essência par.

Não fosse a inteligência


da semelhança
seria só o meu amor
seria só a minha dor
bobinha e sem bonança
seria sozinha minha esperança

Do Príncipe ao sim

O homem que eu amo


veio de tanto eu pedir
mas quando parei de esperá-lo
veio quando eu ao depená-lo
do meu sonho receio,
permiti que em vez de início ou fim
ele no meio de mim
fosse só o meio.
Não meio no sentido tático
de jeito ou de modo.
Meio no sentido de durante
de enquanto
de presente.
Quando abandonei o título futuro
definitivo da eternidade
o rótulo azarento de garantia

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no departamento de intimidade,
quando abandonei o desejo
de ressarcir aqui
o que perdi na antigüidade,
meu homem chegou cheio de saudade
ocupando inteiro
seu lugar de meio
sua inteira metade.

4 de agosto de 1995

Da chegada do amor

Sempre quis um amor


que falasse
que soubesse o que sentisse.
Sempre quis uma amor que elaborasse
Que quando dormisse
ressonasse confiança
no sopro do sono
e trouxesse beijo
no clarão da amanhecice.

Sempre quis um amor


que coubesse no que me disse.
Sempre quis uma meninice
entre menino e senhor
uma cachorrice
onde tanto pudesse a sem-vergonhice

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do macho
quanto a sabedoria do sabedor.

Sempre quis um amor cujo


BOM DIA!
morasse na eternidade de encadear os tempos:
passado presente futuro
coisa da mesma embocadura
sabor da mesma golada.
Sempre quis um amor de goleadas
cuja rede complexa
do pano de fundo dos seres
não assustasse.
Sempre quis um amor
que não se incomodasse
quando a poesia da cama me levasse.
Sempre quis uma amor
que não se chateasse
diante das diferenças.

Agora, diante da encomenda


metade de mim rasga afoita
o embrulho
e a outra metade é o
futuro de saber o segredo
que enrola o laço,
é observar
o desenho
do invólucro e compará-lo
com a calma da alma
o seu conteúdo.
Contudo
sempre quis um amor
que me coubesse futuro
e me alternasse em menina e adulto

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que ora eu fosse o fácil, o sério


e ora um doce mistério
que ora eu fosse medo-asneira
e ora eu fosse brincadeira
ultra-sonografia do furor,
sempre quis um amor
que sem tensa-corrida-de ocorresse.
Sempre quis um amor
que acontecesse
sem esforço
sem medo da inspiração
por ele acabar.
Sempre quis um amor
de abafar,
(não o caso)
mas cuja demora de ocaso
estivesse imensamente
nas nossas mãos.
Sem senãos.
Sempre quis um amor
com definição de quero
sem o lero-lero da falsa sedução.
Eu sempre disse não
à constituição dos séculos
que diz que o "garantido" amor
é a sua negação.
Sempre quis um amor
que gozasse
e que pouco antes
de chegar a esse céu
se anunciasse.

Sempre quis um amor


que vivesse a felicidade

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sem reclamar dela ou disso.


Sempre quis um amor não omisso
e que sua estórias me contasse.
Ah, eu sempre quis um amor que amasse.

Penetração do Poema das Sete Faces (3)

(A Carlos Drumond de Andrade)


Ele entrou em mim sem cerimônias
Meu amigo seu poema em mim se estabeleceu
Na primeira fala eu já falava como se fosse meu
O poema só existe quando pode ser do outro
Quando cabe na vida do outro
Sem serventia não há poesia não há poeta não há nada
Há apenas frases e desabafos pessoais
Me ouça, Carlos, choro toda vez que minha boca diz
A letra que eu sei que você escreveu com lágrimas
Te amo porque nunca nos vimos
E me impressiono com o estupendo conhecimento
Que temos um do outro
Carlos, me escuta
Você que dizem ter morrido
Me ressuscitou ontem à tarde
A mim a quem chamam viva
Meu coração volta a ser uma remington disposta
Aprendi outra vez com você
A ouvir o barulho das montanhas
A perceber o silêncio dos carros
Ontem decorei um poema seu
Em cinco minutos
Agora dorme, Carlos.

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Amanhecimento (9)

De tanta noite que dormi contigo


no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
Para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada…
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.

SÓ DE SACANAGEM (11)

Meu coração está aos pulos!

Quantas vezes minha esperança será posta à prova?

Por quantas provas terá ela que passar? Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que
voam entupidas de dinheiro, do meu, do nosso dinheiro que reservamos duramente para
educar os meninos mais pobres que nós, para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos
seus pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e eu não posso mais.

Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança vai ser posta à prova?

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Quantas vezes minha esperança vai esperar no cais?

É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o aprendiz, mas não é certo que a
mentira dos maus brasileiros venha quebrar no nosso nariz.

Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao conselho simples de meu pai,
minha mãe, minha avó e os justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolva o lápis do
coleguinha", "Esse apontador não é seu, minha filha". Ao invés disso, tanta coisa nojenta e
torpe tenho tido que escutar.

Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca tinha visto falar e sobre a qual minha
pobre lógica ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao culpado interessará. Pois
bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, então agora eu vou
sacanear: mais honesta ainda vou ficar.

Só de sacanagem! Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo mundo rouba" e
vou dizer: "Não importa, será esse o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu
irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo
do nosso freguês. Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau."

Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de
Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? Imortal! Sei
que não dá para mudar o começo mas, se a gente quiser, vai dar para mudar o final!

FONTE

http://www.escolalucinda.com.br/bau.htm . Acesso outubro/2016

http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/elisa-lucinda-poemas/ . Acesso outubro/2016

http://www.releituras.com/elucinda_menu.asp . Acesso outubro/2016

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