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As

vítimas dos desastres ambientais no Brasil têm cor e ela não é


branca

Cecília Campello do A.Mello – Professora do IPPUR-UFRJ e pesquisadora do CNPq

(com a colaboração de Tadeu Oliveira/IBGE)

Os dados estatísticos sobre a composição sócio-demográfica da população do
distrito de Bento Rodrigues, varrido do mapa pela lama de resíduos tóxicos que a
multinacional Samarco/Vale/BHP não conteve revelam um fato estarrecedor: 84,5%
da população deste distrito é não-branca, de acordo com os dados do último censo
do IBGE (2010). Hoje, no Dia da Consciência Negra, não podemos deixar de
perguntar: será este fato um mero fruto do acaso?

A emergência de um movimento ambientalista não-branco no cenário internacional
revela que não. Ao trazer ao debate ambiental contemporâneo o ponto de vista dos
grupos racial ou etnicamente diferenciados, revela-se um dado novo e perturbador:
ao contrário do que os documentos da ONU e as grandes ONGs ambientalistas
internacionais costumam divulgar, a poluição não é “democrática”. Tanto do ponto
de vista de quem a produz, quanto do ponto de vista de quem é vitimado pelo dano
ambiental: não somos todos(as) igualmente responsáveis pela degradação
ambiental, nem igualmente afetados(as) pelos efeitos nocivos e tóxicos do processo
industrial. Alguns grupos são atingidos por parcelas desproporcionais dos danos
ambientais e se encontram em situação particularmente vulnerável quando
desastres como este ocorrem.

Desde a década de 90, estudos estatísticos demonstraram a correlação direta entre
alocação de resíduos tóxicos e local de residência de populações não brancas
(Commission for Racial Justice, 1987). O PhD Robert Bullard (1990) chega a afirmar
que a variável mais apta para explicar a presença de um lixão de dejetos tóxicos nos
EUA é a presença de população não-branca em seu entorno. O mesmo podemos
hoje dizer das barragens de rejeitos da mineração.

Em outubro de 1991 aconteceu a primeira Cúpula de ambientalistas negros,
indígenas e latinos em Washington (EUA), motivada pela constatação de que esses
eram os grupos mais vitimados por danos ambientais ligados à poluição tóxica. No
Brasil, em setembro de 2001, houve o primeiro encontro da Rede Brasileira de
Justiça Ambiental (RBJA), onde aprendemos o conceito de “desigualdade ambiental”,
isto é, que a desigualdade social, uma marca estruturante de nossa história, também
se reproduz na esfera ambiental, destinando aos grupos mais vulnerabilizados (no
Brasil, as populações não-brancas e pobres) uma carga desproporcional dos riscos e
dos danos ambientais gerados por indústrias poluentes (Acselrad et al., 2009).
Também aprendemos com a RBJA que este padrão desigual de proteção ambiental
não é aleatório, mas sim motivado por um padrão de discriminação racial que define
para os negros um lugar subalterno em nossa sociedade. O fato de que populações
negras e de minorias étnicas sejam expostas a dejetos tóxicos e perigosos e estejam
excluídas do processo de formulação das políticas ambientais seriam evidências
daquilo que o pastor e ativista por direitos civis estadunidense Dr. Benjamin Chavis
denominou como “racismo ambiental”.

O desastre de Bento Rodrigues é “anunciado”, pois poderia ter sido evitado. Os fatos
que levaram a isto - que é tudo menos um acidente - incluem um licenciamento
ambiental precário, uma localização inadequada dos resíduos e sobrecarga da
capacidade da barragem de rejeitos, ausência de fiscalização, ausência de plano de
emergência local e regional, bem como ausência de informações antes e após o
desastre. Revela-se a total incapacidade de uma multinacional do porte da
Samarco/Vale/BHP de garantir condições mínimas de segurança em uma barragem
contendo rejeitos altamente tóxicos da mineração. E, ao mesmo tempo, a situação
de precarização dos órgãos ambientais e o silenciamento dos alertas de seu corpo
técnico frente aos interesses econômicos das grandes corporações.

Este poderia ser lido como mais um exemplo de desigualdade ambiental. Porém,
quando observamos a cor da população mais diretamente atingida e somamos a isso
o descaso letal da dupla capital privado-poder do Estado, vemos aí um quadro mais
complexo, que aponta para uma ação governamental e empresarial – deliberada ou
não - cujos efeitos são profundamente racistas. Não fossem os sujeitos
imediatamente afetados negros e pobres o comportamento das autoridades e
gestores empresariais certamente seria outro.

Os princípios da Justiça Ambiental clamam pela igual proteção dos grupos não-
brancos frente à ameaça das indústrias cujo processo produtivo envolva a extração,
produção e descarte de resíduos tóxicos e perigosos. Os direitos fundamentais ao ar,
à água, à terra e aos alimentos puros desta população não vêm sendo respeitados. A
defesa dos direitos dos grupos vulnerabilizados como os da comunidade negra de
Bento Rodrigues é a condição básica para construir uma cidadania efetiva para todos
e, também, para que desastres de tais proporções não condenem à morte nossos
rios, lagoas e mares.

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