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02/05/2019 MP da Liberdade Econômica x desconsideração da personalidade jurídica - Jus.com.

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A Medida Provisória da Liberdade Econômica e a


desconsideração da personalidade jurídica (art. 50,
CC).
Primeiras impressões

A Medida Provisória da Liberdade Econômica e a desconsideração da


personalidade jurídica (art. 50, CC). Primeiras impressões

Pablo Stolze

Publicado em 05/2019. Elaborado em 05/2019.

A Medida Provisória da "Liberdade Econômica" causou forte


impacto no Código Civil, em especial no art. 50, que regula a
desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. Caberá à
jurisprudência estabelecer balizas interpretativas para que seja
mantida a eficácia do instituto, tão importante para a
salvaguarda do crédito no Brasil.

1. INTRODUÇÃO

A Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, que instituiu a “Declaração de


Direitos de Liberdade Econômica”, estabelecendo garantias de livre mercado e
consagrando o princípio da intervenção mínima do Estado, causou forte impacto
no Código Civil.

Diversas partes do Código foram atingidas:

1. O art. 421, norma-sede da função social do contrato, experimentou o


acréscimo de um vetor referencial ou limitativo, com a inserção da expressão
“observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”,
além da consagração, em parágrafo único, do princípio da intervenção
mínima do Estado: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em
razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na
Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Parágrafo único. Nas

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relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção


mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual
determinada de forma externa às partes será excepcional.”;
2. Ao art. 423, que regula a interpretação do contrato por adesão, fora
acrescentado um parágrafo único que, tratando de contratos que não sejam
pactuados sob a técnica por adesão, dispõe acerca da interpretação mais
favorável a quem não redigiu a cláusula controvertida: “Art. 423. Quando
houver no contrato de adesão cláusulas que gerem dúvida quanto à sua
interpretação, será adotada a mais favorável ao aderente. Parágrafo
único. Nos contratos não atingidos pelo disposto no caput, exceto se houver
disposição específica em lei, a dúvida na interpretação beneficia a parte
que não redigiu a cláusula controvertida.”;
3. Foram acrescentados, no Título dedicado aos Contratos em Geral, no
Capítulo II, Seção IV, os arts. 480-A e 480-B, voltados, especialmente, ao
reconhecimento da paridade nas relações interempresariais: Art. 480-A.
Nas relações interempresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer
parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de
resolução do pacto contratual. Art. 480-B. Nas relações interempresariais,
deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de
riscos por eles definida.”;
4. Ao art. 980-A, que disciplina a Empresa Individual de Responsabilidade
Limitada (EIRELI), fora acrescentado o § 7º, com o nítido intuito de
destacar a autonomia entre os patrimônios do instituidor e da EIRELI: “§ 7º
Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da
empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se
confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a
constitui, ressalvados os casos de fraude.”;
5. O art. 1.052, que dispõe sobre a sociedade limitada, recebeu um parágrafo
único, passando a admitir a anômala figura da sociedade unipessoal:
“Parágrafo único. A sociedade limitada pode ser constituída por uma ou
mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição
do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.”;
6. Acrescentou-se, ainda, o Capítulo X ao Livro III do Direito das Coisas,
dedicado ao “Fundo de Investimento” (arts. 1.368-C a 1.368-E): “Art. 1.368-
C. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a
forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.
Parágrafo único. Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar
o disposto no caput. Art. 1.368-D. O regulamento do fundo de investimento
poderá, observado o disposto no regulamento a que se refere o parágrafo
único do art. 1.368-C: I - estabelecer a limitação da responsabilidade de
cada condômino ao valor de suas cotas; e II - autorizar a limitação da
responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários, perante o
condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada
um, sem solidariedade. Art. 1.368-E. A adoção da responsabilidade

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limitada por fundo constituído sem a limitação de responsabilidade


somente abrangerá fatos ocorridos após a mudança.”

E, nesse contexto, sofreu também impacto o art. 50 do Código Civil, dispositivo de


grande importância jurídica, que regula a desconsideração da personalidade
da pessoa jurídica.

Sobre tais alterações, compartilharemos as nossas primeiras impressões.

2. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA


[1]
PERSONALIDADE JURÍDICA (#_FTN1)

A doutrina da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica


(disregard of legal entity) ganhou força na década de 50, com a publicação do
trabalho de ROLF SERICK, professor da Faculdade de Direito de Heidelberg.

Com fulcro em sua teoria, pretendeu-se justificar a superação da personalidade


jurídica da sociedade em caso de abuso, permitindo-se o reconhecimento da
[2]
responsabilidade dos sócios. O seu pensamento causou forte influência na Itália
[3]
(#_ftn2) e na Espanha (#_ftn3) .

Segundo a doutrina clássica, o precedente jurisprudencial que permitiu o


[4]
desenvolvimento da teoria ocorreu na Inglaterra, em 1897 (#_ftn4) .

Em linhas gerais, a doutrina da desconsideração pretende o afastamento


temporário da personalidade da pessoa jurídica, em caso de abuso, a fim de que
o credor possa satisfazer o seu direito no patrimônio pessoal do sócio ou
administrador que cometeu o ato abusivo.

“O juiz pode decretar a suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo da


pessoa jurídica”, diz FÁBIO ULHOA COELHO, “se verificar que ela foi utilizada
[5]
como instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito” (#_ftn5) .

Em nossa visão, a desconsideração da personalidade jurídica é perfeitamente


aplicável também às empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI),
assim como poderá ser decretada em face de pessoas jurídicas sem finalidade
lucrativa, como associações e fundações.

Em qualquer caso, a desconsideração não pode ser decretada de ofício, sendo


matéria sob reserva de jurisdição - ou seja, de competência do Poder Judiciário -,
a despeito de já ter havido precedente admitindo a desconsideração por ato direto
[6]
da Administração (desconsideração administrativa) (#_ftn6) .

Sobre a possibilidade de decretação de ofício, poderíamos excepcionar a regra


geral no sentido da sua vedação, em situações específicas e justificadas, como
escreve, com habitual erudição o talentoso jurista FLÁVIO TARTUCE:

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De início, estabelece o art. 133, caput, do Novo Código de Processo


Civil que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica
será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando
lhe couber intervir no processo. Assim, fica afastada, pelo menos a
priori, a possibilidade de conhecimento de ofício, pelo juiz, da
desconsideração da personalidade jurídica. Lembre-se de que a
menção ao pedido pela parte ou pelo Ministério Público consta do
art. 50 do Código Civil. Apesar disso, o presente autor entende que,
em alguns casos, de ordem pública, a desconsideração da
personalidade jurídica ex officio é possível. Citem-se, de início, as
hipóteses envolvendo os consumidores (…) também é viável (…) nos
casos de danos ambientais (…). A conclusão deve ser a mesma nas
hipóteses envolvendo corrupção, por força da recente Lei
[7]
12.846/2013, de interesse coletivo inquestionável (#_ftn7) .

Na seara processual, de forma inovadora no Direito Positivo, o CPC/2015 trouxe


disciplina específica para a desconsideração da personalidade jurídica,
estabelecendo expressamente um procedimento para a sua aplicação (arts. 133 a
137).

Claro está que a desconsideração da personalidade jurídica do ente que serviu


como escudo para a prática de atos fraudulentos, abusivos, ou em desvio de função
não pode significar, ressalvadas hipóteses excepcionais, a sua aniquilação.

Entretanto, reconhecemos que, em situações de excepcional gravidade, poderá


justificar-se a despersonalização, em caráter definitivo, da pessoa jurídica,
entendido tal fenômeno como a extinção compulsória, pela via judicial, da
personalidade jurídica. Apontam-se os casos de algumas torcidas organizadas que,
pela violência de seus integrantes, justificariam o desaparecimento da própria
entidade de existência ideal.

Assim sendo, o rigor terminológico impõe diferenciar as expressões:


despersonalização, que traduz a própria extinção da personalidade jurídica, e o
termo desconsideração, que se refere apenas ao seu superamento episódico, em
virtude de fraude ou abuso.

Ambas, porém, não se confundem com a responsabilidade patrimonial direta dos


sócios, tanto por ato próprio quanto nas hipóteses de corresponsabilidade e
[8]
solidariedade (#_ftn8) .

Um importante ponto deve ainda ser ressaltado: o Código Civil, em seu art. 50,
adotou a denominada teoria maior da desconsideração, por exigir, além da
insuficiência patrimonial, pressuposto lógico, a demonstração do abuso
caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

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Contrapõe-se, pois, à denominada teoria menor da desconsideração, de


aplicação mais facilitada, que exige, apenas, a insuficiência patrimonial,
consagrada no Direito Ambiental e do Consumidor, bem como na Justiça do
Trabalho.

3. O ART. 50 E A MEDIDA PROVISÓRIA DA “LIBERDADE


ECONÔMICA” (MP Nº 881/19)

Visando a imprimir um aspecto claro, preciso e objetivo a este texto, permitindo


que o nosso leitor compreenda as alterações decorrentes da Medida Provisória,
cuidaremos de estabelecer uma argumentação comparativa com a antiga redação
do art. 50.

Pois bem, originalmente, a norma assim estava redigida:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado


pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz
decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando
lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Com a publicação da nova MP, a redação do caput passou a ser:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica,


caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão
patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do
Ministério Público quando lhe couber intervir no
processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam estendidos
aos bens particulares de administradores ou de sócios da
pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo
abuso. (grifamos)

Lembrando o célebre embate linguístico entre RUI BARBOSA e CARNEIRO


RIBEIRO, quando em discussão o Código de 1916, observamos a adequada
supressão de uma vírgula antes do primeiro conectivo “ou”.

Houve também a substituição do verbo decidir, o que não alterou o sentido do


[9]
texto, dada opções feita pelo legislador (#_ftn9) em adotar o verbo “
desconsiderar”.

Andou muito bem o novo diploma ao acrescentar, no final do texto legal, a


expressão “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”, porquanto a
desconsideração é instrumento de imputação de responsabilidade, não

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podendo, por certo, sob pena de se ignorar a exigência do próprio nexo causal,
atingir sócio que não experimentou nenhum benefício (direito ou indireto) em
decorrência do ato abusivo perpetrado por outrem.

Pois bem. Ultrapassada a análise do caput, os parágrafos seguintes não constavam


na redação original do Código Civil:

§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de


finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o
propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos
de qualquer natureza.

Este parágrafo conceituou o desvio de finalidade.

A sua redação não nos agrada.

É tarefa primordial da doutrina firmar conceitos.

Mas, ainda que se obtempere que a definição trazida pelo legislador traria uma
maior segurança jurídica, por outro, a expressa menção à “utilização dolosa” como
requisito para caracterizar o desvio é, em nosso sentir, um retrocesso.

A desnecessidade de se comprovar o dolo específico - a intenção, o propósito, o


desiderato - daquele que, por meio da pessoa jurídica, perpetrou o ato abusivo,
moldou a teoria objetiva, mais afinada à nossa realidade socioeconômica e sensível
à condição a priori mais vulnerável daquele que, tendo o seu direito violado,
invoca o instituto da desconsideração.

FÁBIO KONDER COMPARATO afirmava que a “desconsideração da


personalidade jurídica é operada como consequência de um desvio de função, ou
disfunção, resultando, sem dúvida, as mais das vezes, de abuso ou fraude, mas que
[10]
nem sempre constitui um ato ilícito” (#_ftn10) .

Ora, a exigência do elemento subjetivo intencional (dolo) para caracterizar o


desvio, colocaria por terra o reconhecimento objetivo da tese da disfunção.

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§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de


separação de fato entre os patrimônios, caracterizada
por:

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações


do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas


contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente
insignificante; e

III - outros atos de descumprimento da autonomia


patrimonial.

O inciso III deste § 2º, ao mencionar, genericamente, que caracterizam a


confusão patrimonial “outros atos de descumprimento da autonomia
patrimonial”, resultou por tornar meramente exemplificativos os incisos
anteriores.

Podem traduzir confusão patrimonial, por exemplo, a movimentação bancária em


conta individual do sócio para as operações habituais da sociedade, o lançamento
direto como despesa da pessoa jurídica de gastos pessoais do sócio ou
administrador etc.

§ 3º O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica


à extensão das obrigações de sócios ou de
administradores à pessoa jurídica.

Em nossa visão, consagrou-se, aqui, a desconsideração inversa ou invertida,


o que significa ir ao patrimônio da pessoa jurídica, quando a pessoa física que a
compõe esvazia fraudulentamente o seu patrimônio pessoal.

Trata-se de uma visão desenvolvida notadamente nas relações de família, de


forma original, em que se visualiza, com frequência, a lamentável prática de algum
dos cônjuges que, antecipando-se ao divórcio, retira do patrimônio do casal bens
que deveriam ser objeto de partilha, incorporando-os na pessoa jurídica da qual é
sócio, diminuindo o quinhão do outro consorte.

Nesta hipótese, pode-se vislumbrar a possibilidade de o magistrado desconsiderar


a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, buscando bens que estão em seu
próprio nome, para responder por dívidas que não são suas e sim de seus sócios, o
que tem sido aceito pela força criativa da jurisprudência:

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CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO


MONITÓRIA. CONVERSÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.
COBRANÇA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS CONTRATUAIS.
TERCEIROS. COMPROVAÇÃO DA EXISTÊNCIA DA SOCIEDADE.
MEIO DE PROVA. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA
PERSONALIDADE JURÍDICA. OCULTAÇÃO DO PATRIMÔNIO
DO SÓCIO. INDÍCIOS DO ABUSO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. EXISTÊNCIA. INCIDENTE
PROCESSUAL. PROCESSAMENTO. PROVIMENTO.

1. O propósito recursal é determinar se: a) há provas suficientes da


sociedade de fato supostamente existente entre os recorridos; e b)
existem elementos aptos a ensejar a instauração de incidente de
desconsideração inversa da personalidade jurídica.

2. A existência da sociedade pode ser demonstrada por terceiros por


qualquer meio de prova, inclusive indícios e presunções, nos termos
do art. 987 do CC/02.

3. A personalidade jurídica e a separação patrimonial dela


decorrente são véus que devem proteger o patrimônio dos sócios ou
da sociedade, reciprocamente, na justa medida da finalidade para a
qual a sociedade se propõe a existir.

4. Com a desconsideração inversa da personalidade jurídica, busca-


se impedir a prática de transferência de bens pelo sócio para a
pessoa jurídica sobre a qual detém controle, afastando-se
momentaneamente o manto fictício que separa o sócio da sociedade
para buscar o patrimônio que, embora conste no nome da
sociedade, na realidade, pertence ao sócio fraudador.

5. No atual CPC, o exame do juiz a respeito da presença dos


pressupostos que autorizariam a medida de desconsideração,
demonstrados no requerimento inicial, permite a instauração de
incidente e a suspensão do processo em que formulado, devendo a
decisão de desconsideração ser precedida do efetivo contraditório.

6. Na hipótese em exame, a recorrente conseguiu demonstrar


indícios de que o recorrido seria sócio e de que teria transferido seu
patrimônio para a sociedade de modo a ocultar seus bens do
alcance de seus credores, o que possibilita o recebimento do

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incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica,


que, pelo princípio do tempus regit actum, deve seguir o rito
estabelecido no CPC/15.

7. Recurso especial conhecido e provido.

(STJ, REsp 1647362/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI,


TERCEIRA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 10/08/2017)

O Código de Processo Civil de 2015 expressamente contemplou a possibilidade


jurídica desta modalidade de desconsideração, conforme se verifica do § 2.º do seu
[11]
art. 133 (#_ftn11) .

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a


presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza
a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

Nada demais é dito aqui.

Nenhuma desconsideração poderá ser decretada, se os requisitos legais não forem


obedecidos.

Um detalhe, todavia, deve ser salientado.

Se, por um lado, a mera existência de grupo econômico sem a presença dos
requisitos legais não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa
jurídica, por outro, nada impede que, uma vez observados tais pressupostos, o juiz
decida, dentro de um mesmo grupo, pelo afastamento de um ente controlado, para
alcançar o patrimônio da pessoa jurídica controladora que, por meio da primeira,
cometeu um ato abusivo.

Trata-se da denominada desconsideração indireta, segundo MARCIO


SOUZA:

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A desconsideração da personalidade jurídica para alcançar quem


está por trás dela não se afigura suficiente, pois haverá outra ou
outras integrantes das constelações societárias que também têm por
objetivo encobrir algum fraudador.(…)

A jurisprudência tem adotado tal posicionamento: "Hipótese em


que o acórdão embargado admitiu a aplicação da doutrina do
"disregard of legal entity", para impedir a fraude contra credores,
considerando válida penhora (https://jus.com.br/tudo/penhora) sobre
bem pertencente a embargante, nos autos de execução proposta
contra a outra sociedade do mesmo grupo econômico." (41). No
mesmo sentido: "Sendo as empresas mera fachada de seu
presidente comum, é de ser aplicado à hipótese a teoria da
"disregard", agasalhada em nosso ordenamento, pelo art. 28, da Lei
[12]
8078/90 (Código de Defesa do Consumidor)." (#_ftn12)

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão


ou a alteração da finalidade original da atividade
econômica específica da pessoa jurídica.

Aqui, o desvio de finalidade - um dos requisitos para a desconsideração da


personalidade jurídica segundo o art. 50 - recebeu um segundo golpe (o
primeiro decorreu da exigência do “dolo” para a sua configuração, conforme o
§1º já analisado acima).

Ao dispor que não constitui desvio de finalidade a “alteração da finalidade


original da atividade econômica específica da pessoa jurídica”, o legislador
dificultou sobremaneira o seu reconhecimento: aquele que “expande” a
finalidade da atividade exercida - como pretende a primeira parte
da norma - pode não desviar, mas aquele que “altera” a própria
finalidade original da atividade econômica da pessoa jurídica, muito
provavelmente, desvia-se do seu propósito.

Caberá, portanto, neste ponto, à jurisprudência, estabelecer as balizas razoáveis


de interpretação para que o instituto da desconsideração não perca a sua
eficácia, tão importante para a salvaguarda do crédito no Brasil.

Aguardemos.

NOTAS

[ ]

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[1]
(#_ftnref1) Serviu
de inspiração para este tópico o volume I - Parte Geral, do nosso
Novo Curso de Direito Civil, 21ª ed. 2019, Ed. Saraiva, escrito em coautoria com
Rodolfo Pamplona Filho.
[2]
Na Itália, cita-se a grande contribuição de Piero Verrucoli, Professor
(#_ftnref2)
da Universidade de Pisa, no seu estudo Il Superamento della Personalità
Giuridica della Società di Capitali nella “Common Law” e nella “Civil Law”.
[3]
Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, 23. ed., São Paulo:
(#_ftnref3)
Saraiva, 1998, v. 1, p. 349.
[4]
Trata-se do famoso caso Salomon v. Salomon & Co. Aaron Salomon,
(#_ftnref4)
objetivando constituir uma sociedade, reuniu seis membros da sua própria
família, cedendo para cada um apenas uma ação representativa, ao passo que,
para si, reservou vinte mil. Pela desproporção na distribuição do controle
acionário já se verificava a dificuldade em reconhecer a separação dos patrimônios
de Salomon e de sua própria companhia. Em determinado momento, talvez
antevendo a quebra da empresa, Salomon cuidou de emitir títulos privilegiados
(obrigações garantidas) no valor de dez mil libras esterlinas, que ele mesmo
cuidou de adquirir. Ora, revelando-se insolvável a sociedade, o próprio Salomon,
que passou a ser credor privilegiado da sociedade, preferiu a todos os demais
credores quirografários (sem garantia), liquidando o patrimônio líquido da
empresa. Apesar de Salomon haver utilizado a companhia como escudo para lesar
os demais credores, a Câmara dos Lordes, reformando as decisões de instâncias
inferiores, acatou a sua defesa, no sentido de que, tendo sido validamente
constituída, e não se identificando a responsabilidade civil da sociedade com a do
próprio Salomon, este não poderia, pessoalmente, responder pelas dívidas sociais.
“Mas a tese das decisões reformadas das instâncias inferiores repercutiu”, assevera
RUBENS REQUIÃO, pioneiro no Brasil no estudo da matéria, “dando origem à
doutrina do disregard of legal entity, sobretudo nos Estados Unidos, onde se
formou larga jurisprudência, expandindo-se mais recentemente na Alemanha e
em outros países europeus” (ob. cit.).
[5]
(#_ftnref5) Fábio
Ulhoa Coelho, Desconsideração da Personalidade Jurídica, São
Paulo: RT, 1989, p. 54. Parece-nos, porém, que o ilustrado e reconhecido
Professor, posteriormente à edição de sua excelente monografia, passou a
sustentar um pensamento situado entre as linhas subjetivista e objetivista,
consoante se depreende da seguinte lição: “em suma, entendo que a formulação
subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como critério para
circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é mais
ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez, deve
auxiliar na facilitação da prova pelo demandante” (Curso de Direito Comercial,
São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 44).
[6]
(#_ftnref6) Superior Tribunal de Justiça:

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ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE


SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR.
EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL,
MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE
FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA
ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE
ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.

- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos


sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para
licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação
da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei
n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à
nova sociedade constituída.

- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade


administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados,
desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de
forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a
ampla defesa em processo administrativo regular.

- Recurso a que se nega provimento.

(RMS 15.166/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em


07/08/2003, DJ 08/09/2003, p. 262)
[7]
Flávio Tartuce. Manual de Direito Civil - Volume Único. 7ª ed. São
(#_ftnref7)
Paulo: Gen, 2017, págs. 192-193.
[8]
(#_ftnref8) Cf., por exemplo, o art. 135 do Código Tributário Nacional:

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a


obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou
infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito


privado.
[9]
Utilizamos a expressão “ legislador”, com a ciência de que se trata de
(#_ftnref9)
lei apenas em sentido material, dado que se trata de uma Medida Provisória.
[10]
Fábio Konder Comparato, O Poder de Controle na Sociedade
(#_ftnref10)
Anônima, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 284-6.

[ ]

https://jus.com.br/imprimir/73648/a-medida-provisoria-da-liberdade-economica-e-a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-art-50-cc 12/14
02/05/2019 MP da Liberdade Econômica x desconsideração da personalidade jurídica - Jus.com.br | Jus Navigandi

[11]
CPC/2015: “§ 2.º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de
(#_ftnref11)
desconsideração inversa da personalidade jurídica”.
[12]
Márcio Souza Guimarães. Aspectos modernos da teoria da
(#_ftnref12)
desconsideração da personalidade jurídica (https://jus.com.br/artigos/3996/aspectos-
modernos-da-teoria-da-desconsideracao-da-personalidade-juridica) . Revista Jus Navigandi,
ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8 (https://jus.com.br/revista/edicoes/2003) , n. 64
(https://jus.com.br/revista/edicoes/2003/4/1) , 1 (https://jus.com.br/revista/edicoes/2003/4/1)
abr. (https://jus.com.br/revista/edicoes/2003/4) 2003 (https://jus.com.br/revista/edicoes/2003) .
Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/3996>. Acesso em: 1 maio 2019.

Autor
Pablo Pablo Stolze
Stolze
Bacharel em Direito - Universidade Federal da Bahia (1998),
tendo recebido o diploma de honra ao mérito (láurea), pela obtenção das
maiores notas ao longo do bacharelado. Pós-graduado em Direito Civil pela
Fundação Faculdade de Direito da Bahia, tendo obtido nota dez em
monografia de conclusão. Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, tendo obtido
nota dez em todos os créditos cursados, nota dez na dissertação, com louvor,
e dispensa de todos os créditos para o doutorado. Aprovado em primeiro
lugar em concursos para as carreiras de professor substituto e professor do
quadro permanente da Faculdade de Direito da Universidade Federal da
Bahia, e também em primeiro lugar no concurso para Juiz de Direito do
Tribunal de Justiça da Bahia (1999). Autor e coautor de várias obras
jurídicas, incluindo o "Novo Curso de Direito Civil" e "Manual de Direito
Civil" (Saraiva). Professor da Universidade Federal da Bahia e da Rede
Jurídica LFG. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e da
Academia Brasileira de Direito Civil. Já ministrou aulas, cursos e palestras
em diversos tribunais do país, inclusive no Supremo Tribunal Federal.

Site(s):

www.facebook.com/pablostolze
www.novodireitocivil.com.br
www.pablostolze.com.br

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Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)

STOLZE, Pablo. A Medida Provisória da Liberdade Econômica e a


desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, CC). Primeiras impressões.
Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5782, 1 maio

https://jus.com.br/imprimir/73648/a-medida-provisoria-da-liberdade-economica-e-a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-art-50-cc 13/14
02/05/2019 MP da Liberdade Econômica x desconsideração da personalidade jurídica - Jus.com.br | Jus Navigandi

2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/73648>. Acesso em: 2 maio


2019.

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