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Universidade Federal de São Carlos

Departamento de Ciências Sociais.

Reflexões sobre o uso ritual da ayahuasca


e o neoxamanismo.

Discente: Pedro Mathias Fajardo Custodio R.A. 491543

São Carlos
2015
A difusão da ayahuasca.
Ayahuasca, yagé, daime, caapi, hoasca, vegetal, nixi pae, natema, são alguns dos nomes
dados a bebida originaria do alto Amazonas, produzida geralmente a partir da cocção do cipó B.
Caapi com as folhas do arbusto Psychoria Viridis, podendo ter outros ingredientes dependendo de
seu preparador. Embora seu consumo seja documentado “com certeza há cerca de duzentos anos,
seu uso é provavelmente milenar” (Luna, 2005), remontando ao período incaico. “ O objeto mais
antigo relacionado ao uso da ayahuasca é uma taça cerimonial feita de pedra, com ornamentações
gravadas, encontrada na cultura Pataza da Amazônia equatorial datando de 500 a.c. a 50 a.c.”
(Lima, 2004:24). E assim como muitas outras plantas com propriedades psicoativas, a bebida é
usada para fins religiosos, rituais de cura e contato com o sobrenatural.

Há relatos do consumo da ayahuasca por quase toda a região amazônica e seu uso ritual
acontece em aproximadamente 72 grupos indígenas que a ela se referem por pelo menos 42 nomes
diferentes. Ao seu uso são atribuídos diferentes objetivos. E nenhuma das etnias que a utiliza pode
ser considerada a possuidora original deste conhecimento. Um ponto em comum entre todas as
etnias que a utilizam, é a manifestação do sagrado no consumo desta bebida. Ingerida muitas vezes
“pelo lider espiritual da comunidade xamã/pajé ou por mais pessoas acompanhadas e guiadas por
ele”(Lima, 2004:30), em busca de efeitos medicinais, oraculares, conhecimento do sobrenatural, da
fauna e da flora. Além destes efeitos alguns antropólogos apontam para o uso da ayahuasca como
um fator de coesão social, ”servindo a definição das fronteiras culturais do grupo”(ibidem).

Sobrevivendo a colonização, o uso indígena da ayahuasca se disseminou entre cidades


fronteiriças à floresta amazônica, onde foi reinterpretado pelos auto denominados vegetalistas,
curandeiros que “ajudam as pessoas das áreas rurais e as populações pobres das áreas suburbanas
que geralmente não tem outras opções em situações críticas na esfera da saúde física, mental e em
problemas sobrenaturais” (Lima, 2004 apudi Luna, 1986). A maior concentração de vegetalistas se
encontra nas áreas rurais da Colômbia e do Peru, e mesmo existindo centenas deles que utilizam a
ayahuasca em seus rituais de cura, tal pratica não se difundiu para locais distantes da floresta
amazônica.
No Brasil o encontro da ayahuasca com os não indígenas aconteceu durante o ciclo da
borracha no começo do séc. XX, quando a Amazônia foi foco do interesse do capital, por ser uma
fonte na produção de borracha, que viria a ser matéria-prima para uma futura indústria
automobilística. No Acre concentrou-se a maior parte da extração de latex, realizada com a mão de
obra de imigrantes nordestinos, atraídos pelas promessas de prosperidade fomentadas pelos
governos dos estados através de subsídios que eram concedidos aos imigrantes. Além de que
devido a um grande período de seca que assolava o nordeste brasileiro, a região vivia uma crise, o
que contribuía para o intenso fluxo migratório em direção a floresta amazônica, região onde a
população iria de 330 mil pessoas em 1872 para 1 milhão e 400 mil em 1929 (Lima, 2004).
Foi por volta deste período que Raimundo Irineu Serra, vindo de São Luíz do Ferré no
estado do Maranhão para trabalhar no seringal, conhece a ayahuasca. Em uma de suas experiências
com a bebida “teve visões nas quais uma personagem feminina de nome Clara, que ele associou
como sendo nossa senhora da conceição, lhe deu instruções sobre uma nova doutrina religiosa que
ele deveria fundar.” (Lima, 2004)
Foi em 1945 que Mestre Irineu construiu a igreja que veio a se chamar CICLU(Centro de
Iluminação Cristã Luz Universal.) na Colônia Custódio Freire na zona rural de Rio Branco, onde
formou-se uma comunidade rural na qual viviam mais de 40 famílias que, através do sistema de
multirão garantiam seu sustento.
A doutrina do Santo Daime fundada por Mestre Irineu reinterpreta o uso da ayahuasca ao
sincretizá-lo com elementos de diversas tradições culturais como: xamanismo, vegetalismo,
catolicismo e espiritismo Kardecista, dando início a possibilidade de pessoas da cidade tomarem a
bebida da floresta.
Atualmente, Santo Daime “pode servir como identificação de dois grupos religiosos: o Alto
Santo e o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS)” (Labate,
2000), divisão que acontece após a morte de Mestre Irineu. Além dessas duas vertentes surgiram
mais religiões ayahuasqueiras com seus próprios fundadores, sincretizando outros elementos e
reinterpretando o uso ritual da ayahuasca conforme seu contexto, entre essas estão a Barquinha e a
União do Vegetal (UDV). Dentre as religiões ayauasqueiras, apenas a vertente do CEFLURIS e a
UDV se disseminaram por outras regiões brasileiras, sendo que a primeira veio a possuir igrejas em
outros países, enquanto a Barquinha e o Alto Santo permanecem em Rondônia e no Acre,
respectivamente.

Ayahuasca e Xamanismo nos Centros Urbanos.

A expansão das religiões ayahuasqueiras brasileiras para os centros urbanos começa nos
anos 80, período que vivia intensamente os reflexos dos movimentos de contracultura “que
reivindicavam a extensão dos direitos de livre-disposição do corpo e de autonomia sobre si
próprio”(Carneiro, 2005: 67), além de:

“reivindicação da autonomia crítica da consciência, da recusa em se permitir ao Estado uma


jurisdição química sobre a mente que busca controlar o que se ingere ou se introduz voluntariamente
no interior do corpo. O movimento psicodélico representou uma defesa política da autonomia sobre
a intervenção psicoquímica voluntária contra a política oficial do proibicionismo estatal,
caracterizando como inquisição farmacrática contra o direito de escolha na estimulação química do
espírito ” (Carneiro, 2005: 67) .

O momento também acarretou mudanças nos valores espirituais, a partir do acesso à


literatura beat, a filosofia e as religiões orientais e as primeiras décadas da espiritualidade Nova Era.
Para alguns autores, a espiritualidade Nova Era é um fenômeno que expressa as transformações que
ocorreram nos comportamentos e práticas religiosas na vida moderna. Algumas de suas
propriedades gerais são:

“o seu fundamento no 'holismo', a ideia (oriental) de que 'tudo é um' e no 'místico', a ideia de que 'o
espírito é o interior de todas as coisas' […] Conforme Camurça, este movimento caracteriza-se por
um sincretismo, por um estilo de itinerância, de errância pelas religiões, uma adesão religiosa
instável, aproveitando tudo o que ha de 'bom nas religiões' para compor uma 'religiosidade
experimental individual' [...] os adeptos da Nova Era costumam postular uma unidade transcendental
das religiões, que não são mais nada do que reflexos e fragmentos de uma única religião...”
(Labate. 2000: 39).

É neste contexto que ayahuasca chega aos centros urbanos, principalmente através da
disseminação de igrejas do CEFLURIS.
Para realizar uma modesta reflexão sobre alguns possíveis desdobramentos de tal encontro
(ayahuasca/Nova Era/centros urbanos) Utilizo brevemente de dois exemplos etnográficos, o
primeiro é de uma pesquisa de Tiago Cavalcante intitulada: Xamanismo da floresta na cidade: Um
estudo de caso. O segundo trata-se do artigo cujo titulo é: Diálogos (neo)xamânicos: encontros
entre os Guarani e a ayahuasca escrito por Isabel Santana de Rose em parceria com Esther Jean
Langdon. Ambos no campo do debate antropológico tocam questões como cultura e autenticidade,
tradição/modernidade, continuidade, e contato entre indígenas e não indígenas.
Da Floresta pra cidade: o caso huni kuin.

Os rituais Kaxinawa do Nixi Pae - nos quais se consome ayahuasca com a finalidade de
“ganhar conhecimento e controle sobre os diferentes agentes envolvidos em eventos que englobam
a questão da saúde, prevenindo doenças e apresentando-se como o resultado da vingança dos duplo
dos animais que foram consumidos (Lagrou, Bia Labate) ” (CAVALCANTE S/D:1) - dão nome aos
encontros terapêuticos realizados em São Paulo e Rio de Janeiro, organizados por jovens pajés desta
etnia.
Filhos de mesmo pai e mesma mãe, Fabiano conduz rituais deste tipo no Rio e Leopardo na
capital paulista. Os dois pertencem a uma família de grande tradição no xamanismo e de cargos de
liderança, “por esse motivo foram ensinados desde sua infância a defender os interesses de seu povo
na cidade grande”. São filhos de uma importante artesã conhecedora dos motivos huni kuin e de
“Siã Kaxinawa, atualmente a figura mais poderosa e mais conhecida de seu povo”.
Foi no ano de 2004 que Fabiano, Leopardo e Bane, o irmão mais novo dos três, estiveram no
Rio de Janeiro e em São Paulo pela primeira vez apresentando danças e cantos dos kaxinawa.
escolhidos por Siã por estarem “preparados para encarar os desafios das cidades dos nawas”.
Durante sua estadia no Rio de janeiro foram convidados a participar de uma cerimonia chamada
“fogueira da lua cheia” que aconteceu em um espaço de espiritualidade Nova Era, onde Fabiano
conheceu uma das sócias do centro com quem passou a manter um relacionamento.
É em 2005 que Fabiano e sua então esposa, psicóloga formada pela universidade carioca,
realizaram pela primeira vez o ritual do Nixi Pae no contexto urbano. Desde então os rituais são
realizados mensalmente e divulgados por “correio eletrônico, sites especializados e redes sociais em
tópicos relacionados a espiritualidade Nova Era”. Antes do ritual é oferecido por um dos sócios do
espaço Nova Era e pela esposa de Fabiano, a um custo extra, a cerimonia do Temazcal ou ”sweat
lodge” que é originária da tradição xamânica norte americana, comum nas modalidades
neoxamanicas e de grande influência nos círculos terapêuticos Nova Era.
Cavalcante identifica o perfil dos participantes dos rituais como “homens e mulheres, com
idades que variam entre vinte e setenta anos (vale ressaltar que os rituais são proibidos para
menores de dezoito anos) pertencentes a uma classe médio-alta, com grau de escolarização bastante
elevado, sendo comum encontrar doutores e professores universitários”. E os motivos de procurar
os rituais urbanos variam desde doenças graves como câncer em parentes próximos, alcoolismo,
problemas familiares, problemas conjugais, falência financeira até “mudança de vida”.
O principal mecanismo terapêutico explorado nos Rituais do Nixi Pae são as visões
provocadas pela ayahuasca, que devem ser interpretadas por aquele que busca a cura. A preparação
dos participantes para entrar no mundo das visões, passa pelo estagio de informação acerca de que a
ayahuasca contém DMT(Dimetiltriptamina) substancia que ao “entrar em contato com o nosso
organismo, recupera fragmentos guardados pelo inconsciente que inundam a mente com
informações que pensávamos ter perdido para sempre”. Fabiano explica que “entre os Kaxinawa os
ritos são vistos como momentos onde o tomador de ayahuasca é engolido pela jiboia branca, Yube,
e levados ao seu mundo, para em seguida ser cuspido bruscamente de volta trazendo para o nosso
lado o conhecimento e a força da jiboia”(CAVALCANTE S/D:9), os cantos entoados por ele em
língua huni kuin durante o ritual todo, servem apara guiar o tomador de ayahuasca durante a viajem
ao mundo de Yubi afastando assim o participante da angustia do medo e do desequilíbrio, para que
este volte com força do mundo da ayahusca. É como se os Kaxinawa emprestassem “ seu saber
milenar de técnicas de entrada neste mundo para nos religarmos a esta essência única”.
(CAVALCANTE S/D:7)
Ao longo da realização do trabalho de campo de Tiago Cavalcante, Fabiano se
tornou um grande divulgador da cultura kaxinawa através de sua participação em colóquios de
psicologia junguiana e colóquios internacionais que discutem ecologia, levando os ritos urbanos do
Nixi Pae para fora do Brasil, captando recursos financeiros internacionais, participando de peças
teatrais, workshops e palestras, e atualmente sendo considerado por seu povo como uma liderança
internacional Kaxinawa (CAVALCANTE S/D:11). No período de quatro anos que os pajés saíram
de sua aldeia no Acre e foram aos centros urbanos, rapidamente foram acolhidos pelos centros de
espiritualidade Nova Era que colocaram o Nixi Pae em meio de várias outras práticas terapêuticas
como yoga, biodanza, acupuntura, shyatso e xamanismo norte-americano.

O encontro entre os Guarani e a ayahuasca.

Os Guarani são uma das etnias mais populosas da América do sul, chegando a aproximadamente 65
mil pessoas, constituída por vários subgrupos, seu idioma pertence a família tupi guarani, os
integrantes desta etnia migram por um território que ultrapassa as fronteiras nacionais da Argentina,
Paraguai e Brasil. Entre esses subgrupos três ou quatro estão no Brasil sendo o mais documentado
etnologicamente os mbya, estes e os que se denominam chiripá habitam a costa atlântica do espirito
santo ao Rio Grande do sul.
Localizados muitas vezes perto de grandes cidades e marginalizados, os Guarani tem usado
de seu idioma e suas praticas espirituais como estratégias de resistência, permanecendo monoligues
e mantendo seus rituais em segredo, “fecham” as aldeias para os não índios. Por serem alocados em
areas impróprias e improdutivas, “muitas comunidades sofrem de pobreza e suas consequências, tais
como doenças, violência e abuso de álcool, com altos índices de mortalidade que refletem essa
situação.”( ROSE e LANGDON 2010:93)
A aldeia de Águas Claras onde Isabel Santana de Rose realizou um trabalho etnografico, esta
localizada em uma área metropolitana próxima a Florianópolis, foi reconhecida pelo Estado como
terra indígena em 2003, mas foi reocupada em 1980 por uma extensa família chiripá que migrou de
uma região mais ao sul. Hoje a aldeia ocupa uma importante posição em uma rede de trocas entre as
aldeias guarani, e diferente de outras aldeias possui uma intensa interação entre índios e não índios.
Isso vem ocorrendo pois, “a aldeia de Águas Claras parece estar assumindo a liderança na mediação de
práticas rituais com não-indígenas, através da apropriação do uso ritual da ayahuasca e de outras
práticas relacionadas.”(ibidem).
A apropriação da ayahuasca pelos Guarani(que até então não estavam relacionados ao consumo
da bebida, uma vez que esta é encontrada principalmente entre as populações indígenas da amazônia)
ocorre através do encontro entre um morador da aldeia de Águas Claras e um membro de um grupo
espiritual que “caracteriza-se pela realização de uma série de rituais que combinam diversos elementos
que teriam origem em diferentes tradições do continente americano, sendo que a principal influência
está nas práticas dos grupos indígenas das planíces norte-americanas, especialmente os Lakota” ( ROSE
e LANGDON 2010:89). Ente estes rituais realizados pelo grupo, que as autoras do texto chamam pelo
nome fictício de Fogo da Verdade, está o uso ritual da ayahuasca.
Kuruay foi internado no Hospital Universitário de Florianópolis devido a um linfoma. ao se
negar a fazer o tratamento prescrito, a quimioterapia, resolveram contatar um médico residente do
hospital que era conhecido por conduzir “cerimonias xamânicas”. Conseguindo se aproximar de Kuruay,
o médico se interessou em conhecer os curadores tradicionais da aldeia de Águas Claras, recebendo um
convite para ir a aldeia. “De acordo com as narrativas de muitos moradores desta comunidade
indígena, assim que o médico chegou à aldeia, ele foi reconhecido pelos karaikuery¹ como a pessoa que
eles estavam esperando. Essas narrativas contam que há algum tempo esses anciões haviam tido um
sonho profético que dizia que iria chegar uma pessoa de fora para ajudá-los a retomar os rituais de
reza e outras práticas, 'resgatando' a cultura e a tradição Guarani.”( ROSE e LANGDON 2010:95).
Sendo reconhecido como essa pessoa, o médico passa a frequentar rituais guarani como o petynguá
(cachimbo sagrado) e cerimonias na casa de reza opy. Através de seu contato com as lideranças
espirituais de Águas Claras propõem uso da ayahuasca, as primeiras cerimonias com a bebida
ocorreram na cozinha da casa do tcheramoi, “importante espaço de sociabilidade no qual ocorrem
cotidianamente reuniões noturnas onde se toma chimarrão, fuma-se tabaco e contam-se histórias, lendas
e piadas.” Contam os moradores que em suas primeiras experiencias com a bebida proporcionaram a
lembrança do passado e o encontro com seus “antigos avós”, bem como o encontro com seres
sobrenaturais. Assim que os rituais com a ayahuasca começaram a ter uma maior participação dos
moradores da aldeia a cerimonia passou a ser realizada na casa de rezas opy, integrando o ritual do
opyredjaikeawã, “que teriam como um de seus objetivos centrais ajudar Nhanderu Kuaray (um dos
principais deuses para os Guarani) a cuidar do mundo, protegendo a humanidade durante sua ausência” (
ROSE e LANGDON 2010:96).
Outros agentes importantes no contexto onde a ayahuasca e outras praticas comuns com o
Fogo sagrado foram incorporadas pelos Guarani são: o Estado através da FUNASA e uma ONG
contratada por este Órgão do Ministério da Saúde para prestar atenção aos indígenas do estado de
Santa Catarina. Foi por meio de recursos fornecido pela FUNASA e repassados pela ONG que
realizou-se um projeto, que teve duração de quatro anos, para a introdução da ayahuasca e de
praticas como o temazcal em outras aldeias Guarani da região, o medico e dirigente do Fogo da
Verdade atuou como parte da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) e as instituições
interpretaram que o projeto seria capaz de atender os moradores das aldeias guarani da região afim de
“promover a saúde do povo Guarani resgatando e fortalecendo o lado espiritual/místico, fundamentado
nas antigas cerimônias tradicionais” (Vargas, 2002, p. 8); combater o alcoolismo e reforçar as
lideranças espirituais das aldeias, que constituiriam a base para as ações programadas no “modelo de
atenção à saúde espiritual indígena” (Vargas, 2002, p. 13)” ( ROSE e LANGDON 2010:96).
Com o aumento do consumo de ayahuasca, que até então era trazida do Peru pelos
integrantes do Fogo da Verdade, uma comunidade do Santo Daime em Florianópolis passou a
fornecer a bebida integrando a rede de trocas até então entre Fogo da Verdade e Águas Claras, Desta
maneira até o final do projeto foi construída uma casa de barro no formato de iglu, que foi chamada
de opydjere que significa literalmente casa de rezas redonda, para a realização de rituais de
temazcal na aldeia de Águas Claras, seus moradores passaram a frequentar vez ou outra rituais na
sede do Fogo Sagrado e na sede do Santo Daime e vice versa.
Santana Oliveira (2004) realizou também uma pesquisa etnografica na aldeia em Águas
Claras, a autora afirma que seus moradores atribuem às “cerimonias de medicina” e o ritual na
opydjere um grande poder de cura, mesmo assim com o tempo alguns Guarani, principalmente de
outras aldeias, deixaram de participar dos rituais com ayahuasca e até critica-los por ser “coisa de
branco” e não uma tradição Guarani. ” Assim, entre os Guarani da rede das aldeias do litoral
catarinense, e mesmo entre os moradores de Águas Claras, não existe um ponto de vista homogêneo ou
um consenso sobre o tema, que continua sendo assunto de conversas, especulações, críticas e
controvérsias.”( ROSE e LANGDON 2010:99)

Neoxamanismo sem xamãs


O caso que descreverei não pode ser considerado uma etnografia, no sentido de uma
pesquisa com rigor científico como realizada por pesquisadoras como nos casos anteriores, mas
apenas percepções pessoais minhas a respeito de uma manifestação do xamanismo urbano, ou
neoxamanismo como é chamado por alguns autores, trata-se do Instituto Xamânico Morada do Sol
localizado em Araraquara – SP onde ocorrem rituais com o uso sacramental da Ayahuasca. E para
melhor expor o quadro de percepções contextualizarei a seguir algumas informações a respeito do
neoxamanismo.
Como aponta Langdon (2010), a própria antropologia contribui com a disseminação das
práticas neo-xamanicas pelo mundo, através das publicações como as de Castañeda e mais tarde
Harner e Goodman nos anos 80, o movimento beatnik também contribuiu para que o tema ganhasse
destaque dentro e fora da academia. A princípio, autores como Harner, Goodman e Campbell
tinham a preocupação de identificar as técnicas do êxtase que se propunham a ensinar como
originárias de populações indígenas específicas, assumindo mesmo que implicitamente que o
xamanismo é um fenômeno “que se desenvolveu ao longo da história de grupos que podiam ser
pensados como cultural, temporal e geograficamente contíguos” (Langdon. 2010: x).
Ao passo que o neoxamanismo se expande pelo globo são incorporados ao xamanismo
diversos elementos não indígenas e de contextos variados. Outro fenômeno que tange as expressões
do neoxamanismo é a espiritualidade Nova Era como descrita anteriormente e sua capacidade de
detectar uma sabedoria semelhante em tradições religiosas ou espirituais que se entendem distintas,
relativizando assim as arestas ou pontos de discordância (Teixeira 2015 apud Heelas 1996: 18 )
Assim para os “movimentos heterogêneos globais do neo-xamanismo” o indígena aparece
como figura objetificada, vista como modelo, portador de conhecimentos ancestrais primordiais. O
xamanismo é pensado não como algo “vinculado a culturas e contextos específicos” mas como
conhecimentos primordiais da humanidade, expressando valores do individualismo moderno e uma
orientação para objetivos psicológicos e terapêuticos.
Os novos xamanismos emergem em meio a um momento de interesse popular pelos estados
alterados de consciência em paralelo com a argumentação de psicoterapeutas, etnofarmacólogos,
antropólogos entre outros, a respeito dos “benefícios desses estados”, procurando afirmar que as
substancias como a Mescalina o LSD e a Ayahuasca “funcionam para a liberação da mente e a
integração da psique” (Langdon. 2010:88) ao contrário do que vinha sendo afirmado no meio
acadêmico. “Com o tempo, a ligação do sagrado com os estados alterados xamânicos tomou
importância central no discurso do neo-xamanismo e , hoje, o termo mais utilizado para designar as
inúmeras substâncias utilizadas nesses contextos é o de enteógeno, em referência ao acesso ás
dimensões sagradas provocado por sua ingestão” (Langdon, 2010:88) .
É neste contexto de novas modalidades do uso da Ayahuasca que está inserido o Instituto
Xamânico Morada do Sol, seus rituais incorporam simbologias não só de religiões ayahuasqueiras
tradicionais como hinários e o bailado do Santo Daime mas também Pontos de Umbanda, Mantras,
músicas eletrônicas, imagens de santos, budas e animais de poder, misturando características de
religiões de matriz africana, religiões orientais, xamanismo norte americano e xamanismo
amazônico. Característica essa da nova consciência religiosa, ou movimento Nova Era, identificado
por produzir arranjos particulares de práticas espirituais e religiosas variadas, marcas de uma “nova
forma de expressão para o sincretismo religioso”(Braga. 2010:26).
As praticas realizadas no instituto são consideradas xamânicas entre seus praticantes, e
xamanismo é considerado não um conhecimento ou cultura deste ou daquele povo, mas um
conhecimento universal e ancestral da humanidade. Nesta cosmologia neo-xamanica mobilizam-se
noções a respeito de corpo e saúde, bem como um discurso psicológico a respeito do ser. O estado
alterado de consciência alcançado através do consumo da Ayahuasca, promove uma transcendência
ou superação do ego rumo ao eu superior, divino, verdadeiro e/ou uno. Como se ocorresse uma
“ruptura da fragmentação e o acesso ao uno a unidade” (Braga 2010). Também são mobilizadas as
noções de puro/poluído através da questão das limpezas, que podem ser realizadas pelo vômito,
evacuação, choro, suor, bocejo, entre outros, nessas situações o que o indivíduo expele é carregado
de significado.
Entre os vários responsáveis pelo funcionamento da Instituição e pela ministração da
Ayahuasca não existe uma pessoa que se denomine xamã, embora as praticas realizadas sejam
consideradas xamânicas. A figura responsável por conduzir o trabalho é o padrinho que a partir da
escolha do “tema” do ritual faz uma seleção de músicas que tocam do início ao fim do ritual, é
através das músicas que se reconhece os momentos do trabalho, como os momentos de
concentração e silêncio e os momentos de bailado, indicados pela agitação e pelo tema da música,
de acordo com essa variação sabe-se também quando pode ou não tocar os instrumentos o tambor,
didjeridu, maracá. Os Trabalhos tem duração de quatro a seis horas e se diferenciam em trabalhos
abertos e trabalhos fechados, os primeiros contam com a participassão de até 250 pessoas, muitas
tomando Ayahuasca pela primeira vez enquanto os trabalhos fechados são menores e para poder
participar a pessoa deve ter tomado ayahuasca no instituto pelo menos 3 vezes. Além dos
participantes que ingerem a ayahuasca o ritual conta com uma série de “fiscais”, como são
chamadas as pessoas envolvidas na organização. Entre as obrigações dos fiscais estão cuidar da
fogueira, acalmar e cuidar dos participantes que eventualmente podem ficar com medo das
sensações e das mirações provocadas pela Ayahuasca, acender e espalhar incensos, tocar alguns
instrumentos em momentos específicos, repor a água. Ao início do trabalho os participantes são
divididos, homens de um lado da fogueira e mulheres do outro, a permanência ou mesmo a
passagem no lado oposto é proibida, os fiscais também são responsáveis por garantir essa divisão.
Conclusão
Ao colocar estes casos em perspectiva é possível pensar o uso ritual da ayahuasca, assim
como os xamanismos, como fenômenos que manifestam também as possibilidades e limitações da
inovação cultural bem como o exercício da criatividade em sociedade. Conforme o contexto
diferentes atores vão sendo acionados para compor uma nova modalidade onde ritual e o uso
sagrado da bebida adquirem objetivos diferentes.
O neoxamanismo, ancorado em discursos Nova Era que pode ser considerada uma nova
forma de expressão para o sincretismo religioso, lança um olhar terapêutico e psicologizante sobre
as praticas xamânicas, produzindo discursos alternativos sobre o corpo e saúde, concebendo o corpo
como mecanismo de autopercepção, autoconhecimento.(BRAGA. 2010:26) É ainda, um conjunto
de praticas identificadas por MAGNANI como pertencentes a uma rede maior a das práticas neo-
esotéricas e circula num mercado de consumo voltado a um determinado estilo de vida. No entanto
sua expressão não se restringe a isso pois ao passo que surgem novos xamanismos, diferentes atores
vão sendo acionados para compor esta nova modalidade. O neoxamanismo é hoje um fenômeno
global, e por tanto nos força a reconhecer que o xamanismo não está mais restrito apenas as aos
contextos indígenas podendo ser tratado como uma categoria dialógica que é frequentemente
negociada “nas fronteiras das sociedades indígenas locais e de suas interfaces com as sociedades
nacionais e globais” (Rose e Langdon 2010:109) Embora em algumas configurações o movimento
possua uma imagem objetificada do indígena, como homem que vive em harmonia com a natureza,
portador de uma ligação com o mistico e espiritual e da sabedoria perdida pelo homem branco a
qual este pretende resgatar (BRAGA. 2010:42), em outras composições o mesmo se mostra como
um espaço de atuação política para as populações indígenas, como é mostrado no caso Huni kuin.
Nesta “transposição” da floresta para cidade, etnografada por Cavalcante, do rito kaxinawa é
possível observar uma “estratégia Kaxinawa” sobre o seu contato com os brancos, que se inicia
desde o “século XX com as primeiras políticas indigenistas do governo brasileiro culminando na ida
para metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo de jovens kaxinawa, que foram preparados desde
sua infância para defender os interesses de seu povo nas cidades grandes”. Isso parte da busca
kaxinawa de “tornar-se outro” com a intenção de nutrir-se dos poderes desta alteridade. Portanto,
embora o neoxamanismo não seja “ um equivalente do xamanismo ameríndio em nossa sociedade”,
“o movimento espiritual abre um importante espaço para a recriação e sobrevivência de certos
povos amazônicos”(CAVALCANTE S/D:19).
No caso dos Guarani onde foi introduzido o uso de rituais com ayahuasca e temazcal com
recursos do Estado Brasileiro houve grandes transformações nas relações entre indígenas e não
indígenas, nas quais tradicionalmente o indígena é marginalizado e colocado em uma posição
subordinada. É claro que ainda existe muita assimetria entre os moradores de Águas Claras e a
população ao redor, mas certamente suas relações com os não indígenas passaram a ter mais
igualdade e respeito do que há normalmente nessas interações. “Somado a isto, as cerimônias com
ayahuasca na aldeia atraem uma série de não-indígenas que pagam uma taxa para participar, ajudando a
cobrir os custos envolvidos na realização e gerando mais uma fonte de renda para a comunidade. ”
( ROSE e LANGDON 2010:103). As autoras do artigo abordam a apropriação da ayahuasca e de
rituais do xamanismo norte americano via Fogo da Verdade, não sob uma perspectiva de que seria
uma curiosa forma de neocolonialismo, com os Guaranis atuando como agentes ingênuos deste
processo, mas pelo contrário, enfatizando sua participação de maneira ativa nos diferentes diálogos
e negociações envolvidos neste contexto. Elas ainda propõem uma reflexão no sentido do trabalho
de SAHLINS “Este autor, que procura olhar os indígenas como atores, argumenta que, contrariando
expectativas correntes nas décadas de 1950 e 1960, esses povos recusaram-se tanto a desaparecer quanto
a se tornar como nós, esforçando-se numa tentativa de “incorporar o sistema mundial a uma ordem
ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo”(1997, p. 52)” ( ROSE e LANGDON 2010:103).
Esta reflexão permite pensar a aceitação e a discordância do uso da ayahuasca entre os Guarani e a
homogeneidade e a heterogeneidade não como excludentes mas como partes constituintes da
realidade.
O último caso onde ocorre uma prática xamânica sem xamas contribui para a reflexão acerca
de como o fenômeno do neoxamanismo “emerge dialogicamente com base nas interações entre
todos os atores envolvidos no revival global deste fenômeno – antropólogos, jornalistas,
organizações ambientais, profissionais da área da saúde, indígenas e neo-xamãs entre incontáveis
outros”( Langdon e Rose 2010). Assim como propicia o reconhecimento de que as novas
modalidades de xamanismo estão inseridas numa “rede urbana de consumo da ayahuasca”, onde
ocorre a circulação de substâncias, pessoas, informações e conhecimentos e que juntamente com os
outros casos apresentados fazem parte de um universo mais amplo, do campo ayahuasqueiro
brasileiro. “O resultado é um conjunto formado por justaposições distintas, entrecruzamentos e
interseções múltiplas.”(Labate 2000).
Por fim as várias modalidades do uso ritual da ayahuasca permitem pensar os diferentes
agenciamentos entre indígenas e não indígenas partindo de um ponto de vista que não considera
seus efeitos como apenas a justaposição das formas culturais de uma ou de outra mas como uma
terceira forma, com características próprias e ao mesmo tempo comuns as formas anteriores.
Permitindo um certo distanciamento de paradigmas clássicos da antropologia como sincretismo,
fusão e aculturação, que levam a análise a “isolar traços de culturas originais puras que teriam se
mesclado formando cada manifestação sociocultural específica”. Desta maneira é possível pensar as
diferenças não como assimilação e sim como uma composição (no sentido artístico do termo).
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