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São Carlos
2015
A difusão da ayahuasca.
Ayahuasca, yagé, daime, caapi, hoasca, vegetal, nixi pae, natema, são alguns dos nomes
dados a bebida originaria do alto Amazonas, produzida geralmente a partir da cocção do cipó B.
Caapi com as folhas do arbusto Psychoria Viridis, podendo ter outros ingredientes dependendo de
seu preparador. Embora seu consumo seja documentado “com certeza há cerca de duzentos anos,
seu uso é provavelmente milenar” (Luna, 2005), remontando ao período incaico. “ O objeto mais
antigo relacionado ao uso da ayahuasca é uma taça cerimonial feita de pedra, com ornamentações
gravadas, encontrada na cultura Pataza da Amazônia equatorial datando de 500 a.c. a 50 a.c.”
(Lima, 2004:24). E assim como muitas outras plantas com propriedades psicoativas, a bebida é
usada para fins religiosos, rituais de cura e contato com o sobrenatural.
Há relatos do consumo da ayahuasca por quase toda a região amazônica e seu uso ritual
acontece em aproximadamente 72 grupos indígenas que a ela se referem por pelo menos 42 nomes
diferentes. Ao seu uso são atribuídos diferentes objetivos. E nenhuma das etnias que a utiliza pode
ser considerada a possuidora original deste conhecimento. Um ponto em comum entre todas as
etnias que a utilizam, é a manifestação do sagrado no consumo desta bebida. Ingerida muitas vezes
“pelo lider espiritual da comunidade xamã/pajé ou por mais pessoas acompanhadas e guiadas por
ele”(Lima, 2004:30), em busca de efeitos medicinais, oraculares, conhecimento do sobrenatural, da
fauna e da flora. Além destes efeitos alguns antropólogos apontam para o uso da ayahuasca como
um fator de coesão social, ”servindo a definição das fronteiras culturais do grupo”(ibidem).
A expansão das religiões ayahuasqueiras brasileiras para os centros urbanos começa nos
anos 80, período que vivia intensamente os reflexos dos movimentos de contracultura “que
reivindicavam a extensão dos direitos de livre-disposição do corpo e de autonomia sobre si
próprio”(Carneiro, 2005: 67), além de:
“o seu fundamento no 'holismo', a ideia (oriental) de que 'tudo é um' e no 'místico', a ideia de que 'o
espírito é o interior de todas as coisas' […] Conforme Camurça, este movimento caracteriza-se por
um sincretismo, por um estilo de itinerância, de errância pelas religiões, uma adesão religiosa
instável, aproveitando tudo o que ha de 'bom nas religiões' para compor uma 'religiosidade
experimental individual' [...] os adeptos da Nova Era costumam postular uma unidade transcendental
das religiões, que não são mais nada do que reflexos e fragmentos de uma única religião...”
(Labate. 2000: 39).
É neste contexto que ayahuasca chega aos centros urbanos, principalmente através da
disseminação de igrejas do CEFLURIS.
Para realizar uma modesta reflexão sobre alguns possíveis desdobramentos de tal encontro
(ayahuasca/Nova Era/centros urbanos) Utilizo brevemente de dois exemplos etnográficos, o
primeiro é de uma pesquisa de Tiago Cavalcante intitulada: Xamanismo da floresta na cidade: Um
estudo de caso. O segundo trata-se do artigo cujo titulo é: Diálogos (neo)xamânicos: encontros
entre os Guarani e a ayahuasca escrito por Isabel Santana de Rose em parceria com Esther Jean
Langdon. Ambos no campo do debate antropológico tocam questões como cultura e autenticidade,
tradição/modernidade, continuidade, e contato entre indígenas e não indígenas.
Da Floresta pra cidade: o caso huni kuin.
Os rituais Kaxinawa do Nixi Pae - nos quais se consome ayahuasca com a finalidade de
“ganhar conhecimento e controle sobre os diferentes agentes envolvidos em eventos que englobam
a questão da saúde, prevenindo doenças e apresentando-se como o resultado da vingança dos duplo
dos animais que foram consumidos (Lagrou, Bia Labate) ” (CAVALCANTE S/D:1) - dão nome aos
encontros terapêuticos realizados em São Paulo e Rio de Janeiro, organizados por jovens pajés desta
etnia.
Filhos de mesmo pai e mesma mãe, Fabiano conduz rituais deste tipo no Rio e Leopardo na
capital paulista. Os dois pertencem a uma família de grande tradição no xamanismo e de cargos de
liderança, “por esse motivo foram ensinados desde sua infância a defender os interesses de seu povo
na cidade grande”. São filhos de uma importante artesã conhecedora dos motivos huni kuin e de
“Siã Kaxinawa, atualmente a figura mais poderosa e mais conhecida de seu povo”.
Foi no ano de 2004 que Fabiano, Leopardo e Bane, o irmão mais novo dos três, estiveram no
Rio de Janeiro e em São Paulo pela primeira vez apresentando danças e cantos dos kaxinawa.
escolhidos por Siã por estarem “preparados para encarar os desafios das cidades dos nawas”.
Durante sua estadia no Rio de janeiro foram convidados a participar de uma cerimonia chamada
“fogueira da lua cheia” que aconteceu em um espaço de espiritualidade Nova Era, onde Fabiano
conheceu uma das sócias do centro com quem passou a manter um relacionamento.
É em 2005 que Fabiano e sua então esposa, psicóloga formada pela universidade carioca,
realizaram pela primeira vez o ritual do Nixi Pae no contexto urbano. Desde então os rituais são
realizados mensalmente e divulgados por “correio eletrônico, sites especializados e redes sociais em
tópicos relacionados a espiritualidade Nova Era”. Antes do ritual é oferecido por um dos sócios do
espaço Nova Era e pela esposa de Fabiano, a um custo extra, a cerimonia do Temazcal ou ”sweat
lodge” que é originária da tradição xamânica norte americana, comum nas modalidades
neoxamanicas e de grande influência nos círculos terapêuticos Nova Era.
Cavalcante identifica o perfil dos participantes dos rituais como “homens e mulheres, com
idades que variam entre vinte e setenta anos (vale ressaltar que os rituais são proibidos para
menores de dezoito anos) pertencentes a uma classe médio-alta, com grau de escolarização bastante
elevado, sendo comum encontrar doutores e professores universitários”. E os motivos de procurar
os rituais urbanos variam desde doenças graves como câncer em parentes próximos, alcoolismo,
problemas familiares, problemas conjugais, falência financeira até “mudança de vida”.
O principal mecanismo terapêutico explorado nos Rituais do Nixi Pae são as visões
provocadas pela ayahuasca, que devem ser interpretadas por aquele que busca a cura. A preparação
dos participantes para entrar no mundo das visões, passa pelo estagio de informação acerca de que a
ayahuasca contém DMT(Dimetiltriptamina) substancia que ao “entrar em contato com o nosso
organismo, recupera fragmentos guardados pelo inconsciente que inundam a mente com
informações que pensávamos ter perdido para sempre”. Fabiano explica que “entre os Kaxinawa os
ritos são vistos como momentos onde o tomador de ayahuasca é engolido pela jiboia branca, Yube,
e levados ao seu mundo, para em seguida ser cuspido bruscamente de volta trazendo para o nosso
lado o conhecimento e a força da jiboia”(CAVALCANTE S/D:9), os cantos entoados por ele em
língua huni kuin durante o ritual todo, servem apara guiar o tomador de ayahuasca durante a viajem
ao mundo de Yubi afastando assim o participante da angustia do medo e do desequilíbrio, para que
este volte com força do mundo da ayahusca. É como se os Kaxinawa emprestassem “ seu saber
milenar de técnicas de entrada neste mundo para nos religarmos a esta essência única”.
(CAVALCANTE S/D:7)
Ao longo da realização do trabalho de campo de Tiago Cavalcante, Fabiano se
tornou um grande divulgador da cultura kaxinawa através de sua participação em colóquios de
psicologia junguiana e colóquios internacionais que discutem ecologia, levando os ritos urbanos do
Nixi Pae para fora do Brasil, captando recursos financeiros internacionais, participando de peças
teatrais, workshops e palestras, e atualmente sendo considerado por seu povo como uma liderança
internacional Kaxinawa (CAVALCANTE S/D:11). No período de quatro anos que os pajés saíram
de sua aldeia no Acre e foram aos centros urbanos, rapidamente foram acolhidos pelos centros de
espiritualidade Nova Era que colocaram o Nixi Pae em meio de várias outras práticas terapêuticas
como yoga, biodanza, acupuntura, shyatso e xamanismo norte-americano.
Os Guarani são uma das etnias mais populosas da América do sul, chegando a aproximadamente 65
mil pessoas, constituída por vários subgrupos, seu idioma pertence a família tupi guarani, os
integrantes desta etnia migram por um território que ultrapassa as fronteiras nacionais da Argentina,
Paraguai e Brasil. Entre esses subgrupos três ou quatro estão no Brasil sendo o mais documentado
etnologicamente os mbya, estes e os que se denominam chiripá habitam a costa atlântica do espirito
santo ao Rio Grande do sul.
Localizados muitas vezes perto de grandes cidades e marginalizados, os Guarani tem usado
de seu idioma e suas praticas espirituais como estratégias de resistência, permanecendo monoligues
e mantendo seus rituais em segredo, “fecham” as aldeias para os não índios. Por serem alocados em
areas impróprias e improdutivas, “muitas comunidades sofrem de pobreza e suas consequências, tais
como doenças, violência e abuso de álcool, com altos índices de mortalidade que refletem essa
situação.”( ROSE e LANGDON 2010:93)
A aldeia de Águas Claras onde Isabel Santana de Rose realizou um trabalho etnografico, esta
localizada em uma área metropolitana próxima a Florianópolis, foi reconhecida pelo Estado como
terra indígena em 2003, mas foi reocupada em 1980 por uma extensa família chiripá que migrou de
uma região mais ao sul. Hoje a aldeia ocupa uma importante posição em uma rede de trocas entre as
aldeias guarani, e diferente de outras aldeias possui uma intensa interação entre índios e não índios.
Isso vem ocorrendo pois, “a aldeia de Águas Claras parece estar assumindo a liderança na mediação de
práticas rituais com não-indígenas, através da apropriação do uso ritual da ayahuasca e de outras
práticas relacionadas.”(ibidem).
A apropriação da ayahuasca pelos Guarani(que até então não estavam relacionados ao consumo
da bebida, uma vez que esta é encontrada principalmente entre as populações indígenas da amazônia)
ocorre através do encontro entre um morador da aldeia de Águas Claras e um membro de um grupo
espiritual que “caracteriza-se pela realização de uma série de rituais que combinam diversos elementos
que teriam origem em diferentes tradições do continente americano, sendo que a principal influência
está nas práticas dos grupos indígenas das planíces norte-americanas, especialmente os Lakota” ( ROSE
e LANGDON 2010:89). Ente estes rituais realizados pelo grupo, que as autoras do texto chamam pelo
nome fictício de Fogo da Verdade, está o uso ritual da ayahuasca.
Kuruay foi internado no Hospital Universitário de Florianópolis devido a um linfoma. ao se
negar a fazer o tratamento prescrito, a quimioterapia, resolveram contatar um médico residente do
hospital que era conhecido por conduzir “cerimonias xamânicas”. Conseguindo se aproximar de Kuruay,
o médico se interessou em conhecer os curadores tradicionais da aldeia de Águas Claras, recebendo um
convite para ir a aldeia. “De acordo com as narrativas de muitos moradores desta comunidade
indígena, assim que o médico chegou à aldeia, ele foi reconhecido pelos karaikuery¹ como a pessoa que
eles estavam esperando. Essas narrativas contam que há algum tempo esses anciões haviam tido um
sonho profético que dizia que iria chegar uma pessoa de fora para ajudá-los a retomar os rituais de
reza e outras práticas, 'resgatando' a cultura e a tradição Guarani.”( ROSE e LANGDON 2010:95).
Sendo reconhecido como essa pessoa, o médico passa a frequentar rituais guarani como o petynguá
(cachimbo sagrado) e cerimonias na casa de reza opy. Através de seu contato com as lideranças
espirituais de Águas Claras propõem uso da ayahuasca, as primeiras cerimonias com a bebida
ocorreram na cozinha da casa do tcheramoi, “importante espaço de sociabilidade no qual ocorrem
cotidianamente reuniões noturnas onde se toma chimarrão, fuma-se tabaco e contam-se histórias, lendas
e piadas.” Contam os moradores que em suas primeiras experiencias com a bebida proporcionaram a
lembrança do passado e o encontro com seus “antigos avós”, bem como o encontro com seres
sobrenaturais. Assim que os rituais com a ayahuasca começaram a ter uma maior participação dos
moradores da aldeia a cerimonia passou a ser realizada na casa de rezas opy, integrando o ritual do
opyredjaikeawã, “que teriam como um de seus objetivos centrais ajudar Nhanderu Kuaray (um dos
principais deuses para os Guarani) a cuidar do mundo, protegendo a humanidade durante sua ausência” (
ROSE e LANGDON 2010:96).
Outros agentes importantes no contexto onde a ayahuasca e outras praticas comuns com o
Fogo sagrado foram incorporadas pelos Guarani são: o Estado através da FUNASA e uma ONG
contratada por este Órgão do Ministério da Saúde para prestar atenção aos indígenas do estado de
Santa Catarina. Foi por meio de recursos fornecido pela FUNASA e repassados pela ONG que
realizou-se um projeto, que teve duração de quatro anos, para a introdução da ayahuasca e de
praticas como o temazcal em outras aldeias Guarani da região, o medico e dirigente do Fogo da
Verdade atuou como parte da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) e as instituições
interpretaram que o projeto seria capaz de atender os moradores das aldeias guarani da região afim de
“promover a saúde do povo Guarani resgatando e fortalecendo o lado espiritual/místico, fundamentado
nas antigas cerimônias tradicionais” (Vargas, 2002, p. 8); combater o alcoolismo e reforçar as
lideranças espirituais das aldeias, que constituiriam a base para as ações programadas no “modelo de
atenção à saúde espiritual indígena” (Vargas, 2002, p. 13)” ( ROSE e LANGDON 2010:96).
Com o aumento do consumo de ayahuasca, que até então era trazida do Peru pelos
integrantes do Fogo da Verdade, uma comunidade do Santo Daime em Florianópolis passou a
fornecer a bebida integrando a rede de trocas até então entre Fogo da Verdade e Águas Claras, Desta
maneira até o final do projeto foi construída uma casa de barro no formato de iglu, que foi chamada
de opydjere que significa literalmente casa de rezas redonda, para a realização de rituais de
temazcal na aldeia de Águas Claras, seus moradores passaram a frequentar vez ou outra rituais na
sede do Fogo Sagrado e na sede do Santo Daime e vice versa.
Santana Oliveira (2004) realizou também uma pesquisa etnografica na aldeia em Águas
Claras, a autora afirma que seus moradores atribuem às “cerimonias de medicina” e o ritual na
opydjere um grande poder de cura, mesmo assim com o tempo alguns Guarani, principalmente de
outras aldeias, deixaram de participar dos rituais com ayahuasca e até critica-los por ser “coisa de
branco” e não uma tradição Guarani. ” Assim, entre os Guarani da rede das aldeias do litoral
catarinense, e mesmo entre os moradores de Águas Claras, não existe um ponto de vista homogêneo ou
um consenso sobre o tema, que continua sendo assunto de conversas, especulações, críticas e
controvérsias.”( ROSE e LANGDON 2010:99)
HEELAS, Paul (1996). A Nova Era no contexto cultural: Pré-Moderno, Moderno e Pós-Moderno.
Religião e Sociedade 17/1-2: 15-32
. BRAGA. Karina, R. G. Modelando xamãs: O Caso da tenda do Suor, Natal/RN: UFRN PPGAS
2010.
GOLDMAM, Marcio. 2015. “‘Quinhentos Anos de Contato’”: Por uma Teoria Etnográfica da
(Contra)Mestiçagem”. Mana. Estudos de Antropologia Social 21.
LABATE e S. L. Goulart (Orgs.), O uso ritual das plantas de poder. Campinas Mercado das Letras.
LIMA, Emmanuel Gomes Correia. O uso ritual da Ayahuasca: da Floresta Amazônica aos centros
urbanos. 2004. 90f. Monografia (Conclusão do curso de graduação em Geografia) – Departamento
de Geografia, Instituto de CiênciasHumanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2004.
ROSE, Isabel S. de; LANGDON, Esther Jean. Dialogos (neo)xamanicos: encontros entre os
Guarani e a ayahuasca. Tellus, ano 10, n. 18, jan./jun. 2010