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ele disse 'tu, olhes à câmera'

Sentará ao sol para contemplar a extensão das águas do mar. Buscará de todos os modos fazer com
que os outros pensem que tudo o que faz naquele instante é admirá-lo, o mar, o mar, ante os olhos,
desalinhado, quando a mais pura verdade é que você aguarda qualquer um para te segurar as mãos e
salvar-te da sua própria consciência.
Os seus olhos ficarão marejados, mas nem uma única lágrima capotará ainda.
Olhará o céu, o azul sublime, e pousará os olhos marejados na esfera que cintila aguardando a
ardência.
Por uns instantes, tentará levantar-se quando nada senão a certeza de que ninguém virá ao teu
socorro começar a estrangulá-lo.
Não se levante ainda.
Não se levante ainda.
Os berros e aplausos da multidão em que você fez parte na noite passada emergirão e, com eles,
fotogramas de todas aquelas pessoas com quem você confabulou durante horas e agora nem sabe
mais onde estão ou quem realmente são – pois você, cuja câmera encontra-se ante a face, aprendeu
a ser sociável quando não havia ninguém para acompanhá-lo em suas doidices que nem você
mesmo compreende. Essa é a verdade, essa é a verdade, que te põe em uma haste e chicoteia-lhe até
não ter mais o que gritar, essa, a que você quase nada compreende embora tente, tente, tente. Eles
compreendem. Eles sabem o que você não sabe, queria sabê-lo também, eu, isso que eles sabem e
que você não sabe e tem a incapacidade de aprendê-lo.
Se arrependerá.
Se arrependerá.
Das noites em que você saiu de sua caverna para tentar buscar pedras à lascar e nada encontrou.
Pode-se pensá-lo assim, diga-se de passagem. Dos dias de nervosismo antes de um encontro
qualquer com um rapaz que você nunca mais viu. Ou as das duas vezes que você tentou transar com
qualquer um apenas por não conseguir dizer um simples não.
E todas as vezes que eles arrastavam-lhe o corpo como um bonequinho de pano para lá e para cá e
penetravam-lhe o falo você quis chorar – diga-me a verdade, confesse ante a câmera -, pedir-lhes
para que parassem, mas não o fez por puro masoquismo.
Você não queria amá-los, não queria amá-los.
Queria destruir-se.
Pensará nas leituras dos seus autores favoritos, de como eles te ajudaram a torná-la mais suportável,
a vida, e todo o movimento brusco que somos forçados a fazer. Eles eram a luz de um farol distante
sobre a sua pele coberta de chagas. Mas não se lembrará de seus nomes, o porquê você nem saberá,
o porquê de não lembrar-se quase nada ultimamente.
Balbuciará também outras coisas sem sentido algum no momento, como “minha mãe me espera em
casa” e a até mesmo “minha tia asfixiou-se na própria angústia dos pesadelos noturnos e gemia e
gemia... comidas em cantos da casa, mas que terrível!” ou até mesmo que as tangerinas bem que
podiam voar por aí feito borboletas e depois, de súbito, ao pousarem, tornar-se leões e devorarem a
tudo o que vissem.
Não tenha medo de confessar essas coisas para a câmera, a sua loucura.
Não temas mais carrascos segurando pedaços de pau quando já se tem o pior de todos –
Olhe-se no espelho.
Olhará para o céu novamente, mas não tentará compreendê-lo, estudá-lo, nunca, as nuvens
começarão a dispersar-se, tão languidas e tão belas.
Caminhará em direção ao mar e sucumbirá à beleza da estação.

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