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Capítulo 1 - rotina

E ele se calou... Como quem ainda tinha algo


pra dizer... Não que tenha preferido o silêncio, mas
todo dispêndio de alma naquele instante não parecia
fazer sentido algum... Nem mesmo fez questão de
idealizar uma maneira melhor de mostrar as suas
incertezas, apenas a amarrou num encaixe do teto...
E despencou do apoio da cadeira...
Por breves momentos desejou que alguém
aparecesse, mesmo que do além, e o libertasse
desse nó, mas já estava tão amarrado ao silêncio
que nenhum grito de socorro o tornaria audível
agora... Então pra quê gritar...? Ficou ali sentado com
seu chá de camomila das 20h e assistiu mais uma
vez seu definhar...
Já havia se tornado rotina, todos os dias se
preparava por uma hora depois que chegava do
trabalho. Deixava seu chá preparado, dois cubos de
gelo, e na sua poltrona macia de couro se deleitava
nesse misterioso jeito de se acabar...
Meses atrás contratou um rapaz que soldou no
teto um buraco pra enroscar um gancho que
guardava no paletó... Era seu vizinho... O rapaz tinha
um olhar curioso mas entrou e saiu sem sequer
soltar uma palavra...
Roberto se sentiu respeitado, mas também
descontente...
Ficava nas ultimas horas do seu trabalho
pensando "quem que entra na casa de alguém e
solda no teto um buraco sem perguntar a finalidade?
nem mesmo se importava se o material gasto era
suficiente pro uso que se faria... só entrou com seu
boa tarde e realizou o que eu havia pedido por
mensagem... O estúpido nem se perguntou o
porquê... idiota!"
Desligava a tela do computador e se jogava pra
trás na poltrona do escritório suspirando fundo como
alguém indignado... se levantava, tirava o jaleco,
colocava o paletó e colocava a mão no bolso
remexendo como quem procura. Pegava sua maleta,
desligava a luz do consultório e despedia da sua
secretária pedindo pra tirar o lixo do escritório.
E sua rotina se fechava saindo pela porta da
garagem, entrando no seu carro e discorrendo nas
avenidas e ruas a sua angústia como quem dirigisse
sozinho. Parava na panificadora, comprava sua rosca
de açucar e canela e ia para sua casa.
Chegava em casa nunca depois das 18h45 e
nos 15 minutos pras 19h passava pela cozinha
deixava a rosca no balcão e subia pro seu quarto pra
tomar um banho. Vestia um roupão e descia
novamente pra cozinha, comia a primeira rosca
antes de pegar o vidro de camomila e a segunda
enquanto a fervia na agua e a terceira depois que
coava.
Pegava um prato, onde colocava as três
restantes, na bandeja junto do bule e da chícara já
cheia e se dirigia para sala. Com as paredes altas e
um lado todo de vidro, do teto ao chão, permanecia
na poltrona olhando pro seu jardim e o céu quase
escuro lhe endereçava melancolia.
Olhava para o teto e pegava uma escadinha
pra enroscar o gancho que tirava do bolso do seu
roupão. Fechava a escada e colocava na dispensa e
sentava de volta na sua poltrona coloca seu dois
cubinhos de gelo e pronto... era seu momento das
oito horas da noite... bebia o primeiro gole quando
sentisse na língua o frio do morno e devorava suas
roscas como a esquentar ele dessa ignóbil perdição.
Havia dias mais tristes e outros nem tanto, mas
nunca um que lhe desse um sorriso nesse horário de
céu quase escuro.
Nos finais de semana, quais recusava trabalhar,
passava o dia no seu ateliê que havia construído pro
rumo distante do seu jardim. Passava do acordar ao
adormecer ali. Começava nas pinturas e desenhos,
colocava o som no último volume e discorria no lápis
os mais recentes blues, jazz e, às vezes pop que o
incorporava a mão e depois se ragava nas telas com
as tintas nos concertos pra piano de Brahms.
Quando exauria, sentava ao piano e deixava
ressoar pela abóboda alguma coisa que o
incomodava e das notas criava acordes e de repente
a harmonia era o suficiente pra ele dissertar seu
fraseado melódico.
E já era segunda feira novamente...
Numa dessas semanas, numa quarta-feira,
parecia que até o ar tinha ficado mais denso... ele se
atrasou na saída do consultório, na padaria não havia
mais as suas roscas e se revirando por dentro sentiu
como quem tivesse quebrando a casa toda, mas ela
permaneceu intacta.
Tomou seu banho e vestiu o seu roupão, desceu
e sentou na sua poltrona. Talvez tinha esquecido do
seu chá ou estava cansado demais pra o fazer...
Pegou a escada como de costume e enroscou o
gancho. Esperava pelas oito horas sentado na
escada...
Diferente, pendurou uma corda de nó... talvez o
nó tivesse o tamanho do nó do seu estômago...
Mesmo assim, pendurou no pescoço mesmo... e num
súbito estresse empurrou a escada pra longe...
naquele dia não desejou que alguém entrasse... já
estava satisfeito... mal se rebateu... se jogou e
ficou... parecia mais sereno que o vento que
empurrava entrada pela fresta da janela da cozinha...
um assobio...
Sem que ele escutasse, já estava quase morto,
sua porta dos fundos foi arrombada e como se
desesperado um vulto correu até o Roberto e com a
escada em pé segurou ele e tirou a corda do
gancho... caíram no chão... o ser que nem tinha rosto
afrouxou a corda e tentou reanimar o infeliz. Com
sorte respirou, mas não acordou. Pegou ele e subiu
os degraus e o arrumou na cama. Tirou o roupão do
quase falecido e o cobriu sentando à beira até
adormecer.

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