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© Arquivo Impresa Publishing José Afonso
Quando em 1968 José Afonso entrou nos estúdios da RDP, no Monte
da Virgem, Gaia, para gravar aquele que seria o seu segundo LP e
primeiro pela Orfeu, Cantares do Andarilho, estaria muito
possivelmente longe de imaginar que aquele punhado de canções iria
pôr em marcha duas revoluções: uma de ordem musical, rompendo
com tudo o que havia para trás na música portuguesa, outra de ordem
política, visto a sua obra ter servido de bandeira de contestação ao
antigo regime.
Quem ouvir hoje as primeiras canções isoladas que gravou, bem como
esse par de LPs iniciais, assentes apenas em voz e guitarra clássica,
pode ter dificuldade em perceber em que sentido é que são discos de
rutura ao ponto de Rui Pato, o guitarrista que acompanhou Afonso até
1969, afirmar hoje que «o primeiro LP [Baladas e Canções] acaba por
ser inócuo». Ainda assim, Pato assinala que Baladas e Canções «foi
importante na medida em que rompeu com a tradição de Coimbra e
trouxe à música portuguesa um modo diferente, sob o ponto de vista
musical e harmónico».
Pato deixa bem claras as diferenças entre o que havia antes de José
Afonso e o que José Afonso fez: «Quem tiver memória, lembra-se que
a canção portuguesa ia do fado tradicional ao nacional-cançonetismo
da Maria José Valério e do Tony de Matos. Era isto que se ouvia na
Emissora Nacional [a única rádio da altura] e que as pessoas ouviam e
conheciam; não havia muito mais na música portuguesa. Toda a
estrutura musical das Baladas não tem nada a ver com o ambiente das
cançonetas e é completamente diferente da forma do fado».
Pato, que hoje é médico em Coimbra, não tem a mínima dúvida que
num país profundamente conservador, que vivia sob um regime
ditatorial, as canções dos primeiros discos constituem «um corte
radical, ao ponto de em Coimbra as Baladas não serem bem vistas. Em
Lisboa ainda nem sequer tinha surgido gente que introduzisse novos
poemas nas canções». Pato conclui: «O Zeca, quando aparece, é uma
verdadeira pedrada no charco».
Foi também assim que Rui Pato acabou a tocar nos discos de José
Afonso. «Eu conheci-o através do meu pai», recorda hoje. «Ele um dia
foi ter com os amigos à Brasileira [café coimbrão frequentado por
estudantes e licenciados], muito entusiasmado com umas novidades
musicais. Tinha feito umas canções, mas não era fado, e para mostrar
aquela nova modalidade precisava de uma viola. E o meu pai
lembrou-se que eu tinha uma viola, pelo que foram todos para minha
casa e foi então que o conheci. Eu estava sentado nas escadas, ele
apresentou as suas primeiras canções e ia tocando muito mal -
sempre foi mau guitarrista. Tocava uma nota e dizia "e depois isto vai
para aqui e depois vai para ali". E eu pedi para apresentar alguns
acompanhamentos em contraponto à maneira como ele estava a
tocar, que era muito básica. Ele gostou e começou a dizer ao meu pai:
"o miúdo é que me vai acompanhar". E foi assim que nasceu a nossa
relação».
O simples facto de ter escolhido um garoto de 16 anos como seu
acompanhante em disco diz bem da abertura de espírito de José
Afonso. Na prática, foi assim que nasceram "Menino do Bairro Negro"
e "Os Vampiros". «Trabalhar com ele era fácil, dava-me completa
liberdade», recorda Pato. «Ele apresentava-me o esboço da canção e
depois eu organizava-a do princípio ao fim». Será este, aliás, o
esquema de trabalho de José Afonso com os seus futuros parceiros
musicais de discos subsequentes. E já então havia uma particular
obsessão: «a grande preocupação dele era a parte rítmica, aí era muito
rigoroso».
Ter uma carreira musical, naquela altura, era complicado. Para mais
quando o cartão-de-visita era uma canção como "Os Vampiros", com
o seu refrão assombrado, que tanto desagradava ao regime: «eles
comem tudo e não deixam nada». De 1962, quando Pato e José
Afonso iniciam a colaboração musical, até 1964, quando o último
emigra para Moçambique, a «carreira» vive ao sabor da colocação de
José Afonso como professor. «Ele dava aulas pelo país fora e eu ia ter
com ele para ensaiar», recorda Pato. Desde que se licenciou e até
1964, lecionou em Mangualde, Aljustrel, Lagos, Faro e Alcobaça; daí o
«andarilho».
Rui Pato conta que foi Afonso quem teve a ideia de experimentar
«arranjos com marimbas, harmónicas, trompa», sendo que as
marimbas denunciam, desde logo, influência africana. Também usa
cavaquinho, insistindo na sua recuperação na música popular
portuguesa, e recorre a poemas de gente recente, como Ary dos
Santos e Luís de Andrade; as palavras deste resultaram na magnífica
"Era de Noite e Levaram", uma denúncia das prisões aleatórias da
polícia política.
O próprio José Afonso foi vítima dessas prisões e foi na última delas,
em Caxias, que compôs "Era Um Redondo Vocábulo", incluído no
álbum Venham Mais Cinco, de 1973. Uma boa parte desse disco foi
escrito na prisão não se percebe como, mas Afonso saiu cá para fora
com as melodias na cabeça. O clima da época era pesado, com
«constantes concertos clandestinos que acabavam em prisões»,
segundo conta Vitorino. «Andávamos sempre com dinheiro no bolso
para fugir do país a qualquer altura», acrescenta.
© Blitz José Afonso aos microfones do Rádio Clube Português
No total, foram sete anos de separação que poderão muito bem ter
criado na criança uma espécie de sintonia para com os mais
desfavorecidos. Exemplos concretos podem ser encontrados em
canções como "Teresa Torga", de Com as Minhas Tamanquinhas, de
1976. Carlos Guerreiro, o líder dos Gaiteiros de Lisboa, que nunca
chegou a gravar em discos de José Afonso (ou gravou, mas as canções
não entraram e permanecem por editar), mas começou a tocar com
ele em 1976, numa altura em que Afonso já fazia digressões
constantes lá fora, conta a história dessa canção: «Era uma mulher que
já tinha sido conhecida e um dia despiu-se no meio da rua, já não
recordo porquê. Houve um fotógrafo que em vez de a ajudar resolveu
fotografá-la e ele ficou horas a pensar nisso, achava isso incorreto.
Acabava por exorcizar isso em canção».
Diz Guerreiro que José Afonso tinha uma teoria a que ninguém ligava,
mas que fazia um certo sentido: «ele achava que havia uma ligação
entre África e a música da Beira. Musicalmente não faz muito sentido,
mas ao nível de usar as palavras como brincadeira rítmica talvez haja
parecenças, embora não heranças diretas».
Mas
há mais um pormenor, e é fundamental: José Afonso, desde
talvez 1968 ou 1969, tinha um gravador que, segundo Júlio Pereira,
«levava para toda a parte», o que Guerreiro, Vitorino, João Afonso e
Arnaldo Trindade confirmam. O gravador servia-lhe para tudo: desde
gravar pequenas melodias, até canções completas, harmonias. Gravava
uma coisa, depois outra, uma terceira e a seguir ouvia de novo e
arranjava uma harmonia para a primeira melodia, um arranjo para a
segunda, etc. De certo modo era como se as canções estivessem em
esquisso nessas cassetes.
O «Zeca político»
Há, talvez, outra razão: a ascensão do «Zeca político». A partir de 1974
ele foi ajustando contas, deixando sair um lado mais amargo, dentro e
fora das canções, como é notório em temas como "Tenho um Primo
Convexo" (que era sobre um primo de que não gostava) ou "Como se
Faz um Canalha" (sobre Aventino Teixeira, que Afonso considerava
que tinha traído a causa da esquerda); e tornou-se mais radical
politicamente, o que é notório em temas como "Os Fantoches de
Kissinger" e "Alípio de Freitas" de Com as Minhas Tamanquinhas. A
segunda é um bom exemplo do político e posteriormente mitificado:
graças à canção salvou-se a vida a Alípio de Freitas, preso no Brasil
durante a ditadura militar; o embaixador português procurou-o e
conseguiu a sua libertação. Apesar dessa radicalização, José Afonso
integrou nenhum partido político.
nunca
Guerreiro lembra o que o músico dizia em entrevistas: «o meu Comité
Central sou eu», numa alusão a um certo distanciamento do Partido
Comunista. Arnaldo Trindade refere que «ele não se sentia muito
próximo do PC», porém «tornou-se próximo da LUAR», um grupo
político que intentou a luta armada.