Você está na página 1de 14

O QUE DEVE SABER HOJE: Parlamento assinala 45 anos da "Revolução dos Cravos"

A história de um homem que não conhecemos tão bem


como julgamos. Os amigos chamavam-lhe Zeca
João Bonifácio 1 hora atrás


© Arquivo Impresa Publishing José Afonso 
Quando em 1968 José Afonso entrou nos estúdios da RDP, no Monte
da Virgem, Gaia, para gravar aquele que seria o seu segundo LP e
primeiro pela Orfeu, Cantares do Andarilho, estaria muito
possivelmente longe de imaginar que aquele punhado de canções iria
pôr em marcha duas revoluções: uma de ordem musical, rompendo
com tudo o que havia para trás na música portuguesa, outra de ordem
política, visto a sua obra ter servido de bandeira de contestação ao
antigo regime.

Na realidade ele tinha preocupações mais prementes e pragmáticas:


conseguir simplesmente gravar. «Ele era muito nervoso», conta hoje
Arnaldo Trindade, fundador da Orfeu, «e quando ia gravar o disco
notou que se tinha esquecido dos comprimidos para os nervos.
Começou a andar dum lado para o outro a dizer 'Não vou gravar, não
vou gravar'. Foi aí que o Adriano [Correia de Oliveira, dos maiores
baladeiros portugueses e amigo pessoal de Afonso] lhe disse para tirar
os sapatos e desatou a dar-lhe pancadas nos pés para lhe tirar a
tensão, uma coisa que ele tinha aprendido no karaté, salvo erro. E
funcionou: o Zeca gravou e cantou que foi uma maravilha».

O episódio é simultaneamente caricato e comovente mas traz ao de


cima uma dimensão humana mais palpável que a da imagem icónica
que o tempo impôs a José Afonso. Nos vinte e cinco anos que
decorreram desde a sua morte, a 23 de fevereiro de 1987, José Afonso
tornou-se lentamente na figura icónica da luta pela liberdade. É
inteiramente merecido que o seja. O problema é que, como assinalam
Arnaldo Trindade, Vitorino, Carlos Guerreiro, Júlio Pereira e o sobrinho
João Afonso, a iconografia se sobrepôs a tudo o resto, ensombrando
o fundamental: a complexidade (e espantosa análise social) que as
suas palavras retratavam; o lado humano, de dúvida e angústia; e, pior
ainda, a música. Porque José Afonso era, antes de mais, um músico
possuído pelo génio, daqueles que «não podiam ser inventados»,
como diz Trindade.

Talvez agora, no momento em que a Orfeu reedita a obra que José


Afonso lá gravou [reportamo-nos a 2012, altura em que este artigo foi
publicado na revista BLITZ] e que constitui o grosso da sua produção,
já seja possível voltar a falar de José Afonso enquanto homem e
músico, um homem que a geração nascida depois da década de 70
desconhece, um ser com feridas fundas de infância, à conta de uma
trágica história de separação dos pais, hipocondríaco, que sofria de
insónias e precisava, como conta Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de
Lisboa, da esposa Zélia para o transportar por Lisboa, um ser
constantemente em conflito consigo mesmo, a pôr em causa a forma
mais justa de atuar; esse homem também jaz, hoje, na sombra das
homenagens e dos cravos.

Isto não implica desmerecer por completo a iconografia. Arnaldo


Trindade lembra que Afonso «sabia que era um ídolo desde que "Os
Vampiros" saiu». "Os Vampiros", até hoje uma das canções
emblemáticas de José Afonso, foi editado originalmente em single em
1963 e constitui, juntamente com "Menino do Bairro Negro", a
primeira incursão pela canção política. Até então, José Afonso
dedicara-se exclusivamente ao fado coimbrão, de que era um exímio
praticante, tendo gravado alguns singles do género.
 

© Blitz José Afonso na adolescência

Eles comem tudo


É nessas canções que José Afonso promove uma rutura com a música
da época e inicia o seu caminho: larga a guitarra portuguesa,
abandona o cantar fadista (ainda que tenham restado marcas) e
começa, numa primeira fase, a recuperar o legado do cancioneiro
português (mormente a música da Beira Baixa), como é verificável
ouvindo os três primeiros LPs que gravou, Baladas e Canções (1964),
Cantares do Andarilho e também um pouco em Contos Velhos, Rumos
Novos (1969), sendo este último já ele próprio um disco de rutura face
aos dois anteriores, antecipando o que se seguiria na década de 1970.
Também começa aí a usar as suas próprias palavras, em vez dos
poemas populares, como era de tradição com o fado coimbrão.

Quem ouvir hoje as primeiras canções isoladas que gravou, bem como
esse par de LPs iniciais, assentes apenas em voz e guitarra clássica,
pode ter dificuldade em perceber em que sentido é que são discos de
rutura ao ponto de Rui Pato, o guitarrista que acompanhou Afonso até
1969, afirmar hoje que «o primeiro LP [Baladas e Canções] acaba por
ser inócuo». Ainda assim, Pato assinala que Baladas e Canções «foi
importante na medida em que rompeu com a tradição de Coimbra e
trouxe à música portuguesa um modo diferente, sob o ponto de vista
musical e harmónico».

Pato deixa bem claras as diferenças entre o que havia antes de José
Afonso e o que José Afonso fez: «Quem tiver memória, lembra-se que
a canção portuguesa ia do fado tradicional ao nacional-cançonetismo
da Maria José Valério e do Tony de Matos. Era isto que se ouvia na
Emissora Nacional [a única rádio da altura] e que as pessoas ouviam e
conheciam; não havia muito mais na música portuguesa. Toda a
estrutura musical das Baladas não tem nada a ver com o ambiente das
cançonetas e é completamente diferente da forma do fado».

Pato, que hoje é médico em Coimbra, não tem a mínima dúvida que
num país profundamente conservador, que vivia sob um regime
ditatorial, as canções dos primeiros discos constituem «um corte
radical, ao ponto de em Coimbra as Baladas não serem bem vistas. Em
Lisboa ainda nem sequer tinha surgido gente que introduzisse novos
poemas nas canções». Pato conclui: «O Zeca, quando aparece, é uma
verdadeira pedrada no charco».

Há uma razão para Pato chamar «inócuo» a Baladas e Canções: apesar


deser o primeiro LP e de ter sido editado em 1964, um ano depois do 
single "Os Vampiros", não é propriamente um disco de corpo inteiro,
antes a reunião das primeiras experiências que Afonso fizera fora do
fado, e que editara em EPs e singles. "Os Vampiros", por exemplo, foi
gravado depois, mesmo tendo saído antes. E constitui, sem dúvida,
um avanço musical e lírico face ao que se encontra no LP de 1964. «Os
problemas de repressão», conta o guitarrista, «começaram por causa
de "Menino do Bairro Negro" [outra canção editada em single antes
do primeiro LP]. Depois, "Os Vampiros" tornou-se o hino da Rádio
Argel [onde se encontravam vários dissidentes políticos perseguidos
pelo regime]». Há quem afirme que a Pide proibiu "Os Vampiros", mas
isto não é claro: Arnaldo Trindade, que não editou essa canção, e
reportando-se apenas ao que foi lançado sob o selo que comandava,
afirma que «se dizia que os discos eram proibidos, mas é mentira:
eram censurados nas rádios mas nunca estiveram fora do mercado».
Essa censura criou «uma espécie de aura à volta de Zeca», diz Arnaldo,
«ao ponto de Cantares do Andarilho ter vendido muito bem».

Não há dúvida que "Os Vampiros", com o seu ataque violento ao


sistema económico, tornou Afonso em alguém a ter em conta.
Segundo Pato, «os núcleos de esquerda começaram a chamar o Zeca
para cantar em reuniões de trabalhadores e de estudantes: a música
do Zeca estava a servir de fermento». É difícil quantificar quantas
pessoas terão ouvido a canção na altura, mas percebe-se quão longe
ia o alcance daquela canção ao ouvir Vitorino, que mais tarde viria a
gravar com José Afonso e atuar com ele ao vivo, contar a história de
como se conheceram: «Isto passou-se em 1967. Eu estava em Tavira,
na ropa, e fui ver um concerto intitulado "Dr José Afonso canta
Baladas de Coimbra" na Casa de Pescadores de Olhão. Foi a primeira
vez que o vi, não podia perder a oportunidade». Se um tropa nascido
no Redondo sabia da existência do Dr. José Afonso, quantos mais
saberiam? A continuação da história é também altamente reveladora
do modus operandi de José Afonso: «ele estava com dificuldade em
afinar a guitarra e eu ofereci-me para a afinar. Ficámos amigos».

A amizade levou Vitorino a passar férias com a família Afonso na


Fuzeta, de onde era natural Zélia, a segunda mulher de José Afonso.
Foi aí que começaram «a cantar juntos, em simples brincadeira», o que
redundou em parceria musical. Isto aconteceu dezenas de vezes na
carreira: acabar a convidar músicos para tocar ou cantar em discos
seus após uma (ou muitas) noite(s) de cantorias. A amizade, dizem
todos, era-lhe fundamental.

Foi também assim que Rui Pato acabou a tocar nos discos de José
Afonso. «Eu conheci-o através do meu pai», recorda hoje. «Ele um dia
foi ter com os amigos à Brasileira [café coimbrão frequentado por
estudantes e licenciados], muito entusiasmado com umas novidades
musicais. Tinha feito umas canções, mas não era fado, e para mostrar
aquela nova modalidade precisava de uma viola. E o meu pai
lembrou-se que eu tinha uma viola, pelo que foram todos para minha
casa e foi então que o conheci. Eu estava sentado nas escadas, ele
apresentou as suas primeiras canções e ia tocando muito mal -
sempre foi mau guitarrista. Tocava uma nota e dizia "e depois isto vai
para aqui e depois vai para ali". E eu pedi para apresentar alguns
acompanhamentos em contraponto à maneira como ele estava a
tocar, que era muito básica. Ele gostou e começou a dizer ao meu pai:
"o miúdo é que me vai acompanhar". E foi assim que nasceu a nossa
relação».
 
O simples facto de ter escolhido um garoto de 16 anos como seu
acompanhante em disco diz bem da abertura de espírito de José
Afonso. Na prática, foi assim que nasceram "Menino do Bairro Negro"
e "Os Vampiros". «Trabalhar com ele era fácil, dava-me completa
liberdade», recorda Pato. «Ele apresentava-me o esboço da canção e
depois eu organizava-a do princípio ao fim». Será este, aliás, o
esquema de trabalho de José Afonso com os seus futuros parceiros
musicais de discos subsequentes. E já então havia uma particular
obsessão: «a grande preocupação dele era a parte rítmica, aí era muito
rigoroso».

Ter uma carreira musical, naquela altura, era complicado. Para mais
quando o cartão-de-visita era uma canção como "Os Vampiros", com
o seu refrão assombrado, que tanto desagradava ao regime: «eles
comem tudo e não deixam nada». De 1962, quando Pato e José
Afonso iniciam a colaboração musical, até 1964, quando o último
emigra para Moçambique, a «carreira» vive ao sabor da colocação de
José Afonso como professor. «Ele dava aulas pelo país fora e eu ia ter
com ele para ensaiar», recorda Pato. Desde que se licenciou e até
1964, lecionou em Mangualde, Aljustrel, Lagos, Faro e Alcobaça; daí o
«andarilho».

«Havia muita dificuldade em fazer concertos», lembra Pato. «Tinha de


se enganar os governos-civis, dizendo que íamos tocar fados de
Coimbra: à tarde tínhamos de lhes tocar dois ou fados de
demonstração, e depois tocávamos outra coisa à noite. Começou a
haver medo de chamar o Zeca para concertos, porque podia haver
pancadaria com a polícia, em particular em zonas como a Baixa da
Banheira».

© Blitz A assinar contrato com a Orfeu, de Arnaldo Trindade (à esquerda)

Uma editora chamada Orfeu


José Afonso torna-se um homem marcado, os problemas financeiros
acumulam-se e depois de lançar Baladas e Canções vai para
Moçambique. Tinha vivido em África, em Angola, dos três aos oito

anos, e ficara sempre marcado pelo continente. No período em que

permanece em Moçambique, de 1964 a 1967, corresponde-se com Rui
Pato, e conta que anda a fazer «coisas com música africana, com a
qual estava muito entusiasmado. Fazia teatro e música em
agremiações de negros». Rapidamente se envolve com movimentos
políticos locais, o que lhe vale, novamente, o opróbrio, regressando a
Portugal no final de 1967, mais propriamente a Setúbal.

Sem poder ensinar, vira-se definitivamente para a música. É aí que


vem em seu auxílio Adriano Correia de Oliveira. É ele que revela
Afonso a Arnaldo Trindade, como este recorda: «O Adriano trouxe-me
uma maqueta do Zeca com acompanhamento à guitarra acústica.
Pensei: 'isto é tão bonito'. Era o Cantares do Andarilho, que para mim
ainda é das melhores coisas que ele tem; ele chamava àquilo a sua
fase contemplativa. Pensei de imediato que, apesar de ninguém o
querer editar por motivos políticos, tinha de arriscar».

Trindade ofereceu a Afonso «o mesmo contrato que tinha oferecido a


Adriano: um salário mensal em troco de um disco por ano, cujos
direitos de autor eram pagos à parte». Mais tarde, Afonso levaria para
a Orfeu Sérgio Godinho, Fausto, Vitorino ou Francisco Fanhais, tudo
gente que gravou nos seus discos antes de prosseguir uma carreira a
solo.

A história de Trindade é exemplar do que era a época: quando


começou a Orfeu tinha apenas «19 ou 20 anos», diz. O dinheiro vinha
do pai, que era «o representante em Portugal da Philco, uma
subsidiária da Philips com linha de televisão e frigoríficos». Trindade
era um estudante de engenharia interessado pelas artes na década de
1950; chegou a conhecer Teixeira de Pascoaes. Igualmente
apaixonado por música, queria fazer uma editora e começou por
juntar os seus dois amores lançando discos de poetas a ler a sua
poesia: Torga, Régio, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade,
etc. «Eles não percebiam porque é que eu os queria gravar. Tive de
lhes explicar que em França o Sartre e o Cocteau já faziam isto há
muito».

Era, a todos os títulos, um homem sofisticado e, rapidamente,


começou a gravar vários tipos de música: «grupos amadores de jazz,
de ingleses e alemães que viviam no Porto, gente como Pedro Osório
e os Pop Five, um trio chamado Los Paraguaios, o Conjunto António
Mafra, a fadista Maria da Fé». A seguir começou a gravar música
folclórica: «os grupos folclóricos eram produções muito baratas e por
isso davam dinheiro».

Depois passou para os fados de Coimbra, com Adriano, e foi assim


que José Afonso lhe chegou. E também este lhe deu dinheiro: «o
Cantares do Andarilho vendeu bem». Apesar disto, Afonso sempre se
queixou de falta de dinheiro e, por vezes, os amigos juntavam-se para
o ajudar (como fizeram ao comprar-lhe um carro, num peditório
organizado por Carlos do Carmo). As versões diferem: Arnaldo
Trindade diz que José Afonso tinha «o melhor contrato» da Orfeu,
«equiparável ao de qualquer grande artista português».

Carlos Guerreiro diz que se lembra de José Afonso sempre sem


dinheiro. E que, depois do 25 de Abril, quando começou a tocar muito
lá fora, no final dos concertos «dizia sempre que tinha discos para
vender porque a editora não lhe vendia os discos». Uma canção de

Cantares do Andarilho, em particular, tornou-se rapidamente um

marco: "Vejam Bem". Pelo que Trindade aumentou o orçamento para
o disco seguinte: «Com o José Afonso posso garantir que não só lhe
melhorámos o contrato várias vezes como aumentámos sempre o
orçamento para as gravações». Isto poderá explicar o aumento do
número de músicos usados em Contos Velhos, Rumos Novos, em que
se começam a usar mais acompanhamentos além da guitarra.

Rui Pato conta que foi Afonso quem teve a ideia de experimentar
«arranjos com marimbas, harmónicas, trompa», sendo que as
marimbas denunciam, desde logo, influência africana. Também usa
cavaquinho, insistindo na sua recuperação na música popular
portuguesa, e recorre a poemas de gente recente, como Ary dos
Santos e Luís de Andrade; as palavras deste resultaram na magnífica
"Era de Noite e Levaram", uma denúncia das prisões aleatórias da
polícia política.

O próprio José Afonso foi vítima dessas prisões e foi na última delas,
em Caxias, que compôs "Era Um Redondo Vocábulo", incluído no
álbum Venham Mais Cinco, de 1973. Uma boa parte desse disco foi
escrito na prisão não se percebe como, mas Afonso saiu cá para fora
com as melodias na cabeça. O clima da época era pesado, com
«constantes concertos clandestinos que acabavam em prisões»,
segundo conta Vitorino. «Andávamos sempre com dinheiro no bolso
para fugir do país a qualquer altura», acrescenta.
© Blitz José Afonso aos microfones do Rádio Clube Português

De Woody Guthrie a Debussy


Em finais da década de 60, início da de 70, Trindade já tinha percebido
que tinha em mãos um sujeito superior. Admirava-lhe a cultura
musical, que «ia do Woody Guthrie ao Debussy, passando por canto
gregoriano, que adorava». Curiosamente, Rui Pato diz que nunca
trocou discos com Afonso. «Não estou a dizer que ele não tivesse um
gira-discos. Mas nunca vi nenhum nas casas que lhe conheci», afirma.
Segundo Trindade, uma boa parte do folclore «foi buscá-lo ao
Giacometti: o Zeca quis conhecê-lo e aprendeu muito com ele».

 outro lado, assevera, Afonso era efetivamente «um andarilho,


Por 
andava por toda a parte, viveu em imensos sítios, ia às terrinhas, falava
com as velhinhas, ouvia-as cantar e tinha uma memória musical
impressionante». Júlio Pereira, multiinstrumentista e colaborador
frequente, corrobora esta ideia afiançando que viu muitas vezes «o
Zeca apanhar as melodias nas terras ouvindo as pessoas cantar;
memorizava tudo e aquilo voltava, de forma diferente, já dele».

Segundo o sobrinho João Afonso, também músico, havia outra


influência marcante no conhecimento da música popular, mas desta
feita associada a algo potencialmente mais trágico. O tio Filomeno,
com quem José viveu a partir dos oito anos, em Belmonte, onde
Filomeno era presidente da Câmara. «Era salazarista, mas se bem me
recordo foi ele que lhe ensinou a cantar, que lhe passou as canções
populares e por isso ele tinha simpatia por esse tio». A separação dos
pais marcou muito José Afonso: o pai era procurador da República e
foi colocado em Angola, era José Afonso ainda bebé. Depois Afonso
voltou para Belmonte e em 1939 «os pais e a irmã foram para Timor,
por causa do emprego do pai. Entretanto começou a II Guerra
Mundial e eles foram capturados pelos japoneses. Pensou-se que
tinham morrido. O meu tio pensou que tinha perdido pais e irmã
durante quatro anos. Mesmo depois de saber que estavam vivos só
voltou a vê-los passados mais três anos».

No total, foram sete anos de separação que poderão muito bem ter
criado na criança uma espécie de sintonia para com os mais
desfavorecidos. Exemplos concretos podem ser encontrados em
canções como "Teresa Torga", de Com as Minhas Tamanquinhas, de
1976. Carlos Guerreiro, o líder dos Gaiteiros de Lisboa, que nunca
chegou a gravar em discos de José Afonso (ou gravou, mas as canções
não entraram e permanecem por editar), mas começou a tocar com
ele em 1976, numa altura em que Afonso já fazia digressões
constantes lá fora, conta a história dessa canção: «Era uma mulher que
já tinha sido conhecida e um dia despiu-se no meio da rua, já não
recordo porquê. Houve um fotógrafo que em vez de a ajudar resolveu
fotografá-la e ele ficou horas a pensar nisso, achava isso incorreto.
Acabava por exorcizar isso em canção».

Vitorino concorda que «essa separação [face aos pais] o desequilibrou


muito. Marcou-o para a vida. Passou o resto da vida a rodear-se de
pessoas. Tinha pânico de estar sozinho». Vitorino está convencido de
que essa estupenda canção que é "Cantigas do Maio", do álbum
homónimo de 1971, é uma premonição de morte: «Morrer antes da
mãe, uma ideia que sempre o obcecou». A palavra exata para recordar
a letra encontra-se na própria letra: amargura.

Minha mãe quando eu morrer

Ai chore por quem muito amargou

Para então dizer ao mundo

Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou

Também não será excessivo ver nessa separação a fonte da ansiedade


e hipocondria que o acometeram até morrer. Pese embora a maior
parte das pessoas o visse apenas como «inquieto», no dizer de João
Afonso. «Nessa época não se usavam termos como ansiedade», diz.

A sua educação, no entanto, foi, pelas descrições a que temos acesso, 


privilegiada em termos de leituras. Júlio Pereira, que o encontrará mais
à frente, confirma esta erudição: «Íamos em digressão com ele,
entrávamos em qualquer cidade da Europa e ele começava a contar a
história da cidade, dos edifícios. Eram autênticas aulas». Guerreiro
corrobora esta ideia: «As digressões naquele tempo eram diferentes,
tínhamos mais tempo. Pelo que íamos ver museus, ver igrejas, e ele
contava a história daquilo tudo».

Arnaldo Trindade descreve-o como «um pouco snob intelectualmente.


Não era uma pessoa simples, embora soubesse ser simples». Carlos
Guerreiro diz que Afonso, com os seus problemas de insónias,
aproveitava as noites para ler. Trindade também se recorda do leitor
compulsivo: «Era um tipo muito, muito lido, que tinha os García
Marquez antes de serem traduzidos» e que além da erudição era um
homem atento: em finais da década de 1960, José Afonso «tinha
consciência do que estava a acontecer no mundo, do Maio de 68
francês ao Vietname, passando pelas lutas sociais nos EUA e pelas
revoluções comunistas por esse mundo fora. Estava a par de tudo».
Pelo que os discos foram-se tornando «mais politizados» mas também
«mais literários». «Naquela altura, devido ao regime, ele tinha de
encontrar metáforas para o que queria dizer. Muita da beleza
daquelas canções reside nessa subjetividade».

De qualquer modo, vendiam. Ao ponto de, em 1970, Trindade o ter


mandado para os estúdios Pye, em Londres, para gravar o que viria a
ser Traz Outro Amigo Também. Rui Pato não o pôde acompanhar
devido a problemas políticos e é difícil perceber exatamente como o
disco foi feito. Os dois violas do disco estão incontactáveis. Gilberto
Gil aparece nos créditos como assistente, mas é dúbia a sua
participação, a avaliar pelo relato de Arnaldo Trindade: «O Zeca tinha
acabado de gravar o disco e fomos beber para comemorar. Depois,
estávamos a passear em Hyde Park quando, segundo as notas do meu
diário, apareceram o Gilberto Gil e o Caetano Veloso», que na altura
estavam no exílio em Londres.

Trindade diz que ambos tinham ouvido os primeiros discos de Afonso


e «tinham uma imensa admiração» por ele. Os outros músicos com
quem falámos confirmam o encontro e a admiração, embora os
pormenores sejam mais vagos, visto não terem estado presentes no
encontro.

 

© Blitz José Afonso em meados dos anos 70


Modo de fazer
De qualquer modo este é, segundo João Afonso, «o disco em que
começa a aparecer África» na música do seu tio, África que foi mais
uma das influências que o marcaram. Pode notar-se essa influência
logo na canção "Carta a Miguel Djé-Djé": este era «um empregado de
Zeca em Moçambique, com quem passava horas a tocar. O Zeca, por
causa do trabalho, mudou de residência para outra zona do país e
teve de despedi-lo. E um dia, sem aviso, estava o Zeca em Lourenço
Marques e o Djé-Djé apareceu-lhe à porta de casa com uma vassoura
e a guitarra». Segundo Guerreiro, era difícil arrancar-lhe histórias, mas
esta era uma que o comovia imenso.

Não é fácil para quem não é etnomusicólogo dizer exatamente o que


é africano na obra, mas João Afonso avança logo com uma ideia: «o
uso de certas palavras que não são palavras, são apenas vocábulos,
que ele usa de forma lúdica, a brincar com as suas potencialidades»,
como se pode notar numa canção como "Ailé Ailé", de Coro dos
Tribunais, de 1975. E, acrescenta, com graça, «nos taninaninôs
[referência à canção "O País Vai de Carrinho"] dele». Esse disco, note-
se, conta ainda com uma canção como "Lá no Xepangara" que,
segundo Vitorino, «é um mercado em Lourenço Marques». A obsessão
era tanta com conseguir o som certo que, segundo Vitorino (que
participou nesse disco tocando órgão Moog), «o Zeca mandou vir
uma cantora soul inglesa para cantar esses coros».

Carlos Guerreiro tem mais pormenores que aclaram como é que a


cabeça de José Afonso funcionava em termos africanos. Segundo
Guerreiro, «era um tipo profundamente despistado. Os ensaios
podiam durar horas mas ele estava sempre a sair para telefonar ou
comer
 uma bucha». No entanto, havia uma matéria com a qual era 
implacável: «com o ritmo era extremamente rigoroso. Se eu não
conseguia o balanço que ele queria, e é mais essa a palavra, balanço,
chateava-me até eu conseguir».

Diz Guerreiro que José Afonso tinha uma teoria a que ninguém ligava,
mas que fazia um certo sentido: «ele achava que havia uma ligação
entre África e a música da Beira. Musicalmente não faz muito sentido,
mas ao nível de usar as palavras como brincadeira rítmica talvez haja
parecenças, embora não heranças diretas».

Trindade achou o disco de 1970 uma obra-prima, a começar pelo


tema-título e passando por coisas como "Canto Moço". Entusiasmado,
o editor pediu novo disco e não olhou a meios: mandou Afonso para
o estúdio Le Château d' Hérouville, em Paris. «Era o melhor estúdio da
Europa. Na véspera tinham estado lá os Rolling Stones [na realidade
foram os Grateful Dead e depois seriam os Pink Floyd]». A
«brincadeira» custou-lhe uns astronómicos «mil contos». «Houve
retorno», diz, «porque dali saiu o "Grândola, Vila Morena"».

Todos são unânimes em reconhecer que o aumento do orçamento


para os discos foi fundamental: deu mais tempo para gravar, mais
músicos e, neste caso, um produtor, José Mário Branco. João Afonso
acrescenta que «a possibilidade de trazer músicos como o Yório [a
partir de 1973], que tocava à moda brasileira, ou do Fausto, que era
muito africano, entre estrangeiros espanhóis ou franceses, trouxe
outras cores à música de José Afonso».
Não foi possível falar com José Mário Branco (ausente do país) nem
com Fausto, que mais tarde veio a produzir José Afonso, dois
elementos fulcrais na obra Afonsina. Mas a Orfeu teve a delicadeza de
ceder algumas das declarações que José Mário Branco prestou ao
jornalista Gonçalo Frota, e que estarão incluídas nos libretos das
reedições. «Que eu me lembre, não me pôs grandes condicionantes»,
diz José Mário, que funcionou como diretor musical, o que faz sentido,
se tivermos em conta que todos os músicos que trabalharam com ele
dizem que era muito aberto às suas contribuições. No entanto, havia
uma exceção: ele tinha «alguma prevenção contra a eletrificação do
som dos discos». Preferia ter «sons nobres: as cordas, os sopros, as
percussões, sim, mas sem tomadas por perto».

Sabemos um pouco mais acerca de como decorria a parceria entre


José Afonso e José Mário nesse disco de 1971 e no de 1973, Venham
Mais Cinco, através das histórias que o primeiro contou. Segundo
Guerreiro, «ele tinha uma espécie de mnemónica, de grafia musical
que tinha inventado, e mostrava ao José Mário que tinha de deslindar
aquilo. Era do género: a primeira nota, depois sobe, sobe, a seguir
desce». Guerreiro diz que Afonso também tinha por norma «ideias
acerca dos instrumentos a usar», o que bate certo com as declarações
de José Mário Branco. Na versão de Vitorino «os arranjos eram
cantados ao produtor; pelo menos com o José Mário foi assim».
Vitorino diz que José Mário Branco «apontava os arranjos e
organizava-os meticulosamente», o que faz sentido para quem já viu
as fichas que José Mário Branco faz para cada gravação de disco (por
exemplo, para um disco de Camané é capaz de ter tabelas chamadas
«Impacto Emocional», onde se incluem pormenores como a respiração
ouvir-se ou não).

Mas
 há mais um pormenor, e é fundamental: José Afonso, desde 
talvez 1968 ou 1969, tinha um gravador que, segundo Júlio Pereira,
«levava para toda a parte», o que Guerreiro, Vitorino, João Afonso e
Arnaldo Trindade confirmam. O gravador servia-lhe para tudo: desde
gravar pequenas melodias, até canções completas, harmonias. Gravava
uma coisa, depois outra, uma terceira e a seguir ouvia de novo e
arranjava uma harmonia para a primeira melodia, um arranjo para a
segunda, etc. De certo modo era como se as canções estivessem em
esquisso nessas cassetes.

Carlos Guerreiro lembra-se de estar numa casa de banho, durante


uma digressão pelo norte de Espanha, em 1976 ou 77, quando na
porta ao lado ouve uma voz a trautear «tururu turu turu». Era José
Afonso enfiado na casa de banho a gravar uma melodia que lhe tinha
aparecido. Doutra vez, em Setúbal, interrompeu um jantar para ir à
casa de banho com o gravador na mão. «Voltou todo ufano, com a
sua melodiazinha».

Júlio Pereira também tem histórias dessas. «Estávamos em Vigo, julgo


que em 1978, íamos a passar debaixo de uma ponte e o Zeca de
súbito mandou-me subir ao hotel para ir buscar o gravador, de que se
tinha esquecido. Eu fui e quando voltei ele fez uma canção ali mesmo:
era o "Achegate a Mim, Maruxa" [de Fura-Fura, 1979]». Uma nota: a
letra dessa canção é popular, mas a melodia é toda de José Afonso.
João Afonso realça o trabalho «absolutamente vanguardista» que o tio
fez com a tradição: «Pegava numa melodia popular e usava uma parte,
e depois inventava o resto e punha como letra um poema moderno,
ou usava uma lengalenga popular e mudava a música».

Sabemos portanto que em Cantigas do Maio e Venham Mais Cinco,


entre as suas pautas improvisadas que mostrava a José Mário, as
indicações que dava sobre que instrumentos usar e as melodias
principais que levava, José Afonso já ia para estúdio com linhas de
orientação bastante razoáveis que cabia aos músicos preencher.
Sabemos que em Eu Vou Ser Como a Toupeira (de onde saíram
canções como "A Morte Saiu à Rua", "O Avô Cavernoso" ou "No
Comboio Descendente") já tinha o gravador para mostrar as melodias
e as harmonias que imaginara para cada melodia. Mas como é que as
coisas realmente aconteciam, por exemplo, nesse magnífico disco que
é Coro dos Tribunais, de 1974, produzido por Fausto? Vitorino, que
está nesse disco, bem como em Com as Minhas Tamanquinhas, dá
uma ideia: «Para já, tinha-se o tempo que fosse necessário. Se fosse
preciso um mês ficava-se um mês a gravar. Bons tempos. E ficava-se
em bons hotéis». Vitorino afirma que «os arranjos desse disco são em
parte do Fausto», o que faz sentido a cada escuta. Mas também «havia
arranjos que ele ditava, cantando».

Contudo, e apesar das muitas melodias e harmonias que levava, bem


como do seu apurado sentido de ritmo, José Afonso precisava
efetivamente de músicos e tempo para experimentar. Diz Vitorino:
«Quando entrávamos em estúdio as músicas estavam mal acabadas.
Como ele não sabia música tínhamos de interpretar o que ele queria».
Afonso podia dizer «e se puséssemos umas palmas nesta música?»,
mas também podia ser um músico a fazer uma proposta de arranjo ou
o produtor a fazer uma definição, a que depois se retiravam e
acrescentavam coisas.

Mas há uma história que Júlio Pereira, que começa a gravar com José

Afonso em "Índios da Meia-Praia", do disco Com as Minhas
Tamanquinhas (em que aparece um Joaquim Barreiros a tocar
acordeão, que mais tarde se tornaria figura popular ao diminuir o
nome para Quim), conta que sendo praticamente um detalhe é
elucidativa do génio. «Já não me lembro de que canção estávamos a
gravar nem para que disco, mas o Zeca sentia que faltava alguma
coisa. Ouvia e ouvia a canção até que se virou para mim e disse: "havia
uma coisa que vi umas mulheres fazerem em África: tinham uns
chocalhos presos nas pernas e nos braços e dançavam e o som era
muito cheio". Experimentámos e lembro-me de resultar. Foi já no fim
da carreira».

Além de ser um melodista de exceção, que sabia intuitivamente que


ritmo queria e como dividir cada sílaba, era isto que trazia para as suas
canções e que as tornavam únicas; algo difícil, de facto, de explicar
numa pauta e talvez uma das razões pelas quais José Afonso
permanece um mistério, e que levou a que «as pessoas se tenham
esquecido dele enquanto músico», segundo diz Júlio Pereira,
secundado pelos restantes.
© Blitz José Afonso (à direita) com Vitorino, Adriano Correia de Oliveira e Fausto (esq-dta)

O «Zeca político»
Há, talvez, outra razão: a ascensão do «Zeca político». A partir de 1974
ele foi ajustando contas, deixando sair um lado mais amargo, dentro e
fora das canções, como é notório em temas como "Tenho um Primo
Convexo" (que era sobre um primo de que não gostava) ou "Como se
Faz um Canalha" (sobre Aventino Teixeira, que Afonso considerava
que tinha traído a causa da esquerda); e tornou-se mais radical
politicamente, o que é notório em temas como "Os Fantoches de
Kissinger" e "Alípio de Freitas" de Com as Minhas Tamanquinhas. A
segunda é um bom exemplo do político e posteriormente mitificado:
graças à canção salvou-se a vida a Alípio de Freitas, preso no Brasil
durante a ditadura militar; o embaixador português procurou-o e
conseguiu a sua libertação. Apesar dessa radicalização, José Afonso
 integrou nenhum partido político.
nunca 
Guerreiro lembra o que o músico dizia em entrevistas: «o meu Comité
Central sou eu», numa alusão a um certo distanciamento do Partido
Comunista. Arnaldo Trindade refere que «ele não se sentia muito
próximo do PC», porém «tornou-se próximo da LUAR», um grupo
político que intentou a luta armada.

De acordo com Vitorino, «quando começou a haver violência, ele


afastou-se, era um pacifista». Ainda assim, apoiou a candidatura de
Otelo a Presidente da República (e Otelo não era um menino do coro).
A radicalização do discurso acabou por ter efeitos paradoxais: por um
lado, tornou-o um ícone; por outro, as vendas pós-1974 caíram.
«Depois do PREC», conta Trindade, «as pessoas não queriam mais
mata-e esfola. Os tempos tinham mudado. Muitos dos que lhe
compravam os discos não concordavam com ele politicamente,
porque ele foi-se radicalizando. Também se perdeu o lirismo
metafórico dos primeiros discos».

Começa então a tocar lá fora, acompanhado por gente mais nova,


como Guerreiro ou Júlio Pereira. Passaram por países como Espanha
(que o adorava), França, Itália, Bélgica, Holanda, Alemanha e com
muito mais sucesso do que o que tinha conseguido quando foi tocar
ao Brasil, em 1971, na companhia de Paulo de Carvalho: «Era um
festival de música mais pop e não foi bem recebido», conta Trindade.
Mas foi-o na Europa. Em parte por causa do 25 de abril: «Os europeus
queriam conhecer o que se fazia no país que tinha saído da ditadura e
tinha estado tantos anos fechado», diz Vitorino.

Mas também porque os seus concertos eram entusiásticos. Guerreiro


diz não ter «a mínima dúvida de que o Zeca foi, juntamente com a
Amália e o Paredes o grande embaixador de Portugal lá fora durante
anos». Júlio Pereira corrobora a ideia e acrescenta que «é um crime
que nunca se tenha falado cá dentro dos êxitos que o Zeca alcançou lá
fora. Os espanhóis, então, amavam-no».

Talvez Trindade tivesse razão: o país tinha mudado e as pessoas


queriam iogurteiras em vez de discurso, caixilhos de alumínio em vez
de fúria. Depois de 1976 fez ainda três discos para a Orfeu: Enquanto
Há Força (78), Fura-Fura (79) e Fados de Coimbra (81), um estranho
regresso ao início, concebido quando já estava doente (embora não se
saiba exatamente quando começou a doença, Guerreiro e Pereira,
olhando para trás, têm ideia de que por volta de 1977, 1978, o músico
começou a ter problemas físicos constantes, como falta de força nos
braços).

Fura-Fura, tendo ainda grandes canções, é pouco homogéneo, porque


os arranjos se dividem entre José Afonso, Júlio Pereira e os Trovante.
Enquanto Há Força, dirigido por Fausto, que co-compõe aqui e ali, é
de outra cepa. Afonso ainda se reergueu, após a saída da Orfeu e há
quem defenda que Como Se Fora Seu Filho e Galinhas do Mato (em
que cantarola as melodias e em que Júlio Pereira e José Mário Branco,
entre outros, tocam, gravam e dirigem cantores e instrumentistas)
estão entre os seus discos mais inventivos. Mas José Afonso era já um
mito e aos mitos não se pede que progridam e arrisquem, mas sim
que sejam consensuais, e para isso era preciso não ser ouvido. No
fundo não o foi mais: como sublinham todos, foi usado como

bandeira da liberdade, visto como património exclusivo da esquerda, o

que não é correto: Pedro Ayres de Magalhães é fanático de José
Afonso, Manuel Fúria, ex-líder d'Os Golpes, fez uma versão de "Tenho
Barcos, Tenho Remos". Mas, à conta da mitologia, o interminável
talento foi esquecido.

«Estamos a falar de um dos maiores génios da segunda metade do


século XX», diz Júlio Pereira. «Não se criava um Zeca por mais que se
tentasse», diz Trindade. Os elogios continuam. Hoje, mais
apaziguados, menos motivados pela ideologia, ou talvez apenas mais
distantes, podemos admirar apenas a música e as palavras e perceber
que Zeca, afinal de contas, era um homem.

Originalmente publicado na BLITZ de junho de 2012

Veja também: Beatriz: "Não me escolha porque não quero ir!"


Beatriz: "Não me escolha porque não quero ir!"

Você também pode gostar