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Introdução
ciência da natureza, é possível delinear com algum rigor o conteúdo preciso de uma
intelecção precisa; mas o fito de tal delineamento não é fornecer ao leitor uma
corrente de palavras que ele possa repetir a outros, ou um conjunto de termos e
relações a partir dos quais possa depois extrair inferências e estabelecer conclusões.
Pelo contrário, o importante aqui, como em qualquer parte, é a apropriação; o
importante é descobrir, identificar, tornar-se familiar com as actividades da
inteligência pessoal; o importante é tornar-se capaz de discriminar, com facilidade e a
partir da convicção pessoal, entre as suas actividades puramente intelectuais e a
multiplicidade de outras preocupações ‘existenciais’ que invadem, se misturam e se
combinam com as operações do intelecto, tornando-o ambivalente a ele e ambíguos
aos seus assertos.
Neste passo, porém, muitos dos leitores potenciais se hão-de queixar. As
ilustrações oferecidas nos primeiros cinco capítulos não se inscrevem na órbita dos
seus interesses. Inteligência e razoabilidade são marcas comuns a todos os espécimes
do homo sapiens. Mas a minha concentração inicial na matemática e na ciência da
natureza parece restringir indevidamente o efectivo alcance do convite que faço a uma
apropriação da autoconsciência racional de cada um.
Talvez uma explicação dos motivos que guiaram a minha decisão nesta matéria
sirva não só para explicar o meu procedimento, mas também para habilitar cada leitor
a apreciar por si próprio em que medida os capítulos iniciais se devem entender, para
que ele possa beneficiar do livro como um todo. Em primeiro lugar, é essencial que a
noção de intelecção, de acumulação de intelecções, de pontos de vista superiores, do
seu significado heurístico e das suas implicações, não só seja apreendida de forma
clara e distinta, mas também, e tanto quanto possível, identificada na experiência
intelectual pessoal. A natureza precisa de tal identificação será clarificada no capítulo
sobre a Auto-afirmação, porque, parece evidente, é fácil e vulgar conceber a
introspecção e a experiência intelectual de um modo tal que, quando submetida a
escrutínio, se apresenta como insignificante. Mais ainda, para que a elucidação do
nosso conhecimento dos níveis de consciência seja inteligível, deverá ser precedida
por uma apreensão, precisa e firme, de tipos sucessivos de actividade que servem para
assinalar e definir os níveis sucessivos de consciência. Por sua vez, para que a
apreensão dessas actividades seja clara e distinta, há então que preferir os campos de
empreendimento intelectual em que o maior cuidado se dedica à exactidão e, de facto,
a maior exactidão se obtém. Por esta razão, senti-me obrigado a iniciar a minha
exposição da intelecção e da sua expansão com exemplos matemáticos e científicos e,
embora admita que, no essencial, as mesmas actividades se podem ilustrar a partir do
uso ordinário da inteligência, apelidado de senso comum, devo também reconhecer
que seria impossível ao senso comum apreender e dizer o que, justamente, o senso
comum pode ilustrar.
Mas considerações ulteriores não são menos eficazes. Pois o presente
empreendimento visa decifrar uma ambiguidade e eliminar uma ambivalência. Santo
Agostinho de Hipona conta que levou anos a descobrir que o nome real pode possuir
uma conotação diferente do nome corpo. Ou, de forma mais chegada e familiar, pode
afirmar-se que a ciência moderna demorou quatro séculos a descobrir que os objectos
da sua inquirição não necessitavam de ser entidades imagináveis que se moviam
através de processos imagináveis num espaço-tempo imaginável. O facto de Platão
tentar comunicar através dos seus diálogos, o facto de Agostinho ter, afinal, aprendido
de escritores a quem, de forma genérica, se refere como platónicos, perdeu o seu
antigo sabor e a sua aparente irrelevância para a mente moderna. Mesmo antes de
Einstein e de Heisenberg, era assaz patente que o mundo descrito pelos cientistas era
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Tenho estado a insistir na gravidade dos motivos que me levaram a iniciar este
ensaio em prol da apropriação de si, com o escrutínio da física matemática. Mas, para
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começar por um ponto de vista mínimo e num contexto mínimo; explorará esse
mínimo para, em seguida, levantar uma questão que aumente o ponto de vista e o
contexto; avançará com o ponto de vista e o contexto alargados só enquanto for
necessário levantar questões mais profundas que, de novo, transformam as bases e os
termos de referência da investigação; e, claro, este estratagema pode repetir-se, não só
uma ou duas vezes, mas tantas vezes quantas forem necessárias para alcançar o ponto
de vista universal e o contexto integralmente concreto que abarca todos os aspectos da
realidade.
Contudo, se tão-só este procedimento for apropriado para o objectivo do presente
trabalho, devo realçar, de uma vez por todas, que as suas implicações se não devem
descurar. Se Espinosa escreveu a Ética de acordo com o que no seu tempo se pensava
ser o estilo geométrico, não se inferirá que estou a tentar seguir os seus passos, que
nunca ouvi falar do teorema de Gödel, que não estou a operar a partir de um ponto de
vista móvel, que sucessivamente estabelece contextos só para ir além deles. Se a
inferência não houver de se fazer, as implicações ulteriores de tal inferência não se
devem assumir. As premissas a partir das quais se pode deduzir a minha própria
posição não estão completas na primeira secção do primeiro capítulo, quando uma
breve descrição tenta fixar o significado do nome, intelecção. O contexto é ampliado,
mas não completado, quando um estudo do desenvolvimento matemático torna a
noção de intelecção mais precisa. Existe o contexto mais amplo do mundo
matematizado dos eventos, que surgiu no fim do quinto capítulo, mas tem de ser
incluído no contexto ainda mais amplo do mundo do senso comum, que é descrito nos
capítulos sexto e sétimo. O capítulo oitavo acrescenta coisas que, apesar de
previamente negligenciadas, nunca foram negadas. O nono e décimo capítulos
acrescentam a reflexão e o juízo, que não se excluíram das considerações iniciais,
nem, por outro lado, lhes foi possível entrar de forma sistemática. No décimo primeiro
capítulo, surge o primeiro juízo da auto-afirmação, mas só no décimo segundo
capítulo se assere que esse juízo é conhecimento, e só no décimo terceiro capítulo se
explica em que sentido tal conhecimento se deve dizer objectivo. Seguem-se os quatro
capítulos sobre metafísica para esquadrinhar tudo o que se divisou na unidade de uma
perspectiva mais ampla, apenas para sofrerem um destino similar, primeiro, na
exposição do conhecimento transcendente geral, e, de novo, na abordagem ao
conhecimento transcendente especial.
Decerto, se surgisse alguém para expressar o meu significado de modo mais
sucinto do que eu consegui, deveria lembrar-se de que os enunciados iniciais têm de
ser qualificados e interpretados à luz de enunciados ulteriores.
E não é tudo. Pois já se advertiu que o presente trabalho se ocupa do conhecido
apenas de modo esquemático e incompleto que é necessário para clarificar a natureza
e afirmar a existência de diferentes departamentos do conhecimento. Esta qualificação
extremamente geral deve combinar-se com a qualificação de asserções iniciais por
outras ulteriores e, sugiro eu, a combinação pode efectuar-se de forma sistemática da
seguinte maneira.
O teorema de Gödel estabelece que qualquer conjunto de definições e postulados
matemáticos dão origem a questões ulteriores que não podem ser respondidas com
base nas definições e nos postulados. Considere-se, então, uma série de conjuntos de
definições e postulados, digamos P, Q, R, …, tais que, se P for assumido, surgem
questões que se podem responder apenas pela assunção de Q, se Q for assumido,
surgem questões que se podem responder pela assunção R, e assim sucessivamente.
Então, além dos sucessivos contextos inferiores P, Q, R, … existe também o contexto
mais elevado em que o teorema de Godel se expressa. Além disso, atendendo a que o
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(1) não o facto do conhecimento, mas uma discriminação entre dois factos do
conhecimento,
(2) não os pormenores do conhecido, mas a estrutura do conhecer,
(3) não o conhecer como um objecto caracterizado por catálogos de propriedades
abstractas, mas a apropriação da autoconsciência intelectual e racional própria,
(4) não um súbito salto para a apropriação, mas um lento e árduo
desenvolvimento, e
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(5) não um desenvolvimento indicado pelo apelo quer à lógica do objectivo ainda
desconhecido quer à pressuposta e ainda inexplicada metafísica ontologicamente
estruturada, mas um desenvolvimento que pode ter início em qualquer consciência
assaz cultivada, que se expande em virtude das tendências dinâmicas desta própria
consciência, e que almeja, através de uma compreensão de toda a compreensão, uma
compreensão fundamental de tudo o que se pode entender.
A última frase retine como um mote publicitário e, de modo assaz feliz, resume o
conteúdo positivo desta obra. Entende perfeitamente o que é entender, e não só
compreenderás as linhas amplas de tudo o que há para entender, mas também ficarás
na posse de uma base sólida, de um padrão invariante, de uma abertura para todos
os ulteriores desenvolvimentos da compreensão.
Pois a apropriação da autoconsciência racional própria, que tão realçada foi nesta
Introdução, não é um fim em si mesma, mas antes um começo. É um início necessário
porque, a não ser que alguém elimine a dualidade no seu conhecer, se duvida que
entender correctamente seja conhecer. Sob a pressão dessa dúvida, ou se afunda no
lodaçal de um conhecer desprovido de compreensão, ou se adere à compreensão, mas
sacrificando o conhecer no altar de um imanentismo, de um idealismo, de um
relativismo. Dos cornos deste dilema só se escapa através da descoberta (e ninguém
ainda a fez, se não tiver uma clara lembrança da sua estranheza inicial) de que há dois
realismos inteiramente distintos, que há um realismo incoerente, semi-animal e semi-
humano, que se situa a meio caminho entre o materialismo e o idealismo, e que há,
por outro lado, um realismo inteligente e razoável, entre o qual e o materialismo, a
posição intermédia é o idealismo.
O início é, pois, não só o autoconhecimento e a auto-apropriação, mas também
um critério do real. Se para se convencer a si mesmo que conhecer é compreender,
alguém assere que saber matemática é compreender, que saber ciência é compreender,
e saber senso comum é compreender, acaba-se não só numa exposição
circunstanciada da compreensão, mas também num plano do que há para se conhecer.
As várias ciências perdem o seu isolamento recíproco; o hiato entre ciência e senso
comum é colmatado; a estrutura do universo proporcionado ao intelecto humano é
revelada; e como esta estrutura revelada faculta um objecto à metafísica, então a
autocrítica inicial fornece um método para explicar como surgem as afirmações
metafísicas e antimetafísicas, para seleccionar as que estão correctas e para eliminar
aquelas que visivelmente nascem de uma penúria de autoconhecimento preciso.
Ademais, tal como a metafísica deriva da estrutura conhecida do conhecer pessoal,
também uma ética provém do conhecimento da estrutura composta do nosso conhecer
e fazer; e tal como a metafísica, também a ética prolonga a autocrítica inicial para
uma explanação da origem de todas as posições éticas e para um critério de avaliação
de cada uma delas. Isto não é tudo. Persistem ainda questões ulteriores prementes.
Poderiam ser ignoradas, se o conhecer não fosse compreensão, ou se a compreensão
fosse compatível com o obscurantismo que, de forma arbitrária, deixa as questões de
lado. Mas o conhecer é compreensão, e a compreensão é incompatível com a
obscuridade que, de forma arbitrária, põe de lado as questões. Há que arrostar o
problema do conhecimento transcendente. Pode o homem conhecer mais do que a
inteligibilidade imanente no mundo da experiência possível? Se sim, como poderá
concebê-lo? Se pode concebê-lo, como poderá afirmá-lo? Se pode afirmá-lo, como
poderá reconciliar essa afirmação com o mal que tortura tantos corpos humanos,
entenebrece tantas mentes humanas, endurece tantos corações? Tais são as questões
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dos dois últimos capítulos, mas comentários ulteriores sobre as respostas apresentadas
serão mais inteligíveis num Epílogo do que numa Introdução.
Como, em breve, o leitor irá descobrir, este não é um trabalho erudito. Antes de
toda a escrita da história, antes de toda a interpretação de outras mentes, existe o auto-
exame do historiador, o auto-conhecimento do intérprete. Esta tarefa prioritária é a
minha preocupação. É um interesse que tem as suas origens e o seu enquadramento,
as suas dependências e filiações; talvez valesse a pena referi-los; mas valeria a pena
referi-los, só em atenção à preocupação antecedente; e só seriam correctamente
interpretados, se a preocupação prévia fosse bem sucedida em realizar a tarefa
prioritária.
Assim sendo, as minhas referências são escassas e desnecessárias. Na análise da
ciência empírica, achei útil seleccionar um só livro em que o leitor pudesse encontrar
uma exposição dos tópicos que emergiram; por esta razão, e sem qualquer intenção de
sugerir uma única autoridade, refiro-me habitualmente à obra de Lindsay e Margenau,
com frequência reeditada sob o título Foundations of Physics. Disseminados ao longo
da obra, surgirão asserções arrojadas sobre as concepções de vários pensadores.
Poderei expressar a esperança de que elas não causem muita celeuma? Como a longa
discussão sobre a verdade da interpretação no capítulo XVII revelará, dificilmente
aspiram a ser veredictos pronunciados pelo tribunal da história, cujos processos
funcionam com muito mais delongas do que o pior dos tribunais. O seu significado
primário é apenas o de uma forma abreviada de discurso que terá boas possibilidades
de comunicar de forma rápida o que, de outro modo, dificilmente seria dito. Talvez a
esse significado primário se pudesse acrescentar a sugestão de que, na medida em que
os princípios desta obra forem aceites, o significado por nós realçado poderá
providenciar um ponto de partida para investigações posteriores.
Na introdução ao seu Tratado da Natureza Humana, David Hume escreveu que
não se conquista um território, ocupando um posto aqui e uma cidade ou vila ali, mas,
ao invés, avançando directamente para a capital e assaltando a sua cidadela. Contudo,
a estratégia correcta é uma coisa, a sua execução bem sucedida é outra; mesmo após a
campanha mais bem sucedida, persiste a tarefa demorada de limpeza, de organização
e de consolidação. Se eu for assaz destemido para acreditar que abordei um conjunto
de ideias de importância fundamental, não posso deixar de reconhecer que não possuo
os recursos para oferecer uma exibição irrepreensível das suas implicações na ampla
variedade dos campos em que elas são relevantes. Posso apenas oferecer o contributo
de um só homem e, em seguida, esperar que outros, sensíveis aos mesmos problemas,
reconheçam que os meus esforços abreviam o seu próprio trabalho e que as minhas
conclusões fornecem uma base para ulteriores desenvolvimentos.