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Introdução

O objectivo do presente trabalho pode delimitar-se por uma série de disjunções.


Primeiro, a questão não é se o conhecimento existe, mas qual é justamente a sua
natureza. Em segundo lugar, embora o conteúdo do conhecimento se não possa
descurar, abordar-se-á, todavia, apenas na forma esquemática e incompleta, requerida
para fornecer um critério discriminante ou determinante dos actos cognitivos. Em
terceiro lugar, o objectivo não visa estabelecer uma lista de propriedades abstractas do
conhecimento humano, mas ajudar o leitor a efectuar uma apropriação pessoal da
estrutura concreta, dinâmica, imanente e recorrentemente operativa nas suas próprias
actividades cognitivas. Em quarto lugar, tal apropriação pode ocorrer apenas de forma
gradual e, por isso, não se oferecerá uma apresentação abrupta do todo da estrutura,
mas uma reunião morosa dos seus elementos, das suas relações, alternativas e
implicações. Em quinto lugar, a ordem da reunião não se orienta por considerações
abstractas da prioridade lógica ou metafísica, mas por motivos concretos de eficácia
pedagógica.
O programa é, pois, concreto e prático, e os motivos para empreender a sua
execução não residem no domínio das generalidades fáceis, mas no árduo recinto das
matérias de facto. Se, no fim do percurso, o leitor estiver convencido desses factos,
muito se terá conseguido; mas, de momento, tudo o que posso fazer é clarificar as
minhas intenções, através da exposição das minhas crenças. Indago, portanto, mais a
natureza do que a existência do conhecimento, porque em cada um de nós há dois
tipos diferentes de conhecimento. Estão justapostos no dualismo cartesiano com o seu
Cogito, ergo sum racional e com a sua extroversão inquestionável para a extensão
substancial. Encontram-se separados e alienados nas subsequentes filosofias
racionalistas e empiristas. Juntam-se, para de novo se anularem, no criticismo
kantiano. Se estas declarações se acercam dos factos, então a questão do
conhecimento humano não é se ele existe, mas quais são justamente as suas duas
formas distintas e quais as relações que entre elas existem. Se esta for a questão
relevante, então qualquer distanciamento em relação a ela constitui, em igual medida,
o infortúnio de errar o alvo. Mas se esta é, ou não, a questão relevante, só poderá
estabelecer-se empreendendo uma árdua jornada exploratória pelos muitos campos
em que os homens obtiveram êxito no conhecimento ou fracassaram na tentativa de o
alcançar.
Em segundo lugar, uma exposição do conhecimento não pode negligenciar o seu
conteúdo, e o seu conteúdo é tão extenso que escarnece das enciclopédias e inunda as
bibliotecas; o seu conteúdo é tão difícil que uma pessoa pode decerto dedicar a sua
vida a dominar apenas uma parte sua; mesmo assim, porém, o seu conteúdo é
incompleto e sujeito a adições ulteriores, inadequado e passível de reiteradas e futuras
revisões. Não será que a viagem exploratória proposta não só é árdua, mas
impossível? Seria certamente impossível, pelo menos para o escritor, se uma
familiaridade com a extensão total do conhecimento fosse um requisito na presente
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investigação. Mas, de facto, a nossa preocupação prioritária não é o conhecido, antes


o conhecer. O conhecido é extenso, mas o conhecer é uma estrutura recorrente, que se
pode investigar de modo suficiente numa série de exemplos estrategicamente
escolhidos. O conhecido é difícil de dominar, mas hoje especialistas competentes
esforçaram-se por seleccionar para leitores sérios e lhes apresentar, de forma
adequada, as componentes básicas dos vários departamentos do conhecimento. Por
fim, o conhecido é incompleto e sujeito a revisão, mas a nossa preocupação é o
cognoscente, que será a fonte das futuras adições e revisões.
Não será impróprio acrescentar alguns corolários, pois nada desorienta mais um
leitor do que não conseguir esclarecer aquilo de que trata um livro. No fundo, este não
é um livro sobre matemática, nem sobre ciência, nem sobre o senso comum, nem
sobre a metafísica; de facto, em certo sentido, nem sequer é um livro acerca do
conhecimento. Num primeiro nível, o livro contém asserções sobre matemática, sobre
ciência, sobre o senso comum, sobre a metafísica. Num segundo nível, o sentido de
todas estas asserções, a sua intenção e o seu significado, só se alcançará indo mais
além dos fragmentos de matemática, de ciência, de senso comum, de metafísica, até à
estrutura cognitiva, dinâmica, que no conhecimento delas se exemplifica. Num
terceiro nível, a estrutura cognitiva, dinâmica, a alcançar não é o ego transcendental
da especulação fichteana, nem o padrão abstracto das relações verificadas em Tom,
Dick e Harry, mas a estrutura pessoalmente assimilada da experiência de cada um, da
sua inquirição inteligente e das suas intelecções, da sua reflexão crítica, do seu julgar
e decidir. O ponto crucial é uma questão experimental, e o experimento realizar-se-á
em privado e não em público. Consistirá numa autoconsciência racional própria que,
clara e distintamente, se apropria de si como autoconsciência racional. Tudo conduz a
esse feito decisivo. Tudo daí se segue. Mais ninguém, seja qual for o seu
conhecimento ou a sua eloquência, seja qual for o seu rigor lógico ou a sua persuasão,
poderá fazê-lo por cada um de nós. Embora o acto seja privado, os seus antecedentes
e as suas consequências têm a sua manifestação pública. Pode haver longas séries de
sinais no papel que endereçam um convite ao conhecimento de si na tensão da
dualidade do conhecimento de cada qual; e o presente livro gostaria de estar incluído
entre essas séries de sinais com um significado de convite. Nem precisa de ser um
segredo se tais convites são úteis ou, quando úteis, aceites. O crepúsculo do inverno
não se pode confundir com o luminoso sol de meio-dia do verão.
Em terceiro lugar, pois, o objectivo do livro é, acima de tudo, emitir um convite
para um acto decisivo e pessoal. Mas a natureza genuína do acto exige que ele seja
entendido em si mesmo e nas suas implicações. Mas que se entende por
autoconsciência racional? Que se entende por convite a tomar posse de si mesmo?
Porque é que se afirma que essa posse de si mesmo é tão decisiva e importante? As
questões são perfeitamente legítimas, mas a resposta não pode ser breve.
No entanto, o que conta não é a resposta em si, mas a forma como se lê. Pois a
resposta só pode ser escrita em palavras; as palavras só podem derivar de definições e
correlações, de análises e inferências; contudo, o ponto fulcral da presente resposta
perder-se-ia, se o leitor insistisse em concluir que eu estou empenhado em estabelecer
listas de propriedades abstractas do conhecimento humano. A presente obra não se
deve ler como se descrevesse alguma região distante do globo, que o leitor nunca
visitou, ou como se relatasse alguma experiência estranha e mística, que o leitor
nunca teve. É uma explanação do conhecimento. Embora eu não possa relembrar a
cada leitor as suas experiências pessoais, pode ele fazê-lo por si mesmo e, desse
modo, arrancar as minhas frases gerais do esbatido mundo do pensamento para as
lançar no fluxo pulsante da vida. Mais uma vez, em áreas como a matemática e a
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ciência da natureza, é possível delinear com algum rigor o conteúdo preciso de uma
intelecção precisa; mas o fito de tal delineamento não é fornecer ao leitor uma
corrente de palavras que ele possa repetir a outros, ou um conjunto de termos e
relações a partir dos quais possa depois extrair inferências e estabelecer conclusões.
Pelo contrário, o importante aqui, como em qualquer parte, é a apropriação; o
importante é descobrir, identificar, tornar-se familiar com as actividades da
inteligência pessoal; o importante é tornar-se capaz de discriminar, com facilidade e a
partir da convicção pessoal, entre as suas actividades puramente intelectuais e a
multiplicidade de outras preocupações ‘existenciais’ que invadem, se misturam e se
combinam com as operações do intelecto, tornando-o ambivalente a ele e ambíguos
aos seus assertos.
Neste passo, porém, muitos dos leitores potenciais se hão-de queixar. As
ilustrações oferecidas nos primeiros cinco capítulos não se inscrevem na órbita dos
seus interesses. Inteligência e razoabilidade são marcas comuns a todos os espécimes
do homo sapiens. Mas a minha concentração inicial na matemática e na ciência da
natureza parece restringir indevidamente o efectivo alcance do convite que faço a uma
apropriação da autoconsciência racional de cada um.
Talvez uma explicação dos motivos que guiaram a minha decisão nesta matéria
sirva não só para explicar o meu procedimento, mas também para habilitar cada leitor
a apreciar por si próprio em que medida os capítulos iniciais se devem entender, para
que ele possa beneficiar do livro como um todo. Em primeiro lugar, é essencial que a
noção de intelecção, de acumulação de intelecções, de pontos de vista superiores, do
seu significado heurístico e das suas implicações, não só seja apreendida de forma
clara e distinta, mas também, e tanto quanto possível, identificada na experiência
intelectual pessoal. A natureza precisa de tal identificação será clarificada no capítulo
sobre a Auto-afirmação, porque, parece evidente, é fácil e vulgar conceber a
introspecção e a experiência intelectual de um modo tal que, quando submetida a
escrutínio, se apresenta como insignificante. Mais ainda, para que a elucidação do
nosso conhecimento dos níveis de consciência seja inteligível, deverá ser precedida
por uma apreensão, precisa e firme, de tipos sucessivos de actividade que servem para
assinalar e definir os níveis sucessivos de consciência. Por sua vez, para que a
apreensão dessas actividades seja clara e distinta, há então que preferir os campos de
empreendimento intelectual em que o maior cuidado se dedica à exactidão e, de facto,
a maior exactidão se obtém. Por esta razão, senti-me obrigado a iniciar a minha
exposição da intelecção e da sua expansão com exemplos matemáticos e científicos e,
embora admita que, no essencial, as mesmas actividades se podem ilustrar a partir do
uso ordinário da inteligência, apelidado de senso comum, devo também reconhecer
que seria impossível ao senso comum apreender e dizer o que, justamente, o senso
comum pode ilustrar.
Mas considerações ulteriores não são menos eficazes. Pois o presente
empreendimento visa decifrar uma ambiguidade e eliminar uma ambivalência. Santo
Agostinho de Hipona conta que levou anos a descobrir que o nome real pode possuir
uma conotação diferente do nome corpo. Ou, de forma mais chegada e familiar, pode
afirmar-se que a ciência moderna demorou quatro séculos a descobrir que os objectos
da sua inquirição não necessitavam de ser entidades imagináveis que se moviam
através de processos imagináveis num espaço-tempo imaginável. O facto de Platão
tentar comunicar através dos seus diálogos, o facto de Agostinho ter, afinal, aprendido
de escritores a quem, de forma genérica, se refere como platónicos, perdeu o seu
antigo sabor e a sua aparente irrelevância para a mente moderna. Mesmo antes de
Einstein e de Heisenberg, era assaz patente que o mundo descrito pelos cientistas era
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estranhamente diferente do mundo representado pelos artistas e habitado pelos


homens de senso comum. Mas coube aos físicos do século XX encarar a possibilidade
de que os objectos da sua ciência só se podiam alcançar cortando o cordão umbilical
que os unia à imaginação maternal do homem.
Como o leitor já terá adivinhado, a relevância da matemática e da física
matemática para a presente indagação não é apenas a transferência da sua clareza e
precisão para a exposição da intelecção, mas também o significado da transição do
antigo mecanicismo para a relatividade e do antigo determinismo para as leis
estatísticas. Em períodos mais antigos, o pensador a braços com o seu pensamento
poderia ser auxiliado pelos diálogos de Platão e, num nível mais recôndito, poderia
apelar para aquilo que E. Gilson denominaria de experiência da história na filosofia
antiga, medieval e moderna. Mas, hoje, tem à sua disposição o rigor e a escala
impressionante da experiência histórica complementar, que começou com a mescla de
princípios científicos e de pressupostos filosóficos em Galileu e terminou com a sua
acentuada segregação nos nossos dias. O que um Platão tentou comunicar através do
esforço de apropriação dos seus diálogos artísticos, o que a inteligência de um
Agostinho só de forma lenta dominou na angústia de uma conversão religiosa, o que
levou um Descartes a um método de dúvida universal e instigou um Kant a
empreender uma Crítica da Razão pura, lançou uma sombra, não menos relevante mas
bem mais cortante e definida, no reino da ciência exacta. Decerto, num esforço
contemporâneo para resolver a dualidade ínsita no conhecimento humano, seria um
disparate ignorar, se não o mais óbvio, pelo menos o elemento mais preciso nos dados
disponíveis sobre o assunto.
Mas há, também, um terceiro propósito, que espero realizar mediante uma
apropriação dos modos do pensamento científico. Este pensamento é metódico, e o
cientista não fixa a sua fé neste ou naquele sistema ou desfecho científico, mas na
validade do próprio método científico. Mas que é, em última análise, a natureza e o
fundamento do método senão uma apreensão reflexiva e uma aplicação especializada
do objecto da nossa inquirição, a saber, da estrutura dinâmica, imanente e
recorrentemente operativa na actividade cognitiva humana? Depreende-se assim que a
ciência empírica, enquanto metódica, não só oferece um indício para a descoberta,
mas também exibe exemplos concretos para o exame do dinamismo mais amplo e
multiforme, que tentamos explorar. Por conseguinte, será a partir das características
estruturais e dinâmicas do método científico que nos acercaremos e tentaremos fundir
na unidade de uma única perspectiva elementos tão díspares como:

(1) a questão de Platão ao perguntar como é que o inquiridor reconhece a verdade


quando chega àquilo que, enquanto investigador, não conhecia,
(2) o significado intelectualista (embora não conceptualista) da abstracção da
forma a partir das condições materiais,
(3) a manifestação psicológica do desejo natural, segundo Tomás de Aquino, de
conhecer Deus na sua essência,
(4) o que Descartes se esforçou por transmitir no seu incompleto tratado, Regulae
ad directionem ingenii,
(5) o que Kant concebeu como síntese a priori, e
(6) o que é apelidado de finalidade do intelecto no amplo trabalho de J. Maréchal
sobre Le point de départ de la métaphysique.

Tenho estado a insistir na gravidade dos motivos que me levaram a iniciar este
ensaio em prol da apropriação de si, com o escrutínio da física matemática. Mas, para
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evitar o exagero, devo apressar-me a acrescentar que o significado do escrutínio é, por


assim dizer, mais psicológico que lógico. Pois o presente trabalho divide-se em duas
partes. Na primeira, a intelecção é estudada como uma actividade, como um
acontecimento que ocorre em diversos padrões de outros eventos relacionados. Na
segunda parte, a intelecção é estudada como conhecimento, como um acontecimento
que, sob determinadas condições, revela um universo do ser. A primeira trata da
questão: Que acontece quando conhecemos? A segunda dirige-se para a questão: Que
se conhece quando tal acontece? Se não houvesse nenhum problema psicológico, a
primeira parte poderia reduzir-se a conjuntos de definições e de clarificações, visto
que, de um ponto de vista lógico, o primeiro juízo que ocorre em toda a obra é o juízo
de auto-afirmação, no capítulo onze. Mas o facto firme é que o problema psicológico
existe, que há no homem dois tipos diferentes de conhecimento, que eles existem sem
diferenciação e numa confusão ambivalente até que sejam explicitamente distinguidos
e as implicações da distinção sejam explicitamente extraídas. O facto firme é que o
problema psicológico pessoal se não pode resolver mediante o vulgar procedimento
de afirmar as proposições que são verdadeiras e de negar as proposições que são
falsas, porque o verdadeiro significado das proposições verdadeiras tende a ser
sempre mal compreendido por uma consciência que ainda não descobriu a sua
necessidade de conhecer o que a Agostinho levou anos, e à ciência moderna levou
séculos, a descobrir.
Falta ainda dizer algo sobre as duas últimas das cinco disjunções pelas quais nos
propusemos escorar o objectivo deste livro. Como se advertiu, não nos preocupamos
com a existência do conhecimento, mas com a sua natureza, não com o que se
conhece mas com a estrutura do conhecer, não com as propriedades abstractas do
processo cognitivo mas com uma apropriação pessoal da estrutura dinâmica e
recorrentemente operativa da actividade cognitiva de cada um. Há que explicar agora
a quarta disjunção, visto que o trabalho da auto-apropriação não pode ocorrer num
único salto. No essencial, é um desenvolvimento do sujeito e no sujeito e, como todo
o desenvolvimento, pode ser sólido e fecundo só se for árduo e lento.
Ora bem, seria absurdo oferecer ajuda a um processo de desenvolvimento e,
contudo, escrever como se o desenvolvimento integral fosse já um facto cumprido.
Um professor de geometria pode estar convencido de que todo o Euclides está contido
na teoria das variedades n-dimensionais de curvatura arbitrária. Mas não conclui que
Euclides se deve omitir do programa elementar e que os seus alunos hão-de começar a
partir do cálculo dos tensores. Pois, embora Euclides seja um caso particular, todavia,
o caso particular é o único que faculta o acesso ao caso geral. E mesmo que as
proposições euclidianas exijam qualificação quando se alcança o contexto mais geral,
ainda assim um bom professor não distrai os seus alunos com qualificações que eles
entendem apenas de forma vaga, quando é ofício seu juntá-los, o melhor que puder,
através da pons asinorum [‘ponte dos burros’].
De igual modo, este livro é escrito, não de cima para baixo, mas debaixo para
cima. Qualquer conjunto coerente de enunciados se pode dividir em definições,
postulados e conclusões. Mas não se segue que, entre as capas de um único livro,
tenha de haver um único conjunto coerente de enunciados. Pois o livro singular pode
ser escrito a partir de um ponto de vista móvel e, então, conterá não um simples
conjunto de enunciados coerentes, mas uma sequência de conjuntos relacionados de
enunciados coerentes. Além disso, como é evidente, um livro projectado para ajudar
um desenvolvimento deve ser escrito a partir de um ponto de vista móvel. Não pode
começar por pressupor que um leitor consegue assimilar de uma só vez o que só se
pode alcançar no termo de um esforço prolongado e árduo. Pelo contrário, deve
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começar por um ponto de vista mínimo e num contexto mínimo; explorará esse
mínimo para, em seguida, levantar uma questão que aumente o ponto de vista e o
contexto; avançará com o ponto de vista e o contexto alargados só enquanto for
necessário levantar questões mais profundas que, de novo, transformam as bases e os
termos de referência da investigação; e, claro, este estratagema pode repetir-se, não só
uma ou duas vezes, mas tantas vezes quantas forem necessárias para alcançar o ponto
de vista universal e o contexto integralmente concreto que abarca todos os aspectos da
realidade.
Contudo, se tão-só este procedimento for apropriado para o objectivo do presente
trabalho, devo realçar, de uma vez por todas, que as suas implicações se não devem
descurar. Se Espinosa escreveu a Ética de acordo com o que no seu tempo se pensava
ser o estilo geométrico, não se inferirá que estou a tentar seguir os seus passos, que
nunca ouvi falar do teorema de Gödel, que não estou a operar a partir de um ponto de
vista móvel, que sucessivamente estabelece contextos só para ir além deles. Se a
inferência não houver de se fazer, as implicações ulteriores de tal inferência não se
devem assumir. As premissas a partir das quais se pode deduzir a minha própria
posição não estão completas na primeira secção do primeiro capítulo, quando uma
breve descrição tenta fixar o significado do nome, intelecção. O contexto é ampliado,
mas não completado, quando um estudo do desenvolvimento matemático torna a
noção de intelecção mais precisa. Existe o contexto mais amplo do mundo
matematizado dos eventos, que surgiu no fim do quinto capítulo, mas tem de ser
incluído no contexto ainda mais amplo do mundo do senso comum, que é descrito nos
capítulos sexto e sétimo. O capítulo oitavo acrescenta coisas que, apesar de
previamente negligenciadas, nunca foram negadas. O nono e décimo capítulos
acrescentam a reflexão e o juízo, que não se excluíram das considerações iniciais,
nem, por outro lado, lhes foi possível entrar de forma sistemática. No décimo primeiro
capítulo, surge o primeiro juízo da auto-afirmação, mas só no décimo segundo
capítulo se assere que esse juízo é conhecimento, e só no décimo terceiro capítulo se
explica em que sentido tal conhecimento se deve dizer objectivo. Seguem-se os quatro
capítulos sobre metafísica para esquadrinhar tudo o que se divisou na unidade de uma
perspectiva mais ampla, apenas para sofrerem um destino similar, primeiro, na
exposição do conhecimento transcendente geral, e, de novo, na abordagem ao
conhecimento transcendente especial.
Decerto, se surgisse alguém para expressar o meu significado de modo mais
sucinto do que eu consegui, deveria lembrar-se de que os enunciados iniciais têm de
ser qualificados e interpretados à luz de enunciados ulteriores.
E não é tudo. Pois já se advertiu que o presente trabalho se ocupa do conhecido
apenas de modo esquemático e incompleto que é necessário para clarificar a natureza
e afirmar a existência de diferentes departamentos do conhecimento. Esta qualificação
extremamente geral deve combinar-se com a qualificação de asserções iniciais por
outras ulteriores e, sugiro eu, a combinação pode efectuar-se de forma sistemática da
seguinte maneira.
O teorema de Gödel estabelece que qualquer conjunto de definições e postulados
matemáticos dão origem a questões ulteriores que não podem ser respondidas com
base nas definições e nos postulados. Considere-se, então, uma série de conjuntos de
definições e postulados, digamos P, Q, R, …, tais que, se P for assumido, surgem
questões que se podem responder apenas pela assunção de Q, se Q for assumido,
surgem questões que se podem responder pela assunção R, e assim sucessivamente.
Então, além dos sucessivos contextos inferiores P, Q, R, … existe também o contexto
mais elevado em que o teorema de Godel se expressa. Além disso, atendendo a que o
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teorema é bastante general, o contexto superior é independente do conteúdo de


quaisquer contextos particulares como P, Q, R, … Por fim, visto que não existe
nenhum contexto inferior último que seja definitivo, visto que R exigirá um contexto
S, e S um contexto T, e T um contexto U, e assim indefinidamente, o contexto
realmente significativo é o contexto superior; todos os contextos inferiores P, Q, R, S,
T, U, … são provisórios; e só alcançam um significado definitivo na medida em que
dão acesso ao contexto mais elevado.
Ora, vamos além do teorema de Gödel, não em direcção a uma maior abstracção,
mas em direcção a uma maior concreção, e não para uma maior concreção do lado do
objecto (que é vasto, difícil, e aberto a adições e revisões ulteriores), mas para uma
maior concreção no lado do sujeito. Além do noema, ou intentio intenta, ou pensée
pensée, ilustrado pelos contextos inferiores P, Q, R, … e pelo contexto superior que é
o teorema de Gödel, há também a noesis, ou intentio intendens, ou pensée pensante,
que é constituída pela própria actividade de investigar e reflectir, compreender e
afirmar, levantar novas questões e alcançar respostas ulteriores. Digamos que esta
actividade noética está envolvida num contexto inferior ao fazer matemática, ao
seguir o método científico ou ao exercer o senso comum. Em seguida, mover-se-á
para um contexto superior, quando examina a matemática, a ciência ou o senso
comum, a fim de apreender a natureza da actividade noética. E se chegar a
compreender e a afirmar o que é a compreensão e a afirmação, então alcançou um
contexto superior, que é logicamente independente do tablado da matemática, da
ciência e do senso comum. Além disso, se for possível demonstrar que o contexto
superior é invariante, então qualquer tentativa para revê-lo só se pode legitimar, se o
hipotético revisor rejeitar a sua própria tentativa, invocando a experiência, a
compreensão e a reflexão de uma forma já prescrita; revelar-se-á então que, embora o
noema, ou a intentio intenta ou a pensée pensée, se possa expressar sempre com
maior rigor e completude, contudo a estrutura imanente e recorrentemente operativa
da noesis, ou da intentio intendens ou da pensée pensante, deve ser sempre uma só e a
mesma.
Por outras palavras, não estamos apenas a escrever a partir de um ponto de vista
móvel, estamos, de igual modo, a escrever acerca de um ponto de vista móvel. Não
são só as asserções iniciais devem ser qualificadas por asserções ulteriores, mas
também a qualificação posterior estabelece que as asserções iniciais tendem a ser
simples andaimes que se podem sujeitar a uma revisão infinda, sem implicar a
necessidade de qualquer revisão da apropriação pessoal da autoconsciência intelectual
e racional própria.
Em quinto lugar, para abordarmos a disjunção final, a ordem em que o ponto de
vista móvel reúne os elementos para uma apropriação da autoconsciência intelectual e
racional própria é regida, não por considerações de prioridade lógica ou metafísica,
mas por considerações de eficácia pedagógica.
Ora bem, esta quinta disjunção seria supérflua, se não conseguisse antecipar que,
entre os leitores potenciais, poderá haver homens já na posse de um esquema lógico
ou metafísico das coisas. Por conseguinte, embora a regra constante da presente obra
seja lidar com problemas na sua generalidade justa e no seu espaço e tempo
adequados, afigura-se necessário abandonar, por um momento, esta regra para arrostar
alguns dos pontos, a cujo respeito os lógicos ou os metafísicos acharão claramente
que, a partir dos seus critérios já estabelecidos, eu me encontrarei no trilho errado.
De um ponto de vista lógico, parece que já se disse o suficiente, mas há dois
pontos que merecem uma atenção especial. No decurso do capítulo XIV ou, pelo
menos, no capítulo XVII, o leitor estará apto a abarcar, numa única visão coerente, a
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totalidade das posições contraditórias no conhecimento, na objectividade e na


realidade. Mas semelhante perspectiva é dialéctica ou meta-lógica. Não pode ser
suscitada pelas artes lógicas da definição, da postulação e da inferência. Pode ser
mediada por um livro, só na medida em que houver uma comunicação de intelecções
que, de uma forma remota, é análoga à evocação de imagens ou à sugestão de
sentimentos. Por isso, em especial nos primeiros dez capítulos, que se debruçam sobre
a génese dos conceitos e dos juízos, dos termos e das proposições, o único veículo
possível para o conteúdo essencial da nossa análise é o modo pré-lógico e, até, pré-
conceptual de comunicação.
Em segundo lugar, o nosso objectivo é a intelecção da intelecção, e este objectivo
alcança-se na medida em que a intelecção visada desponta numa série diferenciada de
intelecções ilustrativas. Mas as intelecções ilustrativas devem ser elementares. Não
podemos reproduzir tratados inteiros, e se pudéssemos e o fizéssemos, anularíamos o
nosso propósito. As nossas ilustrações têm, pois, de ser intelecções simples despidas
do seu contexto de ulteriores intelecções complementares que corrigem, qualificam,
ajustam e apuram. Ora bem, este desnudamento torturará os leitores especialistas. Se
de todo não apreenderem a nossa perspectiva, talvez se convençam até de que a
própria intelecção é tão superficial quanto as nossas ilustrações. Contudo, os
especialistas têm no seu entendimento próprio o remédio para essa tortura, porque
podem sempre trazer à luz as intelecções complementares, questionando-se a si
mesmos porque é que as nossas ilustrações são insatisfatórias. Além disso, se o
fizerem, podem avançar rapidamente para uma intelecção da intelecção; mas se
apenas resmungam e dizem que este conjunto de palavras é falso e que este conjunto é
enganador, arriscam-se a encorajar um equívoco sobre a intelecção e até uma fuga à
compreensão.
Das considerações lógicas virar-se para as considerações metafísicas é arrostar um
círculo inteiramente diverso de leitores possíveis. Entre os Escolásticos
contemporâneos há um acordo amplo sobre problemas metafísicos e, ao mesmo
tempo, uma divergência fortemente contrastada sobre questões epistemológicas. Esta
disparidade pode impingir ao meu trabalho uma aparência de caturrice porque, em vez
de abordar o que é duvidoso a partir do que é seguro, eu começo pelo conhecimento e
chego à metafísica apenas como conclusão.
Contudo, estou longe da certeza de ser esta uma perspectiva correcta. O consenso
alargado dos Escolásticos na metafísica corresponde a um consenso igualmente amplo
na epistemologia, e a divergência das concepções escolásticas na epistemologia
corresponde a uma mole não menos impressionante de questões disputadas na
metafísica. Depreende-se assim que o problema real consiste em progredir desde um
simples acordo alargado na metafísica e na epistemologia para um acordo preciso e
minucioso em ambas; e para esse fim, a nossa tentativa é um meio óbvio para alcançar
uma visão refrescante e mais plena dos factos relevantes.
Para concluir, o nosso objectivo tem em mira:

(1) não o facto do conhecimento, mas uma discriminação entre dois factos do
conhecimento,
(2) não os pormenores do conhecido, mas a estrutura do conhecer,
(3) não o conhecer como um objecto caracterizado por catálogos de propriedades
abstractas, mas a apropriação da autoconsciência intelectual e racional própria,
(4) não um súbito salto para a apropriação, mas um lento e árduo
desenvolvimento, e
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(5) não um desenvolvimento indicado pelo apelo quer à lógica do objectivo ainda
desconhecido quer à pressuposta e ainda inexplicada metafísica ontologicamente
estruturada, mas um desenvolvimento que pode ter início em qualquer consciência
assaz cultivada, que se expande em virtude das tendências dinâmicas desta própria
consciência, e que almeja, através de uma compreensão de toda a compreensão, uma
compreensão fundamental de tudo o que se pode entender.

A última frase retine como um mote publicitário e, de modo assaz feliz, resume o
conteúdo positivo desta obra. Entende perfeitamente o que é entender, e não só
compreenderás as linhas amplas de tudo o que há para entender, mas também ficarás
na posse de uma base sólida, de um padrão invariante, de uma abertura para todos
os ulteriores desenvolvimentos da compreensão.
Pois a apropriação da autoconsciência racional própria, que tão realçada foi nesta
Introdução, não é um fim em si mesma, mas antes um começo. É um início necessário
porque, a não ser que alguém elimine a dualidade no seu conhecer, se duvida que
entender correctamente seja conhecer. Sob a pressão dessa dúvida, ou se afunda no
lodaçal de um conhecer desprovido de compreensão, ou se adere à compreensão, mas
sacrificando o conhecer no altar de um imanentismo, de um idealismo, de um
relativismo. Dos cornos deste dilema só se escapa através da descoberta (e ninguém
ainda a fez, se não tiver uma clara lembrança da sua estranheza inicial) de que há dois
realismos inteiramente distintos, que há um realismo incoerente, semi-animal e semi-
humano, que se situa a meio caminho entre o materialismo e o idealismo, e que há,
por outro lado, um realismo inteligente e razoável, entre o qual e o materialismo, a
posição intermédia é o idealismo.
O início é, pois, não só o autoconhecimento e a auto-apropriação, mas também
um critério do real. Se para se convencer a si mesmo que conhecer é compreender,
alguém assere que saber matemática é compreender, que saber ciência é compreender,
e saber senso comum é compreender, acaba-se não só numa exposição
circunstanciada da compreensão, mas também num plano do que há para se conhecer.
As várias ciências perdem o seu isolamento recíproco; o hiato entre ciência e senso
comum é colmatado; a estrutura do universo proporcionado ao intelecto humano é
revelada; e como esta estrutura revelada faculta um objecto à metafísica, então a
autocrítica inicial fornece um método para explicar como surgem as afirmações
metafísicas e antimetafísicas, para seleccionar as que estão correctas e para eliminar
aquelas que visivelmente nascem de uma penúria de autoconhecimento preciso.
Ademais, tal como a metafísica deriva da estrutura conhecida do conhecer pessoal,
também uma ética provém do conhecimento da estrutura composta do nosso conhecer
e fazer; e tal como a metafísica, também a ética prolonga a autocrítica inicial para
uma explanação da origem de todas as posições éticas e para um critério de avaliação
de cada uma delas. Isto não é tudo. Persistem ainda questões ulteriores prementes.
Poderiam ser ignoradas, se o conhecer não fosse compreensão, ou se a compreensão
fosse compatível com o obscurantismo que, de forma arbitrária, deixa as questões de
lado. Mas o conhecer é compreensão, e a compreensão é incompatível com a
obscuridade que, de forma arbitrária, põe de lado as questões. Há que arrostar o
problema do conhecimento transcendente. Pode o homem conhecer mais do que a
inteligibilidade imanente no mundo da experiência possível? Se sim, como poderá
concebê-lo? Se pode concebê-lo, como poderá afirmá-lo? Se pode afirmá-lo, como
poderá reconciliar essa afirmação com o mal que tortura tantos corpos humanos,
entenebrece tantas mentes humanas, endurece tantos corações? Tais são as questões
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dos dois últimos capítulos, mas comentários ulteriores sobre as respostas apresentadas
serão mais inteligíveis num Epílogo do que numa Introdução.
Como, em breve, o leitor irá descobrir, este não é um trabalho erudito. Antes de
toda a escrita da história, antes de toda a interpretação de outras mentes, existe o auto-
exame do historiador, o auto-conhecimento do intérprete. Esta tarefa prioritária é a
minha preocupação. É um interesse que tem as suas origens e o seu enquadramento,
as suas dependências e filiações; talvez valesse a pena referi-los; mas valeria a pena
referi-los, só em atenção à preocupação antecedente; e só seriam correctamente
interpretados, se a preocupação prévia fosse bem sucedida em realizar a tarefa
prioritária.
Assim sendo, as minhas referências são escassas e desnecessárias. Na análise da
ciência empírica, achei útil seleccionar um só livro em que o leitor pudesse encontrar
uma exposição dos tópicos que emergiram; por esta razão, e sem qualquer intenção de
sugerir uma única autoridade, refiro-me habitualmente à obra de Lindsay e Margenau,
com frequência reeditada sob o título Foundations of Physics. Disseminados ao longo
da obra, surgirão asserções arrojadas sobre as concepções de vários pensadores.
Poderei expressar a esperança de que elas não causem muita celeuma? Como a longa
discussão sobre a verdade da interpretação no capítulo XVII revelará, dificilmente
aspiram a ser veredictos pronunciados pelo tribunal da história, cujos processos
funcionam com muito mais delongas do que o pior dos tribunais. O seu significado
primário é apenas o de uma forma abreviada de discurso que terá boas possibilidades
de comunicar de forma rápida o que, de outro modo, dificilmente seria dito. Talvez a
esse significado primário se pudesse acrescentar a sugestão de que, na medida em que
os princípios desta obra forem aceites, o significado por nós realçado poderá
providenciar um ponto de partida para investigações posteriores.
Na introdução ao seu Tratado da Natureza Humana, David Hume escreveu que
não se conquista um território, ocupando um posto aqui e uma cidade ou vila ali, mas,
ao invés, avançando directamente para a capital e assaltando a sua cidadela. Contudo,
a estratégia correcta é uma coisa, a sua execução bem sucedida é outra; mesmo após a
campanha mais bem sucedida, persiste a tarefa demorada de limpeza, de organização
e de consolidação. Se eu for assaz destemido para acreditar que abordei um conjunto
de ideias de importância fundamental, não posso deixar de reconhecer que não possuo
os recursos para oferecer uma exibição irrepreensível das suas implicações na ampla
variedade dos campos em que elas são relevantes. Posso apenas oferecer o contributo
de um só homem e, em seguida, esperar que outros, sensíveis aos mesmos problemas,
reconheçam que os meus esforços abreviam o seu próprio trabalho e que as minhas
conclusões fornecem uma base para ulteriores desenvolvimentos.

[1] [Lonergan pode estar-se a referir às questões levantadas em Meno, 80e-86c.]


[2] [Tomás de Aquino, Summa theologiae, 1-2, q.3, a.8.]
[3] [Joseph Marechal, Le point de départ de la métaphysique, 5 vols. (Paris:
Desclée de Brouwer, 1944-49).]
[4] [Robert Bruce Lindsay e Henry Margenau, Fundações da Física (Woodbridge,
CT: Ox Bow Press, 1981, reimpresso em 1936 [John Wiley e filhos] e 1957
[Publicações Dover] edições).]

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