Por sugestão de leitoras «imperialistas», hoje, a matéria dos pronomes de
tratamento versará sobre a questão da «Dona». Vamos a dois excertos com mais de 400 anos de diferença. Em 1597, D. Filipe II mandou publicar a «Lei das Cortesias» por causa das grandes «dezordens, e abuzos, que se tem introduzido no modo de falar, e escrever. E que vão continuamente em crescimento, e tem chegado a muito excesso, de que tem resultado muitos inconvenientes». Assim, a certa altura, na referida provisão: «Que aos filhos, e filhas legítimos dos ditos Infantes se ponha no alto da Carta, Senhor, e no sobrescrito, Ao Senhor D. N. ou a Senhora D. N. e se lhe escreva, e fale por Excelencia. Que a nenhũa outra pessoa por grande estado, officio, ou dignidade que tenha, se fale por Excelencia, de palavra, nem por escripto, senão aquellas pessoas, a quem os Senhores Reys meus antecessores, e eu tivermos feito merce que se chamem, e falem por Excelencia, como eles, e eu temos feito ao Duque de Bragança.» Em 2008, a escritora Alice Vieira escreveu um texto, publicado no Jornal de Notícias (28-09-2008): «Cada país (cada língua, cada cultura) tem a sua maneira específica de se dirigir às pessoas. Mal passamos Vilar Formoso, logo toda a gente se trata por tu, que os espanhóis não são de etiquetas nem de salamaleques. Mas nós não somos espanhóis. Também não somos mexicanos, que se tratam por "Licenciado" Fulano. Nem alinhamos com os brasileiros, para quem toda a gente é "Doutor", seguido do nome próprio: Doutor Pedro, Doutor António, Doutor Wanderlei, etc.. Por cá, Doutor é seguido de apelido, e as mulheres, depois de passarem por aqueles brevíssimos segundos em que são tratadas por "Menina", passam de imediato, sejam casadas, solteiras, viúvas ou amigadas, sejam velhas ou novas, gordas ou magras, feias ou bonitas, ricas ou pobres, à categoria de "Senhora Dona".» Um pouco mais à frente, com a adrenalina mais alta: «Quando recebo daqueles telefonemas que me querem impingir tudo o que se inventou à face da terra […], sou logo tratada por "Senhora Alice." Respondo sempre: "trate-me por tu, se quiser; ou só pelo meu nome, se lhe apetecer; mas nunca por Senhora Alice". […] Eu sei que isto não é uma coisa importante, mas que é que querem, irrita-me quando oiço este tratamento dado às mulheres. Tal como me irrita quando vejo/oiço um jornalista tratar por «Você» alguém com o dobro da idade dele. É uma questão de delicadeza. De respeito. E de saber falar português. Três coisas, admito, completamente fora de moda.» Dona vem do «lat[im] domĭna,ae, "proprietária, mulher, senhora, esposa", feminino de domĭnus,i, "proprietário, possuidor, senhor de". Daqui a «dona de casa», mulher que «dirige e/ou administra o lar». Na lírica medieval, a mulher digna de ser cantada pelo trovador era a mulher casada, por causa daquela condição: a «coita d’amor» só era possível e digna por uma mulher casada. Acontece que «dona de casa» está dicionarizada como «mulher sem profissão remunerada que trata da administração, manutenção e arranjo da sua casa», ainda o equivalente a «doméstica». Bem, quando se trata de descer o nível do discurso, até a fórmula de tratamento «Excelência» se torna irónica ao ser proferida em determinado Círculo de crispação ideológica. Também me arrepia a espinha ouvir: «Dona …» (tratamento dirigido a uma professora no seu contexto de trabalho. Mau, ainda, um encarregado de educação se dirigir ao/à diretor/a de turma por «Você». Termino com Eça de Queirós (Os Maias, cap. VI): «Vossa Excelência, já que as etiquetas sociais querem que eu lhe dê excelência, mal sabe a quem apertou agora a mão […] – E deixemo-nos já de excelências!, que eu vi-te nascer, meu rapaz!, trouxe-te muito ao colo!, sujaste-me muita calça! Cos diabos, dá cá outro abraço!» Será o «inconseguimento frustracional do [nosso] soft power sagrado?» Para tornar este espaço mais profícuo aos leitores deste DN, fica o e-mail para onde pode ser enviada qualquer questão sobre o nossa Língua, escrita ou falada: onossoimperio@sapo.pt João Luís Freire