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C R Ô N I C A

Daslu X Daspu
Tenho dado boas risadas com episódios re- res. Sem divisórias nítidas, uma loja se fun-
centes do avançado capitalismo tupiniquim. de à outra: 123 grifes estrangeiras e nacio-
Só mesmo com humor e deboche podem-se nais – só sapato, por exemplo, são 3.500 pa-
reunir os distintos Brasis. A distinção, no res em exposição, fora o estoque, a preço
caso, ancora-se em surrada competição en- médio de 6 mil reais –, nove joalherias,
tre São Paulo, atual centro do poder econô- revendedoras de carros, lanchas, vinhos,
mico e político do país, e o Rio de Janeiro, spa, salão de festas, cabeleireiro, restau-
atual periferia econômica e política do país. rantes, bares, banheiros e cafés às cente-
Suponho que, como eu, o Brasil tem se di- nas. As dasluzetes – entre elas a neta de um
vertido com a patética encrenca. senador e a filha do governador de São Pau-
Símbolo da opulência paulistana, o lo – recebem as clientes com beijinhos, tra-
casarão neoclássico da Daslu, erguido di- tam como amigas do peito e as cobrem de
ante de uma favela, custou 120 milhões de mimos para que consumam o máximo. Gasto
reais em obras e decoração – não há similar médio mensal por cliente: 30 a 40 mil reais.
no mundo. O faraônico templo do consumo Já no Rio, a Davida – sugestivo nome
– 20 mil metros quadrados em cinco anda- da ONG que defende os direitos das prosti-
res – é a maior loja de artigos de luxo do tutas – comprou duas máquinas de costura
Brasil. Sem letreiros; duas araras no bra- e convocou garotas de programa para de-
são dão o irônico exotique tropical. Veda- senhar os modelitos. Nasceu a Daspu –
do o acesso a pé, exibe-se a carteirinha na não atribuiria ao acaso a analogia com o
garagem subterrânea ou no heliporto: 30 templo paulistano –, grife criada por en-
guides poliglotas conduzem a cliente em tendidas no ramo e, como o nome sugere,
carrinhos de golfe à Hollywood das mulhe- destinada às profissionais desse ramo, com

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colorida coleção prêt-à-porter, adequada ção não tem causas sociais. Poucas estão na Alcione Araújo
às necessidades de ocultar-e-mostrar e às atividade por falta de opção. A maioria se alcionaraujo@uol.com.br
urgências de vestir-e-despir das usuárias. rende ao fascínio da aventura pelo prazer
E, sobretudo, com preços à altura do câm- inesperado com o parceiro imprevisível. Ela
bio carioca – o vestido mais caro na casa própria ex-prostituta, costumava retornar à
dos 80 reais. Você pode conferir no site Vila Mimosa nos fins de semana só para se
<www.daspu.com.br>. divertir, com direito a câmbio e pechincha.
Mal souberam da audácia das meni- Providencial coincidência: numa ope-
nas do Rio, as dondocas paulistas foram ração chamada Narciso – á-propos, non? –
tomadas de fúria brutal. Consideraram o a Daslu é invadida por 250 federais, audito-
trocadilho – não diria que se trata propria- res da Receita, agentes do Ministério Públi-
mente de um trocadilho, mas não dá para co e pelo procurador da República. Direto-
discutir agora – “um deboche que visa ‘de- res são presos, a Daslu é indiciada por
negrir’ a imagem da Daslu, usufruindo do sonegação fiscal, contrabando, falsificação
renome”. A Daslu decide acionar a Davida de documentos e formação de quadrilha. Foi
por causa da Daspu. A mulherada enlou- o que bastou para gente da Daspu tripudiar:
queceu. Então, as respeitáveis esposas de “Melhor ser pu..., digo Daspu, do que deso-
xeiques, faraós, sultões, césares e mulás nesta e trambiqueira. Vamos mudar de nome
atacam as casadas com a humanidade? É antes que a Daslu queime a nossa imagem”.
cenário para guerra civil. Sobre o novo nome, disse: “Estamos pen-
Mas a Daspu tem como trunfo sua sando em Putique. Tudo a ver, não acha?”.
própria criadora, Gabriela Leite, socióloga Diante do Teatro João Caetano, em
pela USP – pedigree Daslusp – e diretora da plena Praça Tiradentes, o par raper-camelô
Davida. Pesquisadora com trânsito interna- canta: “As ‘mocréia’ da Daslu, ‘deslumbra-
cional, posa ao lado de Kofi Annan em semi- da, mercenária’ / Com muamba disfarçada,
nário sobre Aids na ONU. Conhecemo-nos rapa a grana das ‘otária’”. E a outra: “As
em debates e mesas-redondas, quando ela mina da Daspu, preta-loura como quer /
presidia o Sindicato das Prostitutas, que fun- Modelo de programa, rapa a grana dos
dou. Devo à sua autoridade na área uma re- ‘mané’”. Só com humor e deboche pode-se
velação que me deixou pasmo: a prostitui- unir os Brasis.

ABR / JUN 2006 59

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