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07/10/2015 Revista Cult Perverso e delicado ­ Revista Cult

  

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Perverso e delicado
TAGS: Literatura

Poucos intérpretes chegaram tão perto do marquês de Sade quanto Roland Barthes.
EDIÇÃO  205

Há sempre algo de perverso nas leituras de Roland Barthes. Há sempre algo de desviante nas
interpretações que ele oferece ao leitor. Tome­se, por exemplo, o livro Sade, Fourier, Loyola ao
abordar o libertino, sua atenção recai, não na violência do desregramento erótico como é
corrente, mas na volúpia da linguagem; no utopista, ao invés de reiterar a imagem
contestatória do revolucionário, ele sublinha a “gulodice da palavra”; no jesuíta, não é o
místico abandonado à interlocução divina que o atrai, mas o sujeito “arrebatado pelo jogo da
escrita”. Trata­se, portanto, de uma crítica que evita os sentidos genéricos e consagrados, para
explorar os pormenores, as miudezas, as filigranas do texto.
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Focado nas particularidades, o olhar de Barthes para a literatura – essa “mestra de nuances”,
segundo se lê em O neutro – guarda forte afinidade com seu modo de ver a fotografia. Ao
studium, que concentra mensagem histórica da imagem segundo os códigos culturais, impõe­
se o punctum, o detalhe significativo que se apodera da sensibilidade do observador e produz a
elaboração mental da foto. Como se saltasse da cena, o ponto destacado pelo olhar incita a
uma contemplação de caráter íntimo, muitas vezes tocando em aspectos essenciais da vida,
como o amor e a morte.

De fato, essa chave interpretativa pode perfeitamente valer para a atividade de leitura, já que
ela também aciona formas de conhecimento investidas pelo afeto. Assim, se a melhor foto é
aquela que, aguçando nossa consciência afetiva, nos convida a fechar os olhos e divagar, como
propõe o autor em A câmara clara, o melhor texto é igualmente aquele que nos conduz às
paisagens interiores. Não é por outra razão que Barthes está sempre atento às repercussões da
escrita na existência do leitor, em especial quando elas se transformam em fonte de prazer. E
isso acontece, diz ele, precisamente “quando o texto ‘literário’ (o livro) transmigra para dentro
de nossa vida, quando esta escritura (a escritura do Outro) chega a escrever fragmentos de
nossa própria cotidianidade, enfim, quando se produz uma co­existência”.

Esboça­se aí uma convivência íntima entre escritor e leitor. Melhor dizendo, uma amizade que,
sendo tão silenciosa quanto intensa, supõe a descoberta de um campo particular de afinidades
eletivas que se sustenta, sobretudo, no prazer da leitura. Por isso, completa o crítico em Sade,
Fourier, Loyola, o ato de ler pode ser atravessado por uma espécie de ordem fantasmática,
advinda dos detalhes, dos gostos e das inflexões de cada autor. Trata­se, para o leitor, de
encontrar na escrita um sujeito oculto que se manifesta como “um simples plural de encantos”,
como “o luar de alguns pormenores tênues”, ou ainda como “um canto descontínuo de
amabilidade”. Descobre­se, assim, que o escritor é “um sujeito para se amar, mas tal sujeito é
disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte”.

 Barthes, leitor de Sade

Com um tal ponto de partida, não estranha que o autor de O prazer do texto ofereça novas e
inesperadas chaves de leitura ao abordar uma figura tão susceptível aos estereótipos como o
marquês de Sade. Cada ponto – não deveríamos dizer punctum? – que lhe chama a atenção
no escritor setecentista parece estar em franco desacordo com o “sadismo” muitas vezes
reiterado como seu traço distintivo. Seja a maneira provençal de que se vale o libertino ao
empregar a expressão milli (senhorita) quando nomeia as jovens destinatárias de sua
correspondência, ou então o registro minucioso de suas preferências gastronômicas nas cartas
de prisão; sejam as descrições dos figurinos ostentados nos rituais devassos da Sociedade dos
Amigos do Crime, ou ainda o detalhamento rigoroso da mobília do deboche no castelo de
Silling – o que Barthes pretende revelar do criador de Justine é, como ele mesmo definiu, sua
“felicidade de escritura”.

A visada do crítico recai, portanto, na tessitura das palavras. Valendo­se desse desvio, ele

http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/perverso­e­delicado/ 1/4
07/10/2015 Revista Cult Perverso e delicado ­ Revista Cult
liberta Sade de suas cauções tradicionais – o mal, a violência, o egoísmo –, para então realçar
o “princípio de delicadeza” que preside toda a linguagem do deboche, cujo fundamento
repousa precisamente nos gostos, nos caprichos, nas fantasias. A delicadeza sadiana, afirma
Barthes, não é um produto de classe, um atributo de civilização, um estilo de cultura: ao
contrário, ela é uma operação verbal que surge invariavelmente para contrariar as expectativas
e, por isso mesmo, constitui “uma língua absolutamente nova, fadada a subverter (não
inverter, mas antes fragmentar, pluralizar, pulverizar) o sentido mesmo do gozo”. A delicadeza
sadiana, conclui o autor em O neutro, é pura perversão.

Ora, como não perceber aí traços daquela co­existência que, reunindo autor e leitor num
espaço fantasmático, faz com que a escrita de um descreva o outro? Como então deixar de
associar a admiração barthesiana pelo marquês à sua reiterada afirmação da singularidade do
desejo? Como, enfim, não reconhecer no elogio à inclinação perversa dos princípios libertinos
– inclusive a delicadeza – a utopia de burlar o paradigma a todo custo, moto perpetuo de
Barthes? Tal como num jogo de espelhos, o ensaísta e o escritor se repercutem mutuamente
nesses textos, deixando a descoberto um projeto singular que, sendo pessoal e crítico a um só
tempo, visa a identificar a “verdade do afeto”.  
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Por certo, um projeto ousado como esse comporta riscos. Nem sempre as afirmações de
Barthes sobre Sade são convincentes, sobretudo se confrontadas com as leituras de outros Tweets Seguir
intérpretes vigorosos, como Annie Le Brun, Marcel Hénaff ou Michel Delon, que tendem a
privilegiar o pensador sobre o literato. Convém lembrar, nesse sentido, que o próprio marquês Revista Cult 18h
insistiu, em diversas passagens de sua extensa obra, no diferencial de seu “modo de pensar” – @revistacult
determinado por um trabalho conjunto e intensivo do corpo e do espírito –, o que por certo
Renan Quinalha: "A reconstrução da
supõe uma dimensão mais existencial que literária. governabilidade de Dilma Rousseff cobrou um
preço alto da presidenta".
 Essa vertente interpretativa, justamente por privilegiar a experiência instituída pelo revistacult.uol.com.br/home/2015/10/a…
pensamento, pode levar a caminhos bastante distintos daqueles apresentados por Barthes. Por Mostrar Resumo
exemplo, ao defender a idéia de que a viagem dos personagens sadianos nada ensina, e, ainda
em Sade, Fourier, Loyola, sustentar que ao libertino não interessa educar este ou aquele Revista Cult 5 out
personagem, mas somente o leitor, suas conclusões talvez sejam apressadas. Basta lembrarmos @revistacult
do intenso processo de educação para o crime por que passa a menina Eugénie, em La A filósofa @marciatiburi escreve sobre
philosophie dans le boudoir, para discordarmos. O que não dizer, então, do monumental Les “Selvática”, o terceiro disco de @karinabuhr:
120 journées de Sodome, a que o próprio autor alude como “escola de libertinagem” onde, revistacult.uol.com.br/home/2015/10/t…
além de se rememorar todos os requintes do vício, também se formam novos adeptos do pic.twitter.com/mOHXM5wDOa
deboche, como é o caso da personagem Julie?

Contudo, discordar de Barthes exige certo cuidado, já que seu texto não parece vir com o
objetivo de provocar polêmicas, e isso faz com que confrontos dessa ordem percam a razão de
ser. A rigor, ele não é um autor provocativo, mas sim desejoso de estabelecer com o interlocutor
uma via sensível de comunicação, como se acreditasse que as diferenças de interpretação
podem coexistir sem engendrar conflitos. Assim concebida, cada nova leitura surge apenas
para acrescentar algo ao texto de referência, sem ter que destruir as anteriores. E não é isso
que podemos depreender de quem sonha, na Aula, com “um luxo que toda sociedade deveria Expandir
proporcionar a seus cidadãos: tantas linguagens quantos desejos houver”?
Revista Cult 2 out
Nada mais delicado, convenhamos. Nada mais perverso. Nada mais sadiano. Por isso mesmo, @revistacult
para além das divergências de leitura, talvez se possa afirmar que poucos intérpretes chegaram Leia crítica de Zabobrim, O Rei Vagabundo,
tão perto do marquês de Sade quanto Roland Barthes. espetáculo do grupo Barracão Teatro que
encerra temporada em SP em 4/10.
Eliane Robert Moraes revistacult.uol.com.br/home/2015/10/o…
é crítica literária e professora titular de Estética e Literatura na Puc­SP e no Centro Mostrar Resumo
Universitário Senac­SP. Publicou, dentre outros, Sade – A felicidade libertina (Imago, 1994) e Tweetar para @revistacult
O corpo impossível (Iluminuras/Fapesp, 2002).

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