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Notas de Pesquisa

A discussão política como fontes de informação, a legislação


referente ao tema, documentos do governo
sobre aborto no – Executivo e Legislativo – e da sociedade
civil e materiais da mídia escrita, além da
Brasil: uma síntese literatura especializada na questão.
Apesar da delimitação desse marco
histórico para a preparação do presente
Maria Isabel Baltar da Rocha* texto, é fundamental registrar que as normas
legais que são referências para o debate
no país foram formuladas nos anos 40,
durante o período ditatorial do Estado Novo.
Este trabalho origina-se de uma pes- A divulgação e a prática do aborto eram
quisa mais abrangente que vem sendo punidas por diferentes instrumentos legais
desenvolvida junto ao Núcleo de Estudos – sendo o principal deles o Código Penal,
de População da Universidade Estadual de que ainda hoje considera o aborto um crime
Campinas, com apoio do CNPq. O presente (ROCHA e ANDALAFT NETO, 2003).
texto se detém na questão do aborto no Nesse código, no capítulo intitulado
Brasil, procurando analisar importantes “Dos Crimes contra a Vida”, estão previstos
aspectos das discussões e decisões como crime (e definidas penas) o aborto
políticas nas esferas da sociedade e do provocado pela gestante ou com seu con-
Estado; em relação a este último com sentimento (art.124) e o aborto provocado
ênfase no Poder Executivo e no Parlamento. por terceiros – sem consentimento da
A idéia orientadora do estudo é a de gestante (art.125) ou com seu consen-
que a redemocratização do país, em mea- timento (art.126). Está ainda previsto o
dos dos anos 80, teve peso fundamental aumento das penas nas situações de
para tornar a questão do aborto mais visível, abortamento induzido por terceiros quando,
criando condições para ampliação do deste ato, resultar lesão corporal de
debate e elaboração de novas normas e natureza grave ou morte da gestante
políticas públicas, bem como novas (art.127). Por fim, um único dispositivo
decisões no âmbito do Judiciário. No (art.128) dispõe sobre a não punição da
contexto do processo de democratização e prática do abortamento quando provocado
do seu desenvolvimento, houve um forta- por médico. Nesse caso, nas situações do
lecimento da sociedade civil, aumentando denominado aborto necessário – se não há
sua mobilização em busca de direitos de outro meio de salvar a vida da gestante – e
cidadania. Em relação à questão do aborto, do aborto de gravidez resultante de estupro.
acentuou-se a atuação do movimento Ressalte-se que, apesar do teor dessa
feminista no sentido de enfrentá-la politi- lei, o Poder Judiciário vem autorizando, em
camente no país – movimento social este várias ocasiões, desde os anos 90, o aborto
que é o principal ator comprometido com nas situações de anomalia fetal grave,
mudanças de mentalidade e institucionais incompatível com a vida extra-uterina
a respeito do assunto. (FRIGÉRIO et al., 2001; DINIZ e RIBEIRO,
O estudo está periodizado em dois 2003). Existe também, em fase de julga-
momentos da história política recente do mento, uma ação para que o Supremo
Brasil: na etapa do Estado autoritário, de Tribunal Federal (STF) considere que não
1964 a 1985, subdividida em duas fases; e constitui crime de aborto a antecipação do
na do Estado democrático, a partir de 1985, parto realizado por médicos no caso de
também com uma subdivisão. Utilizam-se, gestantes de fetos anencéfalos.

*
Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População – Nepo/Unicamp. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação
em Demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH/Unicamp.

R. bras. Est. Pop., São Paulo, v. 23, n. 2, p. 369-374, jul./dez. 2006


Rocha, M.I.B. A discussão política sobre o aborto no Brasil

Entre o início da ditadura e o começo da era restrita, não havendo segmentos da


transição democrática – 1964 a 1985 sociedade civil dedicados direta e/ou publi-
camente a esse tema. As manifestações de
Na etapa do governo autoritário, a integrantes da Igreja Católica em relação
discussão sobre a questão do aborto é feita ao aborto eram mais defensivas do que
a partir do recorte de dois momentos da propositivas, se tivermos como referência a
história política do país. O primeiro abrange sua influência no Congresso Nacional. As
o amplo período de 1964 a 1979, passando entidades privadas de planejamento fami-
pelos anos mais rigorosos do regime até o liar/controle da natalidade não conside-
começo da fase de abertura política. O ravam essa questão como foco central e
segundo, entre 1979 e 1985, corresponde somente indiretamente se referiam ao
ao período em que se ampliou grada- assunto – fazia parte da sua argumentação
tivamente a abertura política, culminando defender a anticoncepção para evitar o
com o fim do governo militar e o começo da “aborto criminoso”. Por outro lado, a segun-
transição democrática. Em cada um desses da onda do movimento feminista, nascente
momentos, a discussão sobre aborto em meados dos anos 70 no Brasil – em um
apresentou características diferentes. contexto de ditadura e tendo como aliados
No primeiro momento analisado – 1964 na luta pela democracia segmentos sociais
a 1979 –, as discussões públicas sobre o com diferentes ideários morais –, não
assunto eram escassas. Na esfera do defendia ainda propostas públicas em
Estado, o Executivo chegou a decretar um relação à questão do aborto, o que ocorreria
novo Código Penal em 1969, que acabou somente a partir de 1980 (BARSTED, 1992).
não entrando em vigor e teve desdobra- No período correspondente à amplia-
mentos até 1978: mantinha a incriminação ção da abertura política – 1979 a 1985 –,
do aborto, com exceção dos dois permissivos não houve nenhuma medida específica na
do código anterior, mas alterava as punições, esfera do Executivo diretamente relacio-
introduzia controles do Estado para o aborto nada ao aborto. É possível perceber, isto
permitido por lei e aumentava a pena para a sim, na formulação do Programa de Assis-
mulher que provocasse o auto-aborto, ou tência Integral à Saúde da Mulher (Paism),
que permitisse que alguém o fizesse, embo- pelo Ministério da Saúde, em 1983, algumas
ra a reduzisse na situação da denominada breves referências acerca da questão,
defesa da honra. Refletia, assim, a ausência encontradas no diagnóstico apresentado
de um debate democrático sobre o tema. sobre a saúde da população feminina no
Quanto à discussão no Legislativo, 13 país, em que se constatava a falta de infor-
projetos de lei foram apresentados, porém mações a respeito do tema, bem como em
a maioria voltava-se para a liberação da seus objetivos programáticos, na forma de
divulgação dos meios anticoncepcionais na “evitar o aborto provocado mediante a pre-
Lei das Contravenções Penais, não venção da gravidez indesejada”. Embora
estando, portanto, no centro do debate na equipe formuladora desse documento
sobre a questão do aborto. Esses projetos houvesse a participação de feministas, que
confirmavam a vedação de anúncio em outras circunstâncias políticas priori-
referente à prática do aborto e atualizavam zariam o assunto, sua elaboração estava
a multa para essa divulgação. Mesmo grandemente marcada pelo debate sobre
assim, quatro projetos dessa época foram planejamento familiar/controle da natali-
pioneiros: um deles em relação à descrimi- dade no país.
nalização do aborto e os outros três acerca Quanto à discussão do Legislativo,
da ampliação das possibilidades da prática nesse período foram apresentadas sete
do abortamento. Dois destes, inclusive, propostas: cinco voltadas diretamente para
chegaram a ser discutidos e rejeitados nas a questão do aborto e duas nas quais o
comissões técnicas. tema aparecia vinculado a projetos de lei
No âmbito da sociedade civil, a dis- sobre anticoncepção, na mesma linha dos
cussão sobre a questão do aborto ainda anteriormente referidos. Nas propostas mais

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diretamente vinculadas à questão do aborto brasileiro e intensificou-se a atuação da


e, especificamente, sobre sua incriminação, sociedade civil. Em relação aos direitos das
havia três projetos de lei: um propondo a mulheres, estes entraram na agenda polí-
descriminalização do aborto e dois a am- tica dos poderes Executivo e Legislativo e
pliação dos permissivos do artigo 128 desse novos direitos foram assegurados na
código – já aparecendo em dois destes, Constituição de 1988. Nesse contexto, o
mesmo que indiretamente, a influência do debate sobre aborto começou a assumir
movimento feminista no debate no Con- uma nova dimensão e, inclusive, a refletir
gresso Nacional. enfrentamentos mais acentuados entre as
No âmbito da sociedade civil, cabe feministas e as entidades religiosas,
ressaltar que a discussão política sobre a sobretudo a hierarquia da Igreja Católica.
questão já era bem menos restrita, com o Com o fim da ditadura militar, em 1985,
movimento feminista autônomo agora as mulheres ampliaram sua luta para ocupar
também em atuação pública. Eventos e espaços políticos na esfera do Executivo e,
publicações são referidos no artigo de nesse cenário, foi criado o Conselho
Barsted, sobretudo no Rio de Janeiro e São Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM).
Paulo. A autora destaca um importante Logo em seu início, esse exerceu um impor-
encontro de cunho nacional organizado no tante papel mobilizador dos movimentos de
Rio por um conjunto de entidades e grupos mulheres, inclusive do movimento femi-
feministas, em 1983, sobre saúde, sexua- nista, em relação à Assembléia Nacional
lidade, contracepção e aborto. A seu ver, foi Constituinte – durante sua preparação, em
um marco no debate público da questão, 1986, e no processo constituinte, em 1987
que congregou mais de 300 mulheres, e 1988. Nesse quadro, destaca-se a Carta
repre-sentando 57 grupos de quase todo o das Mulheres, documento dirigido aos cons-
país. Conforme o documento final desse en- tituintes, contendo princípios e reivindi-
contro, o aborto era considerado um direito cações, entre eles o direito à interrupção
e demandava informações para as mu- da gravidez (questão acordada no processo
lheres e serviços públicos para atendê-lo – constituinte para não ser submetida àquela
já se começava a falar sobre políticas Assembléia). Em tal processo foram tam-
públicas nessa área. bém incorporadas resoluções da 1ª
Conferência Nacional de Saúde e Direitos
Entre o começo da transição da Mulher, chamada pelo Ministério da
democrática e a democracia de hoje – a Saúde e realizada em 1986 (ROCHA, 1993).
partir de 1985 Quanto ao debate no Legislativo, a
discussão sobre a questão do aborto entrou
Nessa etapa, a discussão sobre aborto na Constituinte pelas mãos da Igreja Cató-
também é dividida em dois momentos. O lica, para proibi-lo em todas as circuns-
primeiro abrange um pequeno período, de tâncias e, em grande parte, recebeu apoio
1985 a 1989, que corresponde à importante de parlamentares evangélicos. O tema
fase da denominada transição democrática, gerou um intenso debate em diversos mo-
com o fim da ditadura militar no país. O mentos daquele processo, mas acabou não
segundo refere-se à democratização polí- sendo contemplado na nova Carta – exa-
tica, em que se aperfeiçoam as instituições, tamente devido à sua característica
por meio da Assembléia Nacional Cons- controversa. Ainda em relação ao debate
tituinte, estabelecendo-se o Estado Demo- no Legislativo, agora quanto às suas
crático de Direito. Nessas duas fases, as atividades ordinárias, foram apresentados
discussões e decisões sobre a questão do quatro projetos – dois em 1986 e dois em
aborto refletem diferentes momentos políti- 1988 – que detinham uma visão restritiva
cos e ambas espelham avanços, se compa- em relação ao aborto. Dois deles apontam
radas com a etapa do Estado autoritário. para o início de uma reação conservadora
Na fase de 1985 a 1989, iniciou-se uma à discussão sobre aborto na sociedade e
transformação nas características do Estado mesmo no Congresso, neste caso reagindo

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aos dois projetos de lei mais liberais, re- Na esfera do Executivo, no campo da
feridos na etapa anterior. saúde – agora reestruturado por meio do
No âmbito da sociedade civil, essa fase Sistema Único de Saúde –, é importante
foi fortemente marcada pela preparação da referir-se às decisões sobre a questão do
Constituinte e, sobretudo, pelo seu próprio aborto no âmbito das Conferências Na-
processo. Os dois principais atores políticos cionais de Saúde, do Conselho Nacional
e sociais envolvidos na discussão da ques- de Saúde e da Área Técnica de Saúde da
tão do aborto – o movimento feminista e a Mulher, do Ministério correspondente. Para
Igreja Católica – não somente se prepa- este texto, destaca-se a norma sobre pre-
raram, como também atuaram, direta ou venção e tratamento referentes à violência
indiretamente, em todas as etapas da sexual contra a mulher, dessa área técnica,
Constituinte sobre este e outros assuntos que aplica o artigo 128 do Código Penal –
de suas agendas políticas. As mulheres sobre o abortamento não punível pela lei –,
organizadas tiveram essa atuação articu- ampliando medidas originalmente ado-
lada pelo CNDM e com a participação do tadas por alguns governos municipais,
movimento autônomo, enquanto a Igreja estaduais ou universidades, já nos anos 80.
Católica preparou-se por meio da Confe- A iniciativa federal datada em dois mo-
rência Nacional dos Bispos do Brasil. mentos – o primeiro em 1998 e uma versão
Durante sua 24ª Assembléia Geral, também atualizada e ampliada em 2005 – teve
em 1986, essa entidade apresentou o repercussão na ampliação do número de
documento denominado “Por uma nova or- serviços de saúde que atendem o aborto
dem constitucional”. No item sobre promo- legal. Estudo de Talib e Citeli (2005)
ção e defesa da vida, registra-se que esta localizou 37 hospitais que realizam ou que
deve ser preservada desde o primeiro estão preparados para realizarem esse
instante da concepção, sendo inaceitável o atendimento, em 21 Estados e no Distrito
aborto provocado (ROCHA, 1993). Federal.
Já a partir de 1989, iniciou-se uma O tema também esteve presente na IV
nova fase na configuração do Estado e da Conferência Nacional de Direitos Humanos,
sociedade no Brasil. A Constituição de realizada em 1999, e no plano dela resul-
1988 abriu as portas para um conjunto de tante, em 2002, elaborado pela Secretaria
transformações a serem realizadas a partir de Estado dessa área. Ali se propõe, confor-
da atuação do Executivo, do Legislativo e me Ventura (2004, p.43), “o alargamento
do Judiciário, e a sociedade civil passou a dos permissivos para a prática do aborto
ter importantes instrumentos de controle legal, em conformidade com os compro-
social, ou seja, de controle da socieda- missos assumidos pelo Estado brasileiro, no
de sobre o Estado. A experiência da marco da plataforma de ação de Pequim”.
democracia acabou por trazer algumas Por fim, o tema esteve significativa-
significativas mudanças na feição das mente presente na I Conferência Nacional
discussões e decisões sobre os direitos de Políticas para Mulheres, organizada pela
das mulheres e, nesse quadro, sobre a Secretaria Especial respectiva e pelo CNDM,
questão do aborto – intensificando-se em 2004. O plano dela decorrente incluiu a
amplamente esse debate. Antes de pauta de “Revisar a legislação que trata da
elencar relevantes decisões e medidas interrupção voluntária da gravidez”. Essa
nesse campo, é interessante ressaltar que decisão implicava a criação de uma Comis-
parte da discussão que se desenvolveu são Tripartite, formada por representantes
nesse período, sobretudo a partir de 1993, do Executivo, do Legislativo e da sociedade
teve como importante referência a civil, para discutir, elaborar e encaminhar
participação do Brasil na Conferência uma proposta de revisão dessa legislação
Internacional de População e Desen- ao Congresso Nacional. E assim ocorreu:
volvimento, realizada no Cairo, em 1994, o anteprojeto, apresentado em fins de 2005,
e na Conferência Mundial sobre a Mulher, criava uma lei autorizando o aborto até 12
realizada em Pequim, em 1995. semanas de gestação e ampliando as

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situações, em relação à legislação em vigor, comprometidos com o tema – o movimento


em que o aborto seria permitido. feminista e a Igreja Católica –, sua am-
Quanto ao Legislativo, sua análise pliação com outros atores, o exercício de
nessa fase da redemocratização política novas formas de atuação, a preocupação
mostra a intensificação do debate no com seus respectivos discursos e a
Congresso Nacional, bem como a inter- utilização da mídia como um instrumento
relação da discussão nessa Casa com as político. Houve, sem dúvida, uma grande
esferas do Executivo e do Judiciário e, intensificação do debate.
sobretudo, com segmentos da sociedade A questão do aborto é pauta do movi-
civil. Nesse contexto, aumentou a participa- mento feminista, integrada no seu temário
ção de atores políticos e sociais em busca sobre os direitos das mulheres. Nesse
de mudanças liberalizantes na legislação, sentido, tem sido objeto de atuação no
em grande parte inspirados em uma pers- campo da mudança de mentalidade, da mo-
pectiva feminista, bem como se ampliou a dificação da legislação e da aplicação das
reação contrária, de conservação ou, mes- políticas públicas, além do trabalho com a
mo, de retrocesso em relação à lei, quase imprensa. A questão do aborto é também
sempre fundamentada em valores de pauta da Igreja Católica, como parte de sua
natureza religiosa. agenda voltada para a religião e família.
Imediatamente após a Constituinte, Sua postura na discussão política tem sido
foram apresentados seis projetos de lei, sobretudo reativa, posicionando-se contrá-
sendo a maioria com o objetivo de ampliar ria às iniciativas lideradas pelo movimento
os permissivos legais ou mesmo descri- feminista ou em consonância com este –
minalizar o aborto. Nas duas legislaturas referentes ao aborto como um direito – e
seguintes, situadas nos anos 90, mais 23 utilizando sua abrangente estrutura para
propostas foram apresentadas e sua maior divulgar idéias e exercer pressões. São
parte era, de algum modo, favorável à diferentes visões de mundo, de relações de
permissão da prática do aborto – embora já gênero, de sexualidade e de reprodução,
tivesse começado uma reação a essa mais uma vez observadas no recente epi-
tendência no Congresso. Nas duas outras sódio sobre a proposta de descrimi-
legislaturas posteriores, iniciadas em 1999 nalização e legalização do aborto apresen-
e 2003, respectivamente, foram enviadas tada em 2005. Ambos os atores têm anga-
outras 34 proposições e acentuou-se a riado apoio e constituído parcerias. Algu-
reação conservadora, que, na realidade, já mas dessas parcerias são mais freqüentes:
vinha emergindo na segunda metade do em se tratando do movimento feminista, com
período anterior. É verdade que houve um outros segmentos do movimento de mu-
breve hiato, em relação a essa manifes- lheres e com a Federação Brasileira das
tação, em que foram apresentados projetos Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia;
de lei sobre a questão do aborto por no que se refere à Igreja Católica, com
malformação fetal. Mas aquela tendência outras religiões, sobretudo aquelas de
voltou a se acentuar, inicialmente, como denominação evangélica.
uma reação à discussão do aborto por Antes de concluir esta síntese, é
anomalia do feto e, depois, diante das interessante retornar a questão central do
atividades da Comissão Tripartite e da trabalho: será que a redemocratização do
apresentação do seu anteprojeto à Câmara Brasil teve um peso importante para tornar
– que, aliás, não chegou a ser votado. visível a questão do aborto, criando condi-
Ressalta-se que nenhuma proposta subs- ções para ampliação do debate, elaboração
tantiva em relação à discussão do tema foi de novas normas e políticas públicas, e de
aprovada. novas decisões no âmbito do Judiciário?
Por fim, no âmbito da sociedade civil, De fato, com a redemocratização do
pode-se destacar, nesse amplo período de país, houve mudanças a respeito da ques-
1989 a 2006, o maior envolvimento público tão do aborto, mas mudanças, sobretudo,
dos atores políticos e sociais historicamente na visibilidade do tema, na participação de

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atores políticos e sociais e na ampliação do sociedade civil, mas muitos dos diretos de
debate. Não houve modificações signifi- cidadania ainda não foram conquistados.
cativas na legislação, no entanto conseguiu- Se para melhor qualificar a democracia
se estabelecer normas técnicas e criar tivermos como referência a questão da
serviços que procuram garantir o acesso igualdade – como diria Norberto Bobbio
ao aborto previsto em lei e o atendimento (1987), a democracia substancial –, possi-
das mulheres em situação de abortamento, velmente encontraremos nas desigualda-
no âmbito do Poder Executivo. A tensão no des de gênero e de classes que há no país
Parlamento entre tendências opostas tem, uma das principais chaves das ainda
praticamente, paralisado decisões que restritas mudanças referentes à questão do
envolvam mudanças legais: não se avança aborto. Isto é, a democracia formal foi
na legislação, mas também não se retro- necessária para as mudanças parciais
cede. A via do Judiciário vem sendo trilhada, nesse tema, mas não foi suficiente para
desde os anos 90, e existe uma ação em transformações mais profundas, que
julgamento no STF sobre a interrupção da deverão estar associadas ao conteúdo
gestação nos casos de anencefalia do feto. dessa democracia, no que diz respeito aos
Na realidade, com a redemocratização avanços quanto à questão da igualdade nas
do Brasil, houve um fortalecimento da relações sociais no Brasil.

Referências bibliográficas

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Recebido para publicação em 11/08/2006.


Aceito para publicação em 06/11/2006.

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