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Cosmologia e geomancia: um estudo da

cultura Yorubá-Nágô
K laas A. A. W . W oortm ann

I — I ntrodução

Nosso propósito, n este ensaio 1> é o de e s tu d a r um aspecto p a r ­


tic u la r d a cu ltu ra Y orübá-N ágô — a ad iv in h ação de Ifá — e a lc a n ­
çar, p ela análise de su a e s tru tu ra sim bólica, o significado profundo
desse sistem a e de suas relações com os postulados c e n tra is daquela
cultu ra. P a ra ta n to , terem os em m en te que a adivinhação, como p a r ­
te de um sistem a religioso — de fato , o pró p rio cerne deste últim o
— expressa u m a world construction, no sentido dado a ta l expres­
são p o r B erger (1969). O sistem a de Ifá, m ais do que u m m ero meio
de pred izer acon tecim en to s futuros, consiste n u m modelo p a ra clas­
sificar e o rd e n a r um universo e p a ra d e fin ir a posição do indivíduo
na ordem cosmológica. T ra ta -se , de um lado, de co n stru ir u m a ordem ,
e de outro, de c o n stru ir u m a pessoa, isto é, u m a id en tid ad e indivi­
dual, colocando a pessoa n a ordem cosmológica. Em suas relações
com a religião e, p a rtic u la rm en te, com u m sistem a c e n tra l m itoló­
gico, o sistem a de If á p erm ite que o m undo re al “fa ç a sentido”, to r­
nan d o -o co n ceitu alm en te apreensível, e p erm ite que o indivíduo se
m ova n u m espaço organizado.
O com plexo de m itos Y orübá-N ágô pode ser classificado em v á­
rios co n ju n to s ou séries: m itos de origem , p o stulando u m a origem
com um , u m a u n id a d e básica de todos os Y orübá; m itos de reinos,
legitim an d o e s tru tu ra s políticas; m itos de cidades e d e linhagens
(cf. Lloyd, 1956). P or o u tro lado, existem séries de m itos re fe re n ­
te s a divindades p a rtic u la res — os òrisà —, a ritu a is específicos, a

i O presente trabalho resulta de nosso convívio e de observações junto a


membros de grupos-de-culto Nagô em Salvador, Bahia, entre 1966 e 1970,
precedidas e complementadas pela pesquisa bibliográfica referente aos
Yorübá na atual Nigéria e aos próprios Nagô.

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concepções sobre o indivíduo ou sobre a relação e n tre os hom ens e
os deuses. Neste ensaio focalizarem os p rim o rd ialm en te os m itos de
origem ; n o e n ta n to , desde um enfoque e stru tu ra l, as d iferen tes sé­
ries m itológicas podem ser a p reen d id as como tran sfo rm açõ es com
relação a u m a m a triz básica, evidenciando u m a e s tru tu ra fu n d a ­
m e n ta l comum.
É b a s ta n te evidente que fa la r “dos Y orübá” é tã o difícil qu an to
fa la r “dos b rasileiros”, esquecendo a im ensa diversidade que existe
e n tre o cam p esin ato nordestino, o cam p esin ato teu to -b rasileiro ou
a classe m édia m etro p o litan a, ou e n tre os d iferen tes grupos religio­
sos, dos quais fazem p a rte os Nagô. “Os Y orübá” são, de c e rta fo r­
m a, um a a b stra ç ã o ; o que existe de fa to são o reino e o povo de
Ifé, de Oyó, de Ilesh a, de K etu , etc., todos eles p rodutos p a rtic u lares
de com binações sócio-cu ltu rais ao longo de suas h istórias. P o r outro
lado, os Y orübá estão longe de serem sociedades “fria s”, no sentido
lévi-strau ssian o do term o. Pelo co n trário , possuem um a n ítid a cons­
ciência histó rica, o que n ã o im pede, todavia, que a h istó ria se ja m i­
tificad a, no que, adem ais, n ão se diferen ciam eles de outros povos
tam b ém complexos. As variações e n co n trad as, de cidade a cidade, de
reino a reino, ou do original Y orübá ao derivado Nagô brasileiro, são
em la rg a m ed id a o resu ltad o do jogo e n tre h istó ria e m ito, onde
os m itos são m udados p o r necessidades histó ricas, assum indo fre ­
q ü entem en te um significado político, e onde os eventos históricos
são absorvidos pelo m ito. De fato, como a p o n ta L évi-S trauss, a h is ­
tó ria n ão é m enos m itológica que o próprio m ito (L évi-Strauss, 1962).
R esu lta claro que um estudo d a “religião Y orübá-N agô”, se de
todo possível, seria u m a em presa gigantesca, m uito além dos lim i­
tados propósitos deste ensaio. S eria tam b ém dispersiva. A concen­
tra ç ã o ejn um aspecto específico é m etodologicam ente recom endá­
vel. P o r o u tro lado, ela é possível porque, p o r sob a variabilidade
im posta p ela h istó ria, podem os iso lar certos com ponentes e s tru tu ­
ra is básicos im utáveis, com uns ao universo ideológico de todos os
segm entos Y orübá-N agô.
Mito e ritu a l — a p rá tic a d iv in ató ria co n stitui um procedim en­
to ritu a l — constituem , em nosso p o n to de vista, expressões de um a
m esm a linguagem , sendo o ritu a l o m ito vivido. M ito e ritu a l não
ap enas exprim em a m esm a m ensagem m as tam b ém se legitim am re ­
ciprocam ente e, em assim fazendo, consolidam a m ensagem . M ito e
ritu a l são tran sfo rm açõ es recíprocas e p o r isso é possível p assar-se
de um a o u tro no processo an alítico sem que se saia d a m esm a lin ­
guagem . A relação e n tre m ito e rito assum e im p o rtân c ia no contex­
to deste estudo pelo fato de que o processo divinatório, a in d a que

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g eralm en te conduzido p riv ad am en te, é u m a “cadeia sin ta g m á tic a ”
que “to rn a a p ô r em vigor” o m ito. M anipulando cs símbolos e os
conceitos dos m itos de Criação, u tilizando seus “m item as” to rn ad o s
atos, a ad iv in h ação é u m a m ise-en -scèn e d a C riação e u m a r e a f ir­
m ação dos p rincípios d a ordem cosmológica.
D iferen tes níveis de m en sag en s são com unicados pelo m ito ou
pelo ritu a l. De acordo com as proposições de L évi-S trauss (1967),
L each (1965). G u ia rt (1972) podem os d istin g u ir n a m itologia Y orübá-
-Nagô dois níveis de significados: um significado visível e um signi­
ficado p rofundo (a e s tru tu ra m esm a), co rrespondentes, por assim
dizer, ao enredo e à e s tru tu ra lógica su b jacen te. O prim eiro de ta is
níveis, que c h am aríam o s de histórico-sociológico, a p re ssn ta am pla
gam a de variações, en q u a n to o segundo é re la tiv am en te in v arian te.
P o r isso, unia m esm a e s tru tu ra pode ser u sa d a p a r a com unicar di­
fere n te s m ensagens p o líticas ou sociológicas, do que é exem plo a
substituição de perso n ag en s nos m itos de Criação, de acordo com
projeto s de dom inação política com petitivos. M as as transform ações
e x te rn a s n ão a lte ra m a m ensagem p ro fu n d a, pois a e s tru tu ra lógica
é m a n tid a . Q uando se p assa de um rein o Y orübá a outro m u d a o
p ersonagem c e n tra l d a C riação; quando passam os d a série de m itos
O batalá-O d ü d u w à dos Y crübá-N àgô p a ra a série M aw u-Lisa dos F o n -
-M ina, registram os um co n ju n to de inversões que, no e n ta n to , não
a lte ra m a fó rm u la e s tru tu ra l; e n tre os próprios Y orübá h á versões
onde a relação e n tre os dois C riadores é a de m a rid o -m u lh e r e n ­
q u an to em o u tra s é a de irm ão senior e irm ão junior. Ao nível so­
ciológico, as d u as versões e n fatizam d iferen tes relações sociais (re­
lações e n tre os sexos; p rincípio d a sen io rid ade). Ao nível lógico,
porém exprim e-se a m esm a relação de oposição. M udam os perso­
nagens, in v ertem -se os sinais, m as n ã o se a lte ra a m a triz de signi­
ficados form ais.
A existência de d iferen tes níveis de significado, assim como a
variab ilid ad e e x te rn a , se ja do m ito seja do rito, freq ü en tem en te re ­
fletin d o a d esco n tin u id ad e h istó ric a tra z à to n a o problem a de o que
o m ito e o rito são. São um modelo de idéias, de conceitos lógicos,
de ab strações, a in d a que estas ú ltim a s se ja m expressas a tra v és de
sím bolos “concretos”, ao estilo “bricoleur” do “pen sam en to selvagem ”
(cf. L évi-S trauss, 1962). P o r isso m esm o n ã o existe coisa ta l como
“o m ito ” en q u an to algo que é dado, e m uito m enos um a versão ver-;
d a d e ira do m ito. Ao nível em pírico existem as verbalizações feitas
p e r esse ou aquele co n tad o r de m itos, que ao contá-los sem pre os r e ­
faz. O antropólogo n ã o coleta “o m ito ” m as a p e n as u m a versão, ou
várias versões; ele n ã o observa "o r itu a l”, m as u m a v a ria n te. Se t i ­

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verm os em m e n te que os m itos operam em vários níveis de m e n sa ­
gem (e de consciência) e se ad m itirm o s tam b ém que ta n to as socie­
dades Y orübá q u an to os grupos Nagô são com postos de “unidades
in stáveis”, podem os a d m itir tam bém , seguindo a Leach. (1965) que
o m ito e o r itu a l podem expressar, em suas versões, form as a lte r­
n a tiv a s de organização social, bem com o legitim ações conflituais no
in te rio r de um m odelo organizató rio dom inante; D iferentes ideolo­
gias sócio-políticas podem e s ta r re p re se n ta d a s n a s v á rias versões do
m ito ou do rito , ou n a s variações de um te m a m itológico, e não h á
razão p a ra se c rer que o n a rra d o r seja neu tro . De fato, n a r r a r um
m ito pode m uito bem ser um a to político e n ão devemos nos se n tir
su rpreen d id o s quando en co n tram o s versões a p a re n te m en te c o n tra ­
d itórias. P o r um lado, incoerências n ão significam que ex istam ver­
sões c o rre ta s ou e rra d a s ; p o r outro, a coerência ou a incoerência
se referem a um d eterm in ad o nível de significação. Q ualquer versão
é “c o rre ta ” com relação à e s tru tu ra p ro fu n d a d a série m itológica.
Em d iferen tes m om entos históricos, m u d an ças sociais podem ser ex­
pressas em m itos “novos”, isto é, em re a rra n jo s dos elem entos sim ­
bólicos. T ais reelaborações podem n e g a r a versão an te rio r, ou a
m ensagem n e la c o n tid a a u m certo nível de significação e, n ão
o b stan te, re te r a e s tru tu ra . A e s tru tu ra n e ste caso n ão a p en a s re ­
siste à h istó ria como tam b ém provê u m a m a triz conceituai p a ra
â apreen são de seu flu x o 2.
U m a ta l co n tin u id ad e p ren d e-se ao fa to de que as e stru tu ra s
sim bólicas con stitu em processos de aprendizagem que tra n sm ite m os
axiom as básicos de u m a c u ltu ra , os elem entos c en tra is de seu sis­
tem a de com unicações. D iferen tes versões que podem p a re ce r con­
tra d itó ria s ao observador ex tern o à c u ltu ra, n ão são assim conside­
ra d a s pelos p a rtic ip a n te s d a c u ltu ra . E n tre os Y orübá-N agô existem
v árias versões do m ito d a C riação; a in d a que as “estó rias” sejam
diferentes, a e s tru tu ra lógico-sim bólica p erm anece a m esm a, e en ­
q u an to ela assim p erm an ecer as d iferen tes “estó rias” n ã o serão vis­
ta s como co n tra d itó ria s. Lowie re fe re -se a v á ria s visões Crow re la ­
tivas à constelação d a U rsa M aior; a in d a que elas sejam diferentes,
“n e n h u m a in co n g ru ên cia é se n tid a n a re p re se n ta ção d a U rsa M aior,
co n ta n to que o núm ero sete ap a re ç a, de u m a m a n e ira ou o u tra ”
(Lowie, 1972, p. 34). O m esm o pode ser d ito com relação aos m itos de
C riação Y orübà-N àgô e com relação aos seus m itos refere n tes a Ifá,
no que se refere aos n úm eros q u a tro e dezesseis.

2 Um exemplo de tal processo é dado pela análise de Da Matta (1970)


sobre o mito e o anti-mito entre os Timbira.

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T am bém os vários p ersonagens m itológicos surgem em d iferentes
m itos de fo rm a a p a re n te m e n te c o n tra d itó ria : se O dúduw à é por
vezes re p re se n ta d a como p re ta , o u tra s vezes ela é b ra n ca , a depen­
d er do contexto “m ito-lógico” em que surge. Ifá é às vezes um
hom em e o u tra s vezes um òrisa; às vezes é branco e o u tra s vezes
é verm elho. Èsü é p o r «vezes rep resen tad o como um ser de u m a só
p ern a, o u tra s vezes como ten d o o corpo envolto em ch am as; às
vezes como um ser m alévolo (ou pelo m enos d ado a b rincadeiras
de m a u gosto) e o u tra s como o trazed o r de b em -estar. Não h á nisso
q ualquer contradição, m as ap en as a rep resen tação das várias qua­
lidades de seres-conceitos polissêmicos.
“O m ito ” n ão tem , en tão , existência em p írica; ele pode ser p ro ­
duzido a p en as por ab stração , pelo desvendam ento d a e s tru tu ra pro­
fu n d a. Mas, em assim fazendo, devem os te r em m en te que além
de e s tru tu ra existe tam b ém sem ân tica. Mitos, a in d a que sejam es­
tru tu ra s lógicas, n ã o são co nstruídos com Ps e Qs, m as com sím ­
bolos “concretos”. Se é possível tra n s fo rm a r m itos em e stru tu ra s
lógicas form ais, perm an ece o fa to de que sím bolos têm significados
específicos d en tro de u m a cu ltu ra, significados o u tro s que a expres­
são de relações form ais de oposição, função ou equivalência. Mitos
são sistem as culturais-específicos, como o re ssa lta M a ran d a (1972)
e em d iferen tes c u ltu ra s o m esm o símbolo produz associações dife­
rentes. Símbolos p erten cem a “co n ju n to s p arad ig m ático s” (conjunto
de símbolos que p a rtic ip a m das m esm as funções sim bólicas), o que
p erm ite tra d u z ir recip ro cam en te versões m itológicas no in te rio r de
um a m esm a c u ltu ra e p erm ite a convertibilidade tra n s c u ltu ra l dos
símbolos, como por exem plo e n tre a c u ltu ra Y orübá-N àgô e a cul­
tu r a Fon. Não o b stan te, a c arg a sem â n tic a dos símbolos coloca um
problem a e u m a lim itação a um estudo como o nosso — pois tem os
de tra b a lh a r sobre dados coletados p o r o u tro s 8, que nem sem pre
p e rg u n ta ra m as questões fu n d a m e n ta is p a r a o problem a aqui a n a ­
lisado. Ao a n alisarm o s a m itologia e o r itu a l divinatório Y orübà-
-F o n defro n tam o -n o s c o n sta n te m e n te com lesm as, escravos, cornetei­
ros, alim entos sacrificiais que n em sem pre logram os explicar de modo
p len am en te satisfató rio . A fa lta de inform ações re lativ as à sem ân tic a
de elem entos ou de a to s simbólicos responde p o r algum as das la ­
cu n as que o leito r sem dúvida n o ta rá neste trab alh o .

a Assim como com textos onde nem sempre permanece clara a fronteira
entre o pensamesto do observado e aquele do observador, como é o caso
do ensaio de Dos Santos (1976), de resto o melhor estudo da ideologia
Nàgô.

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A p aren tem en te, ta n to os m itos d a C riação q u an to os m itos e
rito s p e rtin e n te s à p rá tic a d iv in ató ria p erten cem a u m m esm o p a ­
radig m a. A inda que o processo div in ató rio se realize quase sem pre
em âm b ito privado (m uito em bora h a ja tam b ém adivinhações p ú ­
blicas), tr a ta - s e de um a ativ id ad e que to m a lu g a r c o n tin u am en te:
aqui ou ali h á sem pre alguém co nsultando o Ifá , sem pre que um a
decisão deve ser to m ad a. C asam ento e nascim ento d em an d am a con­
su lta o racu lar. O hom em adquire seu “d estin o ” a tra v é s de ce rta s
p rá tic a s ritu a is dirig id as a Ifá . Sendo um rito , o processo divinatório
é u m c o n sta n te põ r-em -v ig o r d a ordem cosmológica, de u m a visão
de m u n d o sem pre recriad a. A e s tru tu ra m a te m á tic a u m a ordem
de p robabilidades — e sim bólica d a geom ancia de Ifá tra z e m con­
sigo um cotidiano p ô r-em -ação dos axiom as c e n tra is d a c u ltu ra Yo-
rübá-N agô. O sistem a de I f á co n stitu i, p o r assim dizer, u m m ap a
de su a cosmologia, um m a p a que p erm ite ao indivíduo m over-se d en ­
tro d e sta ú ltim a. P erten cen d o a um m esm o parad ig m a, a Criação
e a ad iv in h ação são “re d u n d a n te s” e é e s ta re d u n d â n c ia que perm ite
ao a n a lis ta p a ssa r de u m a p a ra o u tra, realizando, de fo rm a cons­
ciente, o m esm o m ovim ento que realiza, n u m plano inconsciente, a
m en te do ag en te cu ltu ral. Ambos os co n ju n to s de idéias, Criação e
adivin h ação , dizem respeito ao estabelecim ento de um a ordem u n i­
versal, p o stu lad a pelo C riador e d esvendada pelo adivinho (bab a-
láw o).
Não nos será possível, aqui, d e ta lh a r as conexões histó ricas e n ­
tre a cosm ologia e a geom ancia Y orübá. É b a s ta n te claro que o
sistem a divinatório, en q u an to e s tru tu ra de p erm utações m a te m á ti­
cas, n ão é u m a invenção Y orübá. Tam pouco o é sua m ecânica, id ê n ­
tic a àqu ela e n c o n tra d a e n tre os povos árab es, n a G récia A ntiga, n a
E uropa C e n tra l e em o u tra s p a rte s d a Afríca. M as a e s tru tu ra sim ­
bólica d a ad iv in h ação de I f á é um p ro d u to original Y orübá. Assim,
e pelo fa to de a e s tru tu ra m a te m á tic a -te r sido “p ro je ta d a ” sobre o
corpo m ístico de m odo a fo rm a r um modelo ideológico, é-nos pos­
sível a n a lis a r as conexões e s tru tu ra is e n tre um m odelo m ítico e a
geom ancia, e. b u scar a p re e n d e r o sen tid o d esta últim a.
In iciarem o s nossa an álise pelo começo do m undo.

II — A CriaçSo do M undo

As divindades viviam originalmente no céu, abaixo do qual


só havia a água prístina. Olorum (Olodumaré), o deus do céu,
deu a Orishala, o deus da Brancura, uma corrente, uma porção
de terra numa concha de caramujo, e um galo com cinco dedos,

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e disse-lhe para descer e criar o mundo. Todavia, quando ele
se aproximou do portão do paraíso, ele viu que nignma« di­
vindades estavam tendo um a festa, e parou para saudá-las.
Elas lhe ofereceram vinho (de palmeira) e ele bebeu demais e
adormeceu, embebedado. Oduduwa, seu irmão mais jovem, havia
ouvido as instruções de Olorum e, quando viu Orishala dor­
mindo, tomou dos materiais e foi até a beira do paraíso, acom­
panhado de Camaleão. Aí, abaixou a corrente e desceu por
ela. Oduduwa depositou a porção de terra na água e colocou
sobre ela o galo. O galo começou a ciscar a terra, espalhando-a
em todas as direções, até os confins do mundo. Após Camaleão
ter testado a firmeza da terra, Oduduwa pisou nela em Índio,
onde fez seu lar, onde hoje está localizado seu santuário em
Ife. Quando Orishala acordou e viu que o trabalho havia sido
completado, lançou um tabu sobre o vinho da palmeira de óleo,
o qual é até hoje observado por seus adoradores. Ele desceu à
terra e a reclamou como sua, pois havia sido ele que fora
enviado por Olorum para criá-la e governá-la, e porque ele
era o irmão mais velho de Oduduwa. Oduduwa insistiu que ele
é que era o dono da terra porque fora ele quem a criou. Os
dois irmãos começaram a lutar e as outras divindades que os
seguiram para a terra dividiram-se, apoiando a um ou a outro.
Quando Olorum soube da luta, chamou Orishala e Oduduwa à
sua presença no céu, e cada um contou sua versão do que
acontecera. Olorum disse que a luta devia terminar. A Oduduwa,
Criador da Terra, deu o direito de propriedade da terra, e dé
governá-la, e ele se tornou o primeiro rei de Ife. A Orishala deu
um título especial e o poder de moldar os corpos humanos, e
ele se tornou o Criador da Humanidade. Então Olorum m an­
dou-os de volta à terra com Oranfe, o deus do trovão de Ife,
e Eleshije, o Deus da Medicina de Ife, como seus companhei­
ros. Quando Oduduwa ficou velho, tornou-se cego. Enviou cada
um de seus 16 filhos ao oceano, cada um de uma vez, para
obter água salgada, que havia sido prescrita como remédio.
Todos retornaram sem que tivessem tido sucesso, trazendo ape­
nas água doce, até que olokun, o mais jovem, finalmente fosse
bem sucedido... Olokun foi para Uesha onde se tornou rei
dos Ijesha, e os outros filhos fundaram reinos próprios (Bas-
com, 1969, p. 9-11).

No começo, duas pessoas fizeram o mundo, uma Yemuhu


(Oduduwa) e o homem, Orishala, também chamado Obaba
Arugbo. Quando Yemuhu e Orishala vieram para o mundo,
estavam com medo, e vieram acompanhados de Ajajuno, uma
pessoa que não foi feita por ninguém, e que agia como men­
sageiro e chefe de guerra. Ela era uma mulher, cuja missão
era lutar com o mundo. Quando term inaram seu trabalho de
criação, transformaram-se em pedra. Mas antes disso, Orishala
amarrou um carneiro ao seu punho com uma corda e Yemuhu
tinha uma cabaça contendo as 16 lesmas, e quando ela se
transformou em pedra estas 16 lesmas se tornaram a cabeça

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de Olorum Eleda, o Criador. Quando Eleda se levantou, ele
notou que Ifá não tinha cabeça. Um dia, Eleda, lutando com
Ifá, o derrubou, e sua cabeça saiu, depois sua testa saiu, de­
pois seu nariz, depois boca e olhos. Orishala fez isso (Dennet,
1910).

Olorum desceu uma corrente para a Terra, então coberta


de água e pela corrente chegou o primeiro homem trazendo um.
pouco de terra, um galo e uma noz de palmeira. O galo ar­
ranhou a terra para produzir terra seca; a noz produziu uma
árvore com 16 galhos que eram os 16 Obás Yoruba (Lloyd, 1956).

No começo, o mundo era todo pantanoso e cheio de água,


um lugar inútil. Acima dele havia o céu, onde vivia Olorum,
o Dono do Céu, com as outras divindades. As vezes os deuses
desciam para brincar nos pântanos inúteis, descendo por teias
de aranha, penduradas através dos vazios. Mas ainda não exis­
tiam homens porque não havia terra firme. Um dia Olorum
chamou o chefe dos deuses, Orishanla (Grande Deus) à sua
presença. Disse-lhe que desejava criar terra firme e pediu-lhe
que realizasse a tarefa. O Grande Deus recebeu uma concha
de caramujo na qual havia alguma terra solta, uma pomba e
um galo com cinco dedos. Ele desceu ao pântano e jogou a
terra da concha num pequeno lugar. Então ele colocou a pomba
e o galo sobre a terra e eles começaram a ciscar e a espalhá-la.
Em pouco tempo eles haviam coberto grande parte do pântano
e a terra firme foi formada. Quando Orishanla voltou a Olorum
para relatar sua tarefa, Olorum enviou o Camaleão para ins­
pecionar o trabalho. Após uma primeira inspeção o Camaleão
relatou que a terra estava bastante ampla mas não suficiente­
mente seca. Então ele foi mandado outra vez, e dessa vez ele
disse que estava tanto ampla como seca. O lugar onde começou
a criação foi chamado Ife, significando "amplo”, e depois adi-
cionou-se a palavra Ile, “casa”, para indicar que era a casa
da qual se originaram todas as outras povoações. A criação da
terra tomou quatro d ia s... e desde então observou-se uma se­
mana de quatro dias, cada um sagrado a uma divindade. Então
Olorum mandou Orishanla de volta à Terra para plantar ár­
vores, dar alimentos e riqueza ao homem. Ele lhe deu a noz da
palmeira original, cujas nozes dão óleo e cujo suco fornece
bebida. Três outras árvores comuns foram plantadas, e mais
tarde caiu a chuva para regá-las (Parrinder, 1967).

Quando Olórun decidiu criar a terra, chamou Obàtálà, en­


tregou-lhe o “saco da existência”, àpò-iwà, e deu-lhe as ins­
truções necessárias para a realização da magna tarefa. Obàtálà
reuniu todos os orisà e preparou-se, sem perda de tempo. De
saída, encontrou-se com Odüa que lhe disse que só o acom­

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panharia após realizar suas obrigações rituais. Já no òna-òrun,
caminho, Obàtálà passou diante de Èsú. Este, o grande con­
trolador e transportador de sacrifícios que domina os caminhos,
perguntou-lhe se já tinha feito as oferendas propiciatórias. Sem
se deter, Obàtálà respondeu-lhe que não tinha feito nada e
seguiu seu caminho sem dar mais importância à questão. E
foi assim que Èsú sentenciou que nada do que ele se propunha
empreender seria realizado. Com efeito, enquanto Obàtálà se­
guia seu caminho começou a ter sede. Passou perto de um rio,
mas não parou. Passou por uma aldeia onde lhe ofereceram
leite, mas ele não aceitou. Continuou andando. Sua sede au­
mentava e era insuportável. De repente viu adiante de si uma
palmeira Igi-òpe e, sem se poder conter, plantou no tronco da
árvore seu cajado ritual, o òpá-sóró, e bebeu a seiva (vinho
de palmeira). Bebeu insaciavelmente até que suas forças o
abandonaram, até perder os sentidos e ficou estendido no meio
do caminho. Nesse meio tempo, Odüa, que foi consultar Ifá,
fazia suas oferendas a Èsú. Seguindo os. conselhos dos babalàwo
ela trouxera cinco galinhas, das que têm cinco dedos em cada
pata, cinco pombos, um camaleão, dois mil elos de cadeia e
todos os outros elementos que acompanham ó sacrifício. Èsú
apanhou estes últimos e uma pena da cabeça de cada ave e
devolveu a Odüa a cadeia, as aves e o camaleão vivos. Odúa
consultou outra vez .os babalàwo que lhe indicaram ser neces­
sário, agora, efetuar um ebo, isto é, um sacrifício, aos pés de
Olórun, de duzentos igbin, os caracóis que contém “ sangue
branco”, a “água que apazigua”, omi-èrò. Quando Odüa levou
o cesto com igbin, Olórun aborreceu-se vendo que Odüa ainda
não tinha partido com os outros. Odüa .não perdeu sua calma
e explicou que estava obedécendo ordens de Ifá. Foi assim que
Olórun decidiu aceitar a oferenda e ao abrir seu Apére-odü —
espécie de grande almofada onde geralmente Ele está sentado
■— para colocar a água dos igbin, viu, com surpresa, que não
üavia colocado no, àpò-Iwà — bolsa da existência — entregue
a Obàtálà, um pequeno saco contendo a terra. Ele entregou a,
te rra nas mãos de Odüa para que ela, por sua vez, a reme­
tesse, a Obàtálà. Odüa partiu para alcançar Obàtálà. Ela o en­
controu inanimado ao pé da palmeira, contornado por todos
os òrisà que não sabiam o que fazer. Depois de ten tar em .vão
acordá-lo, ela apanhou o àpò-lwà que estava no chão e voltou
p ara entregá-lo a Olórun. Este decidiu, então, encarregar Odüa
da criação da terra. Na volta de Odúa, Obàtálà ainda dormia;
ela reuniu todos os òrisà e explicou-lhes que fora delegada por
Olórun e> eles dirigiram-se todos juntos para o ò ru n Àkãsòpor
onde deviám passar para assim alcançar o lugar determinado
por Olórun para a criação da terra. Èsú, ògún, òsôsi e Ija.
conheciam o caminho que leva às águas onde iam caçar e
pescar, ògún ofereceu-se para m ostrar o caminho e conver­
teu-se no Asiwajú e no O lú là n à — aquele que está na, van­
guarda e aquele que desbrava os caminhos. Chegando diante
do òpó-drun-oún-Aiyc, o pilar que une o órun. ao mundo, eles
colocaram a cadeia ao longo da nual Odüa deslizou até o lugar

19
indicado por cima das águas. Ela lançou a terra e enviou Eyelé,
a pomba, para esparramá-la. Eyelé trabalhou muito tempo.
Para apresentar a tarefa, Odüa enviou as cinco galinhas de
cinco dedos em cada pata. Estas removeram e espalharam a
terra imediatamente em todas as direções, à direita, à esquer­
da e ao centro, a perder de vista. Elas continuaram durante
algum tempo. Odüa quis saber se a terra estava firme. Enviou
o camaleão que, com muita precaução, colocou primeiro uma
pata, tateando, apoiando-se sobre esta pata, colocou a outra
e assim sucessivamente até que sentiu a terra firme sob suas
patas. Quando o camaleão pisou por todos os lados, Odüa
tentou por sua vez. Odüa foi a primeira entidade a pisar
na terra, marcando-a com sua primeira pegada. Essa mar­
ca é chamada ese' ntaiyé Odúduwà. Atrás de Odüa vieram
todos os outros òrisà colocando-se sob sua autoridade. Co­
meçaram a instalar-se. Todos os dias, Orúnmilà — patrão
do oráculo Ifá — consultava Ifá para Odüa. Nesse meio
tempo Obàtálà acordou e vendo-se só sem o àpó-iwà retornou
a Olórun, lamentando-se de ter sido despojado do àpò. Olçrun
tentou apaziguá-lo e em compensação transmitiu-lhe o saber
profundo e o poder que lhe permitia criar todos os tipos de
seres que iriam povoar a terra. Foi assim que Obàtálà apren­
deu e foi delegado para executar tarefas importantes. Então,
ele se preparou para chegar à terra. Reuniu os òrisã que es­
peravam por ele, Olúfón, Eteko, Olúorogbo, Olúwofin, <J»giyàn
e o resto dos òrisa-funfun. No dia em que estavam para che­
gar, Qrúnmllà, que estava consultando Ifá para Odüa, anun­
ciou-lhe o acontecimento. Qbàtálà ele mesmo, e seu séquito
vinham dos espaços do órun. Orúnmilà fez com que Odüa sou­
besse que se ela quisesse que à terra fosse firmemente estabe­
lecida e que a existência se desenvolvesse e crescesse como ela
havia projetado, ela deveria receber Obàtálà com reverência e
todos deveriam considerá-lo como pai. No dia de sua chegada
òrisànlá foi- recebido e saudado com grande respeito. Odùa e
Obàtálà ficaram sentados face a face, até o momento em que
Óbàtálà decidiu que iria instalar-se com sua gente e ocupa­
riam um lugar chamado tdítàa. Construíram uma casa e ro­
dearam -na de vigias (Dos Santos, 1976, p. 61-64).

A n a rra tiv a prossegue descrevendo u m conflito e n tre O b àtálà e


O dúduw à, resolvido p o r in term éd io de Ifá , segundo o principio de
que os c o n trá rio s devem coexistir. V árias o u tra s versões tam b ém des­
crevem u m conflito e n tre , de um lado O b à tá là e os ò risà fu n fu n
(òrisã b ra n c o s), ou d a d ireita, e O dúduw à com su a legião de ò risã
d a esquerda, ou p reto s (m ais p ro p riam en te, ebora).
M u itas o u tra s versões existem q u an to à criação do m undo. Em
algum as delas, o m undo foi criado p o r O dùa, em o u tras, pelo pró­
p rio ò risà n lá , sozinho. Em algum as versões, O dùa é do sexo fem i­
nino, em o u tra s é do sexo m asculino. Em o u tra s versões, ain d a , o

20
m u n d o foi criad o p o r O ran m iy an , filho de O düduw à e de O lokun
(a deu sa do O ceano) (cf. B iobaku, 1956). A lgum as dessas versões
exprim em d iferen tes ideologias p o líticas e p ro jeto s de dom inação. A
versão que a trib u i a C riação a O ra n m y ia n é m u ito c la ra m e n te um a
versão Oyó, leg itim an d o a dom inação desse rein o sobre os dem ais
povos Y orübá, p a rtic u la rm e n te quando o m esm o m ito a firm a que:
a) O ran m y ian foi o p rim eiro a d escer à te rra , estabelecendo um a
ordem de sen ioridade; b) “Seus irm ão s p re fe riram m o ra r n a te r r a
seca, o que lhes foi perm itido sob condição de p a g arem u m tributo,
a n u a l”, isto é, todos os dem ais reinos, concebidos como ten d o sido
fu n d ad o s pelos òrisà, irm ãos ju n io res de O ran m y ian , devem trib u to
a Oyó, “p o r direito divino”. De fato , en co n tram os, e n tre a s v árias
versões a n a lisa d a s (d as quais ap resen tam o s, aqui, ap e n as algum as
poucas) considerável d iscordância q u an to à ordem de descida dos
òrisà, disco rd ân cia essa ligada ao m encionado princípio org an izató -
rio d a senioridade: a ordem de descida legitim a, p o r assim dizer,
u m a p eckin g order e n tre os reinos. M itos co n tad os em Ifé descrevem
O ran m y ia n como um guerreiro -e p ro te to r do povo daquela cidade
(racion alizan d o a su bordinação p o lítico -m ilitar de Ifé a Oyó) ; m i­
to s contados em Oyó, porém , fazem de O ra n m y ia n um rei de Oyó
que governava sobre Ifé. N estes m esm os m itos, Ifé co n tin u a sendo
o “berço d a h u m a n id a d e ”, m as a heg em o n ia de Oyó é expressa pela
afirm a tiv a de que todos os reis recebem seus cetros dos sacerdotes
de O ran m y ian em Ifé.
O pró p rio O düduw à, que em m u ita s versões é m asculino, como
C riador d a T erra, pode tam b ém te r resu ltad o d a legitim ação ideo­
lógica de u m a d om inação política, conform e o in d ica Idow u (1963).
A inda que, de um m odo geral, Ç risàn lá seja reconhecido como o
G ra n d e Deus, v á ria s versões a trib u e m a O düduw à senioridade sobre
todos os dem ais òrisà. Segundo Idow u, O düduw à foi u m guerreiro
que im pôs su a dom inação sobre Ifé ; d e ific a d o ,' foi g rad u alm en te
unido a Q risànlá n a constru ção m itológica. O conflito e n tre am bos,
se ja O düa m asculino ou fem inino, e x p ressaria u m conflito político-
-ideológico. O m esm o conflito, e a divisão dos ò risà e n tre u m a legião
“b ra n c a ” e d a “d ire ita ”, e o u tra “p r e ta ” e “d a esq u erd a”, foi ta m ­
bém re g istra d o p o r B ascom (1969). Aqui o m ito pode m u ito bem
e s ta r exprim indo u m a lin h a m e n to dos v ário s reinos (descendentes
dos vários òrisà) em d u a s facções.
As v ariações n a s versões m itológicas to rn a m -se im p o rta n te s
quando se co nsidera que d ireito s de g o v ern an ça b aseiam -se em p re ­
tensões de descen d ên cia d ire ta do C riad o r o u dos òrisà originais. A

21
versão p re d o m in a n te parece ser aquela que postula a existência de
16 divindades o riginais (o que, como verem os ad ian te , relaciona-se
e stre ita m e n te com o sistem a d iv in ató rio de Ifá ) m as existe consi­
derável disco rd ân cia sobre quais re is são, efetivam ente, seus descen­
dentes. P o r o u tro lado, “o n a rra d o r reclam a m aior senioridade p a ra
sua p ró p ria divindade . . . sendo que algum as versões referem -se a
o u tra s divindades que n ão O düa como o criad or d a T e rra ” (Bascom,
1969, p. 11).
O que foi observado p o r L each q u an to ao faccionalism o K ac h in
surge tam bém , m u ito cla ra m e n te, e n tre os Y orübá. D e fato, como
afirm a Leach, m ito s exprim em u m a ordem ideal, m as existem di­
fe re n te s idéias sobre como deveria ser ta l ordem ideal. No e n tan to ,
se existem variações “e x te rn a s” do m ito, p erm anece u m a unifo rm i­
d ad e “i n te r n a ”, isto é, ex iste um fa to r ló g ico -estru tu ral u n ificador:
a p ró p ria e s tru tu ra do m ito. É a p e rm an ên cia dessa e s tru tu ra p ro ­
fu n d a que faz com que os m itos sejam re d u n d a n tes, ou que h a ja
re d u n d â n c ia e n tre m ito e ritu a l. V oltarem os a esse ponto m ais ta rd e ,
em conexão com o tem a c e n tra l deste ensaio. Observemos, por agora,
com Leach, que:

. . . como resultado da redundância, o crente pode sentir


que, mesmo que os detalhes variem, cada versão alternativa do
mito confirma sua compreensão e reforça o significado essen­
cial de todas as outras (Leach, 1967, p. 3).

É a p ró p ria e s tru tu ra p ro fu n d a, re d u n d a n te , que p erm ite ao


m ito tc m a r u m a fo rm a ou o u tra , ex pressar d iferen tes e co n flitan tes
m ensagens políticas, sem d eix ar de ser “o m ito ”. As variações ao
nível d a m ensagem que cham am os sociológica n ã o a lte ra m a e stru ­
tu r a b ásica — pelo co n trário , repousam sobre ela e sem ela seriam
inviáveis. É sobre e sta e s tru tu ra p ro fu n d a que concentrarem os nossa
análise.
As v árias versões d a C riação por nós an a lisad a s são construídas
com um co n ju n to de sím bolos e de relações de oposição e m ediação
com uns. Como dissemos, n ão tran screv em o s aqui to d as essas versões,
cujos com ponentes tab u lam o s n a fo rm a como se p o derá ver n a T a ­
bela I. A le itu ra d a ta b e la deixa claro que os vários com ponentes
simbólicos n ão surgem em to d a s as versões, com excessão de Céu,
T erra, Á gua e T e rra Firm e. A in sistên cia nesses qu atro com ponentes
in d ica su a c e n tra lid a d e p a ra o que poderíam os c h a m a r de a m e n ­
sagem essencial. A n ã o rep etição dos dem ais com ponentes pode ser
devida a u m a série de m otivos: quem reg istro u o m ito pode não

22
tê -lo feito em to d a a su a inteireza, selecionando ap en as as passagens
que lh e p a re c ia m rele v a n te s; o próprio n a rra d o r pode te r om itido
certos símbolos, seja p ro p o sitad am en te, em função de sua pró p ria
posição ideológica, se ja porque são óbvios p a ra o p a rtic ip a n te da
c u ltu ra em questão; as relações expressas por um com ponente sim ­
bólico podem se r p e rfe ita m en te su b en ten d id as p o r um a audiência
“e n c u ltu ra d a ”, n a p resen ça de outro com ponente ideo-logicam ente
associado, n u m sistem a sim bólico global que o pera n a m en te do p o r­
ta d o r d a c u ltu ra . Assim, p o r exemplo, “dezesseis” não é m encionado
em ce rta s versões, m a s “q u a tro ” o é, assim como ‘‘noz de p alm eira”.
O ra, “todo m undo sab e” que “dezesseis” e “q u a tro ” são in tim a m en te
associados (relação n u m érica fu n d a m e n ta l no sistem a de Ifá ), e “n in ­
guém ig n o ra ” que as nozes sa g ra d a s são em núm ero de dezesseis,
que é tam b ém o n ú m ero dos ò risà originais. “Todos” sabem ta m ­
bém que a p alm eira possui q u a tro folhas que se desdobram em
dezesseis. É como se certo s símbolos estivessem “ocultos p o r elipse”
n a g ra m á tic a m itológica. B ranco aparece a p en as em duas versões,
m a s n in g u ém ig n o ra que O b àtálà é o S en h o r do P an o B ranco e o
p rin c ip a l dos òrisà fu n fu n . A cabaça é pouco m encionada, no e n ­
ta n to n e n h u m Y orübá ignora que o m undo é re p resen ta d o por um a
cabaça — Igbá Odú. Sím bolos são, adem ais, intercam biáveis: um a
palm eira com 4 ram os é • equivalente a 4 palm eiras. A co rren te é
m encio n ad a trê s vezes, m as ela reco rre em vários outros m itos que
n ã o os da Criação e em v árias representações cosmológicas. É o caso,
p o r exemplo, do m ito d a m o rte e deificação de Sangó. O m ito re la ta
que Sangó. perseguido por seus m inistros, com os quais e n tr a rá em
conflito, m orre e desce p a ra a s profundezas d a te rra . O m ito refe­
re -se a um local onde a te rra se abriu, u m a co rren te foi la n ç a ­
da, e p o r ela desceu Sangó. Este m ito consiste, m uito claram ente,
n u m a inversão, ou m elhor, n u m equivalente in vertido do m ito d a
Criação. De fato, ele a p re se n ta a m esm a e s tru tu ra com um a inversão
de sinais. E nq u an to os m itos de C riação re la ta m a origem dos h o ­
m ens a p a r tir dos deuses, este re la ta a origem de um a divindade a
p a r tir de um h u m a n o ; o inverso, p o rta n to , d a Criação. Nos m itos
de Criação, o hom em é criado após estabelecida a ordem ; n o de
Sangó, cria -se o deus depois de d eflag rad a a desordem (conflito e n ­
t r e rei e m in istro s; n u m a versão brasileira, e n tre Sangó e a polícia).
E n q u an to a C riação postula u m a relação e n tre Céu e superfície da
T erra , o m ito de Sangó coloca um a oposição e n tre esta ú ltim a e as
profun d ezas da T e rra (dom ínio dos m ortos, em algum as im agens
cosm ológicas). N ascim ento e m orte são m om entos opostos, ain d a que
equivalentes, n u m m esm o ciclo. Em am bos os m itos, a co rrente es­

23
tabelece a ligação e n tre dom ínios opostos. Percebe-se, claram ente
que os dois m itos são “re d u n d a n te s” e que um é o equivalente in ­
vertid o do outro.

A mostra de oito versões do mito da Criação

VERSÕES MITOLÓGICAS
ELEMENTOS SIMBÓLICOS A B C D E F G H

1
Céu ( ò r u n ) + + + + + + +

T erra (à i y é ) + + + + + + +

-L
A gua + + + + + + +

-L _L J .
T erra F irme + + + -b +

S aoo, T rapo, E mbrulho ----- + — — — + T

1
A pò I wà (S aco da E xistência ) +

Lesmas — — + — — + — +

Caramujo, Caracol + — — — + + — +

j_
Corrente + — — + — — +

O .
G alo, G alinha , de 5 D edos + + — + + - r"

P orção de T erra + + — + + + + ~ r


P almeira ----- ----- — + — +

A rvores em N úmero de 4 — — — — T~ — + +•

Cabaça ~ r

V inh o de P almeira ~Y +

Camaleão + — — — + — + ■+


“Quatro” +

“D ezesseis ” + -- +

_ _
N ozes de P almeira ----- + + — — +

4 -
B ranco +

+ == P resen ça
— = A usência

As d iscrepâncias e n tre as v á ria s versões d a C riação n ão afetam ,


porém , su a e s tru tu ra . Em su a linguagem b in á ria elas a p resen tam
um sistem a de oposições, u m cosmos com posto por co n trários. As
oposições b ásicas são aquelas e n tre Céu e T erra, e e n tre Á gua e
T e rra Firm e, o m undo veio a ser pelo estabelecim ento d e ta is opo­
sições e p ela m ediação e n tre pólos opostos. A ordem foi estabelecida

24
pela sep aração dos opostos, pelo “p ô r no lu g a r adequado” de cad a
categoria, elim in an d o -se am bigüidades. M as, p o r outro lado, oposi-
ções devem ser m ediadas, pois o cosmos é u m a unidade de c o n trá ­
rios. E e s ta m ediação, ta l como em ta n to s outros sistem as m ito-ló-
gicos, é fe ita p o r seres am bíguos. Sendo o U niverso ao m esm o tem po
sep aração e unificação, a m ediação tra z consigo o anôm alo, pois
im plica em c ru z a r as fro n te ira s de dom ínios cognitivo-sim bólicos
opostos (cf. a noção de trespassing em D ouglas, 1970), em p erten c er
sim u lta n e a m e n te a dom ínios opostos:

A mediação é sempre conseguida pela introdução de uma


terceira categoria que é “anormal” ou “anômala” nos termos
das categorias ordinárias “racionais”. Tais mitos são cheios de
monstros fabulosos, deuses encarnados, mães virgens. Este cam­
po intermediário é anormal, não-natural, sagrado (Leach,
1967, p. 4).

Conform e verem os m ais a d ia n te , se a o rdem é re p re se n ta d a por


Ifá , a m ediação e n tre dom ínios é re p re se n ta d a por Èsü, o trick ster
d a m itologia Y orübá-N àgô e o com ponente dialético de su a cos­
m ologia.
‘‘O m ito ” d a Criação, isto é, o m odelo que pode ser abstraído
das d iferen tes versões p o stu la u m a oposição fu n d a m e n ta l e n tre Céu
e T e rra e e n tre C u ltu ra e N atureza, sendo o prim eiro te rm o de cad a
oposição re p re se n ta d o p o r O b àtálà e o segundo p o r O dúduw à; cad a
um deles, como verem os a d ia n te , sim boliza u m a m etad e (superior-
-C éu; in fe rio r-T e rra ) d a C abaça U niversal. U m a segunda oposição é
p o stu la d a p ela sep aração e n tre T e rra F irm e e Água. A ntes de con­
tin u a rm o s com nossa análise, convém concluir o processo de Criação,
com a sep aração e n tre o Céu e a T erra, que a n te s eram contíguos:

Nos tempos antigos Deus vivia perto dos homens, no céu,


pouco acima de suas cabeças. Ele ficava tão perto que os ho­
mens se familiarizaram com ele. As crianças limpavam suas
mãos engorduradas no céu, quando terminavam de comer. As
mulheres procurando algum ingrediente extra para o jantar,
arrancavam um pedaço do céu e o colocavam na panela. Em
particular, as mulheres batiam contra o céu quando pilavam
alim entos... Diz-se que havia uma mulher cujo pilão era
muito longo, e sempre que ela pilava o milho o cabo de ma­
deira atingia Deus, que vivia logo acima do céu. Um dia ela
deu uma pancada mais forte, atingindo a Deus no olho e ele,
enfurecido, retirou-se à distância, onde permaneceu para sem­
pre (Parrinder, 1967, p. 34).

25
V árias o u tra s versões existem , algum as atrib u in d o a separação
e n tre o Céu e T e rra à ação de m ulheres, o u tra s a trib u in d o -a a ȧü,
o u tra s a in d a a crian ças, como n aq u ela colhida por Dos S an to s (1976),
n a qual ò ris à n lá , irrita d o com a desobediência e com a a titu d e in ­
su ltu o sa de um m enino ao qual h av ia sido. proibido d eix ar o Àiyé
(T erra) e p e n e tra r no Ò run (Céu), a tira seu cajado em blem ático
c o n tra o Àiyé, a fa sta n d o -o p a ra sem pre do ò ru n . Com ta l separação,
com p leta-se a ordem cosm ológica e resolve-se um problem a lógico,
o d a relação e n tre os hom ens e os deuses. De fato, não é difícil
perceber a sem elh an ça e n tre os m itos Y oríibã-N ágô e o próprio m ito
ju d aico -cristão , onde Adão e Eva são expulsos do Paraíso.
Vimos que o m ito d a C riação p o stu la u m a ordem pela se p ara ­
ção dos co n trário s, ò ris à n lá e O dúduw à opõem -se como o Céu se
opõe à T e rra , o prim eiro, “b ra n c o ” e da d ire ita , o segundo (ou a
segunda, pois fre q ü e n te m en te se re p re s e n ta como sendo m u lh er)
d a esq u erd a e associado à cor p re ta . N a re p resen tação do m undo,
n a c ab aça u niversal, ò ris à n lá corresponde à p a rte de cim a, ao Céu,
e O d ù d u w à 'à de baixo, a T erra. Devemos, todavia, fazer u m a obser­
vação com relação às categ o rias Céu e T erra. A lgum as das versões
dos m ito s de C riação a p re se n ta d as são tradu ções, europeizadas se ja
pelo a u to r que as registrou, seja pelo próprio in fo rm an te . Deve-se
n o ta r que Céu n ã o é o P araíso d a m itologia ocidental, e que Céu e
T e rra n ã o se confundem com os dom ínios em píricos que as p a la v ra s
exprim em . T ra ta -se , n ã o do céu atm osférico m as do ò ru n : não da.
te r r a geográfica, m a s do Àiyé. T ra ta -se , enfim , de cosmologia, e não
de cosm ografia.
Segundo a cosm ologia Y orúbá-N agô, toda, a existência se p ro ­
cessa em dois p lanos sim u ltân eo s: o do Àiyé — o m undo físico e
o do ò r u n — o m u n d o m etafísico, que é como que replicado a ciclos
curto s n o prim eiro.

O òrun é uma concepção abstrata e, portanto, não é con­


cebido como localizado em nenhuma das partes do mundo real.
O òrun é um mundo paralelo ao mundo real que existe com
todós os conteúdos deste. Cada indivíduo, cada árvore, cada
animal, cada cidade, etc. possui um duplo espiritual abstrato
no òrun. No òrun habitam, pois, todas as sortes de entidades
sobrenaturais. . . . ao contrário, tudo o que existe no òrun tem
sua ou suas representações materiais no àiyé (Dos Santos,
1976, p. 54).

Assim, o ru n n ã o se con fu n d e com o céu -atm o sfera, ch am ado


sánm ò. Este’ últim o re su lta d a sep aração e n tre o ò ru n e o àiyé. O

26
céu -a tm o sfe ra é um terceiro elem ento, do p onto de v ista lógico,
' pro d u to de s m a oposição b in ária, e como ta l tr a z im plícita a noção
de m ovim ento, de dinâm ica. P or su a vez, o àiyé não se confunde
com Ilç, te rra . E sta ú ltim a n ão com preende a to talid a d e do àiyé,
que tam b ém inclui o sánm ò; por outro lado, o ò ru n o “doble a b stra ­
to de todo o àiyé” envolve todo o àiyé. O òrun, conform e en sin am
os babaláw o (sacerdotes de Ifá ), é com posto de nove espaços, ou
com partim entos, que são, n a realidade, dois co n ju n to s de qu atro es­
paços cada, um dos c o n ju n to s acim a d a te r r a e outro abaixo, m ais
u m espaço in term ed iário , que coincide com o espaço te rra . Todo o
ò ru n está ligado ao àiyé por um p ilar, o òpó òrun oun àiyé. Este
p ila r é re p resen tad o tam b ém p o r um a árvore ou p o r um a corrente
(cf. Dos S antos, 1976, cap. IV).
Em nossa, in te rp re ta ç ã o , o espaço in term ed iário , que coincide
com o esp a ç o -te rra , não se confunde com o àiyé, como um todo, m as
com p a rte s específicas deste. Conform e in d ica M orton W illiam s (1964,
p. 243) a superfície d a te r r a divide-se em dois m undos opostos, o
m undo dom esticado, ordenado, civilizado, isto é, o m undo d a cu ltu ra
o àiyé em seu sentido estrito — e a flo resta, o cam po d istan te ,
não cultivado, dom ínio das feras e de seres so b ren atu rais. E sta m es­
m a oposição, note-se, é fu n d a m e n ta l n a e s tru tu ra sim bólica do “te r ­
re iro ” nàgô b ahiano. O com p artim en to do ò ru n que coincide com o
esp aç o -te rra , co m p artim en to pelo q ual se faz a ligação (e que por
isso m esm o é um co n ju n to ím p ar, conform e análise a ser feita
a d ia n te ), coincide com o espaço flo resta e com o espaço sagrado-
-ritu a l, isto é, com os v ários tem plos n a Á frica e com o “te rre iro ”
no Brasil. Tal in te rp re ta ç ã o é s u ste n ta d a p ela relação e n tre o p ilar
cósmico, o òpó ò ru n o un àiyé, equivalente à co rren te pela qual des­
ceram os ò risà criadores, e o poste c e n tra l da casa-d e-cu lto , loca­
lizado p recisam en te no cen tro do espaço sag rado, e que “liga” o
m und o dos hom ens ao m undo dos deuses. Em algum as v aria n tes
m itológicas b rasileiras, a árvore, que equivale e stru tu ra lm e n te ao
p ila r e ao poste ce n tra l, e que é p la n ta d a em m uitos “terreiro s”, é
concebida como te n d o u m a raiz im ensa que a trav essa o .m undo por
sob o oceano, a té a Á frica. E sta ú ltim a se tra n sfo rm a , em algum as
concepções afro -b rasileiras, no equivalente do òrun, e é p o r ela que
os òrisà vêm ao “povo de sa n to ” brasileiro. Pois n ã o é a Á frica o
lu gar de origem dos a n tep assad o s (que co n tam com fo rte culto n a
B ah ia ), o lu g a r de onde a cu ltu ra veio p a ra o B rasil, assim como
o òrun é o lu g a r de onde ela veio p a ra o m undo (África) ?
Todavia, é a in d a necessário re ssa lta r que se a te rr a __ ilè __
em certos contextos sim boliza o àiyé, em outros sim boliza o òrun,

27
p a rtic u la rm e n te o dom ínio do ò ru n que corresponde aos m ortos, c h a ­
m ados ta n to pelo term o genérico a rà òrun, re fere n te a todos os h a ­
b ita n te s do òrun, como pelo term o m ais específico a rà ilè. T al
concepção é p e rfe ita m en te coeren te com o m ito, a n te s referido, da
m o rte e divinização de Sangó.
No e n ta n to , "c o n c re ta m e n te ”, a oposição ò ru n /àiy é , é de fa to
re p re s e n ta d a p o r um a oposição c é u /te rra , no sentido de a c im a /
abaixo: os òrisà desceram pela co rren te; a m ão-de-pilão b a te u no
céu a c im a ; o poste c e n tra l do “te rre iro ” é ve rtica l; ò ris à n lá é asso­
ciado ao céu e à p a rte superior d a cabaça u niversal, en q u an to O dú-
duw à é associado à te r r a e à p a rte inferio r d a m esm a cabaça; em
alg u n s m itos que relacio n am o ò ru n ao àiyé, a chuva que fertiliza
o àiyé é, d e sc rita como caindo do céu (cí. Dos S antos, 1976, p. 65);
ò sà lá (u m a d as qualidades de ò risà n lá ) e stá associado ao ar, e n ­
q u an to que O düduw à e stá associado à te rra (cf. Dos S antos, 1976,
p. 59).
Tem os en tão o estabelecim ento de u m a p rim eira oposição cós­
m ica, onde:

ò r ís à n l á : q r u n : C é u : A c im a : B ra n c o : D ir e it a : M a sc u l in o
Ó d ú d u w à : à i y é : T erra : A b a ix o : P r e t o : E squerda : F e m in in o

M as, essa oposição chega a se estabelecer, n a n a rra tiv a m ítica,


graças à em briaguez de ò riç à n lá . Não se t r a t a de sim ples e s tr a ta ­
gem a do m y th m a k e r, e n ã o se t r a t a de u m a em briaguez qualquer.
E sta u n id a d e do m ito de C riação exige alg u m a consideração. Em
p rim eiro lugar, observa-se u m a inversão, relacio n ad a ao símbolo
“palm eira". C onform e verem os m ais a d ia n te , a p alm e ira “é” ò r i ­
sàn lá , assim como ela tam b ém “é” Ifá. Ao invés de p la n ta r a p a l­
m eira n a T e rra , ou no àiyé, ò ris à n lá “colhe” d a p alm eira do òrun.
Se adm itirm o s, como fic a rá claro no d eco rrer de nossa análise, que
a p alm e ira sim boliza a c u ltu ra , tem os que Ç risàn lá “deveria te r
criado ta n to a n a tu re z a q u an to a cu ltu ra, pois lhe foram dados os
elem entos p a ra a criação n ã o só d a T erra, m as igualm ente dos h o ­
m ens. Isto é, deveria te r criado o àiyé em seu sentido m ais restrito ,
de m u n d o civilizado, e n ão só em seu sentido m ais lato, de plano
de ex istên cia oposto ao òrun. P o r isso, ò ris à n lá recebeu lesm as, um
de seus com ponentes simbólicos fu n d a m e n ta is. O ra, lesm as são a re ­
p resen tação do “sangue b ra n c o ” an im al, do esperm a. O esperm a,
“san g u e b ra n c o ”, n ão é to d av ia a p e n a s m a té ria re p ro d u tiv a bioló­
gica; é tam bém , assim como o “sangue verm elho” e o sangue “p re to ”

28
um a su b stâ n c ia que contém a essencialidade do ser, seja anim al,
vegetal ou m in eral. Conform e m o stra Dos S an to s (1976, cap. III), os
trê s sangues são p o rtad o res de um princípio básico expresso pelo
te rm o àse. O àse é o “poder que p erm ite que a existência seja, isto
é, que a existência a d v e n h a ” (cf. Dos Santos, 1976, p. 36j. T ra ta -se
de um conceito e x tre m a m e n te complexo, ao qual teremoa de retor­
n a r em outros p o n to s de nossa an álise. Por ora basta observar que
tal àse

está contido numa grande variedade de elem entos... nas subs­


tâncias essenciais de cada um dos seres. . . que compõem o
mundo. Os elementos portadores de podem ser grupados
em três categorias: 1. “sangue vermelho”; 2. “sangue branco";
3. “sangue preto" (Dos Santos, 1976, p. 41).

P o rta n to , ò ris à n lá , n o invés de lev ar “san g u e b ra n co ” ao àiyé,


consum iu “sangue b ran co ” no òrun. Ao invés de tra n s m itir àse a n i­
m al, in g eriu àçe vegetal. Podem os c o n tra s ta r este m ito com outro,
onde ò ris à n lá d á de b eb er a O dúduw á “á g u a do igbin (lesm a)” (cf.
Dos S an to s, 1976, p. 111). B ebendo o “sangue b ra n co ” d a palm eira,
isto é, seu vinho, g e ra -se um a situ ação de im potência criad o ra, e
d e sta situ ação em erge a oposição e n tre a n a tu re z a e os hom ens,
O düduw á e ò• risà • n lá . A dem ais,’ ao com eter ta l ato,7 ò• ris•à n lá bebe de
seu pró p rio sangue, isto é, com ete um a ação endogâm ica, pois ele é
p a re n te d a p alm eira. E xpressa-se aqui o u tro princípio fu n d a m e n ta l.
Podem os re la c io n a r sim bolicam ente a tro ca m a trim o n ial com o s a ­
crifício, n a m edida em que am bos con stitu em reciprocidade. T an to
o sacrifício ritu a l q u an to o in tercu rso sexual são ato s de “com er”
(o que, aliás, é claro, q u a n to ao a to sexual, n a p ró p ria linguagem
b rasileira e em v á ria s o u tra s). P or outro lado, é pelo sacrifício que
se faz a in te ra ç ã o p o r reciprocidade e n tre o àiyé e o òrun, possi­
b ilitan d o a circulação de àçç. Conform e se vê no m ito, ò risà n lá n ã o
realiza o sacrifício devido e bebe seu próprio sangue: de um lado,
to rn a im possível a tro c a de àse e n tre os dois planos da existência;
de outro, to rn a im possível a tro c a de àse e n tre o se r m asculino
(sangue b ran co -esp erm a) e o ser fem inino (sangue verm elho-m ens-
tru a ç ã o ). F in alm en te, é preciso que, por necessidade lógica, seja es­
tabelecida, prim eiro, a oposição e n tre o àiyé e o òrun, p a ra que
depois se postule su a in terd ep en d ên cia.
A oposição e n tre os dois planos é ain d a postulada pelo a f a s ta ­
m ento e n tre ambos. T al a fa sta m e n to é provocado, seja por m ulheres,
seja por crian ças, se ja p o r Èsú. Dissemos a n te s que ta l separação
resolve um problem a lógico, pois os hom ens n ão podem e sta r contí­

29
guos aos deuses, n ão podem co n fu n d ir-se com estes. T al separação
tem a ver, n a tu ra lm e n te , com o sentido m esm o do ritu a l religioso,
e d a p ró p ria religião. É som ente atrav és do sagrado, do ritu al, que
deve se p rocessar a com unicação e n tre os h u m an o s c os deuses. O
a fa sta m e n to do òrun, en tão , “põe” a religião. Mas, se ta l separação
respo n d e a u m a im posição ideo-lógica, ela c ria tam b ém um p a ra ­
doxo:

Qualquer descrição do mundo deve discriminar categorias


na forma “P é o que não-P não é ”. . . Os atributos do outro
mundo são necessariamente aqueles que não são os deste m un­
d o ... mas essa ordenação lógica de idéias tem conseqüências
desconcertantes — Deus passa a pertencer ao outro mundo.
O '•problema" central da religião é então o de restabelecer uma
espécie de ponte entre o homem e Deus (Leach, 1967, p. 3).

A ponte, como verem os a d ia n te , é o próprio sistem a de Ifá ou,


m a is co rre ta m en te , o sistem a Ifá-E su .
O m ito esclarece que a proxim idade e n tre òru n e àiyé tra z “po­
lu iç ã o ”, no sentido em que e s ta noção é explorada teo ricam en te
p o r D ouglas (1970): m ãos su ja s e o u ltra p a s s a r lim ites são categorias
sim bólicas equivalentes. Adem ais, as m ulheres “com em ” pedaços do
òrun, quando os h u m an o s deveriam “d a r de com er” (sacrifício-ali-
m en to ) aos seres do òrun. A poluição e a violação das interdições
sã o provocadas p o r seres am bíguos, isto é, por seres lim inais: m u ­
lh eres, crian ças e Esu.
T a l noção de am bigüidade nos leva à segunda ordem de oposi­
ção. Ao descerem à T erra, os criadores realizam a sep aração en tre
te r r a e ág u a. Em alg u m as versões, a n te s d a Criação, existia ap en as
á g u a ; em o u tras, existia lam a, ou um a superficie p an tan o sa . A água,
em alg u m as versões do m odelo cosmológico é um dom inio lim inal,
■o dom ínio dos m ortos, que corresponde à lin h a do horizonte, o lu g a r
onde céu e te r r a se tocam , conform e concepção v ig en te em certos
núcleos n à g ó d a B ah ia. A lam a, p o r seu lado, é um a m istu ra de
dom ínios opostos — te r r a e água. T a n to a água de u m a versão
q u a n to a la m a de o u tra são e stru tu ra lm e n te equivalentes: lim in a ri-
d ad e e am bigüidade. É necessário, p o rta n to , “p a ra que o m undo se
to m e próprio p a ra os h o m en s”, isto é, p a ra que se to rne próprio p a ra
a lógica, que se d esfaça a am bigüidade. E assim , sep ara-se a água
d a te r r a em dois opostos com plem entares, freq ü en tem en te expressos
■como dois “san g u es” (cf. Dos S antos, 1976). Mas, se opostos e com ­
p le m e n ta re s, deve h a v e r m ediação. Se é n ecessária a m ediação e n tre
o ò ru n e o àiyé, pelo ritu a l e por Èsü, o trickster, tam b ém é neces­

30
sária a m ediação e n tre o dom ínio das ág u as e da te rra . Ê cntfio
que surgem alguns elem entos sim bólicos explicativos.
A te rra , como se viu nos m itos, é co n tid a em um a concha cio
caram ujo. T al con ch a sim boliza, n a c u ltu ra Y orúbá-N àgó. o p r in ­
cípio do crescim ento, d a expansão: lem brem os que a Criação se deu
precisam en te em Ué Ifè, a “casa que se e x p a n d e ”. Tal concha, ad e­
m ais, é “p re ta ”, em oposição à lesm a-sêm en '‘b ra n c a ’’, pois a te rra -
-n a tu re z a se opõe ao h o m em -cu ltu ra. Mas, no processo intervêm dois
seres: o galo (ou g a lin h a ) de cinco dedos, e o cam aleão, am bos a m ­
bíguos e anôm alos, m ediadores que são, segundo a análise de Leaeh
(1967; m encionada a trá s (cí. p. 25). De fato, tr a ta - s e de um galo.
ave que n ão voa e que, adem ais, possui cinco dedos, caracterizan d o -
-se, pois, pela im p arid ad e, o que, em cu ltu ra Y orüba-N àgô, signi­
fica am bigüidade e m ovim ento, este ú ltim o oposto à noção de ordem -
-im obilidade. E tem os tam b ém o cam aleão, um réptil, categoria zooló­
gica p a rtic u la rm e n te am bígua, pois os ré p te is se a rra s ta m (cf. D ou­
glas, 1970), e m ais do que isso, um rép til que m uda de cor. Temos
aqui dois significados: o cam aleão ex p erim en ta a te rra réce m -cria-
d a; sob este ângulo ele é “u sad o ” pelo m y th m a k e r por ser um a n i­
m a l conhecido p o r seu m odo cuidadoso de c a m in h a r. O cam aleão é
um m ed iad o r; sob este o u tro ângulo ele é “u sad o” por ser am bíguo
— m u d an d o de cor, ele é ao m esm o tem po “P e n ã o -P ” 4. Temos
então, n o processo d a Criação, ta n to os “deuses e n c arn a d o s” quanto
os seres anôm alos; tem o s as oposições e a s m ediações. Em resum o,
a C riação consiste no estabelecim ento de u m a ordem lógica, de u m a
separação de contrários, de u m a im posição da cu ltu ra o rd enadora
p o r sobre um a "re a lid a d e ” caótica. O pondo-se o òru n ao àiyé; a
á g u a à te rra ; a n a tu re z a à c u ltu ra ; desfazendo-se a “m istu ra ”, pos­
tu la -se a c u ltu ra e n q u a n to um a construção ideo-lógica. Os m itos de
Criação, p o r o utro lado, construídos p o r sobre um sistem a de oposi­
ções b in árias, re su lta m n u m a e s tru tu ra de q u a tro elem entos opostos:
céu, te rra , água, te rra -firm e . “Q u a tro ”, como vimos, que se desdobra
em "dezesseis”, é tam b ém um com ponente do m ito. De um lado te ­
m os u m a ‘ e s tru tu ra q u á d ru p la ” ; de outro, tem os u m a progressão
2 — 4 — 16 e fin a lm e n te , u m a postulação d a ordem. T ais com po­
n e n te s são c e n tra is à conexão e n tre a cosm ologia e a adivinhação,
que co nstituem , a nosso ver, tran sfo rm açõ es de u m a m a triz única.

* Note-se que entre os Pon. as noviças aos cultos de vodum, correspon­


dentes aos òri§à Yorübá. durante seu período de iniciação, quando sc
encontram em estado limirial. betivixted and between, são consideradas
mutantes. “esposas do camaleão” e somente falam Yorübá, para os Pon
(assim como para os Nàgô do Brasil), uma linguagem sagrada.
O bservem os aqui que I íá , o princípio d a adivinhação, tam b ém p re ­
side à fecundação, associando-se e stre ita m e n te a ò ris à n lá ; que ele
a d iv in h a com nozes de p alm eira, e que estas são em núm ero de
dezesseis. Q u atro e dezesseis são núm eros-sím bolos c e n tra is n a ideo­
logia Y oriibá, como n o s m o stra B ascom (1969):
“ Os reis Yorübá distinguem-se pelo direito de usar coroas
de con tas... com 16 pássaros tri-dimensionais, também de con­
tas, presos a elas”. “Homens de 4 linhagens ou ramos do clã
real são elegíveis à posição de rei. . . “O Ogboni (sociedade
secreta) reúne-se a cada 16 dias em sua casa especial” “D e­
zesseis sacerdotes Otu dispõem dos sacrifícios feitos no pa­
lácio, e são incumbidos da instalação do Oni (rei), dos prin­
cipais chefes e do sacerdote de Odua”. “ O símbolo completo de
Osanyin, um estandarte de ferro encimado por 16 pássaros”
(Cf. Bascom, 1969, p. 30, 31, 36, 38, 103).

P oderíam os a c re sc e n ta r que q u a tro são as categorias m a trim o ­


niais, re p re se n ta d as p o r q u atro sím bolos e tra n sm itid a s por qu atro
gerações; ou que dezesseis são os “clãs” Y orübá (ao nível do modelo
ideal) e que dezesseis são os d istrito s u rb an o s d a cidade arquétipo.
Vários colegiados d a organização política Y orübá são com postos de
q u atro posições cen trais, acrescidas de 12 o u tras, perfazen d o um to ­
ta l de 16.
Além dos m itos de C riação, a origem dos Y orübá é tam b ém ex­
plicad a pelo que poderíam os c h a m a r de m ito s de m igração. Os Yo­
rü b á tê m p e rfe ita consciência de g ra n d e m igrações ocorridas no
passado, m as ta l passado foi “congelado” e as m igrações m itificadas,
de fo rm a in te ira m e n te coerente, desde um ponto de v ista e stru tu ra l,
com os m itos de C riação e com a im agem do cosmos. F re q ü en te ­
m en te, ta is m igrações são d escritas como m ovim entos originados em
Meca, ou n u m “in te rio r longínquo”, am bos equivalentes ao Céu, e
às vezes n u m sentido n o rte -su l e o u tra s vezes n u m sentido leste-
-òeste, am bos equivalentes, a d ep en d er da posição geográfica do in ­
fo rm an te, à oposição te rra -á g u a (o cean o ). T ra ta -se , em a lg u n s casos,
de u m a evidente islam ização do m ito. Não irem os, todavia, d ete r-n o s
sobre a an álise desses m itos de m igração, visto que equivalem , es­
tru tu ra lm e n te , aos d a Criação, o perando com os m esm os com ponen­
te s simbólicos (saco de te rra , galo que esp alh a a te rra , palm eira
com dezesseis ram os, etc.) e com as relações de oposição e m ediação
(cf. D en n et, 1910). A ex istên cia de ta is m itos, porém , onde a s m es­
m as oposições são expressas de fo rm a d iferen te-aq u iv alen te, ao lado
das v á ria s versões d istin ta s, m as “igu ais”, d a Criação, a p o n ta m p a ra
a necessidade m etodológica de se conduzir a análise n u m plano

32
com parativo, se quiserm os a b s tra ir “o m ito ”, isto é, a e s tru tu ra
p ro fu n d a de significados de u m a série ou m esm o de um co n ju n to de
séries m ito ló g icas5.

III — A IMAGEM DO COSMOS

N a cosmologia Y orübá-N àgô o m undo é concebido como form ado


por du as m eias-cab aças:

Oduduwa é a mulher de Orishala. Ela é a Terra e é casada


com o Céu. Eles se assemelham a duas grandes meias-cabaças
que uma vez fechadas, não podem nunca mais ser abertas.
A de cima é o firmamento e a de baixo a Terra. Elas se unem
no horizonte (que corresponde ao m ar). Oduduwa é cega. No
começo, ela e seu marido Orishala estavam encerrados no
interior de uma grande cabaça fechada, ficando Orishala na
parte de cima e Oduduwa na de baixo. Lá ficaram por muitos
dias, apertados, famintos e desconfortáveis. Oduduwa começou
a se queixar, culpando seu marido pelo conflnamento. Co­
meçaram a discutir e Orishala arrancou os olhos dela. Em re­
presália, ela o amaldiçoou, dizendo: “Você nada comerá a não
ser lesmas”, o que é a razão pela qual lesmas são oferecidas
a Orishala. Oduduwa e Orishala tiveram dois filhos, Aganju e
Yemanjá. O primeiro era a terra desabitada e a segunda era
a mãe dos peixes. Yemanjá desposou seu irmão Aganju e ti­
veram um filho, Orungan, o ar entre o Céu e a Terra. Orungan
teve relações incestuosas com sua mãe. Ele tentou convencê-la
de que seria bom ter um marido e um amante. Ela fugiu dele
e quando ele estava quase a alcançá-la, ela caiu e de seus
seios começaram a jorrar dois cursos d’água que se uniram e
formaram uma lagoa, e de seu corpo saíram os orishas, quinze
(Parrinder, 1967, p. 20).

A equivalência com os m ito s de Criação é evidente. N ovam ente


tem os a m ensagem de u m a e s tru tu ra “q u á d ru p la ”, fo rm ad a p o r dois
p a res de oposições b in á ria s, re p re se n ta d a s p o r u m a relação de p a ­
rentesco :

5 Quer nos parecer que a análise de Dos Santos (1976) relativa à cosmo­
logia e concepção da morte Nàgô, de resto muito rica, peca exatamente
por ter a autora baseado sua análise numa única versão da Criação onde
a oposição òrinçàlá/ Odúduwà surge sob a forma de homem/mulher,
quando em outras versões surge de forma distinta. O que importa não
e a relação homem/mulher, em si, mas a relação lógica que ela exprime.
Dessa imprecisão metodológica resulta, juntamente com uma interpre*
tação nitidamente psicanalítica, uma certa falta de consistência em sua
analise.

33
T erra

i I
T erra F ir m e á gua

E essa e s tru tu ra “q u á d ru p la ” de oposições se desdobra, p ela "abo­


m in a ç ã o ” do incesto, em um m odelo de dezesseis: os 15 ò risà filhos
de Y ém án já que, som ados a O ru n g an , form am 16. O m odelo é, e n ­
tã o , o m esm o d a C riação, sendo a m ediação lógica e n tre "q u a tro ”
(C é u /T e rra ; T e rra F irm e/Á gua) e “dezesseis” (os ò risà originais,
correspondentes aos 16 co m p artim en to s do cosmos) o p erad a por um
“terceiro ” — o ar, interm ed iá rio e n tre o Céu e a T e rra — produto
d e u m a oposição polar. É im p o rta n te n o ta r, tam bém , que ou tro in ­
cesto, aquele e n tre irm ãos, p reserv a a e s tru tu ra de “q u a tro ”. O m es­
m o relato , d a C abaça U niversal, re té m os com ponentes dos m itos
de C rianção: a s lesm as e a oposição e n tre ò risà n lá e O düduw à, ex­
pressa e s ta ú ltim a pelas posições a cim a/ab aix o e pelo c o n tra ste
e n tre visão e cegueira. C egueira sig n ifica escuridão (preto) e n q u an ­
to que visão significa luz, clarid ad e (b ra n c o ); ta l distinção re su lta
d e um conflito. A cegueira tam b ém su rg ira, como vimos, nos m itos
de Criação, onde ela se associa a u m a oposição e n tre á g u a doce,
p e rtin e n te ao dom ínio te rra -firm e (e freq ü en tem en te rep re se n ta d a
como o “san g u e” d e sta ú ltim a ) e água salgada. O fa to de qúe só
ò ris à n lá te m olhos, en q u an to O düduw à n ão os tem , será re le v an te
m ais a d ia n te em nossa análise, quando n os referirm os aos olhos de
G b aad u em conexão com a adivinhação, e te n d o em v ista que ò r i­
sà n lá re p re se n ta o ò ru n e n q u an to O düduw à re p re se n ta o àiyé. P o­
deríam os a in d a re ss a lta r que dos seios de Y ém ánjá co rreram dois
rios, “sangue b ra n c o ” d a te r r a equiparado ao “sangue b ran co ”, lei­
te, da m ulher. T al associação parece co n firm ar algum as in te rp re ta ­
ções d a t e r r a como “m ãe”.
A C abaça U niversal é ig b á Odü. N a realid ad e é, n ão um a ca ­
baça, m as duas m eias-cabaças. De u m lado, essa rep resen tação foge
à im p arid ad e. P o r o u tro lado, estabelece u m a un iã o âe contrários,
pois são d uas m etades, a de cim a branca e a de baixo p reta (Céu
e T e rra ; ò ru n e àiyé) que n ã o podem se r separadas. Se n a versão
a p re se n ta d a acim a surgem ò ris à n lá e O düduw à como m arido e m u ­
lh e r unidos em conflito, em o u tra s versões surge ap e n as ò risà n lá
como um ser andrógino; m as n este caso n ã o se tr a ta , p ro p riam en ­
te , de ò ris à n lá e sim de ò s à lá (o conhecido O xalá dos terre iro s de

34
Candom blé e de U m b an d a). De fato , “ò risà lá , ò risà n lá , ò sà lá ou
O bàtálà, sim boliza um elem ento fu n d a m e n ta l do começo dos com e­
ços . . . u m dos elem entos que d eram origem a n ovas fo rm as de exis­
tê n c ia . . . no àiyé e no ò ru n ” (cf. Dos S antos, 1976, p. 75), m as
ò sà lá c o n stitu i u m a rep resen tação d a fusão de ò risà n lá e de O dü­
duw à (cf. Dos Santos, 1976, p. 89). S eja n u m caso ou n outro, ig b á
O dü significa um a un ião de contrários, um a com plem entariedade de
opostos. E, p o r u n ir os opostos, significa tam b ém o todo. As duas
m etades, o ò run e o àiyé, devem se m a n te r u n id as porque íg b á Odü
contém todos os sin ais de If á que, como verem os ad ian te, re p rese n ­
ta m a ordem universal. Conform e verem os tam bém , o rom pim ento
dessa unid ad e d ialética, pela separação das duas m etades, ou pela
a b e rtu ra do íg b á Odü, tra z consigo o caos.
A com plem en taried ad e e n tre os opostos, e e n tre o dom ínio dos
hu m an o s e o dos deuses, expressa-se de d ife re n te s form as, in d ic a n ­
do que um não pode e x istir sem o outro (como adem ais não tem
existência isolada n e n h u m term o de um a oposição lógica). É assim
que vários m itos se referem à chuva, que cai do céu (òrun) sobre
a te rra (aiyé). Conform e m o stra Dos S antos (1976, p. 65), a chuva,
“sangue b ra n c o '1 conduz àse, que, em co n tato com a te rra , condu­
to ra de àse “sangue v erm elho”, to rn a possível a renovação e a so­
brevivência do universo. Ou ain d a a te r r a — Ig b á -n lá (grande c a ­
baça) ou Iy á-m i (m in h a m ãe), qualidades de O düduw à — deve ser'
c o n sta n te m e n te um edecida p a ra poder p ro c ria r (idem, p. 112). Nes­
sa série de m itos, ò ris à n lá é sim bolizado pelo òpásóró, com o qual
ele, lem brem os, “fu ro u ” a p alm eira p a ra beber sua seiva., O òpásóró
é substituído em alg u n s ritu a is pelo òsún, que “deve ficar sem pre em
pé. Diz-se dele . . . Ó òsün! ò s ü n fique erguido, n ã o se d eite ” (cf.
Dos Santos, 1976, p. 78 1. De um lado, o òpásóró pode e sta r associa­
do ao p ila r que liga o ò run ao àiyé; m as, sendo o òrun “hom em "
e o àiyé "m u lh e r”, em várias representações sim bólicas, o mesmo p i­
la r que liga ò ru n a àiyé tam bém “liga" o hom em à m ulher, po­
dendo c o n stitu ir um simbolo fálico conjugado à rep resen ta ção d e
O düduw à como um a cabaça, ig b á -n lá , que contém , "sangue verm e­
lh o ”, oposto e com p lem en tar ao “sangue b ra n c o ” d e ò risà n lá , a s
iesm as-sêm en. Devemos n o ta r que se O düduw à, quando em oposição
à ò risà n lá , é sim bolizado pelo preto (a m etad e in fe rio r d a cabaça
é p re ta , en q u an to ò ris à n lá é tam bém O bàtálà, S enhor do Pano B ra n ­
co), por o utro lado, quando no contexto de Ig b á-n lá, no papel de
criadora, é b ranca. Neste caso, a oposição se expressa pelo c o n tra s­
te “san g u e b ra n c o ”/" s a n g u e v erm elho” e a com plem entariedade pelo
‘‘ap azig u am en to ” do v en tre de O dúa após e sta te r comido igbin

35
(lesm as). P o r o u tro lado, sendo O düduw à "d a esq u erd a” — p o rta n ­
to, a rig o r um ebora, ao invés de um òrisà, ela é associada a ‘‘n o ­
ções de conflito e violência . . . ao que é seco e q u en te” ; ao c o n trá -
trá rio , ò ris à n lá é associado à calm a e à tran q ü ilid ad e, ao frescor e à
um idade:

Colocar água sobre a terra significa não só fecundá-là mas


também restituir-lhe seu “sangue branco” com o qual ela “ali­
menta” e propicia tudo o que nasce e cresce e, em decorrência,
os pedidos e rituais a serem desenvolvidos. Deitar água é ini­
ciar a propiciar um ciclo ... as “águas de ò sà lá ”, pelas quais
começa o ano litúrgico Nàgô no “terreiro” têm precisamente
este significado (cf. Dos Santos, 1976, p. 80).®

A In te ra ç ão e n tre os co n trário s é, p o rta n to , um a necessidade,


n ã o podendo, sem ela, h a v e r existência. E sta m esm a noção é re co r­
re n te em m u ita s séries m itológicas Y orübá-N àgô. É essa necessi­
dade de in teração , e de reciprocidade, que explica porque as du as
m e ta d e s d a cab aça u n iv ersal n ã o podem ser sep aradas, adem ais do
fato de que seu in te rio r contém o m istério d a existência, vedado aos
hom en s — Igba O dú é tam b ém Ig b a Iw a, a C abaça d a E xistência:

O conteúdo do igbá-odü é considerado como um dos mais


importantes segredos. Bascom (1969, p. 82) in d ica ... "em Ifè
os adivinhos acreditam que o fato de revelar seus conteúdos <dô
igbádú) causaria sua m o r te ...”. Separar as partes do igbá-odü
também significa o aniquilamento. Abraham observa: “Em
•certas versões, ela (Odúduwa) é a mulher de Obàtálà: essa.
Iinião é simbolizada por duas cabaças embranquecidas, estri­
tamente ajustadas uma à outra. Odúduwa é a divindade que
se supõe dar longa vida, assim todos os chefes e anciãos pos­
suem uma cabaça-odú em suas casas e se, por uma razão qual­
quer. eles desejam morrer, abrem essas cabaças (cf. Dos Santos,
1976. p. 65-66).

M ais a d ia n te voltarem os a nos d e te r sobre a significação do


Igbá-O d ü . P o r ora, d eten h am o -n o s em alguns outros aspectos do
m odelo cosmológico Y orubá-N àgô relev an tes p a ra nossa an álise do
sistem a de Ifá.

6 Podemos aqui observar que do “sangue vermelho” contido no interior da


terra nascem, por transformação daquele, em decorrência de sua inte­
ração com o “sangue branco”, chuva, os rios qué alimentam os seres
da terra. Trata-se de uma clara analogia com o leite materno, resul­
tante da combinação do “sangue vermelho” feminino com o “sangue
branco” masculino. Veja-se o mito de Yémanjá e do nascimento dos
òrisà, no qual, dos seios desta nascem dois rios.

36
O bservam os aquilo que cham am os de u m a concepção "q u á d ru ­
p la ” do m undo. E sta m esm a exprim e-se tam b ém naquilo que pode­
ríam os c h a m a r de um p a d rã o de replicação, d a casa (u nidade cós­
m ica m enor) ao m undo (unid ad e cósm ica m a io r). A casa é id e al­
m en te concebida como co n stitu íd a de q u a tro p aredes; a n alo g a m en ­
te, a cidade é tam bém , idealm en te, c ircu n d ad a p o r q u atro paredes,
cad a u m a com um p o rtã o do qual p a rte m q u a tro cam inhos. O reino
é igualm ente concebido como sendo circundado por qu atro paredes
e o m undo, íin a lm e n te , é re p resen tad o p o r u m quadrado, ou r e tâ n ­
gulo, cujos q u a tro can to s correspondem aos p ontos card eais — as
forças q u e con tro lam o m undo — co rrespondentes, cad a um , a um
òrisà e a um Odü do sistem a de Ifá . Tem os en tão um m odelo que
se ex p ande d a unid ad e m en o r à m aio r ou, recip ro cam en te, onde
ca d a unidade m enor, “c o n tid a ”, replica a u n id ade m aior, a to ta li­
dade co n tin en te. Devemos n o ta r que Ilé Ifè, o local onde teve lu ­
g a r a Criação, é a “casa q u e se ex pande”, ou a “casa am p la ”, con­
form e vimos no m ito reg istrad o por P a rrin d e r (1967). Tem os en tão
u m a série de hom ologias, desde o compound. (linhagem — co n ju n to
de fam ílias), à cidade (con ju n to de lin h a g e n s 7), ao reino (co n ju n ­
to de cidades) e fin alm en te ao m undo (co n ju n to de rein o s). A es­
tru tu r a "q u á d ru p la ” se m ultip lica q u atro vezes, chegando a um u n i­
verso de dezesseis: dezesseis é, como verem os a d ia n te, o “co njunto
u n iv e rsa l”, a ordem to ta l, re p re se n ta d a pelos 16 òrisà e pelos 16
sinais (Odü) de Ifá.

C asa = C idade = R e in o = M u n d o = O rdem T otal


. 4 4 4 4 16
Neste pon to d a a n á lise farem os referên cia a um m ito relativo
a Ifá. C oncentrarem os, nossa an álise em If á m ais a d ia n te , m as esse
m ito t r a t a d a “e s tru tu ra q u á d ru p la ” e fornece u m a cla ra conexão
e n tre If á e a C riação (postulação d a o rd e m ):

Ifá é o primogênito (Oni — também o titulo do rei de Ifç)


de Odüduwà e Obàtálà. Ele é conhecido como Àwnomila, a
cabaça na qual são mantidas as dezesseis nozes de palmeira.
O Oni estava sofrendo de uma doença dos olhos e pensou que
iria morrer; então dividiu todas as suas coisas entre seus filhos

7 Observemos, a propósito, que a cidade mítico-arquetípica Yorübá com­


põe-se de dezesseis distritos urbanos, correspondentes a dezesseis clãs
(cuja “materialização institucional” é a linhagem) descendentes dos de­
zesseis òriçà originais.

37
e ordenou-lhes que fossem viver em certas aldeias. Alafin foi
esquecido, por isso lhe foi dada toda a terra. Em todos os
assuntos relativos à terra, o Alafin toma o lugar do Oni. Os
filhos eram: Alafin, chefe dos Oyó; Olowu, de quem descendem
os Egba; Ajuwale, de quem descendem os Jebu; e Alaketu, do
qual são descendentes os Kétu. Esses quatro irmãos levaram
consigo, cada um, três outros irmãos, e cada um destes fundou
outros reinos. Os quatro irmãos, filhos de Ifá, eram o reino
Yoruba completo, que era cercado por quatro muros: I gtjn
Merin N i I lé I vi (uma casa é composta de quatro cantos, não
sendo, de outra forma, completa). Os Oyó, Ijebu, Egba e Kétu
são os quatro muros do reino (cf. Dennet, 1910).

D eixando de lado a óbvia m ensagem política — o poder secular


do A lafin de Oyó, re ssa lta que foi Ifá, en tão , quem originou a “o r­
d em Y o rü b á” (m esm o que e sta se a p resen te como um a “pax Oyó” )
— qu atro reinos m ultiplicados em dezesseis. O sim bolism o é o m es­
m o d a C riação e d a im agem do cosmos; cab aça; cegueira; q u a tro -
-dezesseis; q u atro cantos; nozes de palm eira. Ademais, a b a n d eja
d iv in a tó ria (ò p ó n If á ) , sobre a qual são traçad o s os sin ais de Ifá ,

. . . representa o mundo tal como o concebem os Yorübá.


Os Y orübá... acreditam que o seu pequeno ambiente constitui
o mundo. Assim, o mundo representado pela face da bandeja
de Ifá era a cidade de Ifè, e esse mundo “quadrado” alargou-
-se gradualmente, e ainda continua a se ampliar até o mundo
maior que conhecemos hoje (cf. Odugbesan, p. 200 — grifos
nossos) 8.

Esse m undo quad rad o é controlado por q uatro forças sob ren a­
tu ra is, que presidem sobre as àre a s correspondentes aos q u atro pon­
tos cardeais. Segundo F robenius (1913, p. 264) essas qu atro forças
sáo Sàngó, que preside sobre o oeste; Èsú, que preside sobre o leste;
Q b àtálà sobre o sul e Ogun sobre o n o rte. D en n e t a p o n ta u m a ver­
são diversa, onde tem os O bàtálà, “a p o n tan d o p a ra o N orte” ; Odü-
duw à “a p o n ta n d o p a ra o S u l” ; Sàngó (Ja k u ta ) p a ra o Leste, e Ifá
p a ra o Oeste. Não o b stan te as variações, elas exprim em oposições
em contextos diversos, e p erm anece sem pre o co n ju n to de dois p a ­
res de oposições binárias, ta l como nos m itos de Criação.

s Não há dúvida de que o modelo cosmológico Yorübá é particularmente


adequado para fazer face à mudança histórica e à incorporação do co­
nhecimento objetivo, sem necessidade de modificar-se. O modelo permite
a absorção da história sem alteração da estrutura — de certa forma, um
“esfriamento” da história “quente”.

38
A co m paração e n tre o m odelo cosmológico Y orübá e a e s tru ­
tu r a do “te rre iro ” Nàgô d a B a h ia nos oferece o u tro s elem entos cíf
análise, visto que aquele modelo é tam b ém replicado no espaço sim
bólico do “te rre iro ”.
De um lado, o “te rre iro ” como urn todo co n stitu i u m modelo
m icrocósm ico da Á frica; de outro, reproduz a im agem do m undo.
M ais do que um sim ples lu g a r de culto, o "te rre iro ” co n stitu i um a
com unidade, um a sociedade, o egbé. De fa to , boa p a rte dos in te ­
g ra n te s do g ru p o -d e-cu lto h a b ita nos lim ites do “te rre iro ” ou em
suas proxim idades. R eciprocam ente, m u ita s v izin h an ças tê m o “te r ­
re iro ” como o c en tro focal de su a v ida co m u n itária. Em alguns c a ­
sos m esm o, g ru p o -d e-cu lto e g ru p o -d e-v izin h an ça são co-extensivos.
M esmo os que m o ram m ais longe fre q ü e n ta m o “te rre iro ” com r e ­
gu larid ad e e ai p assam dias seguidos d u ra n te as gran d es cerim ô­
n ia s an u ais. É com ju ste z a que B astid e (1958) e Dos S antos (1976)
co m p aram o “te rre iro ” ao com pound Y o rü b á 9.
N este te rre iro opõem -se um espaço “u rb a n o ” e um espaço “flo­
re s ta ”, ta l como no m odelo cosmológico Y o rü b á descrito por M or-
ton-W illiam s (1964): o Ué Àiyé divide-se em dois pólos opostos, o
m u n d o d a cu ltu ra e o m undo n ão h u m an izad o ; o m undo dos h u ­
m an o s e o m undo dos so bre-hum anos. O àiyé p ro p ria m e n te dito
significa o m undo h ab itad o , o m u n d o civilizado, ordenado, o rg a n i­
zado e m estados, o lu g a r onde vivem as pessoas em meio a seus
cam pos cultivados; “inclui a idéia ou o p a d rã o de um a vida ap ro ­
p ria d a m e n te vivida”, em oposição à flo resta d ista n te , não cultivada.
T r a ta - s e de um a oposição que exprim e a dicotom ia c u ltu r a /n a tu re ­
z a ; m a s tr a ta - s e tam b ém de u m a oposição e n tre o m undo dos h o -
m é n s e o m undo so b re n a tu ra l — e n tre os A rá Àiyé e os A rá ò ru n .
O espaço “u rb a n o ” com preende os v ário s Ilé ò ris à (tem plo de
u m ò risà ); o Ilé Àse (p a rte d e stin a d a à reclusão das noviças, à
to z in h a ritu a l e a u m a sala p a r a d eterm in ad o s r itu a is ) ; o “b a r r a ­
cão”, onde se realizam as g ran d es cerim ônias públicas, e habitações
p a r a os m em bros do egbé. No espaço lim in al e n tre o “u rb an o ” e a
“flo re sta ” situ a -se a casa dos m ortos — Ilé-Ib o -A k u — “local de onde
n in g u é m pode se a p ro x im a r . . . sep arad o do re sto do ‘te rre iro ’ por
u m a cerca de arb u sto s ritu a is ” (Dos Santos, 1976, p. 34).

s O “terreiro” pode ser concebido como um “território simbólico” da iden­


tidade Nàgô e de cada “nação” específica (tal como a “nação de K etu”,
por exemplo) conforme nos fala Cardoso de Oliveira, ao se referir aos
mecanismos de “prolongamento” de etnias transplantadas para as quais
é “indispensável um território, um ‘setting’ que lhes assegure a atualização
de formas de organização ‘típicas’ ” (cf. Cardoso de Oliveira, 1976, p.65 ■.

39
O ‘‘m a to ’" é um espaço cercado de perigos, no qual não se a v en ­
tu ra m os h a b ita n te s do espaço “u rb a n o ”, com exceção dos sacerdo­
tes de ò sa n y in , de ò g ü n e de òsòsi, que ali realizam ritos específi­
cos, pois o "m a to ” é tam b ém um espaço sagrado. O espaço “u rb a ­
n o”, ao contrário , é o m undo dom esticado.

O espaço “urbano”, doméstico, planificado e controlado pelo


ser humano, distingue-se do espaço “mato” selvagem, fértil, in-
controlável e habitado por espíritos e entidades sobrenaturais.
Ambos os espaços se relacionam. O espaço “urbano" expande-
-se, fortifica-se e toma elementos do "mato”, que ele deve pagar
conseqüentemente. Há um intercâmbio, uma troca. O “terreiro",
por estar constituído pelos dois espaços, mais a água repre­
sentada pela fonte, contém todos os elementos que sombolizam
o àiyé, este mundo, o da vida. Mas nele estão plantados e
consagrados os altares (os peji) com seus lugares de adoração
(os ajobç e os ojubo), onde são invocadas as forças patronas
que regem o àiyé. . . que permitem por sua presença simbólica
— nos "assentos” e através do culto — estabelecer a relação
harmoniosa àiyé-òrun (cf. Dos Santos, 1976, p. 34).

Se n a A írlca os tem plos d a s v árias d ivindades se en c o n tra m


distribuídos por v árias cidades, n a B a h ia eles se c o n ce n tra m todos
no in te rio r do espaço do " te rre iro ” que constitui, por assim dizer,
u m a “m in ia tu ra c o n c e n tra d a ” de um reino Y orübá, ou de u m a “ci-
d ad e -e sta d o ”. Id e a lm e n te os vários Ilé ò ris à são dispostos ao redor
do Ilé Àse, onde se realizam os rito s relativos à com unidade como
um todo. Coloca-se assim o Ilé Àse como c en tro do modelo cosmo-
lógico-espacial-sim bólico, n u m a série de replicações que retom arem os
ao fin a l de nossa análise.
F u n d a m e n ta l n a e s tru tu ra sim bólica do “te rre iro ” é a p resen ­
ça do Ilé Èsü, pois se o “te rre iro ” replica o àiyé replica tam b ém a
relação e n tre este e o ò ru n , é ju sta m e n te Èsü que faz a com uni­
cação e n tre os dois planos de existência, como co n d u to r dos sa c ri­
fícios e, conseqüentem ente, como m o to r d a circulação de" àçe. P o r
isso, ca d a Ilé Õ risà tem um “asse n to ” de Èsü, pois Èsü é a “voz”
de cad a òrisà, seu m ensageiro, isto é, é o sistem a de òrisà em ação,
em m ovim ento como modelo dinâm ico, en q u an to Ifá é esse sistem a
“p en sad o ”, como m odelo estático. Em resum o, o ' te rre iro ” inclui
to d a s as rep resen taçõ es sim bólicas do àiyé e do ò ru n e d a relação
en tre am bos. A inda, se o “te rre iro ”, em sua e s tru tu ra espacial-sim -
bólica e n a atividade ritu a l, replica o reino afric an o e a relação

40
àiy é-ò ru n , a org an ização social do g ru p o -d e-cu lto e seus rito s re­
plica a lin h ag em e o c l ã .10
O utro aspecto a in d a deve ser ressaltad o . In d a g a B astide se “a
construção do tem plo lem b ra á' criação do m u n d o ?” e responde ele
que, à p rim eira v ista não, pois a c a sa-d e-cu lto é q u ad ra d a e não,
re d o n d a :
. . . o homem se adaptou a seu novo meio geográfico e
cultural; ele tomou emprestado aos brancos os procedimentos
de seus artífices e o plano de suas habitações (cf. Bastide,
1958, p. 66-67).

D iscordam os de B a stid e : n ã o se tr a t a de a rq u ite tu ra m as de


cosm ologia; n ão se t r a t a de c o n stru ir casas, m a s de co n stru ir o
m undo. A c a sa -d e -cu lto e s tá m u ito em acordo com a ideologia ao
ser q u a d ra d a — ela é o sím bolo m a te ria l do m undo quadrado. S ua
e s tru tu ra n ão pode ser co m preendida em term o s de padrões arq u i­
tetônicos, irrelev an tes, m as de p ad rõ es simbólicos. Todavia, dois p o n ­
tos observados p o r B astid e são e x trem am en te relevantes p a ra nossa
an álise: o p rim eiro re fe re -se à existência, n a casa -d e -cu lto de um
‘‘poste c e n tra l” sem q u alq u er fu n ção arq u itetô n ica. M as, se ta l pos­
te n a d a tem a v e r com a e s tru tu ra m a te ria l d a casa, tem m uito
a ver com su a e s tr u tu r a sim bólica:

Ao contrário, ele tem uma função ritual evidente: é em


torno dele que giram as filhas dos deuses em suas rondas ex­
táticas e é também a seus pés que nas cerimônias mortuárias,
ou “axexê”, são depositados os pratos de oferendas (cf. Bastide,
1958, p. 67).

Adem ais, é e x a ta m e n te sob o poste c e n tra l que se e n c o n tra e n ­


te rra d o o àse do terreiro , seu “m istério ”, su a “fo rç a”. 11 É fu n d a m e n ­
ta l le m b ra r que, n a B a h ia } o àse é concebido como sendo o “alicer­
ce do m u n d o ”.
O poste c e n tra l é a expressão sim bólica d a oposição Céu (ò ru n )/
T e rra (àiyé) e de su a m ediação, e o àse é e n te rra d o — “p la n ta d o ”
— ju sta m e n te n o p o n to onde Céu e T e rra são ligados pelo poste —
o centro do m undo. O poste é ce n tra l, n ão porque fica no centro
da casa, m as porque ele to ca a T e rra precisam ente no ponto de
in terseção das lin h a s que u n em os p ontos cardeais.

Este é um aspecto por demais complexo para ser tratado no âmbito


deste ensaio. Em outro trabalho, relativo à estrutura de parentesco de
certos setores da sociedade baiana estudamos em detalhe o parentesco
ritual do grupo-de-culto (cf. Woortmann, 1975).
11 Para uma excelente análise do significado de àsç ver Dos Santos, 1976,
capítulo III.

41
CÉ U

A ju n ç ã o do Céu ccm a T e rra é o centro do m undo, isto é, é


Ifè, o “berço da h u m a n id a d e ” e o “um bigo do m undo”. O espaço
r itu a l é e n tã o u m a replicação da C riação e do modelo cosmológico.
Como já h a v ia n o ta d o Frobenius,
O templo é a imagem refletida do cosm os... O grande
poste central sustenta a corrente dos ancestrais; o frontão apre­
senta a irr.agem do astro, c os quatro pilares de sustentação
tornaram-ss o sustentáculo do céu (Frobenius, apud Bastide,
1958, p. 69).

C onform e observou B astide, os q u atro p ila re s o u tra coisa não


são senão os signos dos q u atro p ontos cardeais. Assim, o m odelo
cosmológico Y orübá atrav esso u o A tlântico e se e n c o n tra re p ro d u ­
zido no “te rre iro ” Nàgô d a B ah ia, assim como a im agem d a s duas
m eias cabaças ou a im agem an d ró g in a de ò sà lá . Segundo nossa in ­
te rp re ta ç ã o , o p oste c e n tra l é 0 p ila r qué lig a o ò ru n ao àiyé —
o òpó-o ru n oun àiyé — e o cen tro d a sala r itu a l co n stitu i um “q u in ­
to espaço”, equivalente, e stru tu ra lm e n te ao “nono espaço” do ò run,
am b o s espaços ím p ares e m ediadores.
O segundo pon to ressaltad o por B astid e re fe re-se ao m ovim en­
to ritu a l: é ao red o r do poste c e n tra l que d a n ç a m as filh a s-d e -sa n -
to, ao som dos atab aq u es sagrados. O clím ax do r itu a l é dad o p e la
descida dos ò risà que possuem as Iyaw o; a in d a que n ã o h a ja r e ­
ferên cia explícita, podem os in fe rir que a descida se fa ç a pelo pos­
te c e n tra l que su p o rta a “co rre n te a n c e s tra l” assim como a s d ivin­
dades c ria d o ra s desceram p ela c o rre n te m ítica. N ote-se que as fi-
lh a s-d e -sa n to realizam su a d a n ç a descalças e que o chão do “te r-
Teiro”, pelo m enos segundo alg u m as concepções, deve ser de te rra
b a tid a . A possessão consiste assim n u m a ligação e n tre ò ru n e àiyé.
B astid e observa que quando o deus to m a posse do fiel, este “volta

42
a se r” Sángó, ou o u tra divindade, tir a os sap ato s e seus pés re ­
to m am o c o n ta to com a te r r a viva que te m “q ualquer coisa de d i - w
vino”. O que a te r r a te m de “divino” é su a dim ensão cósmica. Ade­
m ais, d an çan d o em re d o r do poste ce n tra l, a s Iyaw o p assam pelos
q u a tro ca n to s do m undo, n u m a u nificação r itu a l do cosmos. O r i­
tu a l é, assim , um “p ô r a viver” do m odelo cosmológico.
Como são concebidos os q u atro p ontos cardeais? E videntem en­
te, tr a ta - s e de direções geográficas opostas, m as p a ra os Y orübá-N àgõ
são m ais que isso. Vimos que ta is pontos são associados a divinda­
des em posições de oposição, divindades essas que correspondem aos
q u atro prim eiro s sin ais do sistem a de Ifá, isto é, a p ares de- sinais
em oposição. P a ra os propósitos deste ensaio este é um p o nto fu n ­
d a m e n ta l: a concepção do m undo se ex pressa atrav é s d a lin g u a­
gem de Ifá.
O p onto de referên cia p a ra a d eterm in ação das direções b á ­
sicas é p a ra os Y orübá, assim como p a ra m u itos outros povos, o
m ovim ento do Sol, ao co n trário do que ocorre em nossa c u ltu ra
onde, após a adoção d a bússola, o p o n to c ard eal básico passou a
ser o Norte. Segundo observou D en n et, o Leste é cham ado Ila õ rü n ,
o local onde “aquele que se le v a n ta ap arece” ; o Oeste é “onde o Sol
se põe” ; o N orte é “à d ire ita do L este” e o Sul é "o qu arto c an to ”.
Conform e Dos Santos, os q u atro pontos do universo são: lyo õ rü n ,
o n a sc e n te ; Iwò õ rü n , o poente; ò tú n Àiyé, a d ireita do m uiido e
ò si Àiyé, a esquerda do m undo. Os p o n to s fu n d a m e n ta is são, en tão
L este e Oeste.
Existe u m a hom ologia e n tre tem po e espaço n a c u ltu ra Y orü-
bá-N àgô. À concepção “q u á d ru p la ” do m undo, isto é, do espaço, cor­
respond e u m a concepção an álo g a do tem po. Conform e é conhe­
cido, os Y orübá tê m u m a sem an a de q u atro dias, e q u atro de ta is
sem a n a s co n stitu em um mês. Tem os en tão que 4 x 4 = 16, de fo r­
m a con sisten te com a e s tru tu ra n u m érica do sistem a de Ifá e do
m odelo cosmológico. A lguns autores, equivocadam ente, supuseram que
os Y orübá tin h a m u m a sem an a de cinco d ias; n a realidade tra ta -s e
n ã o de um co n ju n to de cinco, m a s de um c o n ju n to de q u atro “m ais
u m ”. E ste "m ais u m ”, que co n stitu i de c e rta fo rm a um n ão -dia, um
d ia lim in al que liga um co n ju n to de q uatro a outro, equivale es­
tru tu ra lm e n te ao espaço “m ais u m ” do Õ rün, ao ponto c e n tra l do
“te rre iro ” — um “q u in to ” ponto — que liga os dois planos d a exis­
tên c ia , e a outros elem entos do modelo cosmológico e do sistem a
d e Ifá.
C onform e revelou F robenius (1913), os dias da sem ana corres­
pondem aos p ontos cardeais. A ordem da sem ana, estabelecida pelo

43
babaláw o (sacerdote de If á ) , como m o stra B astide, é e n tã o um ci­
clo que corresponde ao m ovim ento d as Iyaw o em to rn o do poste
cen tral, u n ifican d o os q u a tro p ontos cardeais. Tem po e espaço são
conceitos relacionados, e o m ovim ento d as Iyaw o é u m a relação
e n tre am bos, expressos a tra v é s d a linguagem de If á — pois ta n to
os q u a tro p ontos card eais q u an to os q u atro dias d a sem an a são ex­
pressos pelos q u a tro p rim eiros sin ais de Ifá. O gráfico que se segue
m o stra a relação e n tre espaço, tem p o e o sistem a de Ifá . H á que
acresc en ta r, a in d a , que, segundo algum as versões d a Criação, o m u n ­
do de q u a tro can to s foi criado em q u a tro dias (cf Idowu, 1966, p. 112).
2? Dia
N

4® 01A

Espaço, Tem po e o S istem a de Ifá .

Como se pode observar, os q u a tro d ias d a sem an a e os qu atro


can to s do m undo são rep resen tad o s p o r sin ais opostos e invertidos.
A cosm ologia Y orübá-N àgô revela, assim , u m a hom ologia e n tre
processo (Criação) e estado (im agem do m u n d o ); e n tre tem po e es­
paço. As oposições p o stu lad as pelos m itos de C riação são aquelas
que in te g ra m Ig b a O dü, a C abaça U niversal. O cosmos é p o r sua
vez replicado n a e s tru tu ra do “te rre iro ”, onde o tem po é u m m ovi­
m en to ritu a l. U m a e s tru tu ra “q u á d ru p la ”, como vimos, está tam b ém
p resen te n a série de hom ologias inclusivas v istas a trá s. Tem os en -

44
tã o ura modelo inclusivo global que pode ser rep resen ta d o como
se segue.

Dia
L

\ /
\ /
\ /
3 2 A
/ \
/ \
/

.S
4? Dia

0 = 0 C entro do U niverso (Poste C entral, P ila r Cósmico, Cor­


re n te 12
1 = Casa
2 = Cidade
3 = R eino
4 = M undo
—> = Tempo, M ovim ento R itual.

M as o indivíduo é tam b ém p a rte do cosmos, n ã o som ente como


“p e n sa n te ” m as como “p en sad o ”. O tra b a lh o de Dos S antos contem
um a observação fu n d a m e n ta l, re p re se n ta d a g raficam en te, d a au a l ex­
traím o s em fo rm a sim plificada o que se segue (cf. Dos Santos, 1976:
Fig. 6: Fig. 7; Fig. 8).

Em algumas versões mitológicas, o pilar cósmico, o òpó, é substituído


™ ,a corrente, imponente, o èwòn ámúnrò (cf. Dos Santos, 1976, p.
Sv i, corrente é, obviamente, aquela por onde desceram os òrlsà cria-
. guns, “terreiros” o poste central tem desenhado em sua
Volta uma corrente em espiral.

45
A = O n a scen te (Leste)
B = O p oen te (O este)
c --- A direita do m undo
D — A esquerda do m undo

Orí a cabeça. C ontém em seu interior


o d estin o individual, o òrisà tu telar
e o Èsú individual. Corresponde ao
n ascen te, ao futuro.

Os pés. Corresponde ao p oente, ao


passado, aos an cestrais.

Lado direito: elem en tos m asculinos.


c
= Lado esquerdo: elem en tos fe m in in o s
D

A = A fron te — n ascen te

B «b O occip ital — o poente

C = O lado direito

D = O lado esquerdo

46
J á vimos a n te s que é no cen tro do espaço sagrado da casa dc
culto do “te rre iro ", n o p o n to em que se cruzam a s lin h as que unem
os ca n to s do m u n d o (os cam in h o s básicos), n o ponto onde se liga
sim bolicam ente o àiyé ao ò ru n , que é “p la n ta d o ” o àse do “te r ­
reiro ”. O ra, conform e observou Dos S a n to s (1976, p. 46), a Iyàlàse
(a “m ãe do àse; tam b ém Iyálò risà, p o p u larm en te c h a m a d a “m ãe-d e-
-s a n to ”) tra n s fe re e “p la n ta ” o àsç n a iyáw o (noviça) no decorrer
de um rito de p assag em cujo p o n to c u lm in a n te se d á quando a
p rim e ira coloca n u m a p eq u en a incisão fe ita e x a ta m e n te n o centro
da cabeça d a segunda, u m a p eq u en a m assa cônica con sag rad a, com ­
p o sta de d e te rm in a d a s su b stân cias específicas p a ra cad a noviça,
assim como a re p re se n ta çã o m a te ria l do àse do “te rre iro ” se compõe
de sub stân cias específicas dele, e que tra n s m ite m o “poder de r e a ­
lização”, a tra v é s de u m a com binação de su b stân cias que contêm
rep resen taçõ es m a te ria is e sim bólicas dos “san g ues” branco, verm e­
lho e p reto , do àiyé e do ò ru n (cf. Dos S an to s, 1976, p. 43). Pode­
ríam os in te r p r e ta r ta l r itu a l n ã o a p en as como um a iniciação ao
grupo de culto, à h ie ra rq u ia sa cerd o tal dos “te rre iro s” de candom ­
blé, m as como u m a in teg ração à ordem cósm ica-m ística; à e s tru ­
tu r a do “te rre iro ” e àqu ela do m u n d o p o r ele rep resen tad o . Essa
“cabeça cósm ica”, que te m su a c o n tra p a rtid a n o ò ru n e sua re p re ­
sen tação n o sistem a de Ifá , é objeto de um r itu a l periódico, o Bori
(“d a r de com er à cab eça” ) e stru tu ra lm e n te análogo- ao sacrifício r i ­
tu a l aos òrisà, o Ebo (“d a r de com er ao ò risà” ). A inda, sem pre que
o Nàgô faz u m a o fe re n d a sacrificial, ele a a p re se n ta aos qu atro
can to s do m undo — n ascen te, poente, lado d ireito e lado esquerdo
— pois os q u a tro p o n to s do espaço re p re se n ta m o cosmos.

Temos, assim , u m a hom ologia fin al, onde o indivíduo é in te ­


grado no cosmos. Os p o n to s card eais en c e rram o universo; os qua­
tro rein o s e n c e rra m o m undo Y oríibá; os q u a tro m uros en cerram
a cidade e as q u a tro p a re d e s en c e rram a c a sa ; os qu atro d ias e n ­
ce rra m o tem po. Os quatro principais sinais de I fá encerram a ordem
cosmológica. O corpo do indivíduo rep lica o m undo, assim como su a
cabeça, que e n c e rra a essência da pessoa (indivíduo in te g ra d o n a
ordem cosm ológica). É pela cabeça que o indivíduo se relaciona com
o ò ru n ; en tã o :

C en tro da C abeça : I n d ivíduo : : C en tro da C asa de C u l t o :


T erreiro : ; “ U m bigo do M u n d o ” : M u n d o .

47
Os sin ais de I f á correspondentes aos can to s do m undo, ou às
"raízes do m u n d o ”, são como dissem os, os q u a tro prim eiros do con­
ju n to de 16 sin ais p rincipais. Os dois prim eiros, correspondentes aos
pontos fu n d a m e n ta is — Leste e O este — são os m ais sim étricos de
todos, como podem os v er ao decom pô-los em q u atro seções:

Ogbe Meji

Não seria p o r sim ples coincidência, se considerarm os a im p o r­


tâ n c ia da sim e tria e d a "p a rid a d e ” n a ideologia Y orübá, que os
m ais sim étricos de todos os sin ais são associados pelos F on, trib u ­
tá rio s cu ltu ra is dos Y orübá, ao seu p a r criad or, M awu-Lisa, equiva­
le n te s a O d ú d u w à-õ risàn lá, e rep resen tad o s pela oposição Sol-Lua.
T am pouco seria p o r coincidência que ta is sinais correspondem à
dim ensão espacial d a v id a c ria d a : o eixo L este-O este (M aw uji-Li-
saji) é, como m o stra M aupoil (1943, p. 65), "a g ran d e e stra d a d a
-vida. Gbeligbo re p re se n ta tu d o aquilo que vive e é apreendido pelos
sen tid o s”. L este-O este é tam b ém a direção p erco rrid a nos m itos de
m ig ração , equivalente, como já observam os, ao m ovim ento e n tre
Céu e T erra.
A presentam os, a seguir, o co n ju n to dos 16 sinais do sistem a de
If á . O bserve-se que ta is sin ais são concebidos como p a re s de “m a ­
chos” e "fêm eas”, e que cada sin al “fêm ea” é um equivalente in ­
vertido- do "m acho” do m esm o p ar. Esses sinais são concebidos co­
m o te n d o “nascido” aos pares, da m esm a fo rm a como n asceram os
26 òrisà originais.

48
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49
F in alizan d o este tópico, a p resen tam o s a rep resen tação g rá fi­
ca d a im agem do cosmos, ta l como concebida pelos Y orübá-N àgô e
pelos Fon.

A V id a - Gbe
(M aupoil *■ Fon)

Céu

O M undo ( B a s tid e - CandQbLé Nàflã


da R ahiu)

50
I V — A Adiv in hação

P a r a os Y orübá-N àgô, assim como p a r a os F on, o destino dos


hom ens é p ré -d e te rm in ad o , a in d a que n ão de fo rm a absoluta. D e
fato, se o fosse, o r itu a l divinatório se to rn a r ia u m ta n to sem se n ­
tido. O h om em n ão é objeto pacífico dos desejos e caprichos dos
deuses; ele in te ra g e com os deuses, pois, n a relação e n tre o ò ru n
e o àiyé, o hom em , é ta n to objeto q u an to su jeito. Seu b e m -e sta r
depende da obediência a prescrições sag rad as que m a n tê m a ordem
cosmológica; m as, p o r outro lado, a ex istên cia dos próprios deuses
depende d a realização de ato s ritu a is, n o ta d a m e n te de sacrifícios
(contendo os “san g u es” tran sm isso res de àse). O que o sacrifício ex­
p ressa é precisam ente- u m a relação de recip ro cidade e n tre os dois
p lanos d a existência, pois é o sacrifício que to rn a possível a c ir­
culação do àse e n tre am bos. O sacrifício, p o r su a vez, t a l como j á
tra n sp a re c e u em alg u n s dos m itos citados, depende e stre ita m e n te do
sistem a de Ifá, pois é este quem o prescreve e Èsü quem o tr a n s ­
p o rta. O sacrifício, como será visto m ais a d ia n te , foi introduzido p o r
If á p a ra re s ta u r a r a ordem cosmológica e as relações equilibradas
e n tre os h om ens e os deuses. Se os deuses d ependem dos hom ens
ta n to q u an to estes daqueles, o hom em te m u m certo p o d er de b a r ­
g an h a, que p erm ite, a té certo ponto, m u d a r o curso dos eventos, con­
ta n to que ta l m u d a n ç a seja sacralizad a e co m pensada a tra v é s de
sacrifícios. ,
A noção de que o destino n ã o é u m absoluto é expressa pelo
p ró p rio Èsü, re p re se n ta n d o o conceito de acid ente, ta l como obser­
vado por- H erskovits (1938), em oposição a Ifá , rep re se n tan d o a
ordem . Èsü é a c o n tra p a rtid a lógica de I f á e seu com plem ento; é
o tric k ste r am bíguo, o m ensageiro, o m ed iad o r, que in terced e e tor­
n a as m odificações possíveis.
A concepção re la tiv ista d a ordem , que p e rm ite m odificações n o
plano “fenom ênico” d a realid ad e em pírica, desde que não se o fenda
0 plan o “noum ênico” do m odelo, e stá n a b ase do sistem a d iv in ató ­
rio 13. Sob outro ângulo, desde que n ão o fen d a a ordem n a qual
se baseia o sistem a d iv in ató rio de Ifá . O hom em não consulta o
babaláw o a p e n a s p á r a sab er o que o destino lhe reserva, m as p a ra

33 Os termos "fenom ênico” e “ noum ênico” são aqui utilizados em sentido


análogo ao utilizado por Megg.it (1972) ao distinguir os níveis empírico
e dos ‘’sonhos” n a cultura Walbiri, e correspondem, a nosso ver, aos
planos do àiyé e do òrun.

51
saber o que se pode fazer a respeito. A través d a adivinhação, o
hom em descobre su a relação p a r a com a ordem cosm ológica e p a ra
com os deuses que a controlam , e tam b ém os m eios p a ra poder
influen ciá-lo s, a fim de g a n h a r seu apoio e aquiescência n a p erse­
cução de seus objetivos. T ra ta -s e , sob certo ponto de vista, de con­
to rn a r u m a ordem “co n c re ta ” sem contudo p e rtu rb á -la ao nível do
modelo.
A fim de o rie n ta r suas decisões e descobrir seu destino, o Y orü-
bá-N àgô consulta o babaláw o, assim como o F on consulta o bokono.
E xistem m u ita s fo rm as de adivinhação, m as o oráculo de Ifá é, sem
dúvida, o m ais prestigiado. Tão prestigiado, n a verdade, que os reis
Y orübá e daom eanos m a n tin h a m seus próprios adivinhos p a ra asses­
so rá-lo s e aconselhá-los em assu n to s de Estado. Tam bém os “te r­
reiros” Nàgô b ah ian o s possuíam seus babaláw o, ain d a que hoje outro
modelo de adivinhação, derivado, o sistem a do çrindílogun, m an i­
pulado p ela p ró p ria ty álò risà, seja m ais comum. A geom ancia de
I f á foi im p o rta d a pelos Y orübá, provavelm ente a tra v és de povos
islam izados. Do pon to de v ista m atem ático, como um sistem a de
perm utações probabilisticas, os dezesseis sin ais p rincipais obtidos
pelo babaláw o são idênticos aos en contrados nos sistem as geom ân-
ticos do an tig o O riente Próxim o e da E uropa Medieval. Mas, como
ap o n ta M orton-W illiam s,

. . . o que é especialmente interessante é o modo pelo qual


o sistema foi completamente incorporado nas concepções cos-
mológicas Yorübá, desde os mitos da primeira descida de Ifá-
-Orunmilá do Céu em Ifé, até os detalhes dos Odu 14; de tal
modo que o adivinho Yorübá mulçumano que hoje pratica o
“darb-el-raml” (adivinhação pela areia) é considerado como
. . . consultando um oráculo diverso (cf. Mtorton-Williams,
1966, p. 407).

A e s tre ita relação e n tre o sistem a divinatório e o sistem a cos-


mológico s e rá a n a lisa d a n o ite m seguinte. Aqui farem os ap en as um a
breve descrição do processo de adivinhação.
Existem b asicam en te dois m odos de c o n su ltar a Ifá , diversos
de um p o n to de v ista m ecânico, m as e stru tu ra lm e n te equivalentes,
ta n to n o sen tid o m atem ático como simbólico. O prim eiro modo, p ro -

14 od ü são tanto os sinais desenhados quanto os mitos relativos aos mes­


mos. Tais odü são concebidos como algo vivo e ativo.

52
vavelm ente o m ais p restigiado, consiste no jogo de dezesseis nozes
de palm eira: o babaláw o seg u ra as nozes em u m a m ão e com a o u tra
p ro c u ra re tir a r ta n ta s q u an to possível com um m ovim ento único.
Se so b rar um a, ele d esen h a duas lin h a s n a b a n d e ja d iv in ató ria —
ç p ç n Ifá — u m a tá b u a de m a d e ira re p re se n ta n d o a concepção do
universo, com a p a rte c e n tra l co b erta de areia; se sobrarem duas,
ele desen h a u m a lin h a . P a ra o b ter o sin al com pleto, ou Odú, a
operação deve ser re p e tid a oito vezes. O segundo procedim ento, m ais
com um , consiste no uso do Okpelé, ou “c o rre n te d iv in ató ria ” — um a
c o rre n te ou corda n a qual estão p resas oito m eias-conchas, a in ­
te rv a le s regulares. O babaláw o segura a c o rre n te pelo m eio com
su a m ão d ire ita (todos os objetos relativos ao culto de If á devem
s e r m an u sead o s com a m ão d ire ita — o elem ento m asculino — e
ap e n a s p o r hom ens) de fo rm a ta l que q u a tro m eias-co n ch as de­
vam p en d er em cad a m etad e da co rren te, e a a tira de ta l modo
que ela caia em fo rm a de U. O bservando quais m eias-conchas caí­
ra m com a p a rte côncava e quais c a íra m com a p a rte convexa p a ra
cim a, o babaláw o desen h a, co rresp o n d en tem en te, um ou dois traços
n o òpón Ifá . O bviam ente, ca d a jo g a d a do O kpelé perm ite u m sin al
com pleto. Assim, p o r exemplo, se ele c a ir com to d as a s conchas com
a concavidade p a ra cim a, o sin a l será O gbe-M eji; se pelo co n trário ,
to d as são convexas, o O dü se rá O yeku-M eji. U m a m eia-concha, ou
noz ou pedaço de cab aça, côncava no O kpelé corresponde à re te n ­
ção de d u a s nozes n a m ão esquerda pelo p rim eiro processo, e vice-
-versa.

D (» II II
o o " 11
I I II
d o II II
" T

O g b e - M e ji O y e k u -M e ji

As d u a s m etad es do Okpelé são concebidas como sendo de sexos


opostos, a d ire ita m ascu lin a e a esquerda fem inina, e os sinais são
lidos d a d ire ita p a r a a esquerda, de fo rm a co nsistente com o sim ­
bolism o d a “preced ên cia d a m ão d ire ita ”. O co n ju n to to ta l de si­
n a is te m u m a ordem in te r n a de im p o rtân cia, ou de “senioridade”.
Os O dü são fre q ü e n te m en te considerados como filhos de Ifá , n a s-

53
eidos um após o o u tro e sendo os m ais "velhos” tidos como m ais
io rte s que os m ais jovens ir\
É claro que existem 255 p erm utações possíveis: d ad as d u as pos­
sibilidades p a ra cad a m eia-co n ch a e oito d estas no Okpelé, te ría ­
m os 2n, ou 2S = 256. É igualm ente claro que existem 16 possibili­
d ad es de resultados sim étricos (Odü M e ji) : 2n/2 n/-. Os dois sub­
c o n ju n to s — sim étrico e assim étrico — são b a sta n te distin to s n a
ideologia Y orüba-N àgo, sendo os últim os considerados como p erm u ­
taçõ es e n tre os prim eiros: n ( n - l ) . Os dezesseis sinais p rin cip ais (si­
m étricos) são os m ais relevantes, considerados em m uitos contex­
to s m itológicos como correspondendo aos 16 ò risà originais. São c h a ­
m ados “m ã e s”, en q u an to os assim étricos são cham ados "filhos” (Omo
O d ü ): p o r exemplo, o lado direito do Okpelé pode a p re se n ta r a m e­
ta d e do signo Ire te M eji, e o lado esquerdo, a m etade do Iro su n -
-M eji; n e ste caso, como n o dos dem ais signos assim étricos, é a p a r ­
te senior que prevalece, isto é Irosun.
A consistência n u m érica do sistem a de If á é b a sta n te notável:
usam -se 16 nozes; são feitas oito jog ad as com du as possibilidades
p a r a c a d a ; existem 16 sinais p rin cip ais e a c re d ita-se que por de­
tr á s de cad a u m existam dezesseis divindades-qualidade. Temos e n ­
tã o 16 x 16 = 256, que coincide com o to ta l de perm utações pos­
síveis. A tá b u a de sin ais é ela m esm à consistente, como se poderá
ver som ando todos os traço s em d iagonal: se procederm os d a ex ­
trem id a d e su p erio r esquerda - p a ra a in ferio r d ireita, ou vice-versa,
o resu ltad o será sem pre o m esm o: 46 traços. O núm ero to ta l de
sin ais "m ães”, 16, é tam b ém o quad rad o de 4, núm ero básico do
m odelo cosmológico e de Ifá : c a d a sin al é u m a duplicação de q u a ­
tro ; qu atro são os "can to s do m u n d o ” e q u atro são os dias d a se ­
m an a , que se desdobram n u m m ês de 16 dias. Q uatro são os ò risà
cu ltuad o s ca d a dia, p erfazendo 16 p o r sem ana. Os qu atro q u a d ra n ­
te s do com passo dividem -se, cad a um em o u tro s quatro, p erfazen ­
do um to ta l de 16 pontos cardeais, cada um correspondente a um
sin al de If á e a um òrisà.
Em outro s casos do m esm o sistem a (cf. M aupoil, 1943) a ta b ela é
com posta n ã o de dezesseis co n ju n to s de oito traços, m as de um igual
n ú m ero de co n ju n to s de q u atro traços. Porque d esenham os Y orübá

15 Podemos aqui nos antecipar à análise que se segue, no item V. ressal­


tando a importância dessa concepção, e tendo em vista que os Odü são
equiparados aos 16 òrifjà originais: os 16 òrlsjà criadores; forças que con­
trolam o cosmos, são filhos de Ifá, isto é, da própria ordem cosmológica.
Compare-se essa concepção com o mito transcrito à página 37, e terç-
mos uma clara relação entre adivinhação, Criação e cosmologia.
figuras daplicadas? A explicação se e n c o n tra n a rejeição pelos Y orú-
bá dos n ú m ero s ím pares, pois sim b o licam en te (e a in d a que possi­
velm ente de fo rm a inconsciente) a im p a rid a d e é im pura. A im p a-
rldade, e p a rtic u la rm e n te o n ú m ero três, é associada a m ovim ento
(e este se opõe ã o rdem ) e a lim in arid ad e. É preciso le m b ra r que,
obviam ente, im puro n ã o significa “m a u ”. Vimos que a sem an a Y orü-
b á se compõe de q u a tro d ias aos quais se a c rescen ta um quinto
“n ã o -d ia ”, o m ed iad o r e n tre dois co n ju n to s de q u a tro dias. Os d ias
d a sem an a são d ias-d e-m ercad o e o quinto, isto é, o “m ais u m ”, é
um d ia sem ativ id ad e n a p ra ç a de m ercado; se em cad a d ia são
cultuados q u a tro ò risà — dezesseis em q u a tro dias — no qu in to cul­
tu a m -se todos os dezesseis. O q u in to d ia re p re se n ta o “fech am en to ”
de um co n ju n to de q u a tro e a a b e rtu ra de o u tro (é como se fosse,
de um p o n to de v ista lógico-m atem ático, u m conju n to -in terseção )
de fo rm a an álo g a ao m odo pelo q ual o q uinto cau ri “fech a” u m
co n ju n to de q uatro, q u ando a v en d eira d a p ra ç a -d e-m e rca d o con­
ta dinheiro.
A rejeição dos n ú m ero s ím p ares leva os Y orübá a c o n ta r em
dobro: D ennet, pedindo a um hom em que contasse q u a n ta s árvores
existiam em d e te rm in a d a p lan tação , observou que o m esm o c o n ta ra
precisam en te o dobro de árvores aüe ex istiam “n a re alid a d e” (cf.
D ennet, 1913). O ra, se, como esperam os d em o n strar, o sistem a de
Ifá sim boliza a ordem , e se a im p arid ad e sim boliza im pureza, am b i­
güidade, lim inalidade, a ideologia Y orübá n ã o poderia a d m itir ta l
im p arid ad e e n tre os dezesseis sinais p rin cip ais de Ifá , o núcleo do
sistem a. D uplicando os sinais, resolvem o pro b lem a: um co n ju n to ím ­
p a r de q u a tro sin ais e u m a classe vazia, ta l como, por exemplo:

I
I
I
II

é tran sfo rm a d o n u m co n ju n to p a r de oito sinais e duas classes vazias:

I I
I I
I I
II II

se m que a ordem ideológica n em a e s tru tu ra m ate m á tic a do siste­


m a sejam afetados.

55
O m esm o p a d rã o explica tam b ém porque os signos são conce?
bidos n ã o como sin ais sim ples, m as como p ares, como gêmeos, é
g e ra lm e n te como p a re s m ach o -fêm ea. O bserve-se, de passagem , que a
c u ltu ra Y orübá-N àgô n a B a h ia reserv a u m culto especial aos gê­
m eos, Ib e ji (associados a Cosme e D am ião). Assim, O gbe-M eji e
Q yeku-m eji fo rm am o p rim eiro casal, do q u al o m em bro senior é
m ascu lin o e o ju n io r fem inino. Lem brem os, o u tra vez, que os ò risà
nascido s d e Y é m á n já tam b ém n a sc e ra m aos pares.
A o rd en ação d as p erm u taçõ es obedece, pois, a dois princípios
ideológicos: a sen io rid ad e e o p rin cíp io de que “to d as a s coisas são
a g ru p a d a s em p a re s” 1C. O p rim eiro h ie ra rq u iz a os sin a is n u m a o r­
dem de im p o rtâ n c ia que, conform e alguns babaláw o, corresponde à
ordem p ela qual os ò risà d esceram do Céu, ou, conform e outros, à
ordem de cheg ad a de cad a O dü a Ilé Ifè. O segundo principio a g ru ­
p a os dezesseis O dü, ou m elhor, À gbà O dü, em oito casais, dos quais
o prim eiro, de acordo com m uitos babaláw o Y orübá ou m uitos bo-
kono F on, corresponde ao casal criad o r: ò riç à n lá/O d ú d u w à , p a ra os
prim eiros e M aw u/Lisa, p a ra os últim os. Como observa M cClelland,
existem m u ita s v a ria n te s d a geom ancla de Ifá , m as

. . . h á uma característica comum a to dos... um aspecto np


qual se baseia todo o sistema: o conceito de dualidade. Ele é de
tal forma parte integrante do sistema, matematicamente que lhe
dá uma consistente lógica interna (cf. McClelland, 1966, p. 423).

Segundo um m ito, O rú n m ilà (u m a d as qualidades de Ifá ), “d e­


senvolveu u m a m a n e ira pela qual o sa b e r p o d eria ser dissem inado
pelo m u n d o recém -criad o ”. Ele escolheu um hom em e lh e ensinou
seu sistem a, e este hom em , p o r su a vez,

iniciou a dezesseis seres que se haviam apresentado em Ilé Ifè


para aprender o sistema. Eram todos de família nobre e uma
curiosa circunstância presidiu a seu nascimento: eram, cada
um, um gêmeo, um a qualificação essencial.
i

Um o u tro can d id ato , de n ú m ero dezessete, tam b ém se a p re se n ­


to u , m as n ão e ra aceitável, “pois n ã o e ra um gêmeo, a in d a que fos­
se o filho do próprio Èsü com O sun, ela m esm a um a poderosa fei­
tic e ira e m ãe de Ejiogbe”. O filho de u m ta l p a r in sp ira v a tem o r
e n ã o p o d ia s e r ignorado. P o r isso

18 Lembremos que, como muito bem mostra Dos Santos (1976). todos os
seres existem em duplo, pois para cada pessoa, animal, árvore, etc. no
&iyé, existe um ‘‘doble" no çrun.
! '
56 ■
i
ficou adido a Agbaniregun e atuava como correio entre a Terra
e Ifá no Céu. Ele possui uma invocação própria, ainda que esta
não seja formalmente reconhecida e não seja nunca cantada
em voz alta (cf. McClelland, 1966, p. 424).

Este ca n d id a to de nú m ero dezessete, como se rá visto m ais a d i­


an te , em o u tra s versões rev ela-se como sendo o p róprio Èsü e cor­
respond e ao sin a l ou O dü ò se -tü w à , o décim o-sétim o, ou o “m ais
u m ”, adido ao co n ju n to de dezesseis. C orresponde tam b ém à décim a -
-sé tim a noz (ou cauri) u sa d a pelo babalàw o, o “vigia”. Os dezesseis
gêmeos, e n q u a n to v iveram em Ifè, e n sin a ra m a m ilh ares de discí­
pulos; estes, porém , n u n c a fo ram ch am ad o s O dü, m as sem pre b a ­
balàw o (pai do segredo).
' A com binação dos princípios de senioridade e duplicação governa
a s 240 com binações dos dezesseis sin ais p rin cip ais. T endo em m en te
que são concebidos como perso n ag en s d a realeza, alé m de d iv in d a­
des, o sistem a de p erm u taçõ es pode se r descrito, n a s p ala v ra s de
M cClelland, como

um majestoso movimento coreográfico cujos aspectos básicos


são uma constante formação de pares, uma troca regular de
parceiros, e um caminho fixo a seguir, até que o processo, tendo
se esgotado a si mesmo, chegue a um fim natural (cf. Mc­
Clelland, 1966, p. 425).
T al coreografia consiste n a s “v isitas” que c a d a O dü faz a ou­
tro 17, visitas essas que e ra m v istas pelos in fo rm a n te s de M cClelland
como

... as vezes em que um Odu "escolta” outro através dos rei­


nos 18., Orunmila arranjou este esquema para que todo o
mundo pudesse entrar em contato com os Odu antes que eles
retornassem ao Céu (cf. McClelland, 1966, p. 425).

“Todo o m u n d o ” refere-se, evid en tem en te, aos dezesseis reinos


m íticos, d esd o b ram en to dos q u a tro básicos. “Todo o m u n d o ” é ta m ­
bém a to ta lid a d e do sistem a de Ifá . As “v isitas” seguem u m a ordem
de senio rid ad e e um p a d rã o de d u p licação /recip rocidade;

Cada Odu. em sua qualidade de monarca, visita o Odu se­


guinte, logo abaixo na h ierarquia... Ele atravessa seu próprio
domínio adivinhando no caminho. Sua viagem dura dezesseis

17 As “visitas” são, naturalmente, as permutações do sistema, isto é, as


combinações entre cada um dos sinais com cada um dos demais Odü.
18 Trata-se das “visitas” feitas pelos 16 Odü aos reinos fundados pelos
16 òrisà originais de quem são representações os próprios Odü.

57
dias. Ele se uns à seu anfitrião em serviços e festas por um
curto tem po... Então o Odu anfitrião retribui a visita, seguin­
do-se o mesmo procedimento. Assim, Ejiogbe visita Oyeku e
a invocação é feita em seus nomes combinados — Ogbe’Yeku.
A visita de retribuição é recitada sob o nome de Oyeku Ogbe.
Quando este par de visitas for concluído. Ogbe visitará ao ter­
ceiro Odu da lista, Iwori, e outro par de visitas e de recitações
resultará, sob os nomes de Ogbe Iwori e Iwori Ogbe e assim
por diante (cf. McClelland, 1966, p. 425).

Um provérbio, que re té m a p ró p ria essência do princípio d a re ­


ciprocidade, explica o p a d rã o de v isitas duplas: “O sacerdote que
n ão re trib u i a v isita de outro, a n u la o efeito d e sta ”.
Assim, o sin al O gbeY eku é u m a visita “p a ra d ia n te ” en q u an to
o sin al Oyeku Ogbe é u m a visita de retrib u ição (os sinais são lidos
d a d ire ita p a ra a e sq u e rd a ):

II I I II
II I Ogbe’ I I I Oyeku
II I Yeku I II Ogbe
II I I II

R esu lta claro que, de um p onto de v ista m atem ático o sistem a


de “visitas” dos O dü é um sistem a dé “partiçõ es o rd en ad a s”. É ta m ­
bém um sistem a logicam ente fech ad o de considerável elegância m a ­
tem ática. Não sabem os se essa ordem m a te m á tic a é de algum a fo r­
m a conscien tem en te relacio n ad a à ordem , m ística do sistem a en ­
q u anto m odelo cosmológico, a in d a que este te n h a sido o caso, m uito
provavelm ente, no a n tig o O rien te Próxim o, de onde se originou, e
onde e ra seg u ram en te vinculado à astrologia» A consistência m a te ­
m á tic a do sistem a, essa ordem a tra v é s do acaso probabilístico, po­
d e rá se r um dos fa to re s a explicar a fé dos Y orúbá n a ad ivinhação
de Ifá. Mas, pelo que já foi visto, e pelo que se verá a d ia n te , parece
nela h a v e r m ais que u m a elegância fo rm al n u m érica.

V. A div in hação , C riação e O rdem Cosm ológica

E n tre os Y orübá-N àgô existe um g ran d e núm ero de m itos que


explicam o sentido d a adiv in h ação de Ifá. T a l como fizemos à p ro ­
pósito d a Criação, tran screv erem o s a p e n a s alg uns exemplos.

58
Ifá. foi um ser humano que fazia remédios e os vendia.
Enquanto fazia isso, chegou a Xfè e estabelece?.! seu quartel-
-general. Um dia todo o povo de Xfç se juntou para lutar contra
ele. Então ele íicou vexado e entrou na terra, e quando lhe
pediram que saísse ele se recusou, a menos que concordassem
em cultuá-lo. No dia em que entrou na terra ele cortou quatro
folhas de palmeira para marcar o lugar e elas imediatamente
se tornaram , cada uma, uma palmeira. Cada uma tinha quatro
ramos, ou dezesseis no total. Ele lhes disse para colher dezes­
seis nozes que deveriam ser cultuadas e que lhe perguntassem
tudo que desejassem. Daí em diante todos os que obtivessem
tais nozes se tornavam babaláwo e essas nozes lhes ensinam
quais folhas devem ser colhidas para curar quaisquer doenças
(Dennet, 1910)

Nos primeiros dias do mundo havia poucas pessoas na terra,


e os deuses se encontravam carentes no que concerne a sacri­
fícios, em tal medida que, não obtendo o suficiente para comer
através dás oferendas de seus seguidores, viram-se obrigados a
recorrer a vários expedientes. Ifá, que se encontrava na mesma
situação dos outros deuses, entregou-se à pesca sem, todavia,
muito sucesso; e um dia, não tendo conseguido pescar nada, e
estando muito faminto, consultou ao habilidoso Elegba (餟)
que também estava passando necessidade, sobre o que deveriam
fazer para melhorar sua condição. Elegba respondeu que se ele
pudesse obter as dezesseis nozes das duas palmeiras que Orun-
gan, o chefe, tinha em sua plantação, ele poderia mostrar
a Ifá como prever o futuro; e que ele poderia, então, usar seu
conhecimento em benefício da humanidade, e assim obteria uma
abundância de oferendas. Ele estipulou que, em troca, por en­
sinar a Ifá a arte da adivinhação, deveria ser-lhe concedida
sempre a primeira escolha de todas as oferendas feitas. Ifá
concordou com a barganha e foi a Orungan. Pediu as dezes­
seis nozes, explicando-lhe o que pretendia fazer com elas. Orun­
gan, muito ansioso em saber o que o futuro lhe reservava, ime­
diatamente prometeu as nozes e correu com sua mulher òriçà-bi
para pegá-las. As árvores todavia eram por demais altas para
que pudessem alcançar as nozes, e os troncos por demais lisos
para que pudessem subir. Assim, retiraram -se a uma pequena
distância e tocaram alguns macacos que estavam na vizinhança
para as palmeiras. Assim que os macacos se viram nas árvores,
pegaram as nozes e, após comerem a polpa vermelha que as
cobria, jogaram os caroços no chão, onde Orungan e sua mu­
lher os colheram. Tendo apanhado todas as dezesseis nozes,
Qri§à-bi as amarrou num pedaço de pano e colocou o embrulho
sob sua tanga, em suas costas como se carregasse uma criança.
Então levaram as nozes para líá. Hlegba cumpriu sua pro­
messa e ensinou a Ifá a arte da adivinhação, e líá por sua vez
ensinou a Orungan que assim se tom ou o primeiro nabalàwo.
S em memória desses eventos que, quando um homem deseja
consultar Ifá. ele leva consigo sua mulher, caso seja casado,
ou sua mãe se for solteiro, e é ela quem carrega as dezesseis

59
nozes, amarradas num a trouxa em suas costas, como uma cri­
ança; c que o babalàwo antes de consultar o deus sempre diz
“Orungan ajuba oh. Orisha-bi ajuba oh” (Orungan, eu o tenho
em grata memória; òrlsà-bi eu a tenho em grata memória)
(Ellis, 1894, p. 58-59).
Algum tempo depois de se ter estabelecido em Ado, Ifá
cansou-se de viver no mundo e, assim, foi habitar no firm a­
mento com Qtiàtálà. Após sua partida, a humanidade, privada
de sua assistência, era incapaz de interpretar apropriadamente
os desejos dos deuses, a maioria dos quais tornou-se, em con­
seqüência, irritada. Olokun era a mais aborrecida e, num acesso
de ira, destruiu quase todos os habitantes do mundo numa
grande enchente, somente alguns poucos sendo salvos por Qbà-
tálà que os puxou para o Céu através de uma longa corrente
de ferro. Após essa ebulição de raiva, Olokun retirou-se nova­
mente para seus domínios, mas o mundo nada mais era que
lama, não servindo mais para nele se viver, até que Ifá desceu
do Céu e em conexão com odüduwà novamente o tom ou h a­
bitável (Dennet, 1910).

O u tra versão do m esm o m ito é a p re s e n ta d a p o r P a rrln d e r, m as


aqui I f á é o a g en te ú n ico d a re-C riação :

Após viver na Terra por algum tempo, Orúnmllà (outro


nome de Ifá) voltou para o Céu, estendendo uma corda e su­
bindo por ela. Mas como ele tinha estado interpretando os de­
sejos de Deus para os homens, estes agora se encontravam de­
samparados e sem orientação. Então Olokun, o Dono do Mar,
veio e destruiu a maior parte da Terra e ela se tornou im­
própria para a habitação. Então, com pena, Orúnmilà desceu
outra vez e a tomou agradável (Parrinder, 1967, p. 88).

P ercebe-se, facilm ente, que os sím bolos dos m itos de I f á são os


m esm os que os dos m itos d a C riação: p alm eiras e nozes de p a l­
m eira ; cab aça; c o rre n te ; saco de pano, etc. P o stula-se, Ig u alm en te,
u m a oposição e u m a co m p lem en taried ad e e n tre os dois níveis d a
existên cia, o ç ru n e o àiyé. No e n ta n to , a e s tru tu ra dos m itos de
I f á consiste n u m a “inversão equiv alen te” dos m itos d a Criação. De
fa to , os “m item as” d a seg u n d a série equivalem , com o sin a l invertido,
aos d a p rim eira. O ra, a a d iv in h ação de I f á é, desde u m po n to de
v ista lógico, o “oposto” d a C riação: e s ta ú ltim a estabelece a ordem
cosm ológica; a ad iv in h ação revela a o rdem estabelecida. A C riação
separa a s d ivindades dos h u m a n o s; a ad iv in h ação co n stró i u m a p o n ­
t e que re -u n e a am bos n o p la n o r itu a l — a C riação é se p aração e a
ad iv in h a ç ã o é com unicação.

60
Tom em os as trê s versões acim a reproduzidas. A p rim eira delas
é c la ra m e n te igual ao m ito de Sangó, já referid o an tes, igu alm en te
um a inversão e stru tu ra l da C riação; podem os o rd en a r ta n to o m ito
de Ifá como o de Sangó d a form a como se segue:

— Conflito e luta no àiyé. Rebelião contra a ordem. Desordem.


— Fuga e morte do homem. Saida.
— Descenção para o fundo da Terra. Movimento da superfície
para o “abaixo".

— Geração da divindade cultuada.

O postam ente, tem o s nos m itos de Criação:

— Planejamento da ordem no òrun.


— Chegada do òrisá.
■— Descenção para a superfície da Terra. Movimento do "acima"
para a superfície.
— Geração dos humanos cultuantes.

T om ando o segundo m ito de Ifá e c o n tra sta n d o -o com os m itos


d a C riação tem os que:

C ria ç ã o : Divindades poderosas — Descenção do Céu para


a Terra — Plantio da palmeira na Terra — Pos­
tulação da ordem por separação.

A d iv in h a ç ã o : Divindades impotentes — Ascenção da Terra para


o Céu — Colheita de nozes de palmeira no Céu
—’ Revelação da ordem por comunicação.

Q u a n to ao terceiro m ito de Ifá :

Criação: Descida do Céu para a Terra — Separação entre


Terra Firme e Água — Estabelecimento da ordem.
Adivinhação: Ascenção para o Céu — Inundação: mistura de
Terra e Agua. retorno ã lama primeva — Des­
truição da ordem.
Re-descida — re-separação — restabelecimento
tia ordem (re-Criação).

61
É b a s ta n te evidente, então, que os m itos de C riação e os de Ifá
iã o red u n d a n tes e n tre si. E o são porque, ao nível d a e s tru tu ra p ro ­
fu n d a, ou d a m ensagem inconsciente, am bas as séries são o m esm o
m ito — “o m ito ”, ta l como postulam os n a in trodução ao presente
ensaio.
Que Ifá é urri re -c ria d o r d a ordem re su lta claro, tam bém , no
prim eiro m ito, do p la n tio de q u a tro palm eiras, cada um a com q u a­
tro ram os (4 x 4 — 18); no segundo m ito, da obtenção de dezesseis
nozes; no terceiro m ito da evidente associação de Ifá com O b àtálà
e Odüduw à.
M as Ifá é a com unicação e n tre os hum an o s e os deuses, e seus
m itos estabelecem u m a com plem en taried ad e ou in terd ep e n d ê n cia e n ­
tre am bos ou, num plano m ais a b stra to , e n tre o ç ru n e o àiyé. T a n ­
to a com unicação como a in terd ep en d ên cia são expressas pela con­
cepção Y orúbá de sacrifício — a lim e n ta r, d a r de com er aos òrisà. Os
hom ens n ã o podem viver num m undo ord en ad o sem os òrisà, m as
estes tam pouco podem ex istir sem os hom ens. A relação e n tre a m ­
bos é, n ão de sujeição to ta l dos h u m an o s aos deuses, m as de reci­
procidade e n tre opostos, oposição essa d efin id a prev iam en te (em
sentido lógico) pelos m itos de Criação. O papel de Ifá no sistem a
sacrificial é fu n d a m e n ta l, pois é ele quem prescreve os sacrifícios.
Mas, se o sistem a de I f á co n stitu i um a p o nte e n tre os hom ens
c os deuses, en tã o Ifá é m ediação, e isto coloca um problem a, pois
m ediação im plica am bigüidade. O próprio m ito citad o a trá s, co nhe­
cido como o do “J a rd im de õ r u n g a n ” cla ra m e n te in tro d u z elem entos
de am bigüidade pelo uso simbólico de m a c a c o s19 que, ao a tira re m
os cocos d a p alm e ira p a ra o chão, estão c la ra m en te m ediando e n tre
o acim a (fora do alcance, no m ito) e o a b a ix o 20. A dem ais, os m a ­
cacos são verm elhos, cor m ed iad o ra e n tre o b ran co e o preto, que
são po r su a vez a s cores que sim bolizam a oposição e n tre o Céu
(õ risà n lá ) e a T e rra (O düduw à), e n tre M aw u e Lisa n a equivalência
Fon. V erm elha é tam b ém a cor d a polpa dos fru to s d a p alm eira,
que deve ser rem ovida (pelos m acacos) a fim de to rn a r os cocos
adequados à ad iv in h ação — u m a vez rem ovida a polpa verm elha,
re sta o caroço, p re to p o r fo ra e bran co p o r d entro, a oposição de
cores d a C riação e d a im agem do m undo. O próprio F a é, em certos

19 Macacos são animais que parecem humanos. Surgem muito freqüente­


mente em mitos e jolk-tales Pon e Yorübá como personagens do tipo
trickster.
ao Observe-se que a palmeira surge freqüentemente com ênfase em seu
tronco retilíneo e ereto, numa provável associação ao pilar que liga o
òrun ao àiyé, e ao poste central do “terreiro".

62
m itos e em alg u n s O dü, descrito como verm elho e n q u an to em outros
surge como branco ou como pretoi Um dos O dü de G be-M eji (o p ri­
m e iro sin a l do co n ju n to de Ifá ) c o n ta que:

Antigamente Pa era um personagem de cor avermelhada,


Se-Lisa, um dia, ordenou à Morte que lhe trouxesse as cabeçaa
de todas as pessoas cuja pele era vermelha. Pa, então, para
evitar essa desgraça a seu povo todo e a toda a sua família,
fez uma consulta. Ele encontrou Jiogbe (o mesmo que Gbe-
-Meji) que lhe recomendou fazer um sacrifício composto de
raízes do arbusto Dãgblã fervidas na água, de dois cabritos,
dois galos, dois pombos e dois panos. E toda a família de Pa
se lavou com a água de Dãgblã. Na m anhã seguinte a Morte
se apresentou em sua casa. Eles estavam todos pretos. Foi assim
que a família de Pa escapou à carnificina ordenada por Lisa.
É normal que o primeiro signo, em reconhecimento, procure a
cor negra, que o salvou (cf. Maupoil, 1943, p. 437).

Se o m ito c a ra c teriz a F a como verm elho, ele ra p id a m e n te "cor­


rig e ” ta l situação, to rn a n d o -o p re to (a cor de Lisa, em oposição a
M aw u B ran co ). N ote-se que o sin a l G be-M eji é b ranco e que ele
‘‘p ro cu ra a cor n e g ra ”, isto é, o segundo sinal, com o qual se com ­
b in a, como j á foi visto a n te rio rm e n te. Sob o u tro p o nto de vista, é
^evidente que, p assan d o a te r a pele p re ta , F a to rn a -se um a pessoa
"n o rm al”, e n ã o m a is an ô m ala, n u m a população negra.
O c a rá te r in te rm e d iá rio do verm elho, com o "com binação” de
p re to e branco, pode se r in ferid o de o u tro sin al de Ifá — Loso-M eji —
c u ja cor sim bólica é o verm elho. É b a s ta n te claro que Loso-M eji é
m etad e G be-M eji (branco) e m etad e Yeku-Meji. (p reto ), correspon­
d e n tes estes dois ú ltim o s sin ais ao p a r C riador, M awu-Lisa, p a ra os
F o n , e ò risà n lá -O d ü d u w à p a ra os Y orübá:

I I
M etade
G be-M eji
I I

II II
M etade
Y eku-M eji
II II

M as p arece h a v e r aqui u m a co n trad ição , como já apontam os:


se Ifá é ordem , como pode ser m ediação e, p o rta n to , am bíguo? O

63
p arad o x o é resolvido pelo sistem a m itológico-sim bólico pela in tro d u ­
ção de Èsü (Legba) e pela tra n sfe rê n c ia p a ra este dos elem entos de
am bigüidade. Èsü, com o será visto a d ia n te , é o co n tra-conceito de
If á .
E n tre os Fon, F a é concebido como sendo a personificação da
“fórm u la de M aw u”, isto é, d a fó rm u la da Criação e, por conse­
guinte, d a ordem cosmológica. T a l ordem consiste n a id éia de “cad a
coisa em seu lu g a r ap ro p riad o ”, n a elim inação de sobreposições e
de am bigüidades, no estabelecim ento de lim ites de domínios.
P a r a os Fon, ain d a, F a é " a escrita de M awu”, em sua re p re ­
se n ta ç ã o an d ró g in a do casal C riador, sim bolicam ente expresso pela
ca b aça (equivalente a ò sà lá , com o síntese a n d ró g in a do p a r ò r is à n lá -
-O düduw à). A cab aça fech ad a une o casal em um símbolo único e
“a M aw u-Lisa su b stitu i, então, um p rincípio esotérico . . . sob o nom e
de O du” (cf. M aupoil, 1943, p. 91). O ra, a cabaça é Igbá-O dü, e o
co n ju n to de Odü é ju sta m e n te a escrita de Ifá (ou F a ), que é a
"e sc rita de M aw u”. J á vim os que existem claras equivalências sim ­
bólicas e n tre o sistem a de Ifá e a Criação. Vimos, tam bém que a
e s tru tu r a dos m itos de I f á é equivalente, desde um ponto de v ista
tran sfo rm a c io n al, à dos m ito s de Criação. Com eçam os a ver, agora,
que n a p ró p ria co nsciência dos F o n “F a é M awu e M awu é F á .
P a ra os Fon, Odu é Mawu, o “g ran d e D eus” 21. Odu é tam bém
G baadu, isto é, como verem os logo a d ia n te , o principio da adivi­
nhação .
P a ra os Fon, t a l como p a r a os Y orübá, F a (Ifá) é o deus da
adiv in h ação que revela o d estin o d a pessoa ou o fu tu ro , este últim o
concebido como “u m a casa com dezesseis p o rta s”. Mas F a é m ais
que um oráculo. Um dos textos recitativ o s do sin al Loso-Cé tra ta
d a p a lm e ira De (a p alm eira que surge nos m itos de Criação Y orübá)
p la n ta d a por Mawu q u ando este criou o m undo. O m esm o texto
afirm a que Fa e De são idênticos, pois am bos são a vida m esm a.
J á vimos an te s que a p alm eira e stá freq ü en tem en te associada a
Ifá em diversos tex to s mitológicos, e vim os tam bém como ela se

21 Lembramos que Mawu (equivalente a Odüduwà) é para os Fon aquilo


oue õrlsànlá (Lisa) é para os Yorübá. Mawu significa “nao há pinguem
maior”, e òrlsànlá significa “ o grande òrlçà”. Há uma inversão entre
os termos (masculino, Feminino; Céu, Terra) que se mantem consis­
tente em todas as séries mitológicas, quando se passa das representações
Yorübá para as Fon. Ainda que Mawu corresponda a Oduduwa. ele e
“branco”, a cor de òrlsànlá, o “òrisà funfun” por excelência. A passagem
do modelo Yorübá para o Fon se faz, portanto, através de uma trans­
formação que inverte os termos da equação mas preserva a estrutiua
lógico-simbólica.

64
associa aos n úm eros q u a tro e dezesseis, p o r su a vez c e n trais ao sis­
te m a de Ifá , o m esm o tex to e s tru tu ra -s e a tra v é s de um jogo de
oposições b in á ria s básicas, e n tre cidade e flo resta; cru e cozido, isto
é, e n tre n a tu re z a e cu ltu ra, e revela que De, a palm eira d a Criação
e d a adivinhação, ensina aos hom en s a cozinhar, isto é, tra z -lh e s
a cu ltu ra. O m ito é b a s ta n te consisten te com a. afirm a ção de u m
bokono que dizia ser F a, n ão um vodum (òrisà) como os outros, ma»
que “ele é d a classe dos organizadores do m u n d o ” (cf. M aupoil, 1943,
p. 10). Colocamos, h á pouco um paradoxo: se Ifá é a ordem como
poderia se r um in term ed iário ? M aupoil nos sugere que

. .. podemos nos indagar se, ao invés de um simples mensa­


geiro, Fa não seria uma mensagem, ou a mensagem por ex-
lelência de uma divindade suprema (cf. Maupoil, 1943, p. 15).

Se Fa é a m ensagem de Mawu, Fa é Mawu ou, m ais c o rre ta ­


m ente. se Mawu é o C riador da ordem , Fa é a ordem criada, pois
j a m ensagem de Mawu é, evidentem ente, a ordem universal. Frobenius
apreen d eu m uito cla ra m e n te o significado de Ifá:

Ifá nada mais é do que a concretização de uma necessidade


de causalidade, um anseio pela concentração concreta de m
mundo que os nativos já não mais entendem ... Ifá é . um
sistema de orishas, ou o fundamento da representação de um
sistema de orishas. (cf. Frobenius, 1912, p. 254-255) (Grifos
nossos).

Frobenius, com m u ita agudeza, relacio n a os dezesseis sinais de


If á aos dezesseis ò risà originais. M as I f á é m a is do que um sistem a
de divindades: o sistem a de Ifá é a base lógica do sistem a ideológico
como um todo.
O sim bolism o de cor tam bém parece in d ic a r u m a identificação
e n tre Ifá (Fa) e a C riação. Em certos contextos, as cores de Ifá
são o am arelo e o verde. T ais são as cores de O ssain, o ò risà da
m edicina nos cultos A fro-B ahianos e que, segundo B astide (1958)
preside sobre um dos q u a tro co m p artim en to s do m undo. O rá, é bem
sabido que Ifá ocupa-se ta n to d a ad iv in h ação como d a m edicina,
conform e explicita o p rim eiro m ito m encionado n este tópico. A geo-
m an cia n ão é u m a invenção Y orübá, n ã o o b sta n te a originalidade
com que foi in te g ra d a ao seu sistem a simbólico. E la existia n a G ré­
cia A ntiga, assim como n a C aldéia e no Egito, de form a basicam ente
igual, no que se refere ao sistem a de perm u taçõ es de sinais, àquela
que a p re s e n ta e n tre os Y orübá. Na A ntiguidade, a geom ancia e a
m edicina eram e stre ita m e n te associadas e c o n ju n ta m e n te e n sin ad as

65
n as U niversidades de G o n d e -S h a p u r e de B agdad (cí. C aslànt, 1935,
p. 169). E n tre os Nàgô d a B ah ia, B astide m o stra quão in tim a m e n te
ligadas são as funções do b ab alo ssain (sacerdote de O ssain) e do
babalàw o (S acerdote de Ifà ) (cf. B astide, 1958). Poderíam os, m esmo,
especular sobre u m a possível associação en tre , de um lado, a saúde
e a ordem e, de outro, a doença e a desordem . Não é a doença re ­
sultado da ira dos òrisà; resu ltad o d a punição por um a relação im ­
p ró p ria e n tre o hom em e a divindade? Não é necessário, p a ra a cura,
re aliza r sacrifícios de fo rm a a r e s ta u ra r a ordèm do relacionam ento
e n tre o h u m a n o e o divino e e n tre o indivíduo e a ordem global?
M as, se em certos contextos, as cores de If á são o am arelo e o
verde, em outros contextos sua cor é o branco, pois, como m ostra
M aupoil, e n tre os F o n os bokono “usam h o je em dia o pan o branco
dos sacerd o tes de M aw u-L isa” (cf. M aupoil, 1943, p. 118). B ran ca é
tam b ém a areia, ou a s vezes u m a espécie de fa rin h a usada n a
b a n d e ja d iv in a tó ria n a qual se tra ç a m os sin ais divinatórios; c a ­
baças esb ran q u içad as fazem p a r te d a p a ra fe rn á lia ritu a l do bokono
e do babalàw o. E n tre os nom es honoríficos e dizeres de F a, M aupoil
a n o ta a expressão: “K ago Nu M a Do Ni-Mi; Do Nu M a Agbidi”
(Não se deve p in ta r a boca d a c ab aça de F a com lam a; n ã o se deve
p in ta r o alto de um m uro com te r r a n eg ra) (cf. M aupoil, 1943, p.
25). C onform e já vimos, a p a rte sup erio r d a C abaça U niversal cor-
rçspond e a ò risà n lá , que é tam b ém o b à tá là . o S en h o r do P ano B ra n ­
co. C onform e a n o ta a in d a M aupoil, “F a a m a a claridade, e sua
c ab aça é co b erta com giz b ra n c o ” (idem ). O ra, se F a “a m a a cla ri­
d ad e”, esta, a luz, sim boliza, como vimos a ò risà n lá , em oposição
ao cego (escuridão) Odüduw à.
H av eria co n trad ição e n tre u m a re p resen tação de Ifá am arelo-
-verde e o u tra b ra n c a ? Na verdade, não. O corre que o am arelo é
u m a “q u alid ad e” do verm elho, e n q u an to o verde é um a “qualid ad e”
do preto. Tem os, en tão , as trê s cores básicas: b ranco, p re to e ver­
m elho. Como se pode in fe rir do rico m a te ria l a p resen tad o p o r Dos
S an to s (1976), ao longo de seu tra b a lh o , a com binação de duas des­
sas cores “p roduz” a te rc e ira, em contextos específicos. Assim, a m a ­
relo -f- verde = verm elho + p re to = branco. A nalogam ente, como
vim os a trá s, a propósito do sin a l Loso-M eji, b ran co + p re to = ver­
m elho.
J á nos referim o s à p a rtic ip a ç ão de I f á e de ò ris à n lá n u m con­
ju n to com um de símbolos. Um d estes é dado pelas lesm as — igbin
— que, como já fói visto, sim bolizam o “sangue b ran co ” anim al, o
esperm a. L esm as são com ida ritu a l ta n to de ò risà n lá q u an to d e
G baadu.

66
Vários m itos coletados por M aupoil e n tre os F on re la ta m que
F a e ra u m hom em sem ossos, e n q u an to outros a crescen tam que não 1
tin h a braços n em pernas. No e n ta n to , “ele en x ergava tudo, de um
extrem o a o u tro do m u n d o ” e foi tra n sfo rm a d o por M aw u em p a l­
m eira (cf. M aupoil, 1943, p. 38). P o r o u tro lado, o fa to de te r n a s ­
cido sem ossos deve-se a ser ele o p roduto d a u nião de duas m u ­
lheres, união essa sim bolicam ente equivalente a um incesto.
M encionam os a n te s o paradoxo de Ifá : ordem e m ovim ento, e
antecipam o s que o p aradoxo se resolve pela in tro d u ção de Èsü. Mas
o m ito acim a resum ido é, ele mesmo, um esforço lógico no sentido
de solucionar ta l paradoxo. De um lado, o significado de Ifá como
m ed iad o r pode e sta r expresso em seu n ascim en to anôm alo; n asci­
m en to s anôm alos são soluções “m ito-lógicas” b a s ta n te com uns. Anô­
m a la é ig u alm en te su a constituição física, sem ossos. Mas, esta m es­
m a an o m alia é tam b ém u m a solução p a ra o paradoxo: If á resu lta
do casam ento de duas m ulheres, p o rta n to , de u m a não-com unica-
ção (lem brem os que se tr a t a de sociedades onde o casam ento se faz
p o r tro cas e n tre grupos u n ilin e a re s). Ademais, o m ito esclarece que
I f á não se m ovia, m uito em bora enxergasse tudo, e um a ta l im obi­
lid a d e é, claram en te, o oposto de “a tra v e ssa r dom ínios” ; reconcilia-
-se, assim , If á com a noção de ordem .
H á todavia o u tro p onto a ser n otado no m esm o m ito: um h o ­
m em sem esqueleto, sem p e rn a s e braços, assem elha-se m uito a um a
lesm a. Não som ente são as lesm as — igbin — e stre ita m e n te asso­
ciadas, e n q u a n to esp erm a “sangue b ran eo ’:, a ò risà n lá , m as tam b ém
co n stitu em ò alim en to r itu a l do m esm o ò ris à n lá e de G baadu, ao
q u al re to rn a re m o s logo a d ia n te . Adem ais, Ifá preside à fecundação
en q u a n to ò ris à n lá fo rm a a c ria n ç a no ú tero m aterno. Conform e m os­
t r a Dos S an to s (1976), é a tra v é s desse “sangue b ranco” que ò r i­
sà n lá tra n s m ite seu àse; p o r o u tro lado, a m esm a a u to ra re la ta
alg u n s m itos o nde O rúnm ilá (Ifá) p e rm u ta posições com ò ris à n lá ,
sem pre n u m a situ ação de oposição e n tre “sangue b ra n c o ” e “sangue
verm elh o ” (cf. Dos S antos, 1976, p. 112).
E n tre os títu lo s atrib u íd o s ao bokono (sacerdote de Fa, e n tre os
Fon) um dos m ais im p o rta n te s é o de “G be-W e-D o-To” — aquele
que tra n sm ite a m ensagem d a v id a 22. Conform e observou M aupoil,

22 Lembremos que, na ideologia Fon, o cosmos, o universo, aquilo que os


Yorübá chamam Igba Odü, é Gbe — a vida. Veja-se a representação
do mundo reproduzida ao final de nosso item II.

67
Este título explica como certos adivinhos se sentem com­
paráveis aos sacerdotes do deus maior. Daí a concluir dialeti-
camente que Fa é Mawu, e que Mawu é Pá, não resta mais que
uma nuance de linguagem: não se diz que o recado do rei é
o rei? (cf. Maupoil, 1943, p. 114).

De fato , re ssa lta M aupoil,

. . . o passo foi dado por certos informantes de Herskovits...


“ Tomamos Mawu ou Pa como o autor do homem e de seu
destino... dizemos que Pa é Mawu e Mawu é P a ” (idem, p. 114).

A inda q u an to à assim ilação de F a a Mawu, os F on possuem um


ditad o : “E Na K a F a Do Vo, Bo Na K a M aw u Do Vo A. F a W e Ni
M awu” — Não se 'deve colocar à p a rte F a nem Mawu. É F a que se
ch am a M aw u (cf. M aupoil, 1943, p. 31). O bserve-se que, se F á é
imóvel, M awu está sem pre sentado.
R eferim o-nos a n te s a G baadu. H erskovits a p re se n ta algum as
concepções F o n re la tiv a s a esse ser que ele, erro neam ente, to m a
como sendo um o u tro nom e de Fa.
G b aad u é freq ü en tem en te rep resen tad o como um ser andrógino,
ta l como ò sà lá p a ra os Y orúbá, e com parado ao igualm ente a n d ró ­
gino Mawu.

Seu pai o instruiu no sentido de habitar uma palmeira no


Céu. dc modo a poder observar tudo o que se passa na Terra.
Sendo incapaz de abrir seus próprios olhos, Legba (Èsú) foi
encarregado por seu pai de subir na palmeira todas as manhãs
a fim de abrir os olhos de sua irmã. Quando Legba sobe na
palmeira, ele primeiro pergunta a Gbaadu que olhos ela deseja
ter abertos, se os da frente ou de trás; da esquerda ou da
direita 23. Gbaadu, porém, receia falar sua resposta, temendo
que esta seja ouvida por outros, e por isso ela comunica sua
vontade a Legba através das nozes de palmeira. Se ela coloca
em sua mão uir.a noz, isto significa que Legba deve abrir dois
de seus olhos, e se ela lhe dá duas nozes, um de seus olhos
deverá ser aberto. Quando Legba faz assim, ele próprio olha
em volta para ver o que acontece no mar, na terra e no céu,
e transmite essa informação a Gbaadu. Um dia Gbaadu con­
fiou a Legba que estava preocupada porque não havia ainda
sido instruída sobre qual seria seu domínio. Como somente Legba
podia entender a língua de Mawu, ele prometeu a sua irmã que
lhe ensinaria a fala de sua mãe. Mais tarde Mawu deixou com
Gbaadu a chav.e para as portas que abrem para o futuro. Diz-se
que o futuro é um casa com dezesseis portas, correspondentes

23 Gbaadu é descrito como possuindo quatro conjuntos de quatro olhos


cada, correspondendo aos pontos cardeais.

68
aos olhos de Gbaadu e que o nome da palmeira onde ela per­
manece é Fe. Quando Gbaadu recebeu a chave, Mawu lhe disse
que, como Legba é o “grande superintendente do mundo”,
Gbaadu deveria ser o intermediário entre os três reinos do
universo — Terra, céu e mar — do qual a própria Mawu é a
mãe. Ela disse ainda que quando os homens desejassem co­
nhecer o futuro, ou saber que decisões tomar, deveriam tomár
as nozes de palmeira e jogar com elas “ao azar”, e isto abriria
os olhos do Gbaadu, que correspondem ao número de nozes que
restaram e à ordem em que calram. Como as nozes abririam um
olho que também corresponde a uma porta na casa do futuro,
um homem com o conhecimento apropriado tem apenas que
olhar para ver o destino daquele para o qual está adivinhando.
Algum tempo depois disso, Legba informou a Mawu que havia
uma grande guerra no Mar e uma grande guerra na Terra e
uma grande guerra no Céu e que, não fosse por Gbaadu, todos
esses três reinos seriam em breve destruídos, já que os homens
não sabem como se comportar, a água do mar não sabe seu
lugar, e a chuva não sabe cair. A razão para is s o ... era que
aqueles aos quais foram dados esses reinos não conheciam a
linguagem de sua mãe (cf. Herskovits, 1938, p. 203-204).

O m ito prossegue re la ta n d o que os filhos de G baadu foram


enviados à te r r a p a ra e n sin a r F a e d a r instru çõ es relativ a s ao Sekpo-
li, “um a alm a que M aw u deu a todos, m as que, a in d a assim , só pode
ser discern id a após G b aad u te r sido feito p a ra re v e lá -las” (cf. H ersko­
vits, 1938, p. 205). O utro m ito, ain d a, tam b ém reg istrad o por H ersko­
vits, re la ta que as o rd en s d ad as a Legba p o r M awu são ch am ad as
F a isto é, F a é a “linguagem de M aw u”.
Novam ente en co n tram o s um a inversão com relação aos m itos
da C riação: G b aad u vive n u m a p alm eira no Céu, enq u an to nestes
últim os a p alm eira é p la n ta d a n a T erra. R epete-se a relação n u ­
m érica quatro-dezesseis. S em elh an tem en te aos m itos de Ifá , G baadu
é imóvel (perm anece sem pre no topo da palm eira) e n a d a pode f a ­
zer sem o concurso de Legba. Se o m undo é como um a casa com
qu atro paredes, o fu tu ro é um a casa com dezesseis p o rtas. T al como
nos m itos de Ifá, a fa lta de com unicação g era a desordem : os h o ­
m ens n ão sabem se com portar, a água n ã o sabe o seu lugar, a
chuva n ã o sabe como cair. P or fa lta de com unicação, deixa a chuva
(“sangue b ra n c o ” ) de fertilizar a te r r a e deixa de h a v e r circulação
de àse.
A observação de H erskovits de que F a são as ordens d a d a s por
M awu con firm a a in te rp re ta ç ã o de M aupoil, de que F a é a m en sa ­
gem ela m esm a. Mas, quem é, e n tã o G b aadu? Não se tr a ta , c e rta ­
m ente, de outro nom e de F a ; pois o próprio H erskovits observa em
o u tra passagem que F a é referido como sendo “os filhos de G b aad u ”.

i
69
Se F a é a linguagem de Mawu, G b aad u é próprio conteúdo desta
linguagem , isto é, o princípio m esm o, m atem ático e m ístico, d a a d i­
vinhação — o “m istério ” dos Odü. F a é o co n ju n to de O dü; G baadu,
o princípio governante de seu ap arecim en to e de sua com binação.
R ealm ente, como m o stra M aupoil, G baadu é de um a ordem m ais
a lta que Fa, pois ele (ou ela) com an d a F a:

Ele é mais forte que Fa. Gbaadu é o maior segredo de Fa,


ele é o vodun de Fa, e ninguém pode compreender seu sentido
total. . . A superioridade de Gbaadu sobre Fa é ainda atestada
pelo uso segu in te:... quando um visitante que possui um Fa
chega a uma casa onde se oferece um sacrifício em honra a
Odu (Gbaadu), ele é obrigado a tomar parte no repasto co­
m u m ... Se, no momento em que leva uma carne à boca el->
é avisado de que tal carne constitui um dos interditos de seu
“du”. . . o oficiante lhe d iz ... tu vais comer iss o ... e nada
te acontecerá. Odu é mais forte que teu Fa. Gbaadu é aquele
que possui todos os Fa. Se alguém lograsse acumular em seu
espírito toda a ciência, todo o conhecimento de Fa até os gra
mais altos, ele seria Gbaadu. Ninguém pode adquirir toda a
ciência de Fa, não existe Gbaadu humano (cf. Maupoil, 1943,
p. 37, 324, 85).

O ra, G b aad u é Ig b á Odü, a C abaça da E xistência, pois ela é ta m ­


bém Igb á Iw a (Iwa = — Vida, E xistência). G b aad u é p o rta n to o cos­
mos, o m undo, e c o n tém em si to d a a ordem de Ifá, pois a C aba­
ça U niversal contém todos os Odü. Tem os então, de um lado, que
F a é Mawu, e M awu é F a ; de o u tro lado, tem os que F a, a m en sa­
gem de Mawu, é “os filhos de G b aad u ”, do m undo. N ovam ente se
to rn a p a te n te que a ad iv in h ação é a postulação d a ordem cosmo-
lógica.
G baadu, referido pelos F o n ccmo F a -to , “p ai de F a ”, é ta m ­
bém M awu:

Gbaadu e Mawu são a mesma coisa. . . Gbaadu exprime


o mais alto grau de conhecimento que o homem adquiriu de si
mesmo; aquele que recebeu seu Kpoli 24, que compreendeu o
valor de seu ato e que, ademais, se fez iniciar no mistério de
Gbaadu, dá desde então este nome àquele que antes chamava
Mawu, ccmo todo mundo (cf. Maupoil, 1943, p. 89).

Tem os en tão u m a concepção b ásica p a ra os propósitos de nos­


sa an álise: o C riador e o m u n d o criado são um só, e o m esm o; a

24 Adiante vercmcs o significado de Kpoli e suas relações com o sistema


de Ifá.

70
C riação n a d a m ais é do que a ordenação do cosmos, e este últim o
é a ordem . Se nossa in te rp re ta ç ã o é co rreta, o princípio d a adivi­
n h a çã o é o p rincípio d a C riação, e o m istério d a adivinhação é ó
m istério da C riação, d a ordem cosm olôgica25.
Fizem os referên cia, n o tópico relativo à im agem do Universo, à
relação e n tre indivíduo e cosmos! A pontam os p a ra um a relação de
hom ologia e n tre am bos e m ostram os que, como um a p a r te desse
cosmos, o indivíduo replica a e s tru tu ra sim bólica do todo. Vimos
tam b ém que do m ais p a rtic u la r p a ra o m ais g eral tem os um a su­
cessão in d iv íd u o -casa-lin h ag em -cid ad e-rein o -m u n d o .
P a rtic u la r im p o rtâ n c ia é d ad a pela c u ltu ra Y orübá-N àgô, assim
como pela cu ltu ra Fon, à cabeça. Pois é p ela cabeça, pelo in te rio r
d a cabeça — O ri In u — que o indivíduo se to rn a u m a pessoa, isto
é, um ser in teg rad o n a ordem cosmolôgica. É no in te rio r da cabe­
ça que e stá o destino do indivíduo, destino esse que lhe é revelado
atrav é s de um r itu a l específico — o “fazer o F a (Ifá) ” — que a tr i­
bui a ca d a indivíduo u m a id en tid ad e pró p ria. E sta ú ltim a n a d a
m ais é do que a relação específica e n tre o indivíduo e a ordem
cosmolôgica, relação essa que o distingue de todos os dem ais.
A cabeça é a sede d a cu ltu ra, pois é n ela que residem as idéias.
É n ela tam b ém que se c en tra, no dizer de Dos S antos (1976, cap.
IX ) a “existência in d iv id u alizad a”, p a rticu larização d a “existência

25 é interessante observarmos que, para os Pon, Gbaadu encerra uma dupla


oposição entre Terra/Ar e Água/Fogo. Não seria descabido inferir que
Gbaadu — Igbá Odü — como a Cabaça da Existência, e como síntese
do cosmos, é uma união de contrários. Vimos, por outro lado, que para
os Yorübá a Criação põe uma relação de oposições equivalentes e que
as quatro cidades fundadas pelos quatro filhos de Ifá/O ni constituem
as quatro paredes do mundo. Entre os Fon encontramos Uma concepção
análoga de quatro “ clãs”, repartidos segundo os quatro orientes: Ke,
Hu, Aja e Ayo, capitais dos reinos de Kétu, Save, Tado e Oyó. Os “clãs”
associam-se aos quatro elementos. Temos então uma estrutura do “mun­
do quadrado” onde os elementos cósmicos ocupam posições opostas:

Fe
Hu - Oe s t e - Cé u ! N o r t e - A g u a - A y o

A j a - Sul - F c g o Leste - Terra - K c

Note-se, ainda, que a palmeira onde permanece (imóvel) Gbaadu


é chamada pelos Fon de Fe, isto é, Ifé, o “umbigo do mundo”, corres­
pondente ao seu centro. É bastante plausível que tal palmeira corres­
ponda ao pilar cósmico e ao poste central do “terreiro” Nàgô. Por outro
lado, como vimos, tal palmeira é também De, e De é Fa.

7t
g enérica”, que in te rp re ta m o s como a ordem cosmológica. O indiví­
duo é com posto de d u a s p a rte s: o corpo e a cabeça. E n q u an to o
p rim e iro é um suporte, análogo ao àpéré (“a ssen to ” do ò risà), a
cabeça contém a essência d a pessoa:

O ori-inú (interior da cabeça) é único e representa uma


combinação de elementos intimamente ligados ao destino pes­
soal. É esse conteúdo, o ori-inú que expressa a existência in­
dividualizada. (Dos Santos, 1976, p. 204).
G a n h a r o ri é “n a sc e r” ; m a s n ã o se t r a t a de um nascim ento
biológico, e sim cu ltu ral. T ra ta -s e de g a n h a r um “lu g a r” n a ordem
cosmológica. O “o rig in al” d a cabeça (ori) e n c o n tra -se no ò ru n (o
p la n o co n ceitu ai d a e x is tê n c ia ): é o o ri-ç ru n , cujo “duplo” é tr a n s ­
ferid o p a r a o àiyé. C ada o ri é m odelado n o ò ru n com m a te ria is
específicos que d e te rm in a rã o a d ivindade tu te la r do indivíduo, assim
como suas proibições — os èwò — p a rtic u la rm e n te as proibições a li­
m e n ta re s, e suas possibilidades e escolhas. O o ri-ç ru n é sim bolizado
pelo Ig b á -O ri (cab aça-cab eça). O m a te ria l com o qual é fe ita a ca -
• beça n o ò ru n é o ip ò ri que possui, ig u alm en te, sua rep resen ta ção
m a te ria l n o àiyé (cf. Dos S antos, cap. IX ).
' Não podem os nos d e te r sobre todos os d e ta lh e s do ori e do Ipòri.
P a r a nossos propósitos b a s ta a ssin a la r alg u n s aspectos. E n tre eles
re ssa lta que os ori são feitos n o ò ru n pelos dezesseis O dú do siste­
m a de If á que, como já vimos, são p ersonagens divinos, seres do
ò run. P o r isso, a m a té ria u tiliz a d a p a r a c ria r o ori possui um signo
d istintiv o ;

Ifá dirá, eis a espécie de Ebora que você deve venerar ou


aquilo que lhe é proibido comer; pois você não pode comer da
mesma m atéria de onde sua cabeça foi modelala (lit. não pode
comer do mesmo corpo do qual sua cabeça foi feita), para que
as pessoas não venham a enlouquecer, não se matem ou náo
vivam uma existência miserável (cf. Dos Santos, 1976, p. 207).

B ascom in d ica u m a c la ra relação e n tre o Ipòri, a cabeça e o


destino pessoal (cf. Bascom , 1969). P o r o u tro lado, o conceito de
Ip ò ri Y orúbá-N àgô é equivalente ao conceito F o n do Kpoli, vigente
no B rasil sobretudo no M aran h ão , e n tre o “povo” da Casa das M inas.
A inda segundo Dos S antos:

. .. a tradição quer que cada ser criado por òrlçànlá, no


momento de escolher seu ori, escolha seu Odü, o signo que
regerá seu devir, com o qual nasce cada ser no àiyè... Abtm-

72
bola (1971, p. 8) indica: “Além do próprio Ajàlá, só òrúnmllá
(representação coletiva de todos os Odü) é a outra testemunha
do ato de livre escolha da cabeça”. Também Epega (1931, p.
15) aponta nesse sentido: “Diz-se que quando Olodumaré es­
tava ocupado em criar o homem, òrúnmilá estava presente na
qualidade de testemunha do destino” (cf. Dos Santos, 1976, p.
209).

E v id en tem en te, ta l escolha se faz no ç ru n , e não pelo “duplo”


que vive no àiyé. N este últim o plano, o d estin o contido n a cabeça
é revelado p o r Ifá . O rí contém , en tão o destino pessoal.
J á vim os que a cabeça da pessoa possui u m a “e s tru tu ra cosm o-
lógica” ; vim os tam b ém que p o r ocasião dos rito s de Iniciação de
um a “filh a de s a n to ” nos “te rre iro s” Nàgô, tra n sm ite -se -lh e asé
colocando d e te rm in a d a s su b stân cias no cen tro de su a cabeça. C h a ­
m am os a ate n ç ã o p a ra a relação e n tre o c e n tro d a cabeça, o c e n ­
tro da c a sa -d e -cu lto (sob o poste c e n tra l é “p la n ta d o ” o àse do
“te rre iro ”) e o cen tro do m u n d o (Ifé, o “um bigo do m u n d o ” ) —
u m p a d rã o de replicações de um m odelo cosmológico, onde é sem ­
p r e pelo c e n tro que se faz a ligação e n tre o p lano do àiyé e o do
òrun. T am bém n o ritu a l do Bori (“d a r de com er à cabeça”), a ofe­
re n d a (o O bi), de acordo com o “oráculo” :

...poderá ser colocado todo inteiro em contato com a ca­


beça, ou partido e mastigado; sua papa, condutora de àse, é
colocada para transmitir sua força aos quatro pontos, que, por
assim dizer, constituem o universo individual, e ao centro da
cabeça, que resume a combinação de todos os outros pontos e
constitui a resultante individual. Colocar-se-á àse no OjU-orí,
a parte do frente, o nascente, o futuro a ser desenvolvido: no
Ikoko-ori, o occipício, a parte de trás, o poente, a contribuição
ancestral; no Apà-otun e no Apà-òsi, lado direito e lado es­
querdo, respectivamente as partes que representam os elemen­
tos masculinos e femininos (cf. Dos Santos, 1976, p. 218).

O d estino pessoal e stá contido no in te rio r dessa cabeça cos-


m ológica, e ele é revelado quando o indivíduo “faz seu F a I f á ) ”, ou
seu Igbá O dú (G b aad u ). M encionam os a tr á s o m ito F on de G baadu
e das “dezesseis p o rta s do fu tu ro ”. O m esm o m ito re la ta tam bém
que os “filhos de G b a a d u ” (os dezesseis sinais, Odú) fo ram enviados
à T erra p a ra “e n sin a r a ” (a linguagem de M awu) e d a r instruções
relativ as ao Sekpoli, “u m a alm a que M awu deu a todos, m as que,
ain d a assim , só pode se r d iscernida após G b aad u te r sido feito p a ra
re v e lá -la ” (cf. H erskovits, 1938, p. 205). É sem pre necessário "isaber
“o núm ero ce olhos que G b aad u ab riu a n te s de c h a m a r esta alm a,

73
de modo que se um hom em sabe o n ú m ero de lin h a s que F a traç o u
p a ra ele, ele co nhecerá seu Sekpoli”. O utro m ito, ain d a, re la ta

quando um homem deseja saber seu destino ele deve entrar


numa floresta, tomar as nozes, jogá-las ele mesmo e traçar oito
linhas na terra, estas linhas sendo o destino desse homem.

Deve en tão recolher a te r r a n a qual foram tra ç a d a s as lin h a s e


colocá-la num saco ju n to com o u tra s su bstâncias. O conteúdo desse
saco c o n stitu irá seu K poli, isto é, a rep resen tação m ate rial de sev
Sekpoli. Se o Ori é a d eterm in ação do destino no òrun, o Kpoli —
co rresp o n d en te ao Ipori — é a revelação deste destino no àiyé.
J á referim os a n te s que alg u n s indivíduos, além de fazerem se
Ifá , tam b ém fazem seu Igba Odü (G b aad u i. A fe itu ra deste é mai
com plexa e parece que só é realizad a por chefes e sacerdotes. Ela
com preende u m a série de atos ritu ais, e n tre os quais: a) o sacerdote
de Ifá, que preside ao ritu a l, d esen h a todos os dezesseis sin ais no
pó branco d a b a n d e ja d iv in ató ria (òpón I fá ); b) é necessário re ­
colher objetos (presum ivelm ente p o rtad o res de àse) de todos os re i­
nos da n a tu re z a , assim com o co n tas sim bolizando todos os òrisà,
c) ta is objetos são distrib u íd o s por quatro cabaças, das quais cad a
u m a “é” um dos q u a tro prim eiros sin ais de Ifá (que, como vimos,
co nstitu em as q u a tro “raízes do m undo” e os q u atro pontos card eais).
A p rim e ira cab aça é b ran ca, a segunda p re ta , a te rce ira v erm elha e
a q u a rta n ão tem cor 2“; d) to m am -se q u atro cupins e deles se re ­
tira m vivas as q u atro “ra in h a s ”, colocando-se cad a um a delas sobre
u m a cabaça. A ra in h a , não se m ove; e) esm agam -se dezesseis folhas
(ap a re n tem e n te correspondentes aos dezesseis òrisà) n a água, des­
p ejan d o -se a m istu ra re su lta n te n a s q u a tro cabaças; f) 0 sacerdote
re c ita d e te rm in a d a s preces q u atro vezes, pedindo a Odü que desça
à T erra, p a ra d e n tro d as q u a tro cabaças.
Segundo o u tra versão, faz-se necessário u sar dezesseis cabaças,
sendo o c o n ju n to todo cham ado Ig b á Odü. A m aior delas, Igbanlá,
corresponde a Odü. As dezesseis cabaças correspondem aos dezesseis
òrisà e aos sin ais do Ifã. E n tre elas, Ig b an lá c a m ais im p o rtan te :

Igbala (na versão Pon) é o mundo. Ela é ao mesmo tempo


tudo o que vive no céu, na terra e na água. Pois antigamente
o céu e a terra se tocavam . . . a cobertura de Igbala apresenta

26 o fato de que a quarta cabeça, ao contrário das demais, não tem cor,
parece relacionar-se com a concepção dos informantes de Dennet (1910',
de que o quarto canto do mundo, o Sul, não tem nome.

74
aos olhos profanos um conjunto heteróclito de pontos e traços,
em branco, preto, vermelho e cinza; observando-se mais de­
tidamente, reconhece-se, habilmente dissimulada, a represen­
tação figurativa do mundo. . . e sobre o contorno da cobertura
os dezesseis sinais-mães de Fa (cf. Maupoil, 1943, p. 99).

Vimos a n te s que Ig b á Odú é o cosmos. A nalogam ente, o Igbá


O dü pessoal é a individualização do universo, n a m edida em que
a existência ind iv id u al se deriv a d a existência genérica, e o destino
in dividu al da ordem global. A com posição do Ig bá O dü é variável,
m as g u a rd a sem pre u m a relação p a ra com a ordem cosmológica e
com o sistem a de Ifá. T al relação tra n sp a re c e c laram en te n a des­
crição fe ita acim a. T ran sp arece igualm ente n a descrição d a d a por
Joh n so n :

O Igbádü é uma cabaça coberta contendo quatro pequenos


recipientes feitos da casca da noz do coco cortada pelo meio
e que contém, além de algo desconhecido para o não-iniciado,
um pouco de lama num, um pouco de carvão noutro, um pouco
de giz noutro e ainda num outro um pouco de pó vermelho da
árvore African Rosewwod — cada um deles destinado a repre­
sentar certos atributos divinos e que, com os recipientes que
os contém, representam os quatro Odü principais — Eji Ogbé.
òyeku Meji, Ibara Meji e Edi Meji — essa cabaça está co­
locada numa caixa de madeira especial, devidamente preparada
para esse fim, chamada A péré... o quarto onde está deposi­
tada é considerado de tal forma sagrado que nenhuma mulher
e nenhum homem não iniciados jamais são autorizados a aí
en trar... (cf. Johnson (1899) apud Dos Santos, 1976, p. 66-67).

O Igbá Odü indiv id u al contém todos os "sangues” portadores de


àse, isto é, todos os elem entos necessários à existência individual,
assim como a C abaça U niversal contém , além de todos os Odü de
Ifá, todos os elem entos necessários à existência genérica, pois ela
é tam bém Ig b á Iw a — a C abaça da Existência.
A C abaça U niversal, o m undo, co n stitu i u m a u n idade de c o n trá ­
rios; sendo o co n ju n to de opostos, ela é o todo indivisível. T al u n i­
dade é expressa, como vimos, pela crença de que a s duas m etades
não podem ser sep arad as. Vários m itos re la ta m que d a a b e rtu ra de
Igbá Odü resu lto u a destru ição da ordem — a m orte do cosmos e n ­
qu an to m undo organizado. C o nsistentem ente, como vimos à p ág i­
n a 36, se um ad iv in h o ou um chefe d eseja m o rrer, ele ab re seu
Igbá Odü indiv id u al — rom pe-se o equilíbrio e n tre o indivíduo e o
todo, e o prim eiro perde seu lu g ar n a ordem : m orre.

75
J à nos referim os à hom ologia e n tre o tem po e o espaço — a
sem an a e o m undo — (feito em u m a sem an a) — e m encionam os
que os ò risà que presidem sobre os q u a tro p ontos card eais são os
m esm os que presidem sobre os d ias d a sem ana. M encionam os ta m ­
bém que o m ovim ento ritu a l d as filh a s-d e -sa n to no “te rre iro ” Nàgô.
d a B a h ia é um m ovim ento de unificação do cosmos. O m esm o m o­
v im ento pode ser en co n trad o em certo s ritu a is a n u ais de Ifé. F ro -
benius refere-se a u m a colina s a g ra d a em cujo topo ex istia um a
e s tá tu a com q u a tro cabeças, ca d a u m a v o ltad a p a ra um dos pontos
cardeais. O fereciam -se sacrifícios a esse m o n u m en to q u atro vezes
p o r an o : enx ju n h o p a ra a cabeça “leste” ; em setem bro p a ra a ca­
beça “n o rte ” ; em dezem bro p a ra a cabeça “oeste” e em m arço p a ra
a cabeça “su l”. No dizer de F robenius, “a ro ta processional é do Les­
te p a ra o N orte, p a ra o O este, p a r a o Sul” (cf. Frobenius, 1913, p.
258). A correspondência com o m ovim ento d a s filh a s-d e -sa n to no
“te rre iro ”, assim como com o r itu a l do Bori, é evidente.
A com panhem os m ais um pouco as hom ologias cosm ológicas. Al­
gum as versões do m ito de C riação (cf. Frobenius, 1913, p. 284) m u i­
to c la ra m e n te id en tificam o O ni (rei de Ifé) a Ifá , e descrevem um
p lan o onde o Oni reside no c e n tro de Ifé te n d o à su a fre n te , cos­
tas, d ire ita e esquerda os q u a tro ò risà co rrespondentes ao Leste,
N orte, O este e Sul, e em volta desses, os dem ais. R elacionando esse
.m ito a o u tro s já vistos, tem os Ifé como o centro do “Y o ru b alan d ”
cercad a pelos q u atro c a n to s”, ou "q u a tro m u ro s” do reino, e por u m a
p eriferia. Temos, en tão , I f á no cen tro do cosmos. A p ró p ria cidade
de Ifé e ra organ izad a, nos tem pos pré-coloniais, em conform idade
com o m esm o m odelo: um com p o u n d c e n tra l, resid ên cia e palácio
do Oni, cercado p o r q u atro o u tro s com pounds (correspondendo, p ro ­
vav elm en te, às lin h a g e n s “n o b res”), cercados estes q u a tro p o r ou­
tro s d o z e 27. J á fizem os referên cia, an tes, à hom ologia sim bólica
e n tre o pró p rio p alácio do O ni e o modelo dos “co m p artim en to s”
do òrun. No m ito de C riação re la ta d o p o r F robenius, o O ni ocupa
o lu g a r (cen tral) to m ad o p o r O lorum logo após a Criação. Temos
e n tã o que a co lin a é o “berço d a h u m a n id a d e ” ; os dezesseis deuses
h a b ita v a m os p ontos ca rd e a is que e ra m tam b ém os “d istrito s” d a
cidade; o O ni h a b ita v a o c en tro d a cidade, e seu palácio e ra con­
siderado o "um bigo do m u n d o ” (cf. F robenius, 1913, p. 287), p a lá ­
cio esse que e ra u m a replicação do òrun, o plano conceituai d a

27 Compare-se esse modelo com o dos colegiados políticos, referido à p á­


gina 32.

76
existência. U m a rep resen tação g ráfica da e s tru tra sim bólica da Ifé
a n tig a re p lic a ria a re p resen tação do “te rre iro ” Nàgô. Segundo o m ito
tra n sc rito p o r Frobenius, já referido:

Olorun chamou os chefes e lhes disse: “Vocês vêm o que


há aqui. Agora notem bem. Esta cidade será, no futuro, cha­
mada I f é . .. Melhor que em qualquer outro lugar os babalawo
irão aqui ler os Odü. . . Você, Oni, você permanecerá aqui e
dirá aos Alafin qual é o desejo dos deuses”. Olorun partiu.
Assim surgiu a cidade de Ifé, onde antigamente viviam os de­
zesseis deuses (cf. Frobenius, 1913, p. 284).

Ainda n a s p a la v ra s de Frobenius, no passado "era co rrente a


m esm a concepção do m u n d o que h o je reg u la o culto de Ifá en tre
todos cs Y orübá” (idem , p. 259). Nesse sistem a de hom ologias te ­
mos en tão que:

Oni : Olorum :: linhagens : òrisa


Ifé : Oni : reinos : linhagens
Oni : Ifé : Ifá : Cosmos

Vimos tam bém que cad a individuo possui suas 16 nozes, seu Ifá
pessoal, seu “d estin o ”, seu Kpoli. Essas nozes são g u ard a d as n u m a
caixa especial dividida em q u a tro com partim entos, “m ais um ” : o
com p artim en to c e n tra l p a ra as nozes (Ifá) e os quati '0 outros, ao
seu red o r, equivalentes aos q u atro can to s do m undo, e contendo subs­
tâ n c ia s deles re p re se n ta tiv as: enxofre, carvão, giz e pó de m ad eira
verm elha. O Kpoli, o Ifá pessoal, ocupa p o rta n to o centro dessa cai­
xa cósmica. Daí:

Kpoli : O ni : 4 C om partim entos : 4 D istritos


U rbanos
C aixa do K poli : Ifé :: Ifé : M undo

Não seria despropositado concluir que a caixa do Kpoli, que


e n c e rra em seu espaço c e n tra l o “d estin o ” individual, replica a es­
tru tu ra ç ã o do ò ru n de fo rm a sim plificada: seus q u atro espaços m ais
u m re p re se n ta m os oito espaços m ais um daquele plano da exis­
tên cia, e é pelo espaço c e n tra l — o “m ais u m ” — que se vincula
o indivíduo ao cosmos, o destino d a pessoa à ordem cosmológica.
O espaço c e n tra l é c e n tra l à to d a a cosm ologia Y orübá-N àgô:
é no cen tro que se en co n tram , ou são “p la n ta d o s”, o àse e o destino.
Assim,

77
Kpoli: Àse :: . C om partim entos ■da Caixa : Cantos d a
Casa de Culto.

É no cen tro simbólico que encon tram o s o àse do indivíduo —


em su a cabeça — e do “te rre iro ” — por sob o poste ce n tra l. É ta m ­
bém no c en tro que encon tram o s o Gni em líé, e o “umbigo do m u n ­
do” com relação ao m undo Y orübá. E n a p eriferia, nos lim ites sim ­
bólicos, en contram os, n u m a série de replicações, os “can to s” d a ca ­
beça, as paredes da casa, os m uros da cidade, os can to s do m undo
— as q u a tro raízes do m undo, re p re se n ta d as pelos qu atro prim eiros
sinais de Ifá.
O cosmos é en tão um grande plano, definido por um modelo
de oposições, por um a ordem que se repete, do indivíduo ao m undo,
e do ò ru n ao àiyé. Mas, o cosmos é tam bém m ediação; o modelo
estático exige um m ovim ento dinâm ico, pois sem este últim o, ro m ­
p e r-se -ia a relação equ ilib rad a e n tre os dois planos da existência:
como já vim os an tes, ò ru n e àiyé devem in terag ir. É aqui que d e­
vemos nos referir, por breve que seja, ao conceito de Èsü.
ȧü é um conceito por dem ais complexo p a ra poder ser tra ta d o
de form a com pleta nos lim ites deste ensaio. P or isso lim itarem os
nossa análise ap en as às suas relações p a ra com Ifá. J á vimos que
Ifá é a ordem , a m ensagem , e já nos referim os ao que cham am os
de "paradoxo de Ifá". T al paradoxo é resolvido pela presença de
Êsú, concebido como a c o n tra p a rtid a lógica de Ifá : se Ifá é a m en-
aagem ; Èsü é o m ensageiro; se Ifá é, por exigência lógica, imóvel.
Èsü é m ovim ento. Por isso se Ifá é ordem , Èsü, o trickster da m ito­
logia Y orübá-N àgo, é des-ordem .
P a ra os in fo rm a n te s de Frobenius, Ifá é m uito claram ente, a Id éia
do M undo, e suas dezesseis nozes, a rep resen tação m a te ria l desse
m undo ordenado. P a ra os m esm os in fo rm an tes, Èsü é o m ediador
dessa ordem , aquele que une os opostos. Se ele é um trickster, ex ­
pressão de sua am bigüidade de interm ed iário , ele é tam bém o “tr a -
zedor”. Em m uitos m itos, Èsü prom ove a desordem ; m as, ao fazê-
-lo n a d a m ais faz do que e n fa tiz a r a ordem .

Èsü é cheio de truques; Èsü fez com que parentes se guer­


reassem; Èçú tomou a Lua como refém e levou embora o Sol;
Èsü fez com que os deuses se guerreassem. Mas Èsü não é mau.
Ele nos trouxe o melhor que existe: ele nos deu o oráculo de
Ifá; ele trouxe o Sol. Se não fosse por Èsü os campos seriam
estéreis (cf. Frobenius, 1913, p. 229).

78
É Èsú, tra n s p o rta d o r da m ensagem , que faz a m ediação en tre
Ifá e os hom ens, e n tre Ifá e os deuses e, n u m plano m ais geral,
e n tre o ò ru n e o àiyé. É ele o tra n s p o rta d o r dos sacrifícios e, p o r
isso, essencial p a ra a m an u te n ç ã o d a reciprocidade e n tre os dois
p lanos d a existência. Ele é, por assim dizer, o “unidor dos c o n trá ­
rio s”. P o r isso, Èsú é o m undo em m ovim ento; o princípio d in âm i­
co do cosmos.
Se I f á corresponde ao conceito de um cosmos organizado, Èsú
é o conceito de in teg ração de um universo com posto de contrários.
E ste é o sentido de Èsü em su a concepção m ais a b s tra ta — Êsü
Agba — ao nível do que Dos S an to s c h a m a ria de “existência ge­
n e ra liz a d a ”. P or isso, os m itos relativos a Èsú sem pre o colocam
em m ovim ento, seja e n tre o àiyé e o òrun, seja percorrendo os de­
zesseis p ontos do. m undo, unifican d o o universo, se ja in term ed ian d o
e n tre os òrisà. Se If á p o stu la > Èsü atu a,, põe em funcionam ento a
ordem universal. Como m ediador, é Èsü quem prom ove a circula­
ção do àse e n tre os dois p lan o s da existência, sem a qual ta l exis­
tê n cia d eix aria de ser. Essa circulação, en tre o plano dos sentidos
e o dos conceitos, e n tre o m undo vivido e o m undo pensado, n a d a
m a is é do que a realim en tação c o n stan te d a cu ltura, pois a exis­
tê n c ia — Iw a — o rd e n a d a p o r Ifá, é a cu ltu ra.
M ediação é, porém , am bigüidade. O põe-se à ordem e, p o r isso,
fiçü, o tric k ste r é o co n tra-co n ceito , a c o n tra -p a rtid a lógica de Ifá ,
seu co n trá rio necessário. A am bigüidade de Èsü exprim e-se de v árias
Jo rm as, que aqui podem os a p e n a s b rev em en te sin te tiz a r: a) se ele
é o un ific a d o r de co n trário s, é tam b ém o p ro d u to de u m a oposição,
sim bolicam ente ex p ressa por su a cor v erm elha, p ro d u to do p reto e
do branco, como se pode d ep reen d er do rico m a te ria l oferecido p o r
D os S a n to s (1976, cap. V II); b) se I f á p o stu la d escontinuidades, Èsü
prom ove c o n tin u id ad e; c) ȧú reú n e, sim u lta n e a m en te , as q u alid a­
des de tu d o o que é “d a d ire ita ” e de tu d o o que é “da esquerda” ;
ele é u m "c o n ju n to in te rse ç ã o ” ; d) seu c a rá te r de oposto com ple­
m e n ta r d e I f á pode ser in ferid o d a com paração e n tre o m ito, já
referid o , o nde Ifá, sa lv a o m u n d o d a e n c h e n te restabelecendo a.
separação, com o u tro o n d e Èsü salv a o m u n d o d a seca. re sta b e le ­
cendo a com unicação (cí. D os S an to s, 1976, cap. V I I ) ; e) Èçú é r e ­
p re se n ta d o p e la im p a rid a d e —■o m en sag eiro é o “terceiro”, produto
d a união dos co n trário s, elem ento dialético do u niverso. S u a im p a ­
rid a d e rev ela-se p o r s e r sem p re o "m a is u m " que se segue a -um
c o n ju n to p a r e que exp rim e o m ovim ento. P o r isso, Ê sü é ta m b ém
òse-T üw á, o décim o-sétim o signo de I f á , que "v igia” os dezesseis e

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tra n s p o r ta sua m ensagem . C o rrelata e sim u ltan eam en te, ele é ta m ­
bém Èsú Òjise-Ebo, o tra n s p o rta d o r de oferendas, pois sem estas,
re sta u ra d o ra s do àsè, a ad iv in h ação seria in ú til (cf. Dos S antos,
1976, p. 161). Ig u alm en te, Èsù é a d écim a-sétim a noz, colocada pelo
ad ivin h o ao lado do ò p ó n Ifá quando joga as dezesseis nozes de Ifá.
E nfim , Èsù, no que nos in te re ssa aqui, é o próprio princípio
dinâm ico do cosmos, d o tad o do poder de ubiqüidade, em oposição
ao If á imóvel. É o com plem ento lógico da noção de ordem , num cos­
m os o rdenado em oposições, m a s que p recisam ser m ediadas p a ra
que h a ja vida. P o r isso, se ele é o tric k ste r tem ido,' ele é tam b ém
p a r a o Nàgô, ò d à r à — aquele que tr a z o b em -estar. No p lan o in d i­
vidual, Èsù B a ra é a com plem entação do I f á pessoal. Segundo a s
p a la v ra s de Ifá “se cad a coisa e c a d a ser n ão tivessem seu próprio
Êsü em seu corpo, não poderiam existir, n ão saberiam que estão
vivos” (cf. Dos S an to s, 1976, p. 181). Acim a de tudo, talvez, foi Èsú
quem criou Ori, a cabeça, e com ela trouxe a c u ltu ra p o stu lad a no
ò ru n ao hom em .

VI — C onclusão

P ela análise e pelo co n fro n to de séries mitológicas, e do proces­


so divinatório, acred itam o s te r apreendido o sentido d a advinhação
de Ifá. M itos e rito s são re d u n d a n te s e n tre si, pois obedecem a um
m esm o modelo e stru tu ra l. São re d u n d a n te s p a ra que possam ser
trad u zid o s u ns nos outros; assim , ao re la ta r-se qualquer versão m i­
tológica, ou a realizar-se o rito, sem pre se está afirm an d o “o m ito ”
ta l como o definim os em nossa In tro d u ção . A creditam os te r 'm o s tr a ­
do que o “sistem a de I f á ” (os m itos de Ifá , os Odü, sua relação p a ra
com Èsù, etc.) é u m a reafirm ação d a Criação, esta ú ltim a conce­
bid a como a im posição, pela m e n te coletiva, de um a ordem por sobre
a n a tu re z a . Crem os te r m ostrado, tam bém , que a C riação e o Cos­
mos criad o são a p ró p ria cu ltu ra.
Se nosso modelo é correto, ta n to a C riação como a ad ivinhação
se desvendam segundo u m a e s tru tu ra com um . A Criação, postulação
da o rdem cosmológica, se inicia com u m a oposição b in á ria : C éu-
-T erra . À m edida que a ta r e f a cria d o ra prossegue, a dicotom ia in iciai
se tra n sfo rm a n u m a “e s tru tu ra q u á d ru p la ”, u m a d u p la oposição:
C éu -T erra — T erra-Á gua. E fin a lm e n te se chega a um a e s tru tu ra
d e dezesseis. O desenvolvim ento do sistem a dos òrisà como filhos d e
Y em a n já ou de M aw u-Lisa segue o m esm o padrão. Temos, então,
u m a e stru tu ra progressiva n u m a escala de dois;

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2 — C é u - T erra (ò isàn lá-O d ü d u w à; òrun-À iyé)

2 - — C é u - T erra — T erra - á g u a ; C é u - T erra — C ultur a -N atu -


reza ; L e s t e -O est e — N orte - S u l (ò risàn lá-O d ü d u w a —
A gan j u-Y em an j á )

2 4 — 16 òrisà; 16 reinos fund ad o res; 16 “clãs” 16 pontos do


mundo-
E sta ordem progressiva é, ev identem ente, a ordem m ate m á tic a
do sistem a de Ifá. A linguagem de If á tam b ém com eça com u m sis­
te m a b in ário de sin ais opostos (um a n o z-d u as nozes; um traço -d o is
traço s; côncavo-convexo). O sistem a se desenvolve p a ra conjuntos
de qu atro (em bora duplicados) — os signos de If á —, a té ch eg a r a
um co n ju n to u n iv ersal (ta n to n o sentido m a te m á tic o como cosmo-
lógico) de dezesseis. O sistem a de If á provê, en tão, um parad ig m a
p ara a ideologia Y orübá-N àgô.
A adiv in h ação e a m itologia da C riação fo rm am dois conjuntos
de cren ças “re d u n d a n te s ” e n tre si, u n id as n u m m esm o p arad ig m a,
n u m m esm o m odelo axiom ático, onde u m a o rdem probabilística é
um a ordem cosmológica.
M uitos estudiosos d a c u ltu ra Y orübá se in d a g a ra m “porque a cre­
d ita m os Y orübá n a ad iv in h ação de Ifá? P a r a H erskovits a expli­
cação se e n c o n tra n a s sanções d a c ren ça costum eira e no fa to d e
se r o adivinho um hom em sábio. P a ra Bascom a explicação se e n ­
c o n tra em um a série de razões; a) a ad iv in h ação de Ifá foi ensi­
n a d a pelos próprios deuses. Sendo Ifá m esm o u m a divindade que
co n tro la o elem ento probabilidade, a a d iv in h ação p a rtic ip a d a sa n ­
tid a d e dos deuses e é san cio n ad a p ela fé n a religião em geral; b)
I f á possui um a sa n tid a d e especial, pois é u m a divindade à q u al
todos recorrem , in d e p e n d e n te m en te do ò risà que cad a u m c u ltu a;
c) as previsões do adivinho n ã o são “passos cegos no escuro”, pois
n e n h u m cliente a p re se n ta a lte rn a tiv a s ab su rd as; d) os O dü contêm
porções da m itologia Y orübá; p o r isso algo d a fé n o s O dü deriva
d a fé n a m itologia em geral; e) já que m u ito s Jolktales são id ên ­
ticos aos Odü, a m esm a m o ral é ouvida desde a in fâ n c ia ; f) n ão
existe n e n h u m m odo pelo qual o adivinho possa c o n tro lar o resu l­
ta d o das jo g ad as (cf. H erskovits, 1938, p. 206 e Bascom , 1967, p. 44).
Não preten d em o s a rg u m e n ta r c o n tra ta is explicações. No e n ta n ­
to, quer n os p arecer que H erskovits, Bascom e outros que lid aram
com o problem a, n ão o b sta n te sua fam iliarid ad e com a c u ltu ra Yo­
rübá, d eix aram de p erceber um pon to crucial: os Y orübá, assim

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como os F o n e os Nàgô do B rasil, a c re d ita m n a ad ivinhação de Ifá
porque o sistem a de If á “é” a c u ltu ra , e porque seus rito s são u m a
c o n sta n te m ise en scène d a C riação e do m odelo cosmológico. A
ad ivin h ação in co rp o ra os princípios básicos d a ideologia Y orúbá. As­
sim, u m a vez desvendada a e s tru tu ra su b jacen te, a p e rg u n ta acim a
fo rm u lad a se to rn a um a questão ociosa: c re r n a ad ivinhação é sim ­
plesm ente c rer em su a p ró p ria c u ltu ra. A divinhação e cosmologia
são duas faces de u m a m esm a m oeda, dois m odos de um a m esm a
linguagem . C onfiar em Ifá é c o n fia r n a ordem .
O sistem a de Ifá, m ais que um sim ples oráculo, é um m od 2lo
que d á sentido à existência, in te g ra n d o o indivíduo à ordem cos-
m ológica, to rn a n d o -o pessoa com u m a id en tidade, definindo seus
ewo (interdições) e suas possibilidades de m ovim ento no espaço so­
cial e cósmico, e in teg ran d o , n a consciência coletiva, os dois planos
d a existên cia: o do m undo sentido e o do m undo pensado. Frobenius,
m elho r que m uitos etnólogos m odernos, j á percebera que “nos d e­
frontam o s, n ão com um grupo confuso de p a rticu la rid ad e s, m as com
um p lan o grandioso, u m a co n stru ção filosófica” que fu nciona como
um m a p a p a ra a organização social e p a ra o com portam ento in d i­
vidual. P a ra o babalaw o, Ifá ou G b aad u é um m istério insondável,
n u n c a alcan çad o p len am en te pela razão. Se estam os certos em nossa
conclusão de que I fá “é” a c u ltu ra , n ão e staríam o s errad o s ao con­
cluir que seu m istério é o m istério da p ró p ria m en te h u m a n a.

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