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ISSN 1679-1827 www.gestaoorg.dca.ufpe.br

Volume 3, Número 2, mai./ago. 2005

ANÁLISE DO DISCURSO NA PERSPECTIVA DA INTERPRETAÇÃO SOCIAL


DOS DISCURSOS: UMA POSSIBILIDADE ABERTA AOS ESTUDOS
ORGANIZACIONAIS
Christiane Kleiübing Godoi
(UNIVALI)

Sumário: 1. Introdução; 2. As primeiras perspectivas da análise do discurso: análise do conteúdo e


análise semiótica; 3. A terceira perspectiva da análise do discurso: a interpretação social dos
discursos; 4. A análise do discurso e teoria psicanalítica. sobre a interpretação do discurso na
investigação social; 5. Considerações finais.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO


ANÁLISE DO DISCURSO NA PERSPECTIVA DA INTERPRETAÇÃO SOCIAL DOS DISCURSOS: UMA POSSIBILIDADE ABERTA AOS ESTUDOS
ORGANIZACIONAIS
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analysis. This work classifies the various


RESUMO perspectives on discourse analysis into three
A complexidade do campo da Análise basic levels: an informational-quantitative
do Discurso pode ser atribuída ao seu caráter level, a structural-textual level and a social-
interdisciplinar, com raízes e hermeneutic level, also denominated
desenvolvimentos em disciplinas das ciências discourse ethnomethodology. This work
humanas e sociais, como a Lingüística, a focuses on the descriptive resolution and
Semiótica, os Estudos Literários, a critical analysis of each of these levels,
Antropologia, a Sociologia, a Teoria da elaborating a way of delimiting discourse
Comunicação, a Psicologia Social e Cognitiva analysis within the methodological-epistemic
e a Inteligência Artificial. Além da diversidade space of organizational studies.
constitutiva, há, sob a denominação de Psychoanalitical theory enlarges the
análise do discurso, numerosas linhas understanding of analysis discourse
analíticas, tendências e modelos distintos methodology, mainly about the interpretation
que, pretendendo instaurar-se como phenomenon.
hegemônicos ou exclusivos, não situam a si Key-words: Discourse Analysis;
próprios no contexto histórico e Organizational Studies; Research
epistemológico. Como conseqüência, acabam Methodology; Psychoanalitical Theory.
por produzir uma ausência de clareza, não
apenas acerca da vinculação dos modelos
entre si e com as disciplinas originárias, mas
em torno da compreensão do que seja esse 1. INTRODUÇÃO
tipo crucial de análise qualitativa. Classifica-
se a variedade de abordagens de análise do
discurso em três perspectivas básicas: a Enfocando os processos sociais como
informacional-quantitativa, a estrutural- processos de produção de signos, a visão
textual e a social-hermenêutica, também qualitativa em ciências sociais tem como uma
denominada interpretação social dos de suas escolhas mais habituais a Análise do
discursos. Este ensaio pretende buscar a Discurso. Van Dijk (2004, p. 9) ressalta que
delimitação da Análise do Discurso no espaço recentemente diversas disciplinas das
metodológico-epistemológico dos Estudos ciências humanas e sociais têm demonstrado
Organizacionais. Recorre-se à Teoria interesse crescente no estudo do discurso.
Psicanalítica naquilo em que ela pode ampliar Haidar (1998, p.118) atribui a ascensão da
a compreensão da metodologia da Análise do Análise do Discurso dentro do campo das
Discurso, especificamente no que se refere ciências sociais e das ciências da linguagem a
ao fenômeno da interpretação. duas razões principais: o caráter
Palavras-chave: Análise do Discurso; interdisciplinar das ciências sociais entre si e,
Estudos Organizacionais; Teoria Psicanalítica; em complementaridade com a Lingüística,
Metodologia de Pesquisa. associado à importância dos discursos em
qualquer prática humana; e a valorização
crescente nas ciências sociais da dimensão
ABSTRACT pragmática inerente à Análise do Discurso.
The complexity of the field of Embora tenha sido originariamente
discourse analysis can be attributed to its vinculada à Filosofia da Linguagem, a Análise
interdisciplinary nature (with its roots and do Discurso constitui hoje um complexo
developments in the disciplines of human and metodológico fragmentado em diversas
social sciences, such as linguistics and escolas e tendências epistemológicas
semiotics, literary studies, anthropology, diversas. A complexidade do campo da
sociology, communications theory, social and Análise do Discurso é atribuída ao seu caráter
cognitive psychology and artificial essencialmente interdisciplinar, com raízes e
intelligence). Besides the diversity of its desenvolvimentos em disciplinas das ciências
constitution, the denomination discourse humanas e sociais, como a Lingüística, a
analysis also embraces numerous analytical Semiótica, os Estudos Literários, a
lines of reasoning, trends, and distinct Antropologia, a Sociologia, a Teoria da
models which, attempting to establishing Comunicação, a Psicologia Social e Cognitiva
themselves as hegemonic or exclusive, do e a Inteligência Artificial.
not in themselves form part of the historical No entanto, além da diversidade
and epistemological context of language constitutiva, há – sob a denominação de
sciences. As a result, they end up producing análise do discurso – numerosas linhas
a lack of clarity, not only in terms of the analíticas, tendências e modelos distintos
connection between the models themselves, que, pretendendo instaurar-se como
and among the originating disciplines, but hegemônicos ou exclusivos, não situam a si
also in terms of understanding what próprios no contexto histórico e
constitutes this crucial type of qualitative epistemológico das ciências da linguagem, e

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acabam por produzir uma ausência de dimensões cognitivas, sociais e culturais do


clareza, não apenas acerca da vinculação dos uso da linguagem); c) interesse pela fala da
modelos entre si e com as disciplinas cotidianeidade (do interesse pelos textos
originárias, mas em torno da compreensão fixos e escritos aos tipos orais e dialógicos da
do que seja esse tipo crucial de análise fala); d) interesse pela multiplicidade de
qualitativa. gêneros do discurso (não mais restritos
Um exemplo dessa multiplicidade apenas à conversação e ao relato, mas
dissonante é o próprio conceito de discurso – incluindo outros gêneros discursivos, tais
categoria-chave nos desenvolvimentos como o discurso oficial, as entrevistas e a
teóricos diversos – que, entretanto, não está publicidade); e) abertura da base teórica
unificado, como já mostrava Mainguenau (especialmente à Gramática Formal, à Lógica
(1976, p. 11), ao analisar algumas das e à Inteligência Artificial). A caracterização de
acepções mais relevantes do conceito. Van Dijk (2005) acerca da Análise do
Mainguenau (1976) constantemente discute a Discurso contemporânea oportuniza
dificuldade que tem a Análise do Discurso em metodologicamente a utilização da Análise do
definir o seu objeto. Abril (1994, p. 429) Discurso no cenário dos Estudos
acredita que essa diversidade, longe de Organizacionais.
desalentar o projeto de uma Análise do O discurso não pode ser analisado no
Discurso sistematizada, pode ser o seu vácuo contextual, lembra Lakoff (2005), é
principal motor. inerente à vida social (GRIMSHAW, 2005).
A Análise do Discurso apresenta Por sua vez, o espaço metodológico ao qual
assim definições muito variadas, desde a se dedicam os Estudos Organizacionais é
definição mais genérica de Brown e Yule transpassado pelas práticas discursivas
(1993, p. 1) – “a análise do uso da língua” – escritas, faladas e interacionais (GIRIN,
às concepções mais atuais de Van Dijk 1990; BROEKSTRA, 1998). O discurso no
(1990, p. 15) – “o estudo do uso real da cenário organizacional vem sendo, nos
linguagem, por locutores reais em situações últimos anos, tomado como objeto de estudo
reais”. Maingueneau (1997b, p. 3) observa (WEESTOOD e LINSTEAD, 2001; WEESTOOD
que, sobretudo, nos países anglo-saxônicos, e LINSTEAD, 1998; THATCHENKERY, 2001;
muitos autores identificam, em maior ou WOODILLA, 1998).
menor grau, análise do discurso à análise Diante da postura atual de abertura
conversacional, abrangendo um domínio mais transdisciplinar, reagem os lingüistas: “ao
vasto que o da conversação no sentido meu ver, talvez fosse necessário explicar a
estrito, incluindo aspectos não verbais da presença de não-lingüistas em tarefas desta
comunicação. A partir dessa identificação, a natureza. Mas isto, evidentemente, se deve à
Análise do Discurso ultrapassaria os limites minha concepção do que seja uma análise do
da análise das interações verbais, definindo- discurso, em resumo, uma tarefa, antes de
se como uma atividade fundamentalmente mais nada, lingüística.”, reivindica Possenti
interacional. (2001, p. 31). A Análise do Discurso na
Quanto aos principais modelos de França é, sobretudo, – isto desde 1965,
Análise do Discurso – sem pretender abarcar aproximadamente – assunto de lingüistas, de
um inventário completo – Haidar (1998, p. historiadores e de alguns psicólogos, reforça
141) catalogou trinta e quatro modelos, Maingueneau (1997. p. 11). A superação da
considerados principais, dentro de dez exclusividade reivindicada pelos lingüistas
tendências diferentes. Dentre os modelos permite a reflexão no campo das ciências
mais conhecidos, estão o modelo sociais sobre a ampliação da base teórica e
transformacional de Chomsky (tendência metodológica da Análise do Discurso para os
americana); o modelo da filosofia, de Austin Estudos Organizacionais, incorporando os
e Searle (tendência britânica); os modelos aspectos cognitivos, culturais e sociais da
pragmático, de Habermas, e hermenêutico, linguagem.
de Gadamer (tendência alemã); e os modelos Ainda que o amplo inventário construído por
da escola francesa de Análise do Discurso. Haidar (1998) nos sirva de referencial
A partir do desenvolvimento histórico orientador, não procederemos a uma
e da consideração das diferentes direções da utilização completa de todos os modelos
Análise do Discurso, Van Dijk (1990, p. 43) catalogados. Optamos – em função da
elabora a seguinte caracterização atual sinteticidade e abrangência epistemológica –
baseada na integração dos novos por uma aproximação à variedade de
desenvolvimentos da Análise do Discurso: a) abordagens e modelos de Análise do Discurso
transdisciplinariedade (a focalização inicial em três perspectivas básicas propostas por
sobre a Lingüística foi ampliada Alonso (1998). Focalizaremos neste artigo a
especialmente para as Ciências Sociais); b) descrição e a análise de cada uma destas
descrição textual e contextual (os métodos perspectivas – a informacional-quantitativa
formais de descrição textual foram (análise do conteúdo), a estrutural-textual
complementados com a descrição das (análise semiótica) e a social-hermenêutica

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(interpretação social dos discursos). Um descritiva, quantitativa e exploradora da


evidente destaque é concedido à terceira dimensão manifesta dos textos. Através da
perspectiva, uma vez que a via analítica dos busca de distâncias ou proximidades
discursos que se está buscando no campo semânticas, o texto é convertido em um
organizacional distancia-se em essência das espaço de freqüências, de repetições e
primeiras vias (análise do conteúdo e análise associações entre palavras, tornando-se alvo
semiótica), em virtude de não pretendermos do arsenal de ferramentas estatísticas
desenvolver uma análise interna de textos, e (ALONSO, 1998, p. 189). Trata-se de uma
sim uma reconstrução dos sentidos dos análise de relações e de correlações
discursos e dos interesses dos sujeitos na geradoras de cadeias semânticas que não são
organização. Este artigo pretende contribuir mais do que o correlato lingüístico das
para a delimitação do espaço metodológico- cadeias estatísticas (VALLES, 1997, p. 97). A
epistemológico da Análise do Discurso nos explicação, por sua vez, não é outra coisa
Estudos Organizacionais, constituindo-se que a geração de um sistema de relações e
como um ensaio teórico, reflexivo e correlações externas entre as categorias
conceitual, desprovido da pretensão de proliferadas pelo próprio sistema de
sistematizar ou prescrever a utilização do contagem e medida. (ALONSO, 1998, p.
método. 191).
Por ser interpretativa, a prática da análise do A palavra é a unidade central e
discurso não pode ser reduzida a uma série básica desta análise de conteúdo, e o texto é
de passos ou procedimentos técnicos reduzido a um conjunto acumulado de
aplicados mecanicamente (BILLIG, 1997, p. palavras desprovidas de significado
39). A Análise do Discurso não é uma simbólico, uma vez que o que se pretende é
metodologia como as demais, é uma ampla e uma operação aditiva. Inclusive, como
teórica abordagem transdisciplinar. A lembra Valles (1997, p. 97), a condição para
inexistência de regras sistemáticas de que a palavra se converta em sinal é a perda
condução e a desvinculação, tanto da fixação de qualquer sentido múltiplo,
do sentido, quanto da arbitrariedade da plurissignificativo ou polissêmico.
interpretação constituem elementos em Para análise do conteúdo, não há
comum entre a Análise do Discurso e a sujeito na leitura do texto; não há
prática psicanalítica – motivo que nos leva a interpretação, senão descrição e objetivação
recorrer à Teoria Psicanalítica naquilo em que dos componentes. A pretensão declarada de
ela possa se aproximar, detalhar e ampliar a objetividade do processo permite-se
compreensão da metodologia da Análise do desconsiderar a subjetividade do analista e
Discurso, notadamente sobre o os elementos contextuais. Como denuncia
desenvolvimento em torno do fenômeno da Alonso (1998, p. 98), este nível explícito de
interpretação discursiva. dimensão semântica exclui totalmente a
dimensão pragmática. A distinção mais
conhecida entre Sintaxe, Semântica e
2. AS PRIMEIRAS PERSPECTIVAS DA Pragmática é retomada por Julio (1998, p.
ANÁLISE DO DISCURSO: ANÁLISE DO 7): a Sintaxe estuda a relação mútua entre
os signos; a Semântica analisa a conexão
CONTEÚDO E ANÁLISE SEMIÓTICA entre os signos e os objetos a que se
aplicam; e a Pragmática se ocupa da relação
existente entre os signos e os usuários. “As
A primeira perspectiva de Análise do relações dos signos com seus intérpretes",
Discurso é considerada correlata da análise diria Morris (apud BROWN e YULE, 1993, p.
do conteúdo, e assim designada, uma vez 47) sobre a Pragmática. As regras que
que é nesta dimensão que se desenvolvem os especifiquem que combinações de expressões
métodos de análise do conteúdo (BARELSON, são corretas e quais não constituem o objeto
LASWELL e OSGOOD apud ALONSO, 1998). da Sintaxe; a que entidades se referem
Não há uma independência metodológica, certas expressões, como significam outras e
portanto, entre a metodologia de análise do quando dizemos coisas verdadeiras ou falsas
conteúdo e a de análise do discurso. A são o objeto semântico; e como influem os
denominação análise do conteúdo é, falantes da língua e os contextos de usos na
portanto, sinônimo da perspectiva hora de fazer coisas com palavras
informacional-quantitativa de análise do caracterizam os estudos pragmáticos
discurso, ainda que Ibáñes (1986) mencione (FRAPOLLI y ROMERO, 1998, p. 21-22).
a análise do conteúdo como uma dupla Substituindo a imprecisão
vertente analítica, que se abre em: a análise constitutiva da linguagem por uma suposta
quantitativa do conteúdo manifesto; e a precisão forjada, a análise do conteúdo
análise qualitativa do conteúdo latente. produz a perda da dimensão subjetiva e
A perspectiva informacional- relacional da linguagem, onde reside toda a
quantitativa é a análise mais imediata, sua profundidade e espessura. Ao

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negligenciar o processo de produção social do dissecação dos textos em unidades mínimas


sentido, esta primeira perspectiva da análise de sentido. Uma vez que a enunciação foi
do discurso converte-se em um conjunto de submersa, os sujeitos da enunciação passam
referências lexicométricas e demonstra uma a ser simples reprodutores do sistema de
vontade simplificadora do fenômeno da articulação de signos. Pela dissociação entre
linguagem. Em princípio, poderíamos situar a os elementos do discurso e os da
análise do conteúdo como bordeando o limite intersubjetividade e intertextualidade, a
entre o qualitativo e o quantitativo. Alonso análise estrutural acaba por constituir-se em
(1998, p. 193), em sua rigorosa crítica a esta uma variação sofisticada da análise do
abordagem, por ele denominada de conteúdo.
informação sem comunicação, entende que, A Semiótica contemporânea,
por sua lógica e por sua sistemática de entretanto, engendra um segundo momento
atuação, trata-se de um método diferenciado dentro da história da análise
eminentemente quantitativo aplicado sobre semiótica dos discursos, marcadamente
algo que é radicalmente qualitativo, a transpassada pela dogmatização dos signos.
linguagem . Ao colocar em questão o conceito de signo
A segunda perspectiva de (considerado ingênuo e atomístico), a
aproximação à Análise do Discurso nomeada Semiótica atual deixa deliberadamente o
por Alonso (1998, p. 189) – a estrutural- plano dos signos para se ocupar de sistemas
textual – surge como alternativa ao modelo de significação complexos (formado pelos
informacional-quantitativo, constituído por elementos constituintes dos signos, em
um bloco de perspectivas “etiquetadas” como especial o significado), e provoca o que se
“semiótica textual”, “semiótica discursiva”, chamou “crise do signo” (LOZANO, 1999, p.
“semiótica estrutural”, “sociosemiótica” ou 15).
“análise semiótica dos discursos”. Este O trabalho inovador de dissociação
conjunto semiótico apresentou-se, por vezes, entre a Semântica e sua relação
sob um caráter unidisciplinar (é o caso da anteriormente obrigatória com o signo foi
chamada Escola de Paris). Porém, uma realizado por Hjelmslev (apud COURTÉS,
segunda versão do projeto semiótico 1997, p. 38), que atribuiu autonomia e
combinou as perspectivas da Investigação estatuto de disciplina à Semântica. A partir
Narratológica (Greimas, Bremond, Genette), daí, passou-se à delimitação progressiva da
das Teorias da Enunciação (Bakhtin, Ciência da Significação que, na convicção de
Benveniste, Ducrot), da Semântica da Cultura Courtés (1991, p. 38), constitui a finalidade
(Lotman, Uspenski), dos enfoques da Semiótica. A Semiótica, a partir da
pragmáticos da Filosofia Analítica irrupção semântica, passa a ser uma “prática
(Wittgenstein, Austin, Grice, Searle, especializada de leitura” (ABRIL, 1994, p.
Strawson.), da Teoria do Texto (Van Dijk, 429). A ampliação da prática semiótica para
Petöfi) e da Sociologia Fenomenológica a análise da significação dos textos onde
(Goffman, Garfinkel, Cicourel) (ABRIL, 1994, interatuam sujeitos assinala um
p. 430). distanciamento não somente em relação à
A diversidade encontrada dentro da vertigem dos signos, mas também, como
perspectiva estrutural de Análise do Discurso pretende evidenciar Lozano (1999, p. 247),
e a dispersão de seus modelos, envolvendo em relação à euforia do desmascaramento
escolas e autores reconhecidos dentro da ideológico que caracterizava a Semiótica dos
análise semiótica, não são fatores anos 60, referindo-se a Foucault (1987) e
impeditivos da crítica acerca da essência do Pêcheux (1990), fundamentalmente. A
trabalho estruturalista em Análise do Semiótica atual deslocou a ênfase dos
Discurso que, como generaliza Alonso (1998, significados ideológicos para a análise das
p. 196), tende a ser sempre a mesma. Desde condições de produção, circulação e recepção
Saussure e Propp, até Barthes, Todorov, dos discursos, tal como aparece nos
Kristeva, Greimas e um largo et cetera, há trabalhos de Verón (1990) sobre a produção
uma tentativa em comum de se encontrarem do sentido.
isomorfismos ou equivalentes estruturais em Não há dúvidas quanto à importância
línguas, fenômenos, textos ou, até mesmo , da Lingüística Estrutural para a configuração
sociedades (ALONSO, 1998, p. 196). do campo da Análise do Discurso, de tal
Há que se reconhecer, no entanto, a forma que os estudos atuais de Análise do
existência de dois momentos dentro da Discurso, ao se constituírem, já têm que
análise semiótica dos discursos. Um primeiro enfrentar a polêmica com a análise semiótica.
momento é identificado com a aproximação Entretanto, a pretensão hegemônica e
saussureana, centrado no signo e imperialista da análise semiótica dificulta a
desconsiderador tanto do enunciado quanto adoção de uma postura integradora. Por
da enunciação e do discurso. Confinada ao outro lado, torna-se inevitável o recebimento,
âmbito das mensagens, a “semiótica dos no interior dos Estudos Organizacionais, da
códigos” (ABRIL, 1994, p. 430) busca a influência dos autores da Lingüística

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Estrutural e da Semiótica contemporânea, em tomam sentido em relação com os atores que


virtude do lugar que ocupam no os enunciam (ALONSO, 1998, p. 212). Pelo
desenvolvimento das ciências da linguagem. fato de não estar focalizada nas funções
imanentes ao texto, a análise sociológica dos
discursos desprende-se do texto e opera um
3. A TERCEIRA PERSPECTIVA DA ANÁLISE deslocamento do objeto focalizado pela
DO DISCURSO: A INTERPRETAÇÃO SOCIAL análise do discurso para a busca das regras
de coerência que estruturam o universo dos
DOS DISCURSOS discursos nas organizações.
Como categorias lingüísticas
distintas, texto e discurso necessitam ser
Alonso (1998) estabelece um compreendidos em suas características
distanciamento crítico rigoroso em relação ao diferenciais para permitir o entendimento do
imperialismo do modelo lingüístico e objeto e do modo de funcionamento da
semiológico de Análise do Discurso que, por análise social do discurso. Com a ressalva da
sua hegemonia, acabou por tornar pluralidade conceitual dessas categorias
inexplorada a “via concreta da análise inerente à própria multiplicidade de
sociológica dos discursos” (1998, p. 187). A tendências da Análise do Discurso. A
Análise do Discurso em seus usos definição de texto e discurso (SILVERMAN,
sociológicos não é uma análise interna de 2000) corresponde ao lugar de importância
textos, nem lingüística, nem psicanalítica, atribuído por determinada perspectiva a cada
nem semiológica; não se busca com ela categoria de análise. Por exemplo, o discurso
encontrar qualquer tipo de estrutura não poderia ter a mesma conceituação na
subjacente da enunciação, nem uma sintaxe análise semiótica estrutural – onde
combinatória que organize unidades desempenha uma função de mero produto,
significantes elementares. O que se trata de enquanto o texto é o processo, o lugar de
organizar é a reconstrução dos sentidos dos produção do sentido –, e na Escola Francesa
discursos em sua situação – micro e – onde os papéis se invertem, e o discurso
macrossocial – de enunciação. Antes que passa a estar associado ao processo de
uma análise formalista, trata-se nesta produção e a ocupar o lugar principal .
análise sociohermenêutica – guiada pela Se o texto é uma materialização
Fenomenologia, a Etnologia e pela Teoria lingüística, um objeto, o espaço do
Crítica da Sociedade – de encontrar um enunciado, o discurso é a prática reflexiva da
modelo de representação e de compreensão enunciação (ALONSO, 1998, p. 201). Os
do texto concreto em seu contexto social e textos são os suportes de um conjunto de
na historicidade de suas proposições, desde a discursos diferentes. Um texto pode ser
reconstrução dos interesses dos atores que atravessado por vários discursos, porque os
estão implicados no discurso (ALONSO, 1998, discursos não são mais que as “linhas de
p. 188). coerência simbólica com as quais
Nos encontramos assim diante da representamos, e nos representamos, nas
terceira perspectiva de aproximação à Análise diferentes posições sociais” (ALONSO, 1998,
do Discurso – a social-hermenêutica –, p. 201).
também denominada análise sociológica dos Considerando que tudo em um texto
discursos, interpretação social dos discursos emana do enunciador, este se confunde com
ou ainda etnolingüística do discurso. Aqui não o próprio texto (LOZANO, 1999, p. 113);
interessará a quantificação, nem a entretanto, a noção de enunciação e
significação – preocupações primeiras das enunciado viabiliza, na prática da análise do
abordagens anteriores –, mas sim as relações discurso, a escuta e a percepção dos
de produção do sentido, o estudo dos momentos de presença do sujeito no texto.
discursos e suas determinações e Permite também a identificação dos discursos
motivações. “O sentido é o ligamento interno vazios, para utilizar uma analogia com os
do texto” (LOZANO, 1999, p. 33), e é conceitos lacanianos de fala plena e fala vazia
justamente a consideração deste aspecto – esta última como aquela que se reduz ao
processual que permitirá a desistência da enunciado e produz o apagamento do sujeito
busca da significação em unidades textuais no discurso. Como sintetiza Lozano (1999, p.
estáticas pouco interessantes aos relatos da 93), compete à análise da enunciação tudo
vida organizacional. aquilo que no texto indica a atitude do sujeito
A análise sociológica dos discursos com relação ao enunciado.
não é uma análise quantitativa do conteúdo – Os conceitos de enunciado e
concebida como uma soma de significados enunciação são devidos a Benveniste (1974),
pré-determinados de palavras –, nem uma que rompeu com as dicotomias estruturais
análise estrutural de textos – realizada em saussureanas (fala e língua; significado e
um plano sintático ou semântico –, mas uma significante; sintagma e paradigma).
análise contextual, onde os argumentos Benveniste (1974) incorporou a subjetividade

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aos estudos lingüísticos, através da noção de dualidade constitutiva da linguagem


enunciação (ato de produzir um enunciado). (BRANDÃO, 1991, p. 11). O discurso é o
Já não se trata das entidades dicotômicas, lugar da constituição da subjetividade, do
senão de duas posições na operação que desejo e da contradição natural do sujeito;
supõe a passagem da língua ao discurso, opostamente, o texto é “o âmbito dentro do
explica Lamíquiz (1994, p. 28). A enunciação qual as frases perdem sua ambigüidade”
é colocação em discurso da língua por um (LOZANO 1999, p. 36).
sujeito (LOZANO, 1999, p. 90; LAMÍQUIZ, O que analisamos, portanto, no
1994, p. 28). É justamente a partir dos trabalho de investigação nas organizações
estudos sobre enunciação que a análise do são discursos, não textos. Nos estudos
discurso organizacional se desenvolve. organizacionais o que interessa não é o estilo
No uso da metodologia da análise do textual, nem a busca da estrutura subjacente
discurso no campo organizacional são do texto, mas a atuação deste “complexo
constantemente identificados discursos fenômeno cognitivo e social que chamamos
permeados pela enunciação (que, na discurso” (ALONSO, 1999. p. 332). Mediante
realidade, não se desvincula do enunciado) e, a incorporação dessa visão pragmática, a
por outro lado, discursos onde o sujeito interpretação social dos discursos declara o
busca esconder-se, sufocando a enunciação e seu interesse não pelo que os textos
pouco contribuindo para os objetivos da formalizam, mas por aquilo que os discursos
investigação. A análise dos discursos faz fazem e de que são constituídos os discursos.
sentir a necessidade de se ir além do Ainda que a Semântica como relação das
discurso manifesto, de se considerar a frases com os estados de coisas que
possibilidade de que nem sempre o que as significam não possa se opor, como lembra
pessoas dizem é o que elas sentem e vivem. Lozano (1999, p. 91), à Pragmática como
Para compreender como é possível relação das frases com quem as usa e
dizer algo mais do que o que se diz interpreta. Brown y Yule (1993, p. 13), por
literalmente (enunciado), e identificar o sua vez, confessam apelar ao enfoque
sujeito no discurso (enunciação), há que se pragmático, procurando evitar o perigoso
apelar às informações de fundo, às extremo de se recorrer à perspectiva
informações mutuamente compartilhadas individual (ou idiossincrática) na
pelos interlocutores sobre os fatos, ou seja, interpretação de cada fragmento discursivo,
considerarem-se os elementos de um item referindo-se criticamente à postura
constitutivo da interpretação: o contexto. O hermenêutica. Essa visão performática dos
próprio fato de que o pesquisador se discursos inerente à análise sociológica dos
interessa pela dimensão expressiva e discursos é o que justifica o espaço mais
pragmática exige a relação das propriedades adiante destinado neste ensaio à Teoria dos
do discurso com aspectos diferentes do Atos da Fala.
contexto interacional ou estrutural em que o O que se percebe é que, entre os
discurso foi produzido. Além disso, uma vez autores da Análise do Discurso
que não se trata, nas interpretações, de se contemporânea, tais como Van Dijk (2005),
estabelecer uma clínica do texto, submetendo Heller (2005), Norrick (2005), há posições
o discurso a interpretações de caráter diferenciadas por ocasião das associações
estritamente psicanalítico, à revelia da entre a Pragmática, a Semântica e a
existência de uma história de conversações Hermenêutica. Mas há um consenso com
anteriores e da presença do sujeito no relação à aproximação entre a Análise do
momento da validação da interpretação, o Discurso e a Pragmática. Existe um acordo de
contexto organizacional passa a ser o que a análise sociológica dos discursos não
principal referencial do investigador na deve ocupar-se diretamente da sentença em
prática da interpretação. si, da relação dos signos entre si ou com o
Em função da transparência ou que eles designam (campos da Sintaxe e da
opacidade destes níveis da subjetividade no Semântica), mas da localização pragmática
discurso é que os enunciados apresentam, na da sentença, da produção e dos efeitos dos
formulação de Brandão (1991, p 75), uma enunciados em um determinado contexto do
dupla face: um direito e um avesso, que são discurso. Verón (1990) assinala que a
indissociáveis. Ao analista cabe decifrá-los presença do social na linguagem somente é
não só no seu direito, relacionando-os a sua localizável mediante a passagem da
própria formação discursiva, mas também no Semântica à Pragmática (relação dos signos
seu avesso, perscrutando aquela face oculta com os seus usuários, com o contexto da
em que mascara a rejeição do discurso de situação de fala).
seu Outro – o caráter inconsciente da Fazer análise do discurso implica
enunciação no discurso. necessariamente fazer sintaxe e semântica,
A formalidade do texto e seu porém consiste basicamente em fazer
atravessamento por entradas subjetivas, pragmática. Tanto em Análise do Discurso,
organizacionais e sociais caracterizam a quanto em Pragmática, o objetivo é

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ORGANIZACIONAIS
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descrever o que fazem as pessoas quando são trazidos à existência (HARRÉ, 1997, p.
usam a linguagem, e explicar os aspectos 27). “É através do discurso que construímos
lingüísticos dos discursos como os meios a forma da experiência pessoal, às vezes
empregados nessa atividade. A análise chamada subjetividade.” (HARRÉ, 1997, p.
sociológica dos discursos, em sua dimensão 39).
pragmática, investiga regularidades sociais e Além das irregularidades
não “leis” formais; encontra referências a provenientes das características do sujeito e
contextos, mais que universais, lingüísticos e da produção do sentido, há ainda outras
antropológicos; opera por analogia e fontes referenciais de incertezas na análise
interpretações locais, e não por protocolos dos discursos, oriundas do que se denomina
genéricos; e tenta descobrir as regularidades contexto discursivo. A linguagem não é
encontradas nas realizações lingüísticas que examinada em abstrato, como um fenômeno
empregam as pessoas para comunicarem isolado, mas sempre em relação a uma
estes significados e intenções (BROWN y situação, seja ela social, organizacional,
YULE, 1993). psicológica e interativa, ou seja, o produto
Esta questão da busca por lingüístico nunca é exclusivamente código,
regularidades no discurso – também objeto senão que é o “código em situação”
de divergência entre os autores – merece ser (RODRÍGUES, 2000, p. 50). Esse conteúdo
alvo de questionamento dentro da Análise do experiencial, ideacional ou situacional do
Discurso. Brown y Yule (1993) postulam discurso é denominado de contexto.
insistentemente que o papel do analista Contexto é o mundo físico, social e
reside em descobrir regularidades em seus organizacional que interage com o texto para
dados e descrevê-las. “Não só estamos criar o discurso (COOK, 1990, p.156). Um
dispostos a buscar regularidades, senão que contexto de situação apropriado ao estudo
tendemos a perceber as mesmas” (1993, p. lingüístico põe em relação as seguintes
89). A intenção de sistematização, categorias: a) as características relevantes
padronização e controle daquilo que, por sua dos participantes, considerando a ação verbal
natureza, é disperso, contraditório e diferente e a ação não-verbal dos participantes; b) os
parece ser uma versão qualitativa da análise objetos relevantes; e c) o efeito da ação
do conteúdo, atormentada com a freqüência verbal. (FIRTH, 1964, p. 182). O contexto,
e a regularidade. então, é a dimensão mais ampla do texto,
O que diferencia a análise sociológica suporte das interpretações, que envolve as
dos discursos da análise do conteúdo – onde subjetividades, as ações, os objetos e os
o sujeito é dissolvido no objetivismo dos efeitos discursivos. O contexto é criado pelo
sinais – e da análise estrutural – onde o próprio texto para constituir o discurso. A
sujeito fica suspendido na interpretação importância atribuída ao contexto pelas
objetivada – é exatamente a recuperação do análises do discurso de caráter pragmático
sujeito no texto. Postular que o discurso é amplia a possibilidade de interpretação do
atravessado pela unidade do sujeito é discurso (e transformação do contexto), mas
incorrer em uma impossibilidade não garante o encontro de objetivações e
epistemológica, a partir do momento em que regularidades, ao contrário, amplia o campo
se trabalha, nas ciências da linguagem, com de incertezas. Abril (1994, p. 428), inclusive,
uma noção de sujeito dividido, fragmentado, considera a noção de contexto como
e que reflete no discurso a sua dispersão sumamente vaga. Marcado tanto por
constitutiva. O que há no discurso não são entradas subjetivas quanto institucionais e
regularidades e sim dispersão, diferenças e sociais, o contexto organizacional constitui o
descontinuidade dos planos de onde o sujeito cenário intersubjetivo da conversação, que
fala. No dizer de Possenti, “considero o amarra os elementos definidos como
discurso uma máquina de produzir sentidos” embasadores da interpretação, e assinala a
(2001, p. 154). diferença entre a interpretação social dos
Brandão (1991, p. 30), coerente com discursos e as demais perspectivas da Análise
as características de sua obra – atravessada do Discurso.
pelas conseqüências das determinações da A concepção performática,
ordem da ideologia e do desejo inconsciente incorporada pela análise sociológica dos
sobre o discurso –, discorda que a Análise do discursos, na qual o discurso é considerado
Discurso deva buscar a unidade de todas as fundamentalmente como um ato, ou como
formações discursivas de uma conjuntura. Os uma série de atos (cognitivos ou de outro
discursos, como define Alonso (1998, p. 58), tipo), encontra suas origens na Teoria dos
são uma complexa expressão de níveis da Atos da Fala – tradição gerada, dentro da
consciência. Filosofia da Linguagem, por Wittgenstein
A análise das estruturas e funções do (1989) e Austin (1970). Além dos
discurso se dá através do relato das trocas formuladores, a Teoria dos Atos da Fala
discursivas sobre os episódios informais em passaria a ter Searle (1980) como
que os fenômenos psicológicos motivacionais representante mais destacado e

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sistematizador da teoria. A Teoria dos Atos


da Fala realizou o deslocamento da função
essencial da linguagem da representação à 4. ANÁLISE DO DISCURSO E TEORIA
ação. Estranhamente, estudiosos PSICANALÍTICA. SOBRE A INTERPRETAÇÃO
contemporâneos da Filosofia da Linguagem,
como Frapolly y Romero (1998, p. 27), DO DISCURSO NA INVESTIGAÇÃO SOCIAL
insistem na capacidade de representação
como função essencial da linguagem.
Elaboramos um relato sintético A linguagem constitui um terreno em
envolvendo as construções iniciais da Teoria comum ao sujeito, à investigação social e à
dos Atos da Fala e assinalando os dois Teoria Psicanalítica. A aproximação entre
momentos da formulação austiniana dos noções ou conceitos da Teoria Psicanalítica e
atos. Austin (1970) sistematiza uma dupla a pesquisa em ciências sociais remonta,
classificação dos atos lingüísticos. Distingue, entretanto, a uma história de deformações e
inicialmente, dois tipos gerais de uso da distorções dos conceitos freudianos. O
linguagem ou de sentenças: o constatativo, revisionismo psicanalítico dos autores
em que sentenças são usadas para descrever culturalistas, na tentativa de sociologizar as
fatos e representar o real; e o performativo, categorias psicanalíticas, diluiu os conceitos
no qual se realiza a ação através do psicanalíticos no social. A Psicanálise foi
proferimento de uma sentença. O locutor não tomada como um saber passível de ser
apenas descreve e constata fatos, mas ao anexado às ciências sociais. Pretendia-se
enunciar a sentença já está, de fato, operar a junção do psíquico e do social
executando a ação. Reduzindo todos os atos somente depois de banalizar ambos, gerando
aos performativos, uma vez que "nos o que Recio (1995, p. 487) denominou o mal-
próprios constatativos está incluso um fazer entendido psicanalítico nas ciências sociais.
que permanece quase sempre não-dito" A postura de integração de Recio
(RICOEUR, 1991, p. 57), o próprio Austin (1995) entre a Psicanálise e o campo da
(1970) ultrapassa essa distinção. Surge, investigação social foge às perspectivas
então, uma nova classificação, designando reducionistas, pois não se trata, na verdade,
três dimensões dos atos da fala: o ato de estabelecer uma disciplina como melhor
locucionário, que vem a ser o proferimento do que a outra, e sim como pertencente a
de uma sentença de língua; o ato planos “hierárquicos” diferentes. Para Recio
ilocucionário, que consiste no ato de fazer (1995, p. 487), tanto a Psicanálise quanto a
algo através desse proferimento; e o ato Lingüística são teorias gerais (não regionais,
perlocucionário, que diz respeito às específicas) das ciências sociais porque, a
conseqüências geradas por um ato de fala. partir delas, se pode dar conta do social.
Com a passagem da primeira à segunda Outros saberes, como a Semiologia, a
classificação, Austin não mais elabora uma Antropologia, a História das Mentalidades, ou
tipologia dos atos possíveis, mas declara a a própria investigação sociológica de textos e
necessária presença das três dimensões – discursos, assim como os Estudos
locucionária, ilocucionária e perlocucionária – Organizacionais, podem remeter-se à
em um mesmo ato de fala. Lingüística e à Psicanálise, enquanto a
A segunda formulação de Austin Lingüística ou a Psicanálise não é abordável
(1970), apesar de encontrar correspondência a partir destes saberes.
nos atos da formulação inicial, engendra em Não se trata, portanto, de propor
cada ato da fala três subatividades uma anexação da Psicanálise à Análise do
analiticamente discerníveis. Ainda que seja Discurso, mas, a partir do campo da
na força ilocucionária que resida o núcleo do investigação sociológica do discurso, recorrer
ato de fala, dizer é fazer algo não só da à Teoria Psicanalítica naquilo em que ela
ordem das ações, mas da ordem dos possa se aproximar, detalhar e ampliar a
sentimentos e pensamentos a que a fala se compreensão da metodologia da Análise do
reporta. A ilocução implica a produção de Discurso, fundamentalmente no que se refere
resultados extralingüísticos, tais como ao aprofundamento da noção de
convencer, desanimar, assustar, surpreender interpretação.
a alguém, compreendidos como efeitos Recio (1995, p. 482) sugere que a
perlocucionários. A interpretação de um relação da Psicanálise com a Lingüística,
discurso, enquanto ato de fala (ou uma série especificamente, seja pensada em duas
de atos de fala), está embutida dentro de modalidades: a linguagem é a condição do
uma interpretação de todo o processo de inconsciente e o inconsciente é a condição da
interação entre os participantes da conversa Lingüística. À Lingüística caberia interpretar
(VAN DIJK, 2004, p. 18). A Teoria dos Atos aquilo que Barthes alguma vez denominou
da Fala exerce, portanto, inegável influência “formas laicas do inconsciente” (apud ABRIL,
sobre o pensamento lingüístico 94, p. 457). "O inconsciente é estruturado
contemporâneo. como uma linguagem" (LACAN, 1988, p. 75).

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ANÁLISE DO DISCURSO NA PERSPECTIVA DA INTERPRETAÇÃO SOCIAL DOS DISCURSOS: UMA POSSIBILIDADE ABERTA AOS ESTUDOS
ORGANIZACIONAIS
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A partir deste aforismo, Lacan inaugura a Todo discurso contém elementos


análise lingüística como método apropriado excluídos do campo da dizibilidade. Os
para o estudo do inconsciente, não implícitos e os silêncios discursivos
precisamente porque o material psicanalítico constituem o substrato mais importante da
seja verbal, senão porque a Lingüística Análise do Discurso, uma vez que estão
oferece o melhor modelo disponível para associados à produção do sentido discursivo.
explicar as estruturas e as leis desse Os implícitos, mencionados por Haidar (1998,
material. Entretanto, o inconsciente p. 140), distinguem-se dos silêncios
lingüístico não coincide com o inconsciente discursivos descritos por Pêcheux (1990).
freudiano (GODOI, 2004). Alonso (1998, p. Enquanto o implícito corresponde a uma
210) limita a análise sociológica dos discursos inferência sobre o explícito, a um
ao espaço do latente, não do inconsciente. prolongamento de sentido latente, os
Considerando que os sujeitos não são silêncios discursivos, que em Pêcheux (1990)
inconscientes de suas práticas discursivas, e estão associados aos processos de
sim que não reconhecem, em sua totalidade, esquecimento gerados por um efeito
os efeitos e as ações geradas pelos discursos, ideológico, correspondem à zona do excluído,
a análise sociológica dos discursos focalizar- do proibido, dos tabus do discurso.
se-ia sobre as funções latentes dos discursos A exclusão do campo inconsciente
na vida social. como espaço de atuação da análise do
O fato de o sistema inconsciente discurso não dilui a possibilidade de
utilizado pelos linguistas, semiólogos ou articulação entre a Psicanálise e a Análise do
antropólogos não ser o sistema inconsciente Discurso. Afirmar que se trata, em Análise do
de Freud (1982b), faz surgir uma Discurso e em Psicanálise, do mesmo objeto
preocupação, relatada por Pereña (1994, p. seria um grave equívoco, com prejuízos para
445), por exemplo, de que a aproximação da ambas as regiões, além de se incorrer na
Psicanálise à Análise do Discurso possa estratégia de anexação epistemológica.
implicar violentar os limites da prática Análise do Discurso e Psicanálise possuem
clínica, uma vez que já não se faz estatutos epistemológicos distintos, objetos
psicanálise, senão outra coisa distinta. Trata- de estudo concebidos diferentemente e
se de uma preocupação típica, ainda que práticas metodológicas distintas. A
responsável, da mentalidade regional descrita aproximação torna-se possível em função dos
anteriormente, segundo a qual a Psicanálise seguintes fatores e condições: a) em virtude
é que precisa envolver-se de precaução de ser a Análise do Discurso um campo
epistemológica, pois será aplicada, deslocada transdisciplinar que mantém fronteiras não
a outro campo. A direcionalidade da só com a Psicanálise, mas com disciplinas das
aproximação entre a Análise do Discurso e a humanidades, como a Sociologia, a
Psicanálise, para não incorrer em um Antropologia e a História; b) em função da
conjunto de equívocos epistemológicos, possibilidade de compatibilização da noção de
precisa ter como ponto de partida o saber sujeito das duas regiões; c) por manterem
específico, ou seja, a Análise do Discurso. O ambas a prática do discurso como nível de
saber específico remete-se ao saber, ou aos análise privilegiado; e d) em virtude de terem
saberes, gerais, buscando referencias para o a interpretação como núcleo técnico
aprimoramento conceitual, para a ampliação fundamental.
de sua capacidade interpretativa e, inclusive, A Psicanálise questiona a unicidade
para repensar seus limites e posicionamentos significante da concepção homogeneizadora
epistemológicos. da discursividade. Em conseqüência da
Ao criticar os modelos de Análise do concepção de sujeito dividido
Discurso que só se preocupam com a estruturalmente entre consciente e
dimensão do explícito e não consideram a inconsciente, a Psicanálise busca a sua forma
dimensão do implícito, Haidar (1998, p. 140) de constituição na diversidade de uma “fala
expõe o princípio da economia da linguagem, heterogênea” (BRANDÃO, 1991, p. 54). O
quer dizer, a idéia de que os discursos discurso social-organizacional, por sua vez, é
sempre devem manejar muitos pressupostos, uma suplência ilusória da heterogeneidade
muitos implícitos que dêem conta de vários constitutiva do sujeito, uma prótese
aspectos por inferência, sem que seja concebida para encobrir o desajuste
necessário enunciá-los verbalmente. As estrutural entre linguagem e sujeito. Há no
dimensões explícita e implícita são discurso social um projeto de unidade de
constitutivas de qualquer discurso. O explícito sentido, como explica Pereña (1994, p. 468),
é o dito no discurso, o que se encontra de homogeneidade da significação;
verbalizado na superfície discursiva; o paradoxalmente, existe consciência de sua
implícito é o sentido que se infere, e que tem condição metafórica, quer dizer, da
como suporte o dito explicitamente (HAIDAR, imprevisibilidade do sentido.
1998, p. 139). Essa lógica discursiva supõe a
condição de falta, de não completude do

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sujeito. A individuação, entretanto, na busca está aberta a qualquer sentido, mas apenas
por produzir consensos interpelativos, pode aos que se derivam de seus atores como
sofrer variações, que se manifestam através precipitação de circunstâncias sociais e
dos mecanismos descritos por Maingueneau pessoais.
(1976): mascaramento (o sujeito busca “Compreender é interpretar. E
apagar de seu discurso as marcas que interpretar é voltar a expor o fenômeno com
permitirão classificá-lo em determinado a intenção de encontrar seu equivalente”.
grupo ou atribuí-lo a determinada ideologia); (SONTAG, 1984, p. 19). Interpretar o
simulação (o sujeito toma o vocabulário de discurso é estabelecer seu sentido através de
um grupo que não é o seu para produzir um um processo permanente de decomposição e
discurso do seu grupo); conveniência ( recomposição (ALONSO, 1998, p. 220). A
mecanismo no qual há um acordo entre o interpretação é o descobrimento do sentido,
locutor e os destinatários; o sujeito, então, porém não de uma maneira arbitrária, de
utiliza um vocabulário que o classificará como imposição do eu sobre qualquer realidade,
pertencente a determinado grupo, dirigindo, senão de encontro intersubjetivo entre o
porém, esta utilização para ironizar, para sujeito como gerador de sentido e o mundo
atacar, para negar). da vida organizacional em que se encontra
No mecanismo da conveniência, o como limite dos significados (ALONSO, 1998,
sujeito da enunciação toma o lugar de outro p. 212).
sujeito para destruir ou desqualificar o A função de produção do sentido
discurso do outro. Entre os mecanismos de pertence simultaneamente ao investigador,
mascaramento e simulação aparece uma ao sujeito e ao contexto organizacional. É a
lógica contraditória. No primeiro, o sujeito, visão construtiva do investigador que narra e
em um mecanismo denegatório, exclui o reconstrói o discurso. Não se trata, porém,
outro e, no segundo, por meio de uma de um subjetivismo puro, mas de um
identificação imaginária, incorpora o discurso “subjetivismo objetivado socialmente”. Os
do outro como seu. Os mecanismos de próprios discursos e contextos é que
encobrimento do sujeito produzidos na constituem os limites e os princípios de
linguagem revelam a própria essência da validação da interpretação, os objetivadores
individuação. O sujeito, no ato de enunciar, da subjetividade. Os limites da interpretação,
surge e desaparece, se constitui e se apaga portanto, são definidos pelos próprios
no campo do outro. objetivos da investigação. Assim, a validação
A natureza da linguagem é da ordem da interpretação depende: da coerência
do mal-entendido, do equívoco, produzido argumentativa; da razão, da consistência e
pela ambigüidade da palavra, pela da honestidade do teórico; da adequação à
polivalência de significações e pela ausência comunidade em que se realiza; dos objetivos
de um sentido fixo. A inexistência de uma sociais da interpretação. Ainda que, em
relação imediata e obrigatória entre um última instância, seja o sujeito quem atribui o
significante e um significado determina a sentido do discurso, uma vez que o analista
polissemia e a abertura de sentido do do discurso está na posição de ouvinte que
discurso, uma vez que é a relação de um formula interpretações que podem ou não ter
significante a outro significante (articulados sentido, a validação da interpretação está
na cadeia) que engendra a relação do associada à sua capacidade de reconstrução
significante ao significado no processo de do campo de forças sociais que deu lugar à
construção do sentido. investigação. Trata-se de um duplo enfoque
O mecanismo significante está na pragmático: pragmática dos discursos
emergência das formações do inconsciente. sociais, pragmática da estratégia de
Como dizia Lacan, "o que se chama o investigação (ALONSO, 1998).
inconsciente é o significante em ação” (1988, Pelo fato de se ter um acesso
p. 81). Ricoeur referia-se ao inconsciente limitado ao que o sujeito pretende expressar
como o “involuntário absoluto”. No entanto, em um fragmento de discurso, qualquer
em suas obras mais tardias, já não mais informação ou implicação identificada terá o
reconhece o inconsciente como involuntário, caráter de uma interpretação, ou seja,
mas como portador de um sentido que se constituirá um processo de inferência através
oferece à decifração (RICOEUR, 2001, p. 32). da qual se pode chegar à interpretação dos
A formação do sentido inerente ao enunciados e das relações entre eles
processo de interpretação do discurso (BROWN y YULE, 1993, p. 56).
(GUBRIUM e HOLSTEIN, 2000) não está A própria noção de texto, definida
ligada a uma injeção de sentido atribuída por Brown y Yule (1993, p. 31), como o
pelo analista do discurso, tal como se o registro verbal de um ato comunicativo, ou
sentido já estivesse dado a priori, mas a uma seja, a representação escrita de um texto
abertura de sentido à cadeia significante. falado, já implica um processo de caráter
Alonso (1998, p. 220) ressalva que a essencialmente subjetivo presente na
interpretação, como leitura de sentido, não percepção e na interpretação de cada texto,

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ANÁLISE DO DISCURSO NA PERSPECTIVA DA INTERPRETAÇÃO SOCIAL DOS DISCURSOS: UMA POSSIBILIDADE ABERTA AOS ESTUDOS
ORGANIZACIONAIS
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uma vez que indivíduos diferentes prestam investigação e pelas inevitáveis concessões à
atenção a aspectos diferentes dos textos. Na categoria do desejo do analista.
análise dos textos produzidos, criamos A orientação da Análise do Discurso
abstrações e pontos de vista e acreditamos pelo modelo conceitual da investigação não é
na existência do que Schutz (apud BROWN y o mesmo que a subordinação dos enunciados
YULE, p. 31) chamou de reciprocidade de a leis, estatísticas ou lingüísticas. No espaço
perspectiva, quer dizer, supomos que os da interpretação – mescla de suspeita e
leitores compartilham da mesma escuta –, trata-se de penetrar nos
compreensão. significados para os sujeitos dos enunciados,
Brown y Yule se dedicam ao buscando-se a prioridade da prática sobre o
problema que enfrentam os analistas do código; da função sobre a estrutura; do
discurso no momento da elaboração de contexto sobre o texto; do latente sobre o
transcrições dos textos falados, utilizando, inconsciente; da intencionalidade da
quase invariavelmente, convenções inerentes mensagem sobre a arbitrariedade dos signos
à linguagem escrita. Se o analista decide (RICOUER, 1996, p. 151; ALONSO, 1998).
transcrever em itálico uma palavra para A construção aproximativa entre a
assinalar, por exemplo, que o falante elevou Análise do Discurso e a Psicanálise não
o tom e a intensidade de sua voz, está pretende gerar a impressão de que o
levando a cabo uma interpretação do sinal investigador social faz interpretação
acústico, uma interpretação que, em sua psicanalítica em seus estudos. Recio (1994,
opinião, tem um efeito equivalente ao p. 487-8) recorda que existe uma diferença
sublinhado que emprega um escritor para entre teoria e interpretação psicanalítica.
indicar ênfase. Em certo sentido, o analista Portanto, não se trata de realizar
cria o texto que os outros lerão. Na criação interpretação psicanalítica na investigação
da versão escrita do texto falado recorre a social; não há transposições teóricas ou
modos convencionais de interpretação que, instrumentais de um campo ao outro do
em sua opinião, compartem outros falantes saber. Demarcados os campos de
da língua (1993, p. 30-31). intersecção, mantidas semelhanças e
A produção da versão escrita de um diferenças entre estatutos identitários, e
texto falado já é, portanto, uma respeitados os limites epistemológicos, o que
interpretação. A Análise do Discurso – se pretende é oportunizar a convivência entre
através de suas pressuposições de que os Teoria Psicanalítica e investigação nas
significados compartilhados são necessários à organizações.
validação da interpretação e de que os fatos Ao propor que a relação entre a
discursivos são construídos no espaço da Psicanálise e a investigação social situe-se
intersubjetividade –, representa um exemplo exclusivamente na reflexividade e não na
concreto da visão construtivista em pesquisa instrumentalidade, Recio (1994, p. 448)
qualitativa e da realidade da construção do acaba incorrendo, em virtude da preocupação
objeto nos Estudos Organizacionais. com a vulgarização psicanalítica – que, por
O caráter construtivo das elaborações certo, não se revela à toa –, na mentalidade
textuais amplia a responsabilidade do regional, como se fosse possível a anexação
analista, que precisa já ter construído um entre um saber geral e um saber específico.
modelo interpretativo que lhe sirva de guia Não se corre o risco de uma psicanálise
na montagem do texto escrito. Essa aplicada à pesquisa organizacional, por uma
diagramação do mapa conceitual, como diz impossibilidade fundamentalmente
Sierra (1998, p. 332-3), conduzirá o analista determinada pela diferenciação entre objetos
desde as primeiras leituras da transcrição, de estudo. No entanto, podem-se avançar os
nas quais se procede a identificação dos limites da reflexividade, uma vez que a
elementos nucleares do discurso, à captação prática instrumental não é desconectada dos
do significado manifesto, através da valores, pressupostos e categorias definidas
demarcação dos conceitos fundamentais, pelo investigador. Ainda mais, quando a
aqueles que têm valor substantivo associado instrumentalidade reside no ato da
ao tema da investigação. Estes conceitos interpretação completamente contaminada
constituem o campo das categorias pelo mapa conceitual. Reflexão, interpretação
construídas pelo investigador. O modelo e compreensão encontram-se intimamente
interpretativo acompanha todo o processo vinculadas e, ao delimitarem o terreno da
analítico-interpretativo até o resultado final investigação, arrastam consigo o substrato
da investigação, que não será mais do que das influências conceituais (mais ou menos
uma “narração sobre a narração do explícitas) do investigador. Como propõe
entrevistado, uma interpretação da Ricoeur (1988, p. 133 e ss.), o modelo
interpretação do entrevistado” (SIERRA, fenomenológico hermenêutico que estamos
1998, p. 333). O relato final é uma desenhando não está preocupado com a
reinterpretação do discurso do sujeito constituição dos enunciados, mas se coloca
transpassada pelas categorias da

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102

no plano da fundamentação dos enunciados, Esta posição de abertura teórico-


da intenção, do sentido e da motivação. metodológica exige por parte do investigador,
além da precaução epistemológica, a atenção
aos seguintes aspectos: visão global e
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS histórica das perspectivas e modelos,
situados em planos epistemológicos; atenção
No presente momento, é difícil ao trabalho de redefinição das categorias
estabelecerem-se distinções precisas no quando retiradas de sua região de origem e,
campo de estudos do discurso, que parece simultaneamente, preservação do conceito
cada vez mais se caracterizar como um original; e consciência acerca do grau de
campo interdisciplinar independente (VAN integração possível entre as perspectivas.
DIJK, 2004, p. 11). Este ensaio pretendeu O delineamento metodológico de um
detalhar e diferenciar as diversas linhas trabalho comprometido com o objeto
metodológico-epistemológicas de organizacional e com as características do
fundamentação da Análise do Discurso, objeto não pode ignorar, por exemplo, as
utilizando as perspectivas de aproximação contribuições da Lingüística Estrutural, no
propostas por Alonso (1998). Ignorar as que se refere à busca de estruturas
diferenças entre essas perspectivas, subjacentes ao texto. Essa lógica que se
reduzindo-as todas a uma única Análise do opera na análise estrutural pode ser utilizada,
Discurso, contribui ou para a “postura de como ressalva Alonso (1998, p. 202), para
supremacia” do lingüístico sobre o social, ou complementar a perspectiva da interpretação
para a “postura de vale tudo” (MORGAN, social dos discursos. A possibilidade de
1983) no campo metodológico. Em ambos os complementaridade representa um grau
casos, revela-se o desprezo pelos mínimo de integração, longe de uma fusão de
fundamentos epistemológicos da Análise do abordagens que, como já foi apontado,
Discurso em ciências sociais. situam-se em dimensões epistemológicas
A análise das três perspectivas de distintas.
aproximação à Análise do Discurso traz a Dada a complexidade e a pluralidade
percepção de que, apesar da multiplicidade do discurso nos Estudos Organizacionais, a
de abordagens, perspectivas e modelos de sua análise demanda a utilização de uma
Análise do Discurso, com seu arsenal de estratégia de metodologias de pesquisa
categorias, conceitos e ferramentas, faz falta sofisticadas, capazes tanto de interpretar as
uma visão integrada que, sem precisar mensagens explícitas quanto de desvendar os
romper com a estrutura epistemológica de sentidos ocultos, os silêncios, as omissões. A
cada visão, possibilitasse uma aproximação busca da significação oculta não implica a
menos fragmentada do discurso e das crença em um único sentido, em uma única
categorias da investigação social que habitam verdade. O foco de interesse é a construção
o discurso. de procedimentos capazes de transportar o
Na análise do discurso não se pode olhar-leitor a compreensões menos óbvias,
fazer um só tipo de análise (ALZAGA, 1998, mais profundas através da desconstrução do
p. 95). A proposta de abertura das literal, do imediato (CABRAL, 1999). A
possibilidades de análise esbarra no problema Análise do Discurso desloca a atenção dos
do atravessamento epistemológico em que se investigadores para a escuta das falas
pode incorrer nas tentativas integradoras, cotidianas nas organizações.
uma vez que entre perspectivas diferentes de O aprofundamento da base
Análise do Discurso – o quantitativo, o metodológico-epistemológica da Análise do
semiológico e o sociológico –, provavelmente Discurso permite-nos ampliar a liberdade de
haverá incompatibilidades ontológicas e construção dos elementos metodológico-
epistemológicas. técnicos, sem nos render à “ditadura do
Há propostas integradoras que método” (MORIN, 2001; DEMO 2001), pois o
parecem respeitar os limites da método só pode se construir durante a
compatibilidade e da coerência epistêmica, pesquisa (MORIN, 2003, p. 36). Uma vez que
como é o caso da perspectiva desenvolvida a Análise do Discurso é formada por um
por Van Dijk (1990; 2004; 2005), que conjunto de conhecimentos – conceitos,
pretende uma aproximação entre o técnicas e concepções sobre o discurso e o
discursivo, o cognitivo e o social; a sujeito, herdados de diferentes disciplinas –,
abordagem de Haidar (1998) que, ao a ferramenta fundamental da investigação,
centrar-se sobre a Escola Francesa de Análise como lembra Alonso (1998, p. 15), passa a
do Discurso, não se fecha à integração de ser a capacidade interpretativa do
elementos de outras tendências, como a investigador. A interpretação é, ao mesmo
lingüística textual, os modelos tempo, um diálogo com o texto e com os
argumentativos, as teorias da narração e as outros, daí o cuidado de não se incorrer no
teorias do sujeito. oposto da receita técnica, a arbitrariedade
interpretativa.

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ANÁLISE DO DISCURSO NA PERSPECTIVA DA INTERPRETAÇÃO SOCIAL DOS DISCURSOS: UMA POSSIBILIDADE ABERTA AOS ESTUDOS
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Doutora em Engenharia de Produção – Universidade Federal de Santa Catarina
Programa de Mestrado Acadêmico em Administração – Universidade do Vale do Itajaí E-mail:
chriskg@univali.br
Endereço: Av. Mauro Ramos, 1323, ap. 902, CEP: 88020-302, Centro, Florianópolis, Santa
Catarina.
Fone: 48 279 9552 e 48 9911 6062

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