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LIBAMO João Batista: Eu creio, nós cremos: Tratado da fé.

São Paulo: Loyola,


2000.478 pp., 22,5 X 16 em. Coleção Theologica ISBN: 85-15-02093-9.

Mais uma vez, as faculdades e últimos. Pretende oferecer um manu-


institutos de Teologia do Brasil con- al para o curso de Teologia Funda-
tam com uma significativa contribui- mental, já que, na Introdução, se re-
ção para seus cursos de Teologia fere explicitamente a um curso, situ-
Fundamental. Sempre lidando com ado no primeiro ciclo de uma Facul-
a escassez de bons textos e sobretu- dade de Teologia (p. 9). E o autor
do bons manuais em português, tra- deixa claro que seu objetivo é ofere-
ta-se de uma enorme ajuda o lança- cer uma formação básica teórica de
mento recente, pelas Ed. Loyola, do natureza sistemática da teologia da
livro "Eu creio, nós cremos. Tratado Igreja Católica (d. p. 9).
da fé", do conhecido teólogo jesuíta A estrutura e composição do li-
J.B. Libanio.
vro obedece aos mesmos critérios de
O autor é bem conhecido por sua didática e clareza dos dois anterior-
abundante produção bibliográfica, mente citados. Após o tema desen-
publica da em português e traduzida volvido em cada capítulo, o leitor
em várias línguas. Vem, além disso, pode encontrar, no final, uma biblio-
publicando regularmente sobre temas grafia temática cuidadosamente se-
ligados à Teologia Fundamental (d. lecionada e didaticamente organiza-
Formação da consciência crítica, da, separando artigos de livros, e li-
Petrópolis: Vozes, 1981; Teologia da vros básicos de livros complementa-
Libertação: roteiro didático, São Pau- res. Encontrará, além disso, sugestões
lo: Loyola, 1987; Fé e Política. Au- de dinâmicas de aprofundamento,
tonomias especificas e articulações com breves textos sugeridos, a fim
mútuas, São Paulo: Loyola, 1985).Mais de poder verificar o grau de assimi-
recentemente, na década de 90, publi- lação daquilo que foi lido e apreen-
cou dois livros que cumpririam, en- dido. Ao final, um roteiro de auto-
tão, o papel de manuais para profes- avaliação do curso e outro de avali-
sores e alunos do tratado de Teologia ação objetiva e coletiva, seguido de
Fundamental: Teologia da Revelação uma série de frases significativas
a partir da modernidade, São Paulo: sobre o tema da fé permitem a pro-
Loyola, 1992;com A .MURAD, Intro- fessores e alunos verificar o aprovei-
dução à Teologia: perfil, enfoques, tamento do percurso andado.
tarefas, São Paulo: Loyola, 1996.
Este recurso - característico dos
O livro que ora resenhamos é manuais de teologia produzidos por
composto na mesma linha destes dois J.B. Libanio - será de grande ajuda
para professores e alunos de Teolo- ec!osão de um "novo"sagrado. Pare-
gia Fundamental, que terão ao alcan- ce-nos que a reflexão que o Autor aí
ce das mãos e dos olhos os instru- faz sobre toda a questão da nova sub-
mentos para trabalhar e fazer cami- jetividade e experiência é de funda-
nhar o processo pedagógico do cur- mental importância não só para o
so. Mesmo enriquecidas e modifica- estudo do Tratado da Teologia Fun-
das de outras maneiras e com outros damental, mas para todos os temas
elementos, as presentes sugestões da Teologia Sistemática que virão no
servirão como ponto de partida da decorrer do curso que se seguirá a
organização didática. este primeiro passo.
Quanto ao conteúdo da obra, di- 2. O Autor dedica importantes
vidida em três grandes partes: r. Eu páginas (em número e em qualidade)
creio; lI. Nós cremos; lI!. Desafios atu- à dimensão trinitária da fé. Embora a
ais, encontra-se repartida equilibra- "consciência" trinitária da Teologia vá
damente, sendo que as duas primei- crescendo consideravelmente nos úl-
ras partes - mais longas e alentadas timos anos, é confortador ver já des-
- fornecem fundamentação, respec- de o tratado da Teologia Fundamen-
tivamente, para a dimensão pessoal tal uma sólida reflexão sobre tal di-
(Eu creio) e ec!esial (Nós cremos) da mensão, que configura todo o edifí-
fé; e a terceira apresenta três dos cio da fé cristã, e prepara para a re-
grandes desafios com os quais a fé flexão sobre o mesmo mistério
cristã é confrontada hoje: a impor- trinitário, que virá no decorrer do
tância da perspectíva holística e eco- mesmo curso.
lógica que se sucede a uma perspec- 3. Na segunda parte, é muito fe-
tiva mais antropocêntrica na análise liz o enlace que o Autor realiza com
da experiência de fé (Fé cósmica); o o Tratado da Revelação, retomando
diálogo inter-religioso (O diálogo as categorias fundamentais de inspi-
entre as religiões); e a perspectiva da ração, inerrância e canonicidade. Isto
libertação, que traz para o centro da permite ao estudante de teologia
reflexão a interação entre fé e políti- compreender os dois tratados tal
ca (Nós cremos na perspectiva da como são e devem ser: ou seja, um
libertação). Neste último, o autor re- único e mesmo tratado com duas par-
toma e amplia a reflexão já feita e tes distintas e situar sua experiência
publicada em seu livro de 1985, Fé e de fé, única e irrepetível dentro da
política, por nós já citado aqui. grande corrente de fé da Igreja.
Em relação aos livros recentes
4. Os desafios atuais selecionados
publicados sobre o tema, o livro de
por J.B. Libanio são igualmente de
J.B.Libanio merece alguns destaques:
extrema felicidade. Trata-se, certa-
1. Parece-nos de vital importância mente, das três mais importantes
e autêntica ajuda para professores e questões com as quais a fé deve se
estudantes de hoje os quatro primei- defrontar no mundo de hoje, com-
ros itens da primeira parte, que ana- plexo e pluralista. A abordagem do
lisa a passagem da experiência de fé autor dá adequada conta da novida-
dentro de um contexto sociologica- de do desafio e abre pistas para que
mente cristão para a complexidade do o leitor e a comunidade teológica
contexto moderno e/ou pós-moderno, possam continuar a reflexão a partir
na sua complexidade de secularização, do caminho aberto e traçado. Resta-
ateísmo, indiferentismo religioso e ria por acrescentar, a nosso ver, o
desafio da emergência do laicato e espera-se que outros, na esteira de
dentro dele, da mulher, como novo J.B. Libanio, possam debruçar-se so-
protagonista visível da fé na Igreja. bre ele.
Parece-nos ser um tema relevante e
um desafio mordente. No entanto,

GONZÁLEZ de CARDEDAL, Olegario: La entraiia deZ cristianismo,


Salamanca: Secretariado Trinitario, 1997. 952 pp., 23 X 15,5 em. ISBN
84-88643-33-0.

o livro é uma apresentação glo- da teologia de hoje, o A. entende


bal do Cristianismo, em seus elemen- tentar a superação das distâncias
tos e princípios essenciais, a partir existentes entre história e dogma,
de sua raiz e na sua estrutura origi- enquanto relato evangélico e pensa-
nária, levando em consideração o seu mento metafísico, piedade individu-
conteúdo teológico, a sua gênese his- al e pertença à Igreja, vivência histó-
tórica e sua significação existencial. rica e vivência cristã, articulando
É assim que o A. descreve sua inten- ambos os pólos.
ção fundamental. O A. quer entender a trajetória
Esta obra se insere numa tradi- da consciência moderna desde o
ção que desde o século XVI vem in- Renascimento até nossos dias, e mos-
dagando pela essência do Cristianis- trar os conteúdos essenciais da fé em
mo, sobretudo depois de tanto tem- referência e diálogo com tal consci-
po em que acumulou gigantesca ência. Parte da exterioridade históri-
quantidade de elementos culturais. O ca para chegar à interioridade pesso-
A. evita a palavra "essência" por al, abrindo-se para o mais-além da
julgá-Ia vinculada ao mundo das metafísica. O Cristianismo pressupõe
coisas, enquanto o Cristianismo re- essas três ordens: transcendência,
monta, em seu núcleo fundamental, historicidade e interioridade; põe em
a uma pessoa. Por isso, prefere o jogo os dinamismos da pessoa: me-
termo "entranhas". Enquanto a teo- mória, inteligência e vontade; atuali-
logia francesa valoriza mais a dimen- za os três tempos do ser humano:
são histórica, a teologia alemã valo- passado, presente e futuro; e abre-se
riza a conceitualização filosófica; a ao mistério de Deus como Princípio
teologia espanhola focaliza a absoluto (Pai), como figura na histó-
intencionalidade pessoal, mostrando ria (Cristo), como Dom na interio-
a profunda comunhão de destino ridade (Espírito Santo). Esta é a lógi-
entre Deus e o ser humano, a dimen- ca que determina as três partes do
são encarnatória e entranhável do livro.
Cristianismo. Não se trata de uma apologética
A trajetória do livro parte desse demonstrativa do Cristianismo, nem
enraizamento de Deus e do homem mesmo dedutiva de seus princípios
em Cristo, para subir até às manifes- gerais a serem aceitos. O Cristianis-
tações históricas do Cristianismo. É mo não necessita de demonstração
esta raiz que torna inteligível a ri- teórica nem de verificação empírica,
queza de tantas instituições e situa- mas de uma interpretação intelectu-
ções que daí surgiram. Como tarefa al e uma experiência real. Não se faz
nenhuma demonstração da fé, mas príncipes, orientada aos mesmos fins.
uma "mostração". O livro quer ser A Cristandade é a realidade forma-
uma ponte entre a teologia científica da por todos os povos cristãos que
e a piedade cristã num estilo, segun- vão acrescentando um sentido de
do o A., "edificante, crítico e medita- identidade e pertença comum à fé. É
tivo". uma idéia, uma comunidade de na-
Como se vê, é um programa gran- ções, um âmbito territorial, um pro-
dioso pelas intenções e volumoso na jeto espiritual, interesses históricos e
concretização para além de 900 pági- econômicos. É mais e menos que o
nas. É um rico manancial teológico. Cristianismo. A Cristandade é prin-
cípio comunitário institucional. É a
Obra de um autor maduro de longa
e respeitada carreira teológico-pasto- figura histórica, a expressão pública
ral, concretizada em trabalhos reco- verificável, a realidade coletiva e
nhecidos. institucional que o Cristianismo toma
quando deixa de ser uma palavra
Para exprimir essas três preocu- anunciada para ser uma palavra apli-
pações básicas da obra, o A. distingue cada à vida e pensada.
três termos de uma mesma raiz: cris-
tianismo, cristandade e "cristianía". Como projeto de unificação entre
realidade humana e fermento cristão,
Por cristianismo entende o prin- a Cristandade tem no século XIII seu
cípio histórico teológico. É a realida- ponto mais alto com todas as suas
de objetiva, derivada da pessoa de contradições, sobretudo quando
Cristo para o mundo enquanto fato Evangelho e poder se desposam.
histórico, proposta de verdade resul-
tante da autodoação divina, determi- Para exprimir uma terceira reali-
nação da existência humana e cunha- dade diferente, o A. forjou o neologis-
gem do futuro. É uma religião uni- mo castelhano "cristianía". É o princí-
versal, histórico-revelada, dogmática, pio subjetivo pessoal. É a realização
escatológica, integral, comunitária, pessoal e criadora da realidade cristã
objetivada. Implica fatos históricos, como vida e como vivência no sujeito
verdade teológica e promessa esca- que crê. O Cristianismo é somente real
tológica anteriores. quando a autocomunicação de Deus
A Igreja é mais que as realidades ao ser humano chega a cada pessoa,
estruturais instituídas por Cristo e esta o acolhe. A Igreja está a servi-
mediante o Espírito e a ação dos ço dessa realidade cristã.
apóstolos nos seus inícios. Ela assu- O livro se divide em três partes,
me figuras diversas ao longo da his- segundo a estrutura trinitária. Não é
tória por sua inserção nas culturas e uma consideração de Deus em si
sociedades. Ao longo de dez séculos, mesmo, mas na sua relação com o
a Igreja assume uma realidade soci- ser humano. Começa traçando rápi-
al. É a unidade religiosa e cultural do itinerário da relação entre Deus e
dos povos do Ocidente, unidos por o homem. O Cristianismo presente é
uma comunidade de destino e por resultado de longo percurso, desde a
interesses comuns, formando uma vontade explícita de Jesus, passando
sociedade em que se engloba tanto o pela história de vinte séculos de Igre-
cultural ~ religioso, como o jurídico, ja, cuja figura atual está marcada
econômico e político. Nesse momen- pelos séculos mais recentes da
to, surge a Cristandade como a uni- modernidade. Por isso, o A. estuda a
dade formada por todos os batizados, história particular de Deus na Euro-
determinada pelos mesmos princípi- pa. Indica pontos fundamentais des-
os, regida pelos mesmos pastores e sa história recente da relação entre o
homem e Deus. O ponto de partida Em outro capítulo, o A. retoma a
é a autonomia do homem moderno. grande questão levantada pelos mo-
Em seguida, acena aos ateísmos dernos sobre a "essência do Cristia-
metodológico, real e postulatório. No nismo". Aponta duas fases no esta-
entanto, o homem é também memó- belecimento do dado cristão: uma
ria, conhecimento e desejo de Deus. determinação objetiva de seu conteú-
O final do processo produziu uma do dogmático diante do judaísmo e
desnaturalização de Deus, com vári- paganismo e a reflexão subjetiva na
as conseqüências, delineando assim era moderna, quando já estavam
uma tarefa específica para a teolo- perdidas algumas evidências objeti-
gia. Prosseguindo, o A. descreve o vas da fé cristã.
movimento oposto do "reclame de Tendo esses dois pontos em men-
Deus" para fundar a moral, para te, o A. segue o percurso histórico em
suscitar as grandes criações e para que a determinação objetiva se esta-
integrar as tensões irreconciliáveis da belece no Novo Testamento, na
existência. Patrística e na Teologia Medieval. A
Num capítulo ulterior, estuda-se outra vertente subjetiva tem seus iní-
a realidade de Deus. Na origem do cios no final da Idade Média com os
Cristianismo está a revelação de movimentos radicais de pobreza. O
Deus. Esta está intimamente associa- século XVI conta com as figuras de
da no Ocidente à pessoa de Jesus e à Erasmo e Lutero, na linha da busca
Igreja. Só nessa interligação com Je- do "puro evangelho". O A. continua
seu itinerário passando por Kant,
sus e com a Igreja é que se pode fa-
Rousseau, Hegel, Schleiermacher,
lar de Deus. Religação que faz o
Harnack, indicando a novidade de
núcleo da fé cristã. A modernidade
cada um a respeito da questão da
introduz separação entre essas reali-
essência do Cristianismo. O século
dades, deslocando a objetividade das
XXvive uma virada. Barth, Guardini,
mediações para a subjetividade da
Bonhoffer são nomes desse momen-
consciência na vivência da fé.
to. Unamuno merece um parágrafo à
No processo de compreensão de parte. A questão da "essência do
Deus, os ocidentais trabalham com Catolicismo" tem também sua histó-
duas instâncias: a história de Israel e ria e encontra em F. Heiler, K. Adam
a meta física grega. A teologia cristã e H. de Lubac momentos altos. O ca-
surge como resultado da integração pítulo termina com a virada exegética
dessas duas correntes de pensamen- da segunda metade do século XX e
to. Toda a história do Ocidente é uma com o Concílio Vaticano lI.
explicitação desse encontro entre a
O lugar da Igreja é o assunto do
metafísica grega e a história da sal-
quarto capítulo. Este é o um proble-
vação, a memória de Israel e o con-
ceito da Grécia. O A. continua sua ma crucial da Igreja: por quê Igreja,
reflexão percorrendo pensadores da para quê Igreja, quando o homem
modernidade que marcaram a com- pode manter uma relação direta com
preensão de Deus: Lutero, Descartes, Deus? Qual o por quê da Igreja para
Pascal, Hegel, Kierkegaard, S. João uma sociedade que atingiu a maiori-
da Cruz, Kant. Ora apresenta o su- dade? O livro toca questões como:
jeito diante de Deus, ora a tensão Jesus contra a Igreja; relação Igreja e
entre razão natural e coração intuiti- mundo, passando pela identificação,
vo, entre o Deus da certeza e o da oposição e encontro-colaboração a
moralidade. partir da diferença. O texto nem sem-
pre é transparente; às vezes tem so- ressurreição e aparições, seu sentido
brecarga de idéias. e a força de seu Evangelho. Toca a
questão da ruptura entre história e
Encerrando essa primeira parte,
fé, na modernidade. Aprofunda em
um capítulo apresenta o Cristianismo
seguida a pessoa de Jesus como Ver-
como caminho do homem a Deus e
bo, profeta, taumaturgo, poeta, mes-
de Deus ao homem. Há intentos, já
tre, iniciador de uma comunidade de
no final do século XIX (O. Wilde,
culto, mártir, ressuscitado, sacramen-
Nietzsche) de buscar um caminho
to de Deus, modelo de vida, sua di-
para além do Cristianismo e da
mensão escatológica e cósmica. Cada
modernidade, retornando à Europa
item revela uma face desse homem-
pré-cristã. Antecipa-se à pós-moder-
nidade. A consciência clássica, cristã Deus plural que foi Jesus.
e moderna tinham caminhos, metas e Terminando o capítulo sobre a
objetivos. A pós-modernidade rompe figura de Jesus, dedica páginas à
com esse universo de idéias e ideais. comunidade de vida a seu redor,
O A. não entra em definições da pós- desde seus inícios. Em relação a Je-
modernidade. Apresenta duas respos- sus, existe a "analogia cristológica"
tas à pergunta sobre qual é a relação entre a maiêutica e a dialética. Ele
do homem pós-moderno com Deus: nos transcende (portanto, não se tra-
rechaço de Deus como um dos abso- ta de maiêutica), mas se fez humano
lutos recebidos da modernidade eu- (portanto, não cabe a dialética). Co-
ropéia egocêntrica e universalizante, nhecer a figura histórica de Jesus,
ou silêncio, esquecimento de Deus. aceitar sua doutrina, seguir-lhe o
exemplo, crer na sua pessoa, estabe-
A segunda parte trata de Jesus
lecer comunhão com sua vida, soli-
Cristo. O Cristianismo é antes de
dariedade com sua causa, participan-
tudo a pessoa histórica de Jesus. Do
do de sua vida divina trinitária: eis
reconhecimento dessa pessoa o Cris-
como ser cristão.
tianismo nasce como proposta uni-
versal de salvação que se desenca- No sétimo capítulo, o A. aborda
deia pelo desvelamento da origem, a Eucaristia na seqüência da vida de
e, pela antecipação do fim, uma nova Jesus. Seus seguidores recolhem os
compreensão do ser (meta física), do gestos de sua vida, recordam suas
ser humano (antropologia), de Deus palavras e repetem o que ele fez na
(teologia) e do sentido de toda histó- noite antes de ser entregue. Aí per-
ria (escatologia). O grande paradoxo cebem o sentido da vida de Jesus
do Cristianismo, que escandaliza a como dom pela salvação da humani-
modernidade é ser um fato particu- dade. A Eucaristia é criação de Jesus
lar de alcance universal. Cristo é o e recriação da Igreja, que assume toda
Universal Concreto. O olhar cristão a experiência do Jesus pré-pascal, o
ora vai enfocar o concreto de Jesus mandato da última ceia, a presença e
(teologia francesa) ora seu universal a comensalidade do ressuscitado, a
(teologia alemã). reunião dos discípulos, a experiên-
Um primeiro capítulo dessa Il" cia do Espírito, o envio missionário.
Ela é a conseqüência última da
parte trata da figura de Jesus numa
Encarnação, aproximando-se ao má-
leitura histórica, teológica e
soteriológica. Estuda os relatos, os ximo de nós.
fatos históricos e seu significado, sua Esta parte termina com um longo
condição judaica, sua mensagem so- capítulo sobre o significado da mor-
bre o Reino, suas parábolas, o signi- te de Cristo sob o expressivo subtítu-
ficado de sua morte na cruz, sua lo: símbolo, crime e mistério. E um
outro se concentra sobre as duas vil analisando as contribuições es-
palavras primigênias em torno das pe~íficas da Igrejas e suas formas
quais gira o Cristianismo: Deus e concretas.
homem, Deus feito homem, amor de O livro termina com um toque
Deus e a Deus, ao Homem-Deus, ao escatológico: o destino do homem e
próximo. Cada binômio encerra toda a vida no Espírito. Breve reflexão
uma riqueza de reflexão, No fundo, fecha o livro. Recolhe o itinerário
o Cristianismo é a religião do Amor percorrido, de pensar diante de Deus,
na sua ampla extensão. de pensar a realidade a partir de
A lI!" parte é consagrada ao Espí: Deus, de pensar o homem com Deus
rito Santo, a Igreja e ao Mundo. E e pensar Deus tal qual ele se nos
claro que a Igreja e o mundo estive- revelou no Filho e no Espírito Santo.
ram já presentes no livro sob vários É uma obra material e teologica-
aspectos. Agora recebem uma ênfase mente abrangente. O A. expõe toda
especial na parte dedicada ao Espíri- uma visão teológico-sistemática, sob
to, experimentado especialmente pela um prisma extremamente europeu,
consciência cristã dentro da comuni- escrito a partir da Europa e para a
dade. Insere essa reflexão sobre o Europa. Os grandes problemas que
Espírito na história espiritual do afetam o lIlo Mundo não são trata-
Ocidente com suas vicissitudes, em dos, como a libertação dos pobres e
que ora o Espírito é esquecido, ora é o diálogo inter-religioso. O A. conju-
exaltado. Vê-o na compreensão de ga o conhecimento dos teólogos ~
Deus, de Jesus Cristo, na sua presen- filósofos clássicos e modernos. E
ça depois da glorificação de Cristo. homem de vasta cultura. Através de
Retoma a imagem de Irineu, das duas suas referências percebe-se sua pre-
mãos do Pai - o Filho e o Espírito. ferência pelos clássicos gregos, pelos
É o Espírito da promessa. O A. tra- grandes teólogos da Antigüidade
balha critérios para identificar e (Santo Agostinho), por Santo Tomás,
discernir sua presença, sobretudo na pelos filósofos, teólogos, místicos
sua relação com Cristo. Termina o modernos (Lutero, João da Cruz,
capítulo décimo relacionando o Es- Teresa de Ávila, von Balthasar,
pírito com a consumação do mundo. Rahner, Barth, Kant, Hegel, Guardini,
Todo um capítulo é dedicado à Kierkegaard, Nietzsche, Ratzinger).
atualização da Revelação, como obra Entre os modernos, predomina a
do Espírito na sua função interio- presença dos pensadores da subjeti-
rizante, enquanto Cristo cumpre a vidade; porém mais ausentes sào os
função exteriorizante. As mediações da dimensão crítico-social.
atualizadoras da revelação tem con- O livro oferece muito material
dições objetivas e subjetivas. Aí a para aprofundar temas concretos da
Igreja cumpre papel de relevo. Este teologia, É fácil de leitura. Abundan-
capítulo termina com um parágrafo te. Obra de consulta.
sobre a permanência na verdade e
na ação no coração do mundo.
No capítulo XII, o A. estuda as
relações entre Igreía e Sociedade ci-
STARK, Rodney / BAINBRIDGE, William Sims: The Future of Religion:
Seeularization, revival and eult formation. Berkely / Los Angeles /
London: University of California Press,1985. 571 pp., 23 X 15,5 em.
ISBN 0-520-05731-7.

o livro tem teses provocantes Os cientistas sociais falharam, seja


sobre o futuro da religião e a seCll!a- por causa de seu desejo de que as
rização, criticando a corrente dos ci- religiões desaparecessem, seja por
entistas sociais incapazes de enten- não reconheceram o caráter dinâmi-
der o fenômeno religioso. O anúncio co das economias religiosas.
do fim da religião foi simplesmente Como se vê, são teses muito inte-
uma ilusão. A secularização é a cor- ressantes. A secularização é parte de
rente principal dos tempos moder- um fenômeno religioso que é tanto
nos, mas não é um desenvolvimento ocaso como aurora. As fontes da re-
moderno e não anuncia o fim da ligião estão se deslocando, mas a
religião. Antes, a secularização é um grandeza religiosa permanece relati-
processo que acontece em todas as vamente constante. Os AA. traba-
economias religiosas, em todas as lham com o conceito de religião dos
sociedades. A secularização cresce estudiosos do século XIX,segundo o
numa parte da sociedade, e noutra qual as religiões envolvem alguma
parte, em contraposição, acontece a concepção de seres, mundo e força
intensificação religiosa; o ritmo da sobrenaturais; o sobrenatural atua de
secularização ora cresce, ora decresce. modo que os eventos e as condições
As organizações religiosas dominan- na terra sejam influenciados por ele.
tes tendem a "mundanizar-se", a se- Entende a religião como organizações
cularizar-se. Porém o resultado não é humanas comprometidas primaria-
o fim da religião, mas o deslocamento mente em prover compensações/re-
de chances entre as religiões como tribuições gerais baseadas em cren-
crenças, de modo que as mais "secu- ças sobrenaturais.
lares" são suplantadas pelas religiões
Depois de trabalhar o conceito
mais vigorosas e menos seculares.
religião, os AA. estudam as formas
A secularização é um dos três pro- primárias de desvio dos movimen-
cessos fundamentais e inter-relaciona- tos religiosos: seitas e cultos, distin-
dos que afeta constantemente todas as tos das instituições religiosas ou igre-
economias religiosas. O processo de jas. Entre os cultos, há os que são
secularização é autolimitante e gera movimentos religiosos plenamente
dois processos contrabalançadores. desenvolvidos e outros são grupos
Um deles é o "revival", reavivamento. ou atividades que representam ma-
As organizações religiosas que so- gia e não religião. Para entender os
frem erosão pela secularização, dei- movimentos religiosos, os AA. exa-
xam uma parte substancial de seu minam a mútua influência entre eles
mercado para a demanda de uma e seu contexto. Na Ia parte, dedicam-
religião menos secularizada; deman- se à economia religiosa dos USA e
da esta que provoca surtos de seitas. Canadá, na sua diversidade de cren-
A secularização estimula a inovação ças, e à tensão entre elas. Descrevem
religiosa, provoca a formação de também o ambiente sócio-cultural
novas tradições religiosas. Sempre para entenderem a competição entre
estão aparecendo novas religiões nas elas. Trabalham as variações regio-
sociedades. nais nas religiões convencionais.
Assim se prepara a análise para sa- cessos na década de 20, mostrando
ber onde e quando as seitas e cultos que os de hoje não têm nada de real-
prosperam. mente novo na formação de novas
Na Ira parte o estudo trata das religiões. A pesquisa se concentra, em
seitas, explicando porque as organi- seguida, em dois movimentos de cul-
zações religiosas tendem a entrar em to atuais de muito êxito: Cientologia e
baixa tensão com seu ambiente e Meditação Transcendental.
assim serem incapazes de prover A IV· parte diz respeito ao recru-
compensações eficazes para a penú- tamento para as seitas e cultos. Como
ria como os "grupos em alta tensão" esses movimentos divergentes atraem
oferecem. Assim se entende as cir- novos membros? Emergem a impor-
cunstâncias em que os cismas religi- tância das relações interpessoais para
osos se desenvolvem - as seitas são o processo de recrutamento, a rele-
grupos cismáticos que deixam um vância das crenças religiosas e ocul-
grupo de tensão baixa para formar tas para casais de amigos, o impacto
um de mais alta tensão. Estuda-se dos números de conversões para a
também de onde e porque surgem carreira dos líderes e sucesso dos
os líderes das seitas. E raro que cultos. Sem uma média alta, os fun-
movimentos religiosos irrompam das dadores de culto e seu círculo inicial
seitas. Estas constituem ameaça crô- de seguidores, provavelmente per-
nica para as igrejas monopolistas. Os dem ânimo depois de 20 ou 30 anos
AA. estudam a Igreja medieval e seus de esforço. Os cultos brotam,
muitos modos para recanalizar os preferentemente, nas sociedades
movimentos sectários e responder às maiores, mas têm sucesso nas meno-
necessidades religiosas das pessoas. res. O surto de crenças e movimen-
A Reforma não foi uma brusca rup- tos ocultos se deve menos a uma
tura na universalidade da Igreja ca- nova espécie de "consciência" do que
tólica. A Igreja nunca foi capaz de à fraqueza nas religiões convencio-
monopolizar as atividades religiosas nais. Pode-se concluir que nenhum
nem de prover adequada magia ou secular sistema de sentido, provê
eliminar competidores mágicos. Tudo explicações gerais sobre a vida como
isso culminou na Inquisição. a religião fornece. A partir de infor-
Ainda nesta parte, o A. estuda os mações dos freqüenta dores de cul-
movimentos de seitas nascidas nos tos, conclui-se que nas atuais conjun-
USA: quantas, onde estão, seu tama- turas os cultos podem ter grande
nho, quantas crescem, quais são as êxito no recrutamento de pessoas que
mais comuns variedades. Em segui- são totalmente normais.
da, com o seu instrumental teórico, Na V·l parte, é feito um balanço
os AA. analisam os mecanismos que de todos os temas tratados. Os AA.
transformam seitas em igrejas. desenvolvem sua tese fundamental:
A ma parte é dedicada aos cultos, a secularização, isto é, o enfraqueci-
como eles se formam. Baseados em mento das organizações de muitas
501 movimentos atuais de culto, os igrejas maiores, propicia inovação
AA. se perguntam: onde florescem; religiosa. O futuro não será um tem-
os que se formam agora em compa- po sem religião, mas de novas religi-
ração com o passado; se estão se tor- ões. Seitas e cultos surgem no vácuo
nando mais freqüentes. Estudam criado pelas igrejas fracas. Baseados
também grupos que não são (ainda) em dados de hoje e da década de 20,
plenamente movimentos de culto. mostram como isto acontece. Vale
Analisam-se grupos que tiveram su- para os USA como para o Canadá,
onde vigora outro sistema religioso. martelar um prego. Quanto mais for-
Tenta tal teoria na Europa, que é um te, tanto mais ele penetra".
outro contexto. Apesar de muitos As teses do livro são realmente
cientistas sociais terem predito a fa-
provocantes, com toques de origina-
lência da religião, as teses dos AA.
lidade; permanecem atuais, mesmo
são, porém, confirmadas também na tendo sido este livro escrito há 15
Europa. Mostram como crenças na- anos. Hoje aparecem ainda mais cla-
turalistas são incapazes de substituir ramente muitas de suas teses. Seu
crenças sobrenaturais, mesmo em campo principal de pesquisa foram
contextos de movimentos políticos
os EE. UU. e o Canadá; porém mui-
radicais, de estados oficialmente
tas de suas conclusões valem para
ateus. Tais políticos radicais são sus-
outros contextos, embora a base
ceptíveis de freqüentar cultos e sei-
empírica venha de lá, pois revela seu
tas. Movimentos políticos transfor-
interesse maior pela América do Nor-
maram-se freqüentemente em movi-
te. É lido, certamente com proveito,
mentos religiosos bem desenvolvi-
em nossos contextos, já que sofremos
dos. Os AA. examinam porque esta-
grande influência dos EE. UU.
dos totalitários e oficialmente ateus
fracassaram nos esforços de erradicar
a religião. "Martelar numa religião é

TRESIDDER, JACK: Simbols and tizcir IIlcanings. London: Dunean Baird,


2000. 184 pp., 28, 5 X 20, 5 em. ISBN 1-900131-98-6.

Antes de tudo, um livro grafica- falar da criação, em geral, inclui a


mente muito belo. Edição luxuosa. água, os gigantes (Titãs), o ovo de
Conjugação harmônica de pequenos avestruz e cósmico; no princípio fe-
textos com mais de 1000 fotografias minino trata da mãe, da mulher, da
artísticas e símbolos bem escolhidos, rainha, do losango, da Mandorla
como o próprio título revela. (auréola em forma de amêndoa), da
O A. explorou oito campos se- Yoni (vulva), da concha; o princípio
mânticos. O primeiro é a criação e masculino é relacionado com o pai,
nela o ser humano, masculino e fe- o falo, o mastro de maio, a barba; a
minino com seu corpo e partes. O respeito do corpo, abordam-se a nu-
segundo trata da mente, da alma e dez, a boca, os dentes, o umbigo, a
das realidades sobrenaturais. O ter- barriga, os intestinos, os pés, a lín-
ceiro abarca o mundo dos animais. gua ameaçadora, o cabelo - longo,
O quarto é o reino vegetal. O quinto madeixa, rabo de cavalo, corte, cor
contempla os espíritos do cosmos. O -, coração - ardente, traspassado
sexto cataloga artes e artefatos. O -, sangue, cabeça - decapitada -,
sétimo recolhe modelos e realidades mão - direita e esquerda -, olho
gráficas. Finalmente, refere-se aos - terceiro olho, olho mau, múltiplos
grandes sistemas simbólicos religio- olhos -, prazo da morte - tempo
sos, cabalísticos, numéricos. Em cada do pai, da criança, longevidade, ca-
um desses campos significativos, o veira, esqueleto, roda, cavaleiro da
A. escolheu os símbolos que lhe pa- morte. Como se vê, um tema se asso-
receram mais importantes. Assim p. cia a amplíssimas relações, a inúme-
ex., no primeiro capítulo, além de ras simbologias. O mesmo procedi-
mento acontece nos outros campos Realidades que pertencem a nos-
semânticos. so quotidiano e às quais nunca atri-
buímos nenhum valor simbólico, mas
Com efeito, as explicações, ape-
simplesmente funcional, se iluminam
sar de sua brevidade, passeiam por
à luz de tradições culturais antigas
espaços culturais muito amplos. Não
numa perspectiva figurativa.
se restringem, nem de longe, ao
mundo simbólico cristão. Freqüen- Não deixaria de ser interessante
tam as culturas antigas, primitivas que pais e professores passassem
e clássicas, sem deixar de aludir para a geração nova a riqueza des-
também a compreensões já de nos- ses símbolos. Assim poderemos
sos tempos. humanizar mais a nova geração e
fazê-Ia mais crítica diante do avilta-
É livro de consulta. Permite o
mento do símbolo no mundo da pro-
leitor aguçar seu sentido simbólico,
paganda. O símbolo pertence às ex-
ao descrever-lhe a enorme capacida-
periências da gratuidade, da estéti-
de dos antigos de falarem por meio
ca, do religioso, enquanto o
de símbolos. Num mundo, extrema-
marqueting é absolutamente interes-
mente formalizado, matematizado e
sado na venda de mercadorias. O
marcado pelas ciências positivas, um
símbolo eleva-nos, a propaganda faz-
mergulho no universo simbólico de
nos aterrissar no cotidiano dos obje-
tantas culturas é altamente sadio. Li-
tos. Este livro serve para purificar-
vros como estes contribuem para des-
nos da intoxicação propagandística.
pertar em nós todos a sensibilidade
para apreciar os símbolos, além de
fornecer dados de muita erudição.

BüFF, Leonardo: Depois de 500 anos que Brasil queremos? Petrópolis:


Vozes, 2000. pp., 127,21 X 13,5 em. ISBN 85.326.2328-X.

L. Boff sabe dizer coisas novas e aI e depois numa colônia para enri-
provocantes sobre temas antigos. Este quecer a metrópole. A partir das
é um livro que veio para acordar as cara veJas, o Brasil só começou a exis-
consciências acomodadas com o pro- tir com o descobrimento. Antes era a
cesso histórico do Brasil. Cansados fase da barbárie. O Brasil visto a par-
de tantas lutas, desiludidos de tan- tir do Brasil é uma invenção, já inici-
tas derrotas, acabrunhados por tan- ada e muito mais ainda a tomar cor-
tas estatísticas desanimadoras, os po. Apesar de todas as oposições fez-
brasileiros, pouco a pouco, vão se se aqui um experimento civilizacional
acostumando com a triste sina de singular étnico-cultural com suas
nossa história. contradições. Tem tudo para dar cer-
to, mas até agora foi vítima de uma
A lembrança dos 500 anos do
elite gananciosa.
Brasil terá a valência positiva ou
negativa conforme for interpretada. Encontra-se diante da alternativa
Visto a partir da praia, onde estavam de prolongar nesse novo patamar de
os nativos, o Brasil foi invadido e globalização a colonização ou reto-
subjugado. Não se transformou numa mar a construção interrompida com
nação, mas num entreposto comerci- inventividade.
Quatro invasões marcaram esse vida em todos os níveis. O cidadão
país: iniciou-se no século XVI com a precisa dispor de poder, saber cola-
colonização. No século XIX vieram borar e auto-educar-se para a cida-
os emigrantes europeus. A terceira dania. A educação também deve ser
se deu nos anos trinta do século XX, integral. Uma educação da práxis.
consolidando-se no regime militar Uma transformação profunda do
por meio da industrialização moder- país não se faz sem a articulação
na de substituição em estreita associ- entre os pobres e a inteligência. Esta
ação com o capital transnacional. deve conscientizar-se de sua dívida
Estamos vivendo agora a quarta in- social para com o povo. A universi-
vasão da globalização econômica com dade não pode permanecer fechada
o neoliberalismo levando o Brasil a em si, mas ir ao encontro da socieda-
uma submissão ao mercado global. de. Está aí o desafio de criar um
No Brasil convive uma cultura da Brasil alternativo. Troca de saberes,
dominação por meio da reprodução horizonte utópico são ingredientes de
dos centros do poder com uma cul- tal projeto.
tura da resistência e da libertação dos L. Boff termina o livro analisan-
setores dominados em vista da cons- do a contribuição da dimensão espi-
trução de uma cidadania popular e ritual nesse processo de gestar o novo
de um novo projeto alternativo. Brasil. Articula uma visão mais am-
A cidadania é uma realidade pla e profunda de espiritualidade
complexa que implica uma dimen- com a base religiosa de nosso povo.
são econômico-produtiva, político- Comparando com a Roma imperial,
participativa, popular, de solidarie- que assimilava as religiões dos con-
dade e consciência planetária. quistados, o Brasil poderá ser uma
Há vários projetos de cidadania. Roma tropical com sua enorme rique-
Há um projeto neoliberal de za religiosa e com sua alma tolerante
e sincrética. Além de construir-se, o
mundialização por meio do merca-
do, gerando uma cidadania seletiva. Brasil pode contribuir para o proces-
Há um projeto do capitalismo nacio- so de globalização com sua parte
nalista mais inclusivo, mas com as própria. Não se trata de sonhos qui-
contradições do capitalismo e um pro- méricos, mas possíveis.
jeto da democracia social, popular de O livro deixa uma mensagem de
plena cidadania e solidariedade. esperança e alento tanto mais neces-
É necessário construir este últi-
sária quanto mais se vive num desâ-
mo projeto Brasil alternativo e não nimo globalizado diante do Leviatã
neoliberal.
uma cópia dependente dos centros
financeiros e políticos. Devem-se tra- O livro pode ser utilizado com
balhar três eixos dialeticamente im- grande proveito nas escolas, nas dis-
bricados: a educação libertadora, a cussões de grupos. Junto está uma
democracia integral e o desenvolvi- pequena dinâmica com perguntas
mento social. Propõe-se uma mudan- que facilmente se tornarão pólos de
ça de paradigma de desenvolvimen- provocantes debates. Vale a pena
to. A produção econômica é apenas conferir.
para possibilitar um desenvolvimen-
to cultural, social e espiritual do ser
humano. A democracia deve ser vi-
CUTIÉRREZ, Custava: Teologia da libertação: Perspectivas. Tradução
do espanhol, nona edição, de 1996por Yvone Maria de Campos Teixeira
da Silva e Marcos Marcionilo, São Paulo: Loyola, 2000. 366 pp., 21 X
14 em. ISBN 85-15-02036-X.
CUTIÉRREZ, Custavo: Beber em seu próprio poço: Itinerário espiritu-
al de um povo. Tradução da edição peruana sem data por Yvone
Maria de Campos Teixeira da Silva. São Paulo: Loyola, 2000. 172 pp.,
21 X 14 em. ISBN 85-15-02035-1.
CUTIÉRREZ, Custava: O Deus da vida. Tradução da edição peruana
de 1989 por Cabriel C. Calaehe SI, e Marcos J. Marcionilo. São Paulo:
Loyola, 1992. 239 pp., 21 X 14 em. ISBN 85-15-002445-2.
CUTIÉRREZ, Custavo, A Verdade vos libertará: Confrontos. Tradução
da edição peruana de 1990 por Cilmar Saint'Clair Ribeiro. São Paulo:
Loyola, 2000. 211 pp. 21X 14 em. ISBN 85-15-02053-X.

o mercado dos livros segue, sem para o Senhor que passou diante das
mais, as regras da oferta e demanda. casas dos filhos de Israel no Egito,
E a demanda funciona muito à base quando golpeou o Egito e libertou
de sensacionalismos, de ondas, de nossas casas" (Ex 12, 26s).
eventos-notícia. Assim houve tempo
em que os livros produzidos pelos Assim a geração de amanhã nos
principais corifeus da teologia da li- perguntará: - "Que é teologia da
bertação ocupavam a primeira linha libertação"? "Quem foi Gustavo
de vendagem. Seus livros eram Gutiérrez"? Os pais poderão respon-
reeditados inúmeras vezes. der, compulsando essas obras
reeditadas pela Loyola: a teologia da
Este clima passou sobretudo em libertação nasceu por volta dos anos
relação às obras diretamente ligadas 70 numa situação difícil para os po-
à temática da libertação social e suas bres e queria pensar a fé cristã em
implicações. Por isso, muitos de seus vista da libertação deles; e houve um
títulos foram lentamente desapare- teólogo peruano que colocou essas
cendo dos catálogos das editoras. primeiras reflexões no papel, dando
Eis que as edições Loyola querem início a todo um novo método de
ir na contramão do mercado e resol- fazer teologia; esta teologia cresceu e
vem relançar, nos dias de hoje, as vicejou durante décadas, sofreu mui-
obras mais conhecidas de G. tas incompreensões dentro e fora da
Gutiérrez. Tal gesto veste-se de ou- Igreja; seus principais teólogos foram
tro significado que o mercadológico. perseguidos; armaram-Ihes proces-
Fez-me lembrar a mais lídima tradi- sos; tiveram que silenciar-se; foram
ção judaica. alijados de encontros importantes,
simplesmente porque pensavam as-
O livro do Êxodo prescreve a
sim. E a história então poderá ser
celebração da Páscoa. E oferece aos
contada, recontada.
pais de família subsídios para pode-
rem responder quando os filhos per- Vejo esses quatro livros de G.
guntarem: - "Que rito é esse que Gutiérrez como uma memória dessa
estais celebrando"? Então os pais caminhada. Evidentemente Teologia
dirão: - "É o sacrifício da Páscoa da libertação é o livro fundante. Deu
as coordenadas para os teólogos se- Toca-se a trombeta para anunciar
guintes irem elaborando seus livros. boas notícias ou maus agouros. O
Livro programático. Vale a pena sem- binômio que sempre acompanhou a
pre voltar a ele. A distância não o obra de Gustavo Gutiérrez foi: "de-
desatualiza, mas faz-nos captar o núncia" e "anúncio". Ele toca a trom-
momento-nascente da teologia da li- beta denunciando a injustiça sob as
bertação. suas mais diversas formas. Mas nes-
sa injustiça preocupa-lhe a sorte dos
Beber em seu próprio poço apon-
pobres. Há injustiças entre os pró-
ta para a espiritualidade que é a alma
prios ricos. Roubam-se mutuamente.
de qualquer teologia. Tanto mais
Mas eles sabem se defender. E como!
importante foi esta obra quanto mais
se acusava de a teologia da liberta- Dói-nos quando a injustiça atin-
ção ser uma sociologia, não ter ge a viúva, o órfão, o desprotegido.
espiritualidade nem mística. No má- A quem recorrer? G. Gutiérrez tem
ximo aceitavam que fosse uma teolo- um pequenino livro com o provocan-
gia fundamental, mas nunca uma te- te título: Onde dormirão dos pobres?
ologia que irrigasse todos os campos Ele se inspira em belíssima passagem
da teologia da mina pura da experi- do Êxodo em que Deus se prontifica
ência que o povo pobre faz de Deus e a ser o defensor dos pobres.
se toma exemplar para todos nós. O Classicum anuncia a libertação
Deus da vida é o oposto da opres- dos pobres. Vem despertar os ador-
são, da dominação sobre os pobres. mecidos diante de realidade tão gri-
É Ele que está sempre ao lado dos tante.
pobres num imenso protesto contra Clássico tem a ver também com
tanta morte. Nada tão atual quando "classe", "sala de aula". Os "clássi-
a caravana que conduz os pobres a cos" são aqueles livros que merecem
uma maior pobreza ainda continua em todo tempo ser lidos pelos alu-
comandada por novas forças, mas nos. Estão os grandes filósofos PIatão,
sempre ligadas ao capital. Tenha o Aristóteles, Santo Agostinho, Santo
nome que tiver. Tomás, ete. para testemunhar a ver-
A Verdade vos libertará. Livro dade de ser um clássico. Suas obras
que sintetiza muito do pensamento até hoje são lidas, comentadas, estu-
do A. quando quis apresentar suas dadas.
idéias diante de uma banca para a Dentro da simplicidade e pobreza
obtenção do doutorado. Obra madu- de nosso universo teológico latino-
ra. É a teologia latino-americana americano, estas obras de G. Gutiérrez
apresentando-se em nível de igual- merecem o nome de "clássicos". Me-
dade diante da intelligentzia teológi- recem ser sempre compulsadas pelos
ca européia. alunos para aí encontrarem a inspira-
Reeditar esses livros, não deixá- ção primeira do que foi um dos mo-
los desaparecer dos olhos, é querer mentos mais gloriosos e originais de
manter acesa a lâmpada da liberta- nossa teologia.Por esse lado, são obras
ção quando tanto se faz para apagá- que necessitam ser sempre reeditadas,
Ia. Considero esses livros clássicos. independentemente das ondas
A palavra "clássico", na sua mercadológicas.
etimologia, vem muito bem a calhar Com alegria e esperança sauda-
com o sentido dessas obras. mos esta retomada editorial para
Classicum é o toque da trombeta. É a manter viva a memória dos inícios
mesma raiz de "jubileu" em hebraico. da teologia da libertação! E como a
pobreza continua a crescer, os pobres entendeu Paulo como ponto central
se multiplicam e são ainda mais ex- de seu confronto de fé com Pedro:
cluídos, o acicate da teologia da li- "Apenas teríamos de nos lembrar dos
bertação se faz absolutamente neces- pobres, o que eu tive muito cuidado
sário para manter despertas as ener- de fazer" (GI 2, 10).
gias espirituais de compromisso com
os pobres. O esquecimento dos po-
bres é o esquecimento do Deus dos
pobres, do Jesus crucificado. Assim

DELUMEAU, Jean: Que reste-t-íl du paradis? París: Fayard, 2000. 535


pp. 23,5 x 15,5 em. ISBN 2-213-60714-9.

O A. dá prosseguimento a sua ser uma reabilitação do paraíso cris-


pesquisa anterior sobre o medo (La tão, da beleza e da variedade das
Pellr en Occident. XIV-XVIII síecles, obras em todos os gêneros que ele
Paris, Fayard, 1978; tradução brasi- fez surgir e também da inspiração
leira: Hístóría do medo no Ocídente religiosa que permitiu concebê-Ias.
1300-1800, São Paulo, Companhia das
Não há contradição para o A.
Letras, 1989; Le péché el Ia peLl r,
entre esta obra e as anteriores que
Paris: Fayard,1983) e o sentimento de
carregaram as tintas escuras. São dois
segurança (RasslIrer et protéger, Pa-
discursos que conviveram por muito
ris: Fayard, 1989; L'Avell el lI'
tempo. O A. estuda as obras de ar-
pardon, Paris: Fayard, 1990). Fechan-
tes, convencido de que elas não são
do a trílogia, dedica-se ao tema do
redutíveis simplesmente à arte pela
paraíso, sobre o qual escreveu a his-
arte, nem são simples divertimento
tória (Une hístoíre dll paradis: Le
Jardin des délices, Paris: Fayard,1992) de artistas geniais. Estão cheias de
e mil anos de felicidade (Mílle Ans de alusões complexas, traduzindo o so-
banhellr, Paris: Fayard, 1995). Encer- brenatural. Devem ser lidas no códi-
rando o projeto, temos este livro. go religioso, como ele tentou fazer.

Estas obras do A. refletem vastís- Mesmo que haja dependência da


sima pesquisa de material abundante arte em relação aos textos blblicos,
de iconografia, hinos litúrgicos, visões ela não é servil. A imagem tem sua
narrativas, textos místicos, imagens, especificidade e autonomia. O livro
obras de arte, poesias, ete. Ele mostra não é uma história da arte, mas en-
como o paraíso não é nenhum tema saio a respeito do imaginário
insípido, enquanto que o medo, o in- paradisíaco e uma tentativa de ilu-
ferno teriam sido temas muito mais minar o modo como a esperança se
carregados de emoção e bem traba- inseriu num contexto cultural em
lhados . Restringe-se ao paraíso cris- constante evolução. Importante é ver
tão. Material já abundantíssimo e de a influência da música, da nova as-
muita beleza. A esperança cristã de tronomia na visão do paraíso.
uma eternidade de felicidade susten- O livro divide-se em quatro par-
tou uma civilização inteira durante tes: Ofuscamento, felicidades, trans-
longo período. formações e desconstrução, com si-
A abundância do material mos- nal interrogativo. O livro detém-se
tra a relevãncia do tema. O livro quer sobre o estudo do belíssimo quadro:
o Retábulo do Cordeiro Místico de J. mundo terrestre povoava com suas
- H. Van Eyck (1432)- (Gand, Bélgi- imagens o mundo celeste. A imagem
ca), nas suas duas primeiras partes. religiosa se referia ao sagrado. De-
Aí se descreve pormenorizadamente pois, a partir do Renascimento, ela
o país da felicidade eterna a partir dos entrou no campo da arte, insinuan-
escritos fundadores, das visões e das do-se uma laicização crescente em
narrativas de viagens no além. Como todos os domínios. A revolução ci-
os textos em ligação com o retábulo entífica do século XVIIcolocou o céu
revelam, este constituiu verdadeira e a terra sob as mesmas leis. O céu
suma das certezas paradisíacas que se deixou de ser o "lugar de Deus". O
somaram desde o início da era cristã paraíso começou desde então a ser
até o século XV. pensado como "não-lugar". A fé cris-
tã assumiu esta visão do "não-lugar",
As representações do além entre-
mas não lhe negou a realidade, fa-
laçam-se com a civilização de modo
zendo dele o futuro para além da
que as suas transformações as afe-
morte por meio da ressurreição.
tam. Sob o título de transformação, o
A. estuda especialmente a influência A perda da representação do céu
da promoção da música, o uso da foi pesada. O cristão hoje é chamado
perspectiva, o êxito prodigioso das a compensá-Ia pela esperança da re-
cúpulas, o nascimento do protestan- alização das promessas de Jesus que
tismo e da ciência moderna sobre o vão desde as bem-aventuranças até
destino do paraíso. Houve um mo- a ressurreição.
mento em que o céu e o paraíso já É escusado dizer que se trata de
não coincidiram. A partir do século uma obra monumental, produzida por
XVIII o além já não se exprimiu em um dos maiores historiadores católi-
forma de figuras. E o A. pergunta-se cos da atualidade. O leitor delicia-se
pelo significado e conseqüências de com a riqueza de informações. As
tal mudança. análises são profundas, originais, ofe-
No decorrer da história do Oci- recendo uma idéia ampla sobre o tema
dente, o A. mostra como o sobrena- do paraíso na simbologia cristã.
tural e o real concreto se implicaram
mutuamente. O sobrenatural infor-
mava o cotidiano e por sua vez o

BROCKELMAN, Paul: Cosmology and Creation: The spiritual


significanee of the eontemporary eosmology. New York / Oxford:
Oxford University, 1999. 194 pp., 21,5 X 14,5 em. ISBN 0-19-511990-8.

Tema muito atual e provocante. narrativa. E hojenecessitamosde uma.


O A. tece três narrativas sobre a ori- O A. se pergunta: qual é a estória
gem e realidade do mundo. Narrati- (story) que o universo nos conta?
vas que pretendem responder as Inicia-se com a narrativa tradici-
perguntas básicas: como as coisas onal apresentada na versão bíblica do
vêm à existência? Como elas vêm a livro de Gênesis. É o relato da cria-
ser o que são? Como o futuro pode ção muito conhecido. Alude a outras
oferecer-nos uma direção satisfatória? narrativas religiosas mitológicas.
Toda comunidade necessita de uma Nelas as culturas antigas descobri-
am a amplidão da realidade em que cartesiana e o da cosmologia contem-
viviam, o sentido e destino de suas porânea, trata do tema da existência
vidas. Com a distinção do duplo ní- de Deus, do sentido de transcendência,
vel sagrado e profano nos mitos, do significado da vida nova (vida
mune-se o A. de uma gramática transformada). O A. expõe num dos
hermenêutica para entender como capítulos, de maneira brilhante e
nessas culturas as pessoas viviam o concisa, esse relato das ciências mo-
cotidiano à luz de uma realidade dernas (naturais e humanas), basea-
mais profunda, última, sagrada. do especialmente na física quântica,
astrofísica, geologia, biologia, ecolo-
Sobre tais textos faz pertinente,
gia, psicologia. O capítulo sobre a
clara e bem elaborada reflexão sobre
"nova cosmologia" serve de excelen-
mitologia, mito, símbolo, metáfora. A
te introdução para quem quer
grande metáfora dos relatos tradici-
adentrar-se nessa nova perspectiva
onais é a "mãe fértil" ou o "pai
científica. Consegue expor com cla-
amoroso", segundo a qual as pesso-
reza os princípios basilares de tal
as percebiam a vida ordinária como
cosmologia.
dependente dela Não se trata de nada
muito original, mas extremamente O A. dá muita importância a ex-
didático e bem fundamentado. O li- periência da Transcendência, sobre-
vro está realmente bem fornecido em tudo sob a forma do maravilhoso
citações longas de autores diversifi- (wonder), mostrando a diferença em
cados, revelando por parte do A. relação à perspectiva da prova da
domínio amplo do assunto. causalidade. Na base do maravilho-
so, está o "respeito pelo milagre do
A segunda narrativa é a leitura
ser". No fundo, é a experiência
secularizan te, da modernidade
arquetípica: "por que existe, existe".
iluminista, que encontra em Descar-
Dedica todo um capítulo para
tes - várias vezes citado como pro-
enuclear a experiência do maravilho-
tagonista - expressão significativa.
so, recorrendo à fenomenologia exis-
Seculariza, desmitifica a leitura ante-
tencial.
rior, transformando o mundo num
objeto a ser dominado, separado do Explicita também muito bem os
sujeito espiritual, manipulado pelo dois contextos diferentes que permi-
ser humano, que é entendido como tiram uma preocupação com a prova
seu senhor. Tal relato científico per- da existência de Deus e a busca de
mitiu o avanço das ciências, mas uma experiência do Transcendente.
trouxe um encurtamento da dimen- A nova cosmologia favorece a segun-
são espiritual do ser humano. O li- da maneira de aproximar-se de Deus.
vro é uma crítica desse reducionismo Em dado momento, faz a afirmação
moderno e uma proposta nova, ba- provocativa, mas absolutamente cor-
seada na cosmologia contemporânea reta. "Deus não existe, ele é a exis-
e sua dimensão espiritual. tência". Dedica longas páginas refe-
rentes à dimensão de mistério, de
Com efeito, o livro dedica prati-
"ser" de Deus.
camente a sua maior parte a esta
nova narrativa, elaborada pela Merecem ser valorizados os pe-
cosmologia contemporânea. Aqui quenos resumos, muito bem feitos,
está a sua novidade. Mostra a pro- que o A. introduz em vários capítu-
funda ligação entre essa nova los depois de uma longa explicitação
cosmologia e uma compreensão espi- do tema. Sente-se a preocupação com
ritual. Nesse contexto de oposição a clareza e didaticidade, o que valo-
entre o relato moderno da ciência riza muito a obra.
Ela se situa na perspectiva de como um todo. Isso buscavam os
uma nova compreensão da relação mitos tradicionais. A narrativa mo-
entre Deus e mundo. Busca numa derna fez-nos perder tal compreen-
visão pan-en-teísta um caminho que são. Cabe redescobri-la à luz da nova
se afasta tanto do transcendentalismo "narrativa" científica da história da
tradicional quanto do panteísmo in- evolução, elaborada nas últimas dé-
sinuante. Citando V. Havel e muitos cadas, de significado científico e es-
outros, o A. crê que nossa tarefa hoje piritual. De fato, a nova cosmologia
é descobrir um sentido espiritual da torna possível perceber o maravilho-
"realidade mais ampla" ou da "or- so, inexplicável e milagroso poder-
dem meta física" a que pertencemos. para-ser (power-to-be) de tudo o que
A tragédia da vida moderna é que existe. O encontro com essa visão
reprimimos e suprimimos qualquer leva-nos a uma transformação de
idéia ou experiência de uma realida- vida e comportamento no nível indi-
de transcendente a nós mesmos que vidual e social e a uma abertura e
podia prover um sentido maior e compaixão em relação a toda a cria-
mais inclusivo para nossas vidas. ção. O livro coloca-se destemidamen-
Perceber o "milagre de ser" que en- te na linha de explicitar esta pers-
volve todas as coisas é ir além dos pectiva. Por isso, é muito bem-vin-
confins fechados, niilistas e degra- do.
dantes de nossas sociedades moder-
nas, tecnológicas e consumistas e
encontrar um papel e destino huma-
nos com sentido dentro da natureza

GUÉHENNO, Jean-Marie: L'avenir de Ia liberté: La démoeratie dans


Ia mondialisation. Paris: Flammarion, 1999. 222 pp., 21 X 13, 5 em.
ISBN 2-08-211579-8.

Advogado de profissão, dedica mação do bem comum, o dever de


esse livro a analisar onde se realiza a todos participarem na vida pública.
verdadeira luta democrática. Ele sus- O idiota para os atenienses era quem
peita do triunfalismo que se seguiu se devotava à vida privada e nobre
à queda do comunismo. Uma demo- era participar como homem livre na
cracia satisfeita é uma democracia vida da cidade. Os modernos vêem
ameaçada. Distingue, logo de início, a democracia como defesa contra
uma democracia considerada como autoritarismos a que a liberdade dos
técnica, como método de limitação de antigos poderia chegar. Por isso, são
poder, como preocupação com a li- necessárias as duas liberdades e as
berdade do indivíduo (liberdade dos duas faces da democracia. A demo-
modernos) e uma democracia como cracia do voto, da maioria sem uma
valor, como experiência partilhada de comunidade humana pode destruir
poder, como ambição de formar uma a própria democracia, se lhe falta a
comunidade política (liberdade dos base de comunidade política. Nas
antigos). Não quer opô-Ias embora democracias adormecidas do mundo
se valorize muito a segunda. Ambas desenvolvido, o poder se torna
liberdades são inseparáveis. Demo- difuso, menos controlável de modo
cracia como valor é recordar a afir- que a liberdade humana é ameaçada,
menos pelo abuso de poder do que deve-se analisar o significado do
por sua indeterminação. mercado apresentado freqüentem ente
como matriz e modelo das comuni-
O mercado global não cria comu-
dades futuras, estudar os efeitos con-
nidade global. Está a acontecer uma
cretos da desintermediação política
"des-intermediação" política à seme-
sobre as instituições públicas. Por que
lhança do mundo econômico - o
o mercado mundial não constrói uma
banco coloca o investidor e tomador
comunidade mundial quando as pes-
de empréstimo em contacto direto
soas se encontram num terreno co-
sem assumir os riscos - possibilita-
mum de concorrência? Quais as con-
da pela revolução tecnológica. Desa-
seqüências para o Estado, o tradicio-
parecem as estruturas intermediári-
nal braço das comunidades políticas,
as entre as pessoas e a globalidade
num contexto em que as pessoas es-
do mundo de modo elas se defron-
tão numa face-a-face com a globa-
tam com a globalização num senti-
lidade?
mento de embriaguês e/ou de angús-
tia Essa análise o A. já a fizera em Como se vê o livro trata de ques-
obra precedente (La fill de Ia tões sumamente interessantes. Divi-
dr'mocrntie, Paris: Flammarion, 1995). de-as em três grandes blocos: a
desintermediação política, os novos
No presente livro o A. pretende
territórios da política e os cidadãos
definir as novas condições da demo-
da mundialização.
cracia na mundialização. Como cons-
truir nela as comunidades políticas No primeiro bloco sobre a
do futuro? desintermediação, estuda o mercado
com toda sua ilusão, a concorrência
A mundialização nos faz órfãos de
como realidade-valor universal, o
uma comunidade herdada. Devemos
futuro do Estado e a democracia di-
construi-Ia. Passar de um mundo de
reta. A política modifica seu campo.
comunidades de memória para um
A desintermediação embaralhou não
mundo de comunidades de escolha é
só as fronteiras territoriais dos Esta-
uma liberdade pesada de suportar e
dos-nações e mas também a distin-
para a qual estamos mal preparados
ção entre os interesses públicos e
(p. 16). Daí as fugas: no comunit-
privados, cessando de ser monopó-
arismo, na xenofobia, na tirania.
lio do Estado a gestão dos interesses
Além disso, modificaram-se as públicos. Novos espaços públicos,
condições técnicas do funcionamen- escapando à lógica nacional, apare-
to da democracia: as comunidades cem e se interpõem entre uma
humanas já não se definem por uma mundialização abstrata e os indiví-
lógica unicamente territorial, os cír- duos fechados na sua solidão. A pró-
culos do poder, seu campo de apli- pria natureza do poder muda e im-
cação e suas modalidades de contro- põe-lhe novos modos de controle.
le não são os mesmos. Devem-se
No segundo bloco, consagrado à
redefinir a liberdade dos modernos
exploração dos novos territórios da
- conjunto de regras e procedimen-
política: a empresa, o interesse geral e
tos que garantem a liberdade dos
interesses públicos, o saber e poder, a
indivíduos - e a dos antigos - cons-
transparência e o segredo, as comuni-
trução de um espaço público de en-
dades virtuais e comunidades políti-
contro dos cidadãos.
cas. A questão é de ver como a partir
Para responder a tais perguntas desses novos espaços públicos cons-
e definir a luta democrática hoje truir comunidades políticas, articulan-
do a liberdade dos modernos - cida- temporânea parece pôr fim às cons-
dãos consumidores da mundialização truções institucionais herdadas do
- e a dos antigos - experiência de Renascimento e da Ilustração, ao
uma comunidade política. Estado-nação e às formas tradicionais
da soberania democrática. No entan-
Finalmente, no terceiro bloco,
to, não dita nenhuma ordem política
pergunta-se como inventar os cida-
que dispense o trabalho construtivo
dãos da mundialização. Aborda a
de novas instituições adaptadas a
questão das comunidades de escolha
seus destinos particulares por meio
e de memória comparando a demo-
da nossa razão. É tempo de colocar
cracia americana e européia. Pois a
em dúvida a ideologia do mercado e
democracia americana quer ser uma
as respostas que ela oferece à ques-
comunidade de escolha, enquanto as
tão da democracia. O livro termina
democracias européias reconhecem a
com um pequeno capítulo sobre o
importância das comunidades herda-
futuro da liberdade.
das. Nem uma das duas é resposta
cabal aos desafios da mundialização. É um livro muito rico em refle-
A experiência política nova em que xões e informações sobre os temas
se engajou a Europa tem um signifi- indicados acima. O A. manifesta ex-
cado que supera a Europa. Pode aju- celente conhecimento da matéria,
dar os homens a reconciliar as exi- capacidade e clareza de comunicação.
gências da mundialização com a ne- Nas avaliações críticas, mostra equi-
cessidade de enraizamento nas comu- líbrio, expondo os prós e contras das
nidades particulares, fabricando não posições. Com muito sentido de rea-
pessoas de uma utopia global - se- lismo, coloca o leitor diante dos fa-
ria totalitária -, mas de comunida- tos com toda a sua crueza. Deixa
des particulares, em parte herdadas, espaço para ulteriores reflexões e
em parte construídas, nas quais se debates. Cada tema merece realmen-
reconhecerão. Nada de destruir as co- te ser discu tido.
munidades particulares em benefício
da utopia totalitária de uma comuni-
dade universal. São ilusões de cien-
tistas. Sem dúvida, a evolução con-

FLORISTÁN SAMANES, Cassiano - TAMAYO-ACOSTA, Juan-José


(dirs.): Dicionário de Conceitos fundamentais do Cristianismo. Tradu-
ção da edição espanhola de 1993 por Isabel Fontes Leal Ferreira e
Ivone de Jesus Barreto. São Paulo: Paulus. 1999.917 PP., 23,5 X 16 em.
(Série Dicionários) ISBN 85-349-1298-X.

A editora Paulus oferece-nos na Num mundo que nos inunda de


tradução portuguesa uma obra rele- informações os dicionários temáticos
vante que apareceu na Espanha em se tornam cada vez mais importan-
1993.Não se trata de recenseá-Ia aqui, tes quando feitos com seriedade e
mas simplesmente de chamar a aten- competência. A natureza, os temas,
ção do leitor brasileiro para mais esse os colaboradores desse dicionário de
instrumento de trabalho no campo conceitos fundamentais do Cristianis-
teológico. mo recomendam-no.
A natureza do dicionário: são falar da literatura sobre a religiosi-
artigos razoavelmente amplos, o que dade negra. Poderíamos multiplicar
faz, portanto, necessária uma boa os exemplos.
seleção de temas. O título já indica
Os autores são na sua imensa
que não se trata de um dicionário de
maioria espanhóis. Há alguns da
muitos verbetes de breves informa-
América Latina espanhola e dois bra-
ções, mas de elaboração sucinta de
sileiros (L. Boff e H. Assmann). Des-
temas fundamentais do Cristianismo.
ta maneira, o dicionário reflete o
O francês diz que quem tem a esco-
mundo teológico da Espanha. São
lha, tem a cruz. A escolha dos temas
autores que naturalmente conhecem
pode sempre ser criticada pelo que
bem a literatura dos outros países
falta e pelo que sobra. Mas é inevitá-
europeus, aliás abundantemente ci-
vel que se selecionem os assuntos
tada. Conhecem bem menos a litera-
quando o quadro geral é o Cristia-
tura do outro lado do oceano, posto
nismo. No entanto, algumas ausên-
se perceba nos organiza dores da obra
cias podem ser mais sentidas. O títu-
uma sensibilidade para a teologia da
lo do dicionário menciona o termo
libertação e temas de nosso universo
"Cristianismo". E não há nenhum
sóciocultural. Há verbetes que refle-
verbete especificamente sobre ele,
tem bem tal interesse e algumas abor-
nem sobre cristandade, nem sobre o
dagens aludem a essa literatura.
fato cristão. Tal se faria necessário
para situar o próprio dicionário. E Esse dicionário constitui mais
uma outra ausência importante se uma excelente obra de consulta. Ser-
refere ao "pentecostalismo" e ao atu- ve altamente para introduzir as pes-
al fenômeno religioso que mereceri- soas nos assuntos trabalhados, ofe-
am um tratamento e não ser apenas recendo sínteses claras e suficiente-
tocados no verbete "seitas" ou bre- mente amplas. O nível de informa-
vemente em outros lugares. ção reflete a competência dos auto-
res, nomes conhecidos e reconheci-
Em geral, os temas estão muito
dos na literatura teológica e afim.
bem escolhidos e cobrem realmente
bem o espaço do Cristianismo. O Quanto à tradução, não se teve a
leitor encontra no dicionário os te- preocupação de conferir a existência,
mas mais relevantes em torno da em português, de citações feitas em
realidade cristã. espanhol. Até obras escritas em por-
tuguês são citadas em espanhol, sem
Os verbetes são escritos por au-
que as tradutoras o indicassem. Na-
tores diferentes, refletindo uma na-
turalmente tal conferição seria um
tural desigualdade. Uma impressão
trabalho ingente, mas certamente fa-
geral é de que os autores espanhóis,
cilitaria um leitor menos adentrado
embora mostrem especial atenção à
no universo bibliográfico teológico.
problemática da América Latina,
desconhecem a literatura teológica É uma obra que se faz necessária
brasileira que não foi traduzida. As- em toda biblioteca dos Institutos te-
sim, por exemplo, o artigo sobre re- ológicos permitindo aos alunos um
ligiosidade popular não conhece a fácil acesso a temas da atualidade
obra de R. Azzi e de Pedro Assis trabalhados com seriedade e rigor.
Ribeiro de Oliveira, que são marcos
referenciais nesse estudo com posi-
ções originais e consistentes, sem
KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: Amor e fidelidade.
Petrópolis: Vozes / S. Leopoldo: Sinodal, 2000. 452 pp., 21 X 13,5 em.
ISBN85.326.2305-0.

Ao falarmos de exegese joanina como Prólogo), Livro dos Sinais, Li-


no Brasil, o nome que logo ocorre é vro da Glória, e Epílogo (cap.21). A
o de Johan Konings. Com razão: sua perícope da mulher adúltera é anali-
familiaridade com o IV Evangelho sada à parte. No fim, um Vocabulá-
vem de longa data, desde a tese de rio histórico e exegético de 18 pági-
doutorado (A narrativa joanina no nas traz 65 pequenos verbetes, preci-
quadro da crítica literária, Lovaina osos pela sabedoria e senso do es-
1972), passando por diversas obras sencial.
de divulgação, até Evangelho segun-
do João: Amor e fidelidade, editado A tradução do Evangelho é a da
CNBB (coordenada pelo próprio A.),
em 2000 por Vozes e Sinodal. Duas
com retoques, quando oportunos. Em
características têm marcado a atua-
Jo 1 o Verbo passa a ser a Palavra.
ção do Autor. Primeira: seu espírito
No Livro da Glória, em vez de ele-
eclesial; para ele, comunidade,
vado temos enaltecido. Em 6,5, onde
liturgia, bíblia e catequese sempre
vamos comprar passa a ser de onde
andam juntas. Segunda: a capacidade
vamos conseguir, recuperando a pa-
de valorizar exegese competente com
lavra-chave joanina donde. Em 19,13
boa comunicação. Significativamente,
é Pilatos que se sentou, não Jesus (é
este seu livro mais recente sai na co-
boa a respectiva nota 27). Para que
leção "Comentário Bfblico", que se
não vos escandalizeis de 16,1 passa
propõe comentar os escritos de ma-
a ser para que vossa fé não fique
neira séria mas sem academicismos, abalada. Várias vezes a tradução con-
para atingir também pessoas serva a expressão usual, mas é para-
engajadas, sem uma formação bíbli- fraseada no comentário. Assim,
ca superior. Os comentaristas procu- "aquele que Jesus amava" é seu "ho-
ram aprender sempre de novo, nos mem de confiança"; estar recostado
meios populares, a repensar as prio- "no regaço" de Jesus, significa estar
ridades; ir ao essencial, para além da "bem pertinho" dele; o jardim de 18,1
letra, buscar a vida. Não é fácil, com é um sítio. Os exemplos poderiam
pouco espaço para justificar as pró- multiplicar-se; são outros tantos si-
prias opções exegéticas, atingir, sem nais de sensibilidade por comunica-
choques desnecessários, pessoas de ção adequada. Para o leitor que não
culturas e escolaridade diferentes. O tiver curso superior alguns textos são
A. é o homem certo para esta tarefa. difíceis: o primeiro parágrafo da p.
O plano do livro tem poucas no- 67 (não só por causa do "platonismo
vidades. O Prefácio, de apenas uma médio"); o 4.2 da p. 69; a p. 83 quase
página, declara, em grandes linhas, toda; expressões técnicas como "pas-
objetivos e método da obra; de tão sivo teológico" (p. 104), "profetas
breve, tem a rara chance de ser lido anteriores"(p. 264), YHWH (p. 336);
pelo usuário. A Introdução ocupa 67 o primeiro parágrafo do box da p.
427.
páginas, mais da metade dedicadas
ao evangelho em seu contexto. Texto Cá e acolá a tradução será discu-
e comentário seguem a repartição tível. Em 2,4 (as bodas de Caná), que
clássica: Entrada (mais conhecida desejas de mim? transforma em ob-
sequiosa oferta de ajuda uma expres- pírito Santo (pp. 315-318); principal-
são que, embora com nuanças, su- mente, a insistência em ver o
gere divergência ou distanciamento; cristocentrismo de João como sendo,
como diz o comentário, "Jesus pare- em última análise, um vigoroso
ce resistir à sugestão de sua mãe". teocentrismo, d. pp. 60.62.242 a 245;
Em 3,10 (Nicodemos), til és mestre p. 172 (aqui, em vez de remeter para
em Israel, atenua o original: [entre a Introdução, § 5.1.3, não seria me-
nós dois, oficialmente,] º mestre de lhor citar §§ 3.3.5 e 3.3.7?). Merecem
Israel és til! Em 8,31, "os qlle tinham ser citadas, ainda, as breves observa-
acreditado" parece preferível a "os ções que, ao longo do livro, abrem
qlle tinham passado a crer", que in- todo um leque de impulsos. Apenas
sinua que eles ainda eram crentes um exemplo: corrigindo uma tendên-
(idem às pp. 215ss: tinham sido [não cia moralista bastante comum, o A.
eram] crentes). Às pp. 248s, melhor insiste que o "indicativo" da graça
falar em reanimação que em ressllr- de Deus sempre precede o seu "im-
reição de Lázaro. Em 12,14 o contex- perativo" (p. 291; também pp.
to sugere sentido adversativo para a 296.330). É um dos princípios bási-
partícula grega de, estabelecendo cos da exegese judeu-cristã, salienta-
forte contraste: mas Jesus .... Em do por Bultmann (eu dispensaria a
20,28, na profissão de fé de Tomé, nota 1 sobre Bultmann, (p. 82) e,
falta o importante lhe. ecumenicamente, o citaria aqui).
O A. não visa só esclarecer: dada Mais que outros livros, o Quarto
a ocasião, gosta de alargar os IlOri- Evangelho é uma "leitura sem fim"
zontes do leitor. Para isto, distribui (p. 8): é como um hipertexto, todo
ao longo do livro 62 breves excursos, feito de conexões, sempre aberto a
numerosos quadros e detalhes inte- novas paisagens. Neste sentido, o
ressantes; (mas fica devendo o por- comentário do A., amadurecido du-
quê da pomba em 1,32); bem como, rante anos de pesquisa e ensino, tem
esquemas (pp. 40.193.248), quadri- a cara do evangelho que comenta: é
nhos (pp. 329 e 359!) e tabelas. Muito instigante, e não só para marinhei-
oportuna a comparação gráfica entre ros de primeira viagem. Suscita ques-
a cronologia dos últimos dias de Je- tões de diversas ordens, que mere-
sus nos Sinóticos e em João; para cem mais espaço que o de uma
maior clareza, sugiro que o quadro recensão. Limito-me a elencar algu-
seja Simplificado. Em termos de pe- mas.
dagogia pastoral, valham duas amos-
tras: o lembrete sobre "a coragem de 1. O exegeta-comentador do IV
traduzir a linguagem da fé para no- Evangelho enfrenta uma difícil op-
vos tempos e novos ouvintes" (p. 24); ção prévia: como situar-se diante da
e a explicação do que significa o linguagem fortemente simbólica do
"cumprimento das Escrituras" (p. 25). João? Que parâmetros temos para
Quanto à teologia joallilla, muito respeitar a mentalidade semito-
haveria a salientar: na Introdução, as helenística de João sem cairmos em
seções sobre a índole própria do IV fantasias descabidas? Entre os auto-
Evangelho (pp. 55-64) e a alternativa res, encontramos um amplo leque de
cristã segundo João (65-68); o desta- abordagens, desde a leitura à luz do
que dado a palavras-chaves aparen- judaísmo de F. MA]\;NS, passando por
temente inócuas como de ollde e comentários tipicamente ocidentais
permanecer; as páginas sobre o Es- com moderado apelo ao simbólico,
como os de R.E. BROWN e B. MAGGIONI, "decepcionantes ": gostaríamos que
até o recurso mais amplo à leitura fossem todos bem humanos, liberta-
simbólica, à maneira de MATEOS / dores - segundo nosso modo de
BARRETO (que, para BROWN, "constro- pensar -; mas nem sempre é assim.
em castelos no ar",d. Biblica (1982) Tomemos o caso da fraternidade em
291) ou, na outra vertente, a leitura João. O IV Evangelho urge o amor
germanicamente mais racional de um mútuo entre os membros da comu-
Jürgen BECKER. o A. adota, a meu ver nidade: é a grande prova do
sabiamente, a linha balanceada do discipulado; dá coesão ao grupo; é
tipo BROWN e MAGGIONI. testemunho e convite a que também
outros adiram a este discipulado.
2. A questão da linguagem teoló-
Mas estamos longe do amor ao "ou-
gica. Estamos vivendo uma crise das
tro", ao diferente e até inimigo, de
epistemologias, com a conseqüente
que fala Mateus. o A. admite que Jo
revolução lingüística. Como traduzir
insiste no amor mútuo "ad intra" (pp.
hoje as vigorosas profissões de fé
42.54ss.60s.64s.74e 326 nota 24); mas
formuladas na comunidade joanina,
hesita em problematizar esta limita-
para que expressem de maneira nova
ção. Não fiquei convencido de que
a mesma fé? Termos há longa data
"o aprofundamento que Uo] produz
consagrados costumam revestir-se de
/"'/ nos prepara muito bem para o
uma aura de reverente mistério que
diálogo com as religiões e mundivi-
não pode ser desprezada; merecem dências de hoje, porque João vai ao
ser conservados enquanto ajudarem
essencial" (p. 53). Prefiro as pondera-
a vivenciar o mistério da fé, não mais ções da p. 74. Pergunto: seria oportu-
que isto. Assim, como vimos, em vez no dar mais um passo, chamando a
de Verbo, o A. usa Palavra. Nesta atenção para o quanto esta restrição,
mesma lógica, porém, por que não mesmo contextualizada, é chocante?
expressar de outra maneira que a Esta transparência não poderia abrir
Palavra se fez carne (1,14)? Como perspectivas notáveis para o amadu-
professar hoje que Jesus está pre- recimento do cristão adulto? Temos
sente entre os seus graças ao Espíri- algo de semelhante na resposta de
to? E a relação de Jesus com o Pai? E Jesus à sua mãe em Caná. Já comen-
a questão da linguagem "de dentro"? tamos a discutível tradução de Jo 2,4.
Claro, entre católicos é legítimo este Entretanto, o A. dá uma excelente
jogo lingüístico sui generis que é a pista para aprofundar o vigor
"comunicação dos idiomas". Temos querigmático deste texto, a meu ver
um exemplo à p. 83: "num nível que até como corretivo de certa mario-
precede a criação, Jesus [ ] partici- logia light.
pou com Deus na criação ". Acon-
tece que Jesus é o nome da Palavra 4. O nó do conflito. O cristianis-
mo separou-se do judaísmo em cli-
que se fez fraqueza humana em de-
ma fortemente polêmico. Ora, numa
terminado momento da História;
polêmica, a prudência manda ouvir
para evitar desnecessárias incompre-
os dois lados. As fontes, tanto judai-
ensões e até problemas de fé, em vez
cas como cristãs, têm que passar pelo
de Jesus, não seria melhor dizer que
crivo da contextualização na comple-
a Palavra participou ..., como faz o
xa história da época. O A. tem este
Prólogo?
cuidado. Repetidas vezes ele acentua
3. Especial discernimento pasto- não só o conflito, mas sua centra-
ral merecem os textos bíblicos Iidade no IV Evangelho, principal-
mente nos caps. 5-12. Como eixo do mais realce; por exemplo, quando do
desentendimento o A. aponta de um judaísmo sinagogaI (pp. 45s) e no Vo-
lado as grandes instituições do juda- cabulário (Guerra judaica - Rabi /
ísmo de Jâmnia, o Templo e a Torá, Rabínico - Torá). Tal aprofunda-
do outro Jesus Cristo que, para seus mento, mesmo sucinto, ajudará a
discípulos, as substitui em sua pes- compreender a resistência dos judeus
soa. Do Templo e seu culto o A. fala a uma mudança tão radical, justa-
com freqüência, lembrando também mente no período de sua grande cri-
o "pensamento do Templo", tão atu- se de identidade. Ajudará também a
ante no judaísmo proto-rabínico de- percebermos que nossas costumeiras
pois do fatídico ano 70. Há um as- categorias fé/recusa são mais com-
pecto da Torá, porém, normalmente plexas do que parece. Por tudo isto,
esquecido pelos autores cristãos: o da eu não diria que o divisor de águas
Torá Oral. No judaísmo, até hoje, a entre João e o judaísmo formativo dos
Torá compreende as Escrituras (Torá mestres são os deuterocanônicos (pp.
shebikhtav) e, pelo menos de igual 25s): nestes, mais que o divisor de
importância, a Torá Oral (Torá shebe águas eu veria uma sua conseqüên-
ai pelo Esta representa a ininterrupta cia. O divisor de águas é a autorida-
corrente de sábios interpretes, a tra- de da Torá Oral e de seus mestres.
dição viva que, como a Escritura, Estas reflexões nos levam ao que
remonta a Moisés; no séc. I está sob me parece um dos principais méri-
a responsabilidade dos mestres tos do livro em análise. Como o A.
fariseus, que interpretam e atualizam deixa claro, o IV Evangelho não é nem
a Torá Escrita em forma de leis. É podia ser antijudaico; mas foi habitu-
com esta Torá Oral (ainda em forma- almente lido como ta!. Deste modo,
ção, mais tarde redigida) que a co- por dois mil anos, Jo foi talvez o livro
munidade joanina rompe ostensiva- que mais alimentou o antijudaísmo no
mente: em seu lugar coloca Jesus mundo ... até hoje. Muito oportuna-
Cristo, o enviado plenipotenciário do mente o A. nos brinda com uma obra
Pai; com ele começa uma nova "tra- que respira um clima ao mesmo tem-
dição oral" (mais tarde redigida). Ou po de fidelidade ao projeto de Jesus
seja: para a comunidade joanina, Je- Cristo e de compreensão do "outro".
sus desbanca a figura central do ju- Para nossos agentes de pastoral, é uma
daísmo, Moisés, e toda a Torá Oral, lufada de ar puro no meio de tanta
sem a qual a Escritura e o culto per- pseudo-informação e malhação do
dem seu referencia!. O A. é dos raros judaísmo. Vale frisar que não é só o
autores cristãos que apresentam ao judaísmo que está em questão: é a
grande público este fundamental nossa atitude em relação ao "diferen-
quadro hermenêutico; apenas, a meu te" em geral; é nossa capacidade de
ver, poderia ser mais incisivo. Lem- "descentramento" (interessante a bre-
bra que a Torá é escrita e oral; expli- ve indicação no fim do n.2, p.46; tam-
citamente, porém, só o diz uma vez, bém 49).
entre parênteses (p. 56); duas outras Esta nova mentalidade pro-
vezes o fato é comentado brevemente vocará beneficamente novos desdo-
(pp. 25s e 280),mas sem explicitar que bramentos: é justo avaliarmos nega-
se trata da Torá Oral; no Vocabulário tivamente todos os judeus que não
não o menciona. Por ser este o nó do aceitaram o Jesus Cristo proposto de
conflito, senti falta de um enfoque maneira tão polêmica pela comuni-
específico, menos fragmentário, com dade joanina? Não seria preciso
reavaliar também as estratégias, tan- sicas capazes de suprir a lacuna? 3.
to dessa comunidade como de Os itens 2 a 4 da Introdução (pp. 16-
Jâmnia? Compreender o quanto hou- 70) adiantam ou resolvem problemas
ve de resistência nos dois lados? que o leitor ainda não tem, enquanto
atrasam a alegria do contato direto
Por fim, um desiderato e três su-
com o texto do evangelho. Não seria
gestões. O desideratum. Volta a cres-
melhor deixar para o fim do volume
cer o número de agentes de pastoral e
tudo o que não for indispensável
seminaristas que estudam hebraico e
para a compreensão do texto?
grego. Seria oportuno que biblistas,
hebraístas e helenistas procurassem Extrapolei os limites de uma
pôr-se de acordo a respeito da trans- recensão. Em grande parte, a culpa é
crição de palavras hebraicas e gregas. do A.: seu livro é tão seminal, que o
leitor se vê provocado a sempre no-
As sugestões. 1. Nas suas 452
vos desdobramentos. Recomendamos
páginas, o livro é um repertório
a obra a quantos têm a coragem de
riquíssimo de informações e impul-
se desinstalar seguindo o itinerário
sos; um índice analítico aumentaria
de fé traçado por João, mas com es-
o aproveitamento desta riqueza. 2.
tratégias e horizontes sempre novos.
Dada a impossibilidade de estender-
se sobre aspectos importantes do
contexto histórico do evangelho, não
seria bom indicar algumas obras bá-

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