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CADERNOS DE HISTÓRIA

Cad. hist. Belo Horizonte v. 1 n. 1 p. 1-51 out. 1995


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Reitor
Prof. Pe. Geraldo Magela Teixeira

Pró-reitora de Execução Administrativa


Profª. Ângela Maria Marques Cupertino

Pró-reitor de Extensão
Prof. Bonifácio José Teixeira

Pró-reitor de Graduação
Prof. Djalma Francisco Carvalho

Pró-reitora de Pesquisa e de Pós-graduação


Profª. Léa Guimarães Souki

Chefe do Departamento de História


Profª Maria Mascarenhas de Andrade

Colegiado de Coordenação Didática


Profª Carla Ferretti Santiago
Prof. Carlos Evangelista Veriano
Profª Heloisa Guaracy Machado
Profª Maria Mascarenhas de Andrade (Coordenadora)

Tiragem
1000 exemplares

EDIÇÕES PUC•MG
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Pró-reitoria de Extensão
Av. Dom José Gaspar, 500 – Coração Eucarístico
Caixa postal: 1686 • Tel: (031) 319.1220 • Fax: (031) 319.1129
30535-610 • Belo Horizonte • Minas Gerais • Brasil
SUMÁRIO

Apresentação ......................................................................................................................... 5

De res publica e de república: o significado histórico de um conceito


Heloisa Guaracy Machado ....................................................................................................... 7

Vivendo a liberdade: fugas e estratégias no cotidiano escravista mineiro


Liana Maria Reis ..................................................................................................................... 17

Aparências e aparições – estética barroca – a imagem oculta


Mônica Eustáquio Fonseca ...................................................................................................... 24

A massa desvelada: comentário sobre quatro estudos e uma


perspectiva de análise histórica
Eduardo França Paiva .............................................................................................................. 28

A pintura de tectos de perspectiva arquitectónica no


Portugal joanino (1706-1750)
Vitor Serrão
Magno Mello ........................................................................................................................... 34

Crise ideológica e produção intelectual: esquemas de


pensamento próprio a uma situação histórica
Helenice Rodrigues da Silva .................................................................................................... 45

Cad. hist. Belo Horizonte v. 1 n. 1 p. 1-51 out. 1995


Conselho Editorial
Prof. Carlos Fico (Deptº de História – UFOP)
Profª Eliana Fonseca Stefani (Deptº de Sociologia – PUC•MG)
Prof. Dr. Francisco Iglésias ( Faculdade de Ciências Econômicas – UFMG)
Profª Liana Maria Reis (Deptº de História – PUC•MG)
Profª Drª Maria do Carmo Lana Figueiredo (Deptº de Letras – PUC•MG)
Profª Drª Maria Efigênia Lage de Rezende (Deptº de História – UFMG)

Coordenação Editorial
Profª Heloisa Guaracy Machado

Coordenação Gráfica
Coordenadoria de Comunicação Social da PUC•MG

Revisão
Virgínia Mata Machado

FICHA CATALOGRÁFICA
(Preparada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais)

Cadernos de História. — v. 1, n. 1, out.


1995 — Belo Horizonte: PUC•MG,
1995
v.

Anual

1. História – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica


de Minas Gerais. Departamento de História.

CDU: 98 (05)
APRESENTAÇÃO

E
ste é o primeiro número dos Cadernos de História, do Departamento de Histó-
ria da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, que inaugura uma no-
va fase de publicações – anuais – dos trabalhos de seus professores e de pesqui-
sadores convidados.
Os seis artigos constantes do presente número apresentam uma variedade te-
mática dentro do viés histórico comum. São estudos sobre movimentos de resistência
social – popular ou escrava – ou sobre movimentos estéticos — como o barroco e o pe-
ríodo joanino português – e, ainda, sobre o conceito de “República” ou sobre a elite in-
telectual francesa, perpassando a Antigüidade Clássica, a Europa pré-industrial e a Eu-
ropa moderna, a França contemporânea e as Minas Gerais no tempo do Império.
Dois desses artigos nos foram enviados da França e Portugal, onde os seus au-
tores estão radicados, em função de compromissos acadêmico-profissionais. Optamos
por manter tais textos nos limites de sua forma original, reproduzindo-os na íntegra,
embora com algum prejuízo do padrão normativo estabelecido para os demais. Assim,
o artigo “A Pintura de Tectos de Perspectiva Arquitectónica no Portugal Joanino”, por
exemplo, guarda a especificidade do idioma português corrente em Portugal, respei-
tando as diferenças de ordem lingüística relativas ao mesmo idioma, no Brasil. Por ou-
tro lado, o ensaio “Crise Ideológica e Produção Intelectual: Esquemas de Pensamento
Próprio a uma Situação Histórica” traz referências bibliográficas de ordem geral, sem
se fazer acompanhar pelas notas de referência, como é a praxe.
O Departamento de História se sente gratificado por apresentar à comunidade
acadêmica uma produção resultante do empenho em ampliar suas atividades, organi-
zadas num projeto político-pedagógico que procura conciliar os interesses da gradua-
ção, da Instituição e da sociedade no seu conjunto. Entendemos que os campos do en-
sino, da pesquisa e da extensão compõem um elo indissociável na cadeia da produção
e distribuição do conhecimento histórico, numa interação permanente que pressupõe
mútuas contribuições. Nesse sentido, o Departamento desenvolve um projeto coletivo
de pesquisa que reúne, numa temática comum, estudos particulares de alguns profes-
sores, os quais, aliados a outros trabalhos em andamento, ou em fase de implementação,
deverão fornecer farto material para as futuras edições.
Entendemos, também, que a produção do conhecimento científico deve estar
de acordo com a tendência interdisciplinar que caracteriza a esfera acadêmica na atua-
lidade. Assim, elegemos um conselho editorial diversificado no que se refere à sua for-
mação básica e à sua vinculação institucional. Buscamos o suporte de um corpo de peso,
capaz de uma avaliação crítica consistente, quer pela sua renomada competência pro-
fissional, quer pela sua isenção. E que, pela sua composição eclética, viesse somar as di-
ferentes visões em proveito da análise e do julgamento dos textos submetidos à seleção.
Isso se confirmou na prática, pois algumas sugestões valiosas foram consideradas na
resolução dos impasses naturais aos processos desse tipo. Tendo como componentes do
conselho quatro historiadores, com as suas sub-especialidades, uma socióloga e uma
literata, sentimo-nos mais à vontade para aceitar a publicação dos textos referente às
disciplinas vizinhas.
Por último, faz-se necessário registrar que os artigos reunidos neste caderno são
de exclusiva responsabilidade dos seus autores, no que se refere aos temas abordados
e às opiniões emitidas.

Heloisa Guaracy Machado


Coordenadora Editorial
De Res Publica e de República: o significado histórico de um conceito

DE RES PUBLICA E DE REPÚBLICA:


O SIGNIFICADO HISTÓRICO
DE UM CONCEITO

Heloisa Guaracy Machado


Departamento de História da PUC•MG(*)

A
RESUMO creditamos que a discussão a respei-
O debate sobre a República to da República brasileira deva se ini-
Brasileira requer a análise do con-
ceito de República como uma ciar por uma reflexão sobre o concei-
construção social e simbólica de
um contexto histórico específico.
to República, do ponto de vista histórico. Isto
O artigo visa recolocar o con- implica uma análise em torno de três eixos bá-
ceito República no seu locus ori-
ginal, isto é, a Antigüidade Clás- sicos e intimamente relacionados, como pro-
sica, indicando os seus pres-
supostos básicos – lançados na curaremos demonstrar ao longo da exposição:
polis grega – e o momento de sua
elaboração formal – no âmbito da a definição do termo República; a inserção do
civitas romana.
conceito no seu contexto original – o mundo
greco-romano – buscando apreender as condições materiais e mentais
que permitiram a sua emergência ou consolidação; e, finalmente a ca-
racterização da produção político-ideológica da sociedade clássica, na
perspectiva da longa duração, salientando os aspectos que a distan-
ciam e a aproximam do mundo moderno e contemporâneo. Nesse sentido,

(*) Este artigo é o resultado de uma palestra proferida no simpósio sobre o Centenário da República Brasileira, promovido pelo Departamento
de História da PUC•MG, em 1989, em conjunto com a professora Ana Maria Coutinho.

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Heloisa Guaracy Machado

visamos destacar alguns pontos à Grécia, substrato da cultura que ecoam no nosso presente. A
para uma reflexão sobre o tema, romana. recuperação do diálogo entre o
abrindo o leque das discussões a esse Na verdade, não deveríamos mundo greco-romano e a mo-
respeito, sem qualquer pretensão de ignorar, como ocorre muitas ve- dernidade (aqui englobando o
esgotar o assunto. zes, que os fundamentos políti- mundo contemporâneo) signifi-
Um conceito, na sua acepção cos, jurídicos e filosóficos do ca promover um exercício de
universal, é uma representação mundo ocidental e, por conse- autoconhecimento e ampliação
mental de um objeto, por meio guinte, do Brasil, foram edifica- da crítica política e social, atra-
de suas características gerais. dos no âmbito da tradição greco- vés da investigação cuidadosa de
Todo conceito remete a uma ex- romano-judaico-cristã. Aí surgi- certos postulados ideológicos,
pressão lingüística – uma sen- ram e se afirmaram os processos nas condições em que eles foram
tença, uma palavra, como Repú- racionais de organização comu- postos inicialmente.
blica – carregada de um conteú- nitária que deram origem às no- Trabalhar o significado do
do semântico que só pode ser ções de cidadania e participação, conceito de República é, nesse
avaliado na sua relação com ou- aos princípios filosóficos e éticos sentido, inscrevê-lo no tempo
tros termos ou com o contexto de conduta, às primeiras leis es- longo da história, buscando as
cultural. Linguagem e cultura se critas, às regras consagradas do permanências entre uma cultu-
implicam mutuamente de modo direito romano e, naturalmente, ra e outra, entre momentos cro-
que a linguagem deve ser con- à experiência republicana. nologicamente distintos. É en-
cebida como um elemento inte- Incorporadas definitivamente tendê-lo como um elemento
grante da vida social e quotidia- à civilização ocidental, tais criações simbólico que, tornado objeto de
na, ainda que ela não seja capaz são de tal forma atuantes no nos- análise, nos conduz a uma com-
de traduzir a realidade em sua so cotidiano político, social e preensão melhor não só do gru-
plenitude. Visto desta forma, o mental que só nos resta admitir po particular que o construiu –
conceito é um importante mate- a sua atualidade. A cultura gre- a sociedade greco-romana – mas
rial para a análise histórica, pois co-romana está presente – mui- de todos aqueles que o elegeram
ele é parte de um código simbó- to mais do que os artefatos, tex- como modelo político. As heran-
lico e lingüístico, expresso num tos e monumentos que nos legou ças culturais clássicas não devem
sistema de signos construídos – na herança cultural que per- ser consideradas meras “sobre-
socialmente e amplamente reco- meia o nosso quotidiano, os vivências” de uma sociedade re-
nhecidos pelos membros de uma comportamentos, as crenças e as mota e amorfa, condenada ao
comunidade. A descodificação formas de organização comuni- desaparecimento; ao contrário,
desse sistema nos permite a re- tária, através das reinterpreta- elas constituem vivências vigo-
construção do imaginário cole- ções de um modelo gerado num rosas, sempre renovadas no de-
tivo, das ideologias, dos hábitos tempo remoto, mas que conti- correr da dinâmica histórica, cuja
e valores relativos à sociedade nua inspirando o modo de vida atualização vai refletir as especi-
que o engendrou e às suas for- atual. ficidades de contextos sociais di-
mas de permanência em outros A importância do conceito Re- ferenciados, que obedecem a
contextos históricos. pública na prática política ociden- racionalidades distintas. Não
O Novo Dicionário da Lín- tal é exemplo dessa vitalidade, podemos comparar stricto sensu
gua Portuguesa – o Dicionário pois nenhum elemento simbóli- sociedades pré-industriais, como
Aurélio – indica a filiação etimo- co pode subsistir apartado da o mundo greco-romano, e a so-
lógica do termo República com o realidade fenomênica. Um vo- ciedade brasileira, inserida nos
latim res pública, isto é, “coisa pú- cábulo, nessas condições, se tor- quadros do capitalismo interna-
blica”, evidenciando que as raí- naria letra morta, rapidamente. cional; é sabido que cada cultu-
zes históricas dessa palavra tão Não raro, nos voltamos para ra deve ser considerada na sua
contemporânea e, ao mesmo o passado clássico e o interroga- peculiaridade, o que torna impe-
tempo, muito antiga remontam mos, sobre os nossos dilemas, rativa a elaboração de um cam-
ao mundo latino e, por extensão, buscando ouvir aquelas vozes po teórico coerente sobre o mun-

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De Res Publica e de República: o significado histórico de um conceito

do antigo. Por outro lado, não pria historicidade, do ponto de uma comunidade auto-governa-
podemos subestimar as evidên- vista de sua capacidade de sín- da, composta de um centro cívi-
cias de que “existe um encontro se- tese. As “mentalidades” procu- co e/ou econômico (o centro ur-
creto, marcado entre as gerações pre- ram aproximar aspectos como as bano) e um território adjacente,
cedentes e a nossa”, como diria representações simbólicas e as do qual tirava seus meios de sub-
Benjamin (1986, p.223). práticas conscientes, a micro-his- sistência. Por ser pequena em
Essas questões foram coloca- tória e a macro-história, mesmo área e população, convencio-
das pela Nova História, sobretu- considerando as dificuldades nou-se denominá-la cidade-Esta-
do a partir dos anos 60, e, em es- dessa proposta, a exemplo do do. O regime da cidade-Estado,
pecial, pela História das Menta- que afirma Le Goff: nas suas variantes, existiu na
lidades, que trata da psicologia Grécia, entre os séculos VIII e IV
coletiva, fazendo fronteira com “a história das mentalidades (...) si- a.C. e na Roma republicana, en-
tua-se no ponto da fusão do indivi-
a psicanálise, mas não se confun- dual e do coletivo, do longo tempo e
tre os séculos VI e I a.C.
dindo com ela. As “mentalida- do quotidiano, do inconsciente e do As marcas da cultura grega
des” se ocupam das estruturas intencional, do estrutural e do impregnaram inegavelmente, o
mentais de base, da maneira de conjuntural (...); a história das men- mundo romano, embora seja di-
sentir e pensar de um povo, de talidades não pode ser feita sem es- fícil avaliar com precisão a exten-
tar estreitamente ligada à história
um grupo, nos seus traços mais dos sistemas culturais, sistemas de
são desse fenômeno. Guardadas
gerais (e não estritamente racio- valores, de equipamento intelectual as especificidades de cada uma
nais), subjacentes à realidade no seio dos quais as mentalidades são (instituições e desenvolvimento
material, mas a esta necessaria- elaboradas, viveram e evoluíram.” diferenciados), podemos dizer
mente ligados. A sua investiga- (Le Goff, 1976, p. 76) que as duas culturas estão liga-
ção não se coloca na esfera dos das por laços de similitude e
fenômenos sociais objetivos, mas substanciais continuidades. Se-
se dirige à representação desses gundo Moses Finley, “a própria
fenômenos, expressos nos docu- O berço da res classificação de cidade-Estado suben-
mentos e monumentos constru- tende a existência de elementos co-
ídos a partir do imaginário cole-
publica: A muns suficientes para justificar a
tivo. Na linha proposta por cidade-estado fusão de Grécia e Roma pelo menos
Georges Duby e Jacques Le Goff, como ponto de partida.” (Finley,
as “mentalidades” são colocadas aristocrática 1983, p. 23). Assim, a análise re-
no centro do corpo social, utili- ferente às cidades gregas nos
zadas como o meio de esclareci- De acordo com o Novo Dicio- permite conhecer, em parte, o
mento do real. Nesse caso, elas nário Aurélio, o termo República processo vivenciado por Roma,
estão assentadas numa totalida- é definido como “uma organização alguns séculos depois.
de histórica que inclui, simulta- política de um Estado com vistas a A princípio, Grécia e Roma
neamente, a civilização material servir à coisa pública, ao interesse eram notavelmente parecidas na
(o trabalho, a economia, as leis) comum”. A política – compreen- sua organização: eram comuni-
e os aspectos espirituais (sonhos, dida como métodos e táticas for- dades agrárias, em que os confli-
mitos, crenças, representações), mais e informais, como o gover- tos sociais, tão centrais na fase ar-
articuladas numa mesma estru- no é conduzido e as decisões são caica, ocorriam regular e exclu-
tura e integradas no movimen- tomadas e, ainda, a ideologia do- sivamente entre os credores aris-
to histórico global. minante – situa-se entre as ativi- tocráticos proprietários e os de-
Assim, cada sociedade parti- dades mais excepcionais do vedores camponeses. A aristo-
cular, cada micro-história é inte- mundo clássico. Com efeito, ela cracia detinha o monopólio do
grada numa duração global, re- foi uma invenção grega, ou tal- poder e da autoridade, tanto for-
cuperando a idéia básica da his- vez, invenções separadas dos malmente quanto de fato. Tam-
tória como processo (social) e, gregos, etruscos e/ou romanos, bém possuía a maior parte da ri-
dessa forma, preservando a pró- no âmbito da cidade-Estado – queza, isto é, o controle dos re-

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Heloisa Guaracy Machado

cursos produtivos e da mão-de- O próprio termo política vem de veu grandes alterações no direi-
obra, utilizados na aquisição de polis que, no sentido clássico, sig- to primitivo, baseado na religião
armamentos e de cavalos, na im- nificava um “estado que se go- e controlado pela nobreza de
portação de metais, na constru- vernava a si mesmo”. Assim, sangue, a quem era atribuída
ção de navios e de obras públi- uma estreita ligação com os an-
cas. Seu sistema social estrati- “o fenômeno geográfico e político as- cestrais míticos ou heróicos, o
sociavam-se de tal modo que, na lín-
ficado e hierárquico permitia, no gua grega, ‘polis’ era ao mesmo tem-
que a credenciaria como intér-
entanto, a incorporação dos ci- po uma expressão geográfica e uma prete das vontades dos deuses.
dadãos(*) de “segunda categoria” expressão política, designando tan- A primeira dessas alterações foi
(camponeses, artesãos e comer- to o lugar da cidade, quanto a popu- a publicização das leis, que per-
ciantes) à comunidade política. lação submetida a sua soberania.” deram o seu caráter de canto sa-
(Peçanha, 1979, p.VI).
E mesmo os conflitos político- grado e misterioso, revelado
sociais, às vezes graves, não im- A formação da polis aristocrá- apenas ao grupo privilegiado. A
pediram a experiência de alguns tica, em parte da Grécia, corres- inscrição do Código de Drácon
séculos de existência estável, pondeu à constituição de um no- nos muros de Atenas, no século
além de um forte sentimento de vo ethos, resultante das transfor- VII a.C., marca uma época na
identidade entre os cidadãos, mações demográficas, econômi- história do direito, mesmo con-
com foros inequívocos de legiti- cas e sociais, quando as relações siderando a tendência claramen-
midade, assegurados por meca- de parentesco, de cunho tribal e te aristocrática do código. Modi-
nismos ideológicos, como a reli- monárquico foram absorvidas ficaram-se, então, a natureza da
gião e a crença na lei. pelas relações de vizinhança, de lei e seu fundamento: esta pas-
A cidade-Estado é considera- caráter urbano, no século VIII sava ao domínio público, sendo
da a espinha dorsal da socieda- a.C. A polis é um artefato cons- sancionada pela cidade. Pressi-
de clássica, o elemento catalisa- truído pelo homem e sua sim- onados pela plebe armada, os
dor sem o qual essa civilização ples presença pressupõe um chefes aristocráticos tiveram de
permaneceria ininteligível. De controle técnico da natureza. Na abrir mão do poder de determi-
acordo com Ciro Flamarion Car- linguagem filosófica poderíamos nar, segundo a sua vontade, as
doso, dizer que ela representa a pas- fórmulas que deveriam pautar a
sagem do mito ao logos: o discur- vida social e política. Estabele-
“foi uma novidade sem precedentes ceu-se uma relação direta entre
e de enorme alcance o fato de que, so mítico (ou mágico), cuja or-
dem era explicada por fatores so- o Estado e o cidadão comum
num determinado período da histó-
ria da Antigüidade, camponeses, ar- brenaturais, integrados às orga- que, tendo acesso à lei, podia in-
tesãos, pequenos comerciantes e nizações gentílicas, tribais e emi- vocá-la e mover ação em justiça.
eventualmente, mesmo cidadãos to- Novas regras vieram gover-
talmente desprovidos de recursos te- nentemente rurais, foi suplanta-
do pelo discurso científico – logos nar a sociedade, ainda que te-
nham podido participar do governo
– que explicava a realidade atra- nham sido conservados muitos
de suas comunidades, mesmo de for-
ma limitada. Cidadania, participa- vés de princípios racionais e na- aspectos da antiga organização
ção política, democracia: eis aí no- turais, imanentes à realidade fí- gentílica e a religião se mantives-
ções básicas e atuais que foram ven- se como pano de fundo. O prin-
tiladas pela primeira vez no mundo sica. Dito de outro modo, a cida-
de grega desenvolveu um prin- cípio regulador das instituições
das cidades-Estados antigas.” (Car-
cípio implícito de coerência ra- passou a ser o interesse público,
doso, 1985, p. 74).
cional, que tornava mais fácil à superior às vontades individu-
Mas a cidade grega, em espe- razão consciente aplicar-se à so- ais: aquilo que os gregos chama-
cial, parece ter lançado os fun- lução dos problemas da associa- ram to koinon e que os latinos,
damentos políticos que nortea- ção política. dois séculos mais tarde, chama-
riam as gerações subsequentes. O regime da cidade promo- riam res publica, suplantou a ve-

(*) Elementos do sexo masculino, maiores de 18 anos, devidamente registrados. Na cidade grega aristocrática exigia-se, ainda, que um dos
pais tivesse nascido na cidade, diferentemente de Roma, onde o conceito de cidadania era mais fluido.

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De Res Publica e de República: o significado histórico de um conceito

lha religião. A nova ordem ele- senvolvimento romano foi de poneses, residentes urbanos e,
geu o sufrágio o principal instru- uma ordem bem diferente, qua- mesmo de estrangeiros, é uma
mento do governo, das institui- litativa e quantitativamente fa- longa história que não cabe des-
ções, e regra do direito. As anti- lando. É sabido que a liderança crever no momento.
gas constituições absolutas e política foi monopolizada pelo Importa-nos salientar, como
imutáveis, calcadas nos ditames setor mais rico da cidadania du- uma primeira constatação possí-
do culto religioso, foram substi- rante a era da cidade-Estado, até vel, que a configuração da práti-
tuídas por leis fixadas, mas flexí- mesmo sob o regime democráti- ca política está necessariamente
veis, suportes da legitimidade co. Mas em Roma esse aspecto vinculada ao advento da cidade,
política. Perguntaram a Sólon, foi muito mais acentuado, com ao regime aristocrático e a um
grande legislador da fase arcai- uma camada relativamente pe- quadro institucional de certa
ca ateniense se ele julgava haver quena auto-perpetuada no po- complexidade, mais adequado
dado à sua pátria a melhor cons- der. O Senado – o conselho ro- às novas exigências trazidas pela
tituição: “Não, respondeu ele, mas mano – era exclusivamente aris- vida urbana e aos múltiplos in-
aquela que melhor lhe convém”. tocrático e constituía a principal teresses de sua população.
(Coulanges,1981, p. 28) instituição romana, restando à
Algumas cidades gregas leva- Assembléia popular (o principal
ram esse princípio – o interesse órgão da democracia grega) um
comum – ao seu expoente máxi- plano secundário na estrutura
mo, ou seja, à prática democrá- política. Enquanto em Atenas as Dos fundamentos
tica. Em Atenas, expressão mai- decisões dependiam da aprova-
or da democracia, não resta dú- ção da maioria dos cidadãos (a
à elaboração
vida de que o debate foi contí- própria essência do regime de- do conceito
nuo, intenso e público. Pela pri- mocrático), em Roma, qualquer
meira vez na história, o governo ação governamental dependia res publica
passara a ser exercido pelo con- da anuência do Senado aristo-
junto de cidadãos – o demos – crático, como atesta o senatus
que, participando diretamente consultum ultimum: A despeito da associação fre-
da Assembléia Popular, decidia, qüentemente estabelecida entre
através do voto, os destinos da “O Senado se arrogava o direito de exercício político e democracia,
determinar quando existia um esta-
polis. A Assembléia era a princi- verificamos que não há uma re-
do de emergência de tal gravidade
pal instituição do regime: os con- que justificava a suspensão dos di- lação unívoca entre ambos, do
selhos e as magistraturas lhe reitos fundamentais dos cidadãos ro- ponto de vista histórico. A cida-
eram subordinados. No exercício manos: em suma, o Senado identifi- de-Estado de Roma (diferente-
do direito cívico, dois conceitos cou-se com a res publica”. (Finley, mente de algumas cidades gre-
1983, p. 15).
eram fundamentais: isonomia, gas) não só desconheceu a de-
igualdade (dos cidadãos) pe- Nas assembléias romanas não mocracia, como conduziu a sua
rante a lei e isegoria, direito igual havia debate, apenas uma vota- República até o Império despó-
de falar na Assembléia. A demo- ção para aprovar ou rejeitar os tico. A República nasceu e se de-
cracia é, por excelência, o gover- projetos de lei que o magistrado senvolveu em solo aristocrático,
no da discussão, e a liberdade de apresentava de antemão. Os tri- o que não invalida o caráter do
expressão era um direito de nas- bunais de justiça eram solida- avanço histórico ocorrido com a
cença em Atenas. mente reservados à elite políti- sua instalação. Isto porque a or-
Nem todas as cidades-Esta- ca, não lembrando em nada os dem republicana se sustentava
dos gregas atingiram a democra- júris populares de Atenas. Como através de regras predominante-
cia, permanecendo oligárquicas foi que a elite romana conseguiu mente laicas, racionais e cons-
(em alguns casos, monárquicas), restringir a tal ponto a participa- truídas socialmente, configuran-
como aconteceria também à fu- ção popular, apesar da inclusão, do um grau de elaboração bem
tura Roma republicana. O de- na comunidade política, de cam- mais sofisticado, se comparado

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Heloisa Guaracy Machado

à simplicidade da estrutura ção. Ainda assim não podemos forma, A República platônica
monárquica, sagrada e mítica. nos esquecer de que, conforme apresentava soluções para o
No entanto, as cidades demo- assinala Finley, “todo ato público aperfeiçoamento do sistema, in-
cráticas e aquelas aristocráticas na Antigüidade era precedido de dicando, entre outras, a criação
eram regidas por uma ideologia, uma tentativa de obter ‘apoio’ sobre- de uma classe especializada de
comum, até certo ponto, às duas natural, através de preces, sacrifíci- governantes e um órgão para a
formas de regime. Assim, a pro- os e promessas” (Finley, 1983, p. realização do bem comum. A Re-
posição interminavelmente afir- 114), inclusive na Grécia e em pública funcionava como uma
mada por gregos e romanos é Roma. espécie de manual para o Esta-
que a condição essencial para Platão e Aristóteles foram os dista, papel reservado aos filóso-
uma verdadeira polis e para a primeiros pensadores sistemáti- fos, na divisão de funções esta-
“vida boa” pressupõe “o gover- cos e os primeiros teóricos polí- belecida por Platão. Esse cunho
no pelas leis, não pelos homens”. ticos autênticos da Antigüidade. prático pode ser sempre encontra-
Essa pretensão à virtude é defen- Os primeiros a tentarem uma do no pensamento grego. Como
dida por Platão na sua obra descrição completa e coerente da Aristóteles, Platão buscava o Es-
Politéia, mais conhecida como A organização ideal da sociedade, tado ideal em que os conflitos fos-
República devido, provavel- assente na metafísica, na episte- sem transcendidos no interesse da
mente, às traduções romanas mologia, na psicologia e na éti- vida boa para todos, mas insistia
posteriores. Democracia e oli- ca. Eles trabalharam e escreve- em afirmar que nenhum Estado,
garquia compartilhavam essa ram num nível de abstração, re- passado ou presente, atingira ou
mesma pretensão. Mas devemos finamento e generalização filo- se aproximara desse objetivo.
esclarecer que o critério que exi- sófica tão elevado, que, freqüen- Os gregos foram muito lidos
gia leis fixas e publicamente co- temente, colocava-se fora do al- em Roma e o modelo democrá-
nhecidas era marcado por um cance de seus compatriotas. tico chegou mesmo a servir de
raciocínio eminentemente práti- Na reflexão política grega, o inspiração para alguns legislado-
co e pela prudência: a crença no Estado era concebido como uma res e tribunos, como os Gracos,
interesse comum significava a pro- associação ética para a busca da embora sua implementação es-
messa de estabilidade, a capaci- virtude, como também um ins- barrasse nos ditames da estrutu-
dade de evitar o conflito fre- trumento de justiça. A ciência ra aristocrática. Como já foi res-
qüente e sua forma extrema, a política, nesse caso, deveria de- saltado anteriormente, a Repú-
guerra civil. terminar o que era o “Bem” para blica romana permaneceu aris-
O princípio do interesse co- a sociedade, concretizado atra- tocrática ao longo de sua histó-
mum – base da teoria política gre- vés da ação política. A Repúbli- ria, não tendo a mesma necessi-
ga – iria nortear o pensamento ca de Platão reflete bem esse es- dade de enfrentar o complexo
romano e toda reflexão política pírito, trazendo uma preocupa- quebra-cabeça de disposições
ocidental. A reflexão política se ção em salvaguardar o princípio constitucionais, que caracteriza-
iniciou, efetivamente, com os vital do interesse comum, seria- ram a democracia grega. Talvez
gregos, cuja mentalidade foi mente abalado com a crise da de- por isso os romanos jamais te-
profundamente marcada pelo mocracia (no século IV a.C.) e o nham desenvolvido a teoria e a
racionalismo. Diferentemente de lento esfacelamento de suas ins- discussão políticas de forma tão
seus contemporâneos orientais, tituições. Platão aponta como exuberante como ocorrera na Pe-
cuja visão de mundo era rigoro- principal malefício do regime nínsula Balcânica.
samente ditada pela religião, os democrático a manipulação da Foi somente no século I a.C.
gregos trilharam o caminho do Assembléia por demagogos que, (quando a República agonizava),
pensamento intelectual, procu- com sua oratória brilhante, mo- com Cícero, que Roma pôde pre-
rando apreender a realidade sob nopolizavam os debates e obti- senciar uma reflexão política do
o ponto de vista da razão, e es- nham os votos necessários para gênero da que os gregos tinham
peculando sobre tudo aquilo que aprovação de seus projetos e de estado familiarizados desde o
lhes causava espanto e admira- suas ambições pessoais. Dessa século V. Cícero estabeleceu os

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De Res Publica e de República: o significado histórico de um conceito

fundamentos da República, cal- ra por muito tempo os destinos dade política e o arcabouço ins-
çados, a exemplo das cidades da comunidade, quando esta titucional. Couberam aos roma-
gregas, no princípio do interesse ainda era conduzida sob o signo nos a criação da terminologia res
comum, embora se distinguisse do sagrado e do mistério. publica e a sistematização do con-
daquelas na execução prática do O conceito res publica, ao con- ceito, fazendo da civitas latina
conceito. A sua obra dileta, De trário, sugere um momento de uma experiência republicana
Res Publica, pelo título e pela abertura da participação cívica, efetiva, calcada na idéia funda-
forma dialogada, revela a marca simbolizada na formulação de mental do interesse comum.
do texto homônimo de Platão. A uma terminologia claramente
obra inclui comentários sobre o popular, cujo significado, pro-
funcionamento e o “espírito” do fundamente arraigado nas men-
sistema político romano, notada- talidades, gozava de ampla res-
Os princípios
mente os métodos pelos quais a sonância na cultura romana. da res publica na
plebe era tão completamente Como afirmamos anteriormen-
mantida sob controle. Nela en- te, a vitalidade de um conceito modernidade
contramos a definição clássica de depende de sua integração na
República, citada nos livros I e III: práxis social. Mas, em solo roma- A concepção moderna de Re-
no, a marcha da consolidação da pública – que atravessa a con-
“É pois a República coisa do povo, cidadania pobre e de suas reivin- temporaneidade – preserva par-
considerando tal, não todos os ho- te dos princípios originais men-
mens de qualquer modo congrega-
dicações não teve prossegui-
dos, mas a reunião que tem seu fun- mento, tendo sido interrompida cionados, conforme indica a de-
damento no consentimento jurídico em algum momento de sua his- finição atual, encontrada no No-
e na utilidade comum (...) aquilo que tória. vo Dicionário Aurélio: a Repú-
tem o seu funcionamento na igual- Os seus fundamentos básicos, blica é uma “organização política
dade dos direitos e na comunhão de de um Estado com vista a servir ao
interesses (...) a ‘coisa pública’ é ver-
no entanto, eram os mesmos que
dadeiramente coisa do povo, sempre haviam inspirado a democracia interesse comum”, ou ainda, “um
que administrada com justiça e sa- grega; os critérios eram seme- sistema de governo em que um ou
bedoria”. (Cícero, 1932, p. 45-143) lhantes e o princípio do gover- vários indivíduos eleitos pelo povo
no da lei se mantinha. A grande exercem o poder supremo por tempo
O vocábulo povo se refere, linha divisória entre as cidades- determinado”. Parece que o gran-
nesse caso, exclusivamente ao Estados democráticas e oligár- de diferencial entre a concepção
conjunto dos cidadãos na posse quicas girava mais em torno de clássica e a moderna está no seu
plena dos seus direitos cívicos. suas formas de governo e a con- fundamento ético. A polis grega,
O termo República, ou Res Publi- dução da política, do que sobre núcleo original da reflexão polí-
ca, tem o significado de coisa pú- os princípios que as norteavam. tica, era uma sociedade funda-
blica. Nos Dicionários Latino- Diante do exposto, torna-se mentada numa ética coletiva. O
Português e Latino-Vernáculo possível uma segunda constata- interesse comum e o bem comum
Res é tratado como coisa, objeto, ção: a estrutura republicana é foram tratados como uma coisa
ser, e Publica, palavra feminina, grega, mas o conceito Republica só. O Estado, confundido com o
traz o sentido original de mere- é romano. Os gregos introduzi- governo, tinha, para Aristóteles,
triz, ou seja, aquela que perten- ram os mecanismos essenciais ao um estatuto ontológico, imbuí-
ce a todos. As formas publicus, pu- funcionamento da República: o do de espírito moral, não se re-
blicum correspondem ao que é regime da lei, a noção de cida- sumindo a uma composição de
geral, ordinário, vulgar, do que dania, a eleição dos magistrados funções. A racionalidade políti-
concerne ao povo e ao bem co- pela Assembléia, o caráter cole- ca clássica era essencialmente
mum. Essas noções, ao que pa- giado e rotativo dos cargos pú- teleológica: as teorias, de Platão
rece, se constituíram em oposi- blicos, noções essas capitaneadas a Cícero, trazem o finalismo da
ção aos privilégios políticos de pelo princípio do interesse co- idéia do Bem. A melhor constitui-
uma elite religiosa que domina- mum, que sustentava a legitimi- ção seria, nesse caso, aquela que

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 7-15, out. 1995 13


Heloisa Guaracy Machado

ordenasse as condições mais ade- da, nos últimos anos, pelos con- política efetiva e de igualdade de
quadas para a realização de um flitos políticos, étnicos, religiosos oportunidades. Esse panorama
fim – a justiça, na cidade – unin- e sócio-econômicos. Hannah se expressa no arcaísmo dos nos-
do a ciência do Bem e a ação polí- Arendt, por exemplo, no seu li- sos quadros institucionais, tradi-
tica, a ética e a política, segundo a vro Entre o Passado e o Futuro cionalmente marcados pelo fisi-
mesma razão. aponta para o impasse do pen- ologismo, pelo nepotismo e ou-
Essa associação se desfez, de samento contemporâneo, decor- tras posturas discutíveis, num
acordo com o Padre Henrique rente da dissolução dos padrões contexto dramático de crise so-
clássicos greco-romanos e a sua cial e econômica agudas. Trata-
Vaz, na teoria política moderna.
transformação em valores “fun- se também de uma crise ética
Maquiavel, a exemplo de Platão,
cionais”. Segundo a autora, com que exige uma redefinição dos
descreveu certas regras de ação
o advento da modernidade, os valores e das regras para uma
para o chefe de Estado, o Prínci-
conceitos formulados na tradi- ação política eficiente, conscien-
pe, com a finalidade de consoli-
ção clássica se apartaram da rea- te e conhecedora das demandas
dar o seu poder. Mas O Príncipe
lidade fenomênica, tornando públicas mais urgentes. Uma ta-
– expressão da mentalidade vei-
“formas ocas” as palavras-chaves refa que ainda se encontra na sua
culada pela Renascença, no con-
da linguagem política, o que gera fase embrionária de implemen-
texto de afirmação do individu-
uma profunda lacuna, a ser, ne- tação e que envolve a sociedade
alismo burguês e do sentimento
cessariamente, corrigida. Por brasileira no seu conjunto, ou
nacionalista – não traz as razões
isso, ela propõe o resgate de par- seja, a sociedade política e a so-
de ordem moral do tipo grego,
te dessa tradição, numa nova ciedade civil.
pois o objetivo básico se tornara
perspectiva metodológica, que O redimensionamento da Re-
a obtenção de uma eficácia dos
promova a circularidade entre pública brasileira requer, na di-
resultados, perseguida no exer-
fatos e teorias, retornando a cer- reção indicada por Hannah
cício do poder. A política passou
tos conceitos básicos “tais como Arendt, um aprofundamento ra-
a ser identificada com a técnica
liberdade e justiça, autoridade e ra- dical do conceito República e de
do poder:
zão, responsabilidade e virtude, po- seu fundamento ético, do senti-
“O fazer e o produzir se tornaram der e glória” (Arendt, 1972, p. 41). do coletivo nele implícito, ou se-
fins em si, submetendo todos os mei- Esse exercício intelectual pode- ja, a realização da justiça social e
os e rejeitando os fins propriamente ria contribuir para o alargamen- do interesse comum dos cidadãos.
éticos.” (Vaz, 1983, p.9). to da reflexão política do século Quem sabe, num futuro próxi-
XX, através da inserção de per- mo, possamos fazer da nossa Res
Por conseguinte, podemos di- guntas relevantes no quadro de publica uma democracia de fato,
zer, na forma de uma constatação referência da perplexidade con- a serviço das necessidades da
final, que a idéia da vida política temporânea. maioria de uma população, de
no Ocidente moderno não pôde No Brasil, esse impasse atin- modo a integrá-la no exercício
renunciar aos princípios funda- ge contornos muito exacerbados, pleno da cidadania.
mentais da herança clássica: a le- haja vista a gratuidade de certas O tema é extenso, complexo
gitimidade, a realização da justi- falas político-partidárias, em que e não se esgota nas considera-
ça e o interesse comum. Tais prin- a consistência cede lugar a uma ções levantadas. Todavia, quere-
cípios estão presentes no modelo retórica oportunista. No Estado mos crer, valendo-nos das pala-
democrático burguês, que carac- brasileiro os postulados demo- vras de Ciro Flamarion Cardo-
teriza grande parte das Repúbli- cráticos se afirmam no plano do so, que
cas Ocidentais contemporâneas. discurso e da teoria, principal-
Mas aqui eles seguem uma orien- mente: a prática política parece “Os exemplos apresentados devem
tação distinta, desviando-se do estar mais próxima do modelo ter sido suficientes para mostrar que
postulado ético original. a temática da cidade-Estado e sua ra-
republicano clássico-romano,
Alguns teóricos atribuem a cionalidade intrínseca constitui o
voltada para os interesses priva- ponto focal do conjunto de estudos e
esse hiato a responsabilidade, ao dos de uma elite econômica e pesquisas que se voltam para a elu-
menos parcial, dos sintomas de burocrática, que ignoram a gran- cidação da história da Antigüidade
crise generalizada por que pas- de massa de excluídos, aviltados Clássica.
sa a sociedade ocidental, agrava- nos seus direitos de participação

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De Res Publica e de República: o significado histórico de um conceito

Entre nós, no Brasil, a atual conjun-


tura política tem provocado um novo Referências bibliográficas
interesse por tal história, por ter sido
a civilização da cidade-Estado a pri- ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.
meira a se colocar as questões relati-
vas à legitimidade do poder, à parti- BAKER, E. Teoria política grega. Brasília: Editora UnB, 1978.
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que lhes deu diferem das que hoje são Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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mulado pela primeira vez, garantem-
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século em século”. (Cardoso, 1985,
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Liana Maria Reis

VIVENDO A LIBERDADE: FUGAS E


ESTRATÉGIAS NO COTIDIANO
ESCRAVISTA MINEIRO

Liana Maria Reis


Departamento de História da PUC•MG

O
RESUMO s anos de 1980 e 1990 marcam um
O objetivo do artigo é resga- importante momento da produção
tar as estratégias cotidianas for-
jadas pelos escravos na província historiográfica brasileira acerca da
mineira entre os anos 1850 a
1888, através da análise dos escravidão. Essa produção vem tomando no-
anúncios de fuga registrados no
vários periódicos da época.
vas direções, buscando resgatar as várias ativi-
dades econômicas informais dos escravos e sua
inserção no sistema econômico em geral; vem também discutindo a
flexibilidade do escravismo (no meio rural e urbano) no que se refere
às novas formas em que se estabeleceram as relações senhor/escravo:
negociações ou acordos sistêmicos. Esses estudos acabam suscitando e
revendo questões tais como a violência, o paternalismo e o processo de
reificação do escravo, rompendo com determinados estereótipos cria-
dos, segundo os quais ora o escravo era visto como ser totalmente pas-
sivo, submisso e incapaz de reagir à dominação e exploração às quais
estava submetido, ora percebido como ser totalmente inconformado e
rebelde. Muitos estudiosos buscam resgatar o cotidiano das relações
sociais escravistas através da análise de novas fontes, reconstituindo

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Vivendo a liberdade: fugas e estratégias no cotidiano escravista mineiro

as ações, percepções próprias, es- versificada e a predominância da precipitação final do processo de


tratégias e mecanismos de luta pequena e média posse de escra- transição para o trabalho livre. Isto
se daria porque, não podendo ser a
construídos, no dia-a-dia, pelos vos – o que ampliava a base so- fuga considerada uma atividade cri-
escravos e alforriados no contex- cial de sustentação do próprio minosa stricto sensu, ela acabaria
to escravista brasileiro(1). Segun- sistema escravista – demandava por impor o envolvimento, de forma
do Maria Helena Machado a concentração de cativos no crescente, de setores livres da popu-
meio rural.(3) Novas fontes cons- lação e, com isso, sua repressão pas-
“a historiografia da escravidão esfor- saria a depender tanto do apoio da
tituem apenas amostragens, po- comunidade, quanto da extensão da
ça-se hoje para superar as visões pes-
simistas a respeito do escravo e do
rém são significativas. Dos 620 repressão a outros setores da popu-
liberto, mergulhando nas fontes do- anúncios de fugas individuais lação que não o escravo”. (Gebara,
cumentais que permitem reconstruir publicados em 70 títulos de peri- 1988, p.123).
a realidade da escravidão não neces- ódicos(4),189 (30,48 %) ocorreram
sariamente sob um ponto de vista he- no meio urbano e 431 (69,52 %) Os anúncios de fuga demons-
róico, mas realista”. (Machado,
1988, p.160)
no meio rural, sugerindo a mai- tram claramente esta participa-
or utilização da força de traba- ção da comunidade na localiza-
Neste artigo pretendemos lho escrava nos setores agrários ção do fugitivo, ao mesmo tem-
contribuir para o resgate das es- e atividades afins. po em que informam a existên-
tratégias cotidianas forjadas pe- É sabido que a fuga represen- cia de laços de solidariedade ou
los escravos no contexto provin- tava uma ameaça radical ao sis- de interesses econômicos estabe-
cial mineiro, particularmente no tema na medida em que impe- lecidos entre escravos e demais
período compreendido entre os dia a extração do trabalho exce- indivíduos daquela sociedade. É
anos de 1850 a 1888. Partiremos dente, objetivo básico do escra- o que fica evidenciado através da
da análise dos anúncios de fuga vismo, desestruturando o pro- palavra “consta”, indicando in-
de escravos publicados nos jor- cesso de produção e negando o formações dadas ao senhor so-
nais da província de Minas Ge- direito de propriedade(5). Entre- bre o paradeiro do cativo.
rais(2), os quais possibilitam iden- tanto, para o entendimento do É sabido que a fuga, sendo
tificar as formas de luta e meca- significado histórico da fuga e uma contradição do escravismo,
nismos de defesa e sobrevivência suas múltiplas implicações na pois sua ocorrência originava-se
construídos pelos cativos na bus- dinâmica social, faz-se necessá- da própria existência do escravo,
ca de sua liberdade. rio considerar que os diversos poderia ser motivada por razões
atos de rebeldia escrava tiveram diversas. A separação dos fami-
pesos políticos distintos nos di- liares pode ter sido o motivo da
ferentes momentos do desenvol- fuga do escravo Francisco, criou-
Impulso para vimento do sistema escravista. lo de 35 anos, que andava “sem-
No período aqui tratado, concor- pre de alpercatas por soffer cravos
a fuga damos com a afirmação de Ade- nos pés”. Gostava de andar com
mir Gebara para quem, dentre tropa, mas tinha “desembaraço
A especificidade do desenvol- outros protestos para qualquer serviço”, e provavel-
vimento da economia mineira mente era escravo de aluguel –
no século XIX, caracterizada por “as fugas foram um fator de impor- prática muito usual na provín-
uma base produtiva agrária di- tância fundamental para forçar a

(1) Destacamos, entre outros, os trabalhos de LARA (1988), ALGRANTI (1988), SILVA e REIS (1989) e CHALHOUB (1990).
(2) Os jornais consultados pertencem ao acervo do Arquivo Público Mineiro.
(3) No decorrer do século a população provincial cresceu consideravelmente. Em 1831/40 a população livre somava 75.477, enquanto a
escrava era de 34.384, números que sobem, em 1872, para 1.669.276 e 370.459, respectivamente. (LIBBY, 1988, p. 367).
(4) São jornais de diversas regiões da Provincia e de várias tendências políticas que compõem a Seção de Jornais Avulsos do Arquivo Público
Mineiro.
(5) Segundo SILVA (1989, p. 62) “a unidade básica da resistência no sistema escravista, seu aspecto típico foram as fugas, o abandono do trabalho é um
desafio radical, um ataque frontal e deliberado ao direito de propriedade”.

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 16-23, out. 1995 17


Liana Maria Reis

cia mineira(6) – pois dizia o anún- desapareceu ao Dr. João das Cha- com a proprietária do escravo,
cio que Francisco “esteve empre- gas Andrade no dia 25 de maio até aquele momento nada havia
gado oito annos na companhia do de 1856. Ele havia sido compra- sido resolvido, levando Gama a
morro de Sant’Anna”.Ele era “bas- do ao Sr. João Inocêncio de Faria publicar o anúncio, “esperando
tante prosa” e presumia-se forro, “e fugio por não querer hir com o que a dita Srª, ou quem direito tiver
indicativo de um costume do novo senhor, que o comprou”.(9) Bas- ao mencionado escravo” o mandas-
escravo de passar-se por alforria- tante curioso foi o fato ocorrido se buscar.
do quando fugia, o que poderia em 26 de junho de 1867 na fa- Não sabemos o motivo pelo
explicar o fato de o proprietário zenda de Joaquim Antônio de qual João acompanhava Ferreira
querer livrar-se do fugitivo ao Almeida Gama, localizada na – talvez tivesse sido alugado pa-
informar que “logo que o referido Floresta da freguesia da cidade ra exercer alguma tarefa ou aju-
escravo” fosse “preso” e aparecen- de Leopoldina. Naquela data dar na viagem. É possível que
do comprador, ele seria vendido apareceu ali João, crioulo de 25 Roberto Alvarez tivesse real-
“por preço razoável”. Segundo ain- anos, “boa pronúncia”, dizendo mente ordem da proprietária pa-
da o anúncio, supunha-se que que era escravo da Srª D. Joana ra vendê-lo ou desejava aprovei-
Francisco “tomasse a direcção do Soares Policena, moradora do lu- tar-se da ocasião para vendê-lo
Carangolla pelo facto de lá ter ir- gar denominado Vacalo, adian- por conta própria. Suposição fal-
mãos” (7). O núcleo familiar ou te da cidade de Conceição do Ser- sa ou verdadeira do escravo que,
mesmo a comunidade na qual ro. No anúncio colocado por Ga- estrategicamente, evadiu-se,
fora criado, constituía uma pro- ma no Noticiador de Minas, de procurando auxílio de um fazen-
teção ao cativo “fora da lei”, uma Ouro Preto, datado de 22 de ou- deiro, possivelmente também
segurança da permanência da tubro de 1868, o escravo João proprietário de escravos e defen-
condição de fugitivo. contava sua estória. Dizia ele sor do direito de propriedade,
A venda do escravo para re- como forma de impedir sua pro-
giões longínquas de sua terra na- “que veio em companhia de Roberto vável venda.
tal poderia também ser uma for- Alvarez Ferreira, morador no arrai- Entretanto, o anúncio termi-
te razão para a fuga. Adelino, de al da Abobreira, e que no município nava com um recado para a Srª
de Cantagallo, fugia delle supondo
“côr retinta” fugiu em finais do que o queria vender, e que havia de D. Joana: se ela quisesse vender
ano de 1881 da fazenda Arapoca, voltar para a caza de sua Srª, e que o cativo, mandasse “pessôa autho-
freguesia de São José d’Além Pa- promettia não fugir, até que ella o rizada, porque naquela freguezia
raíba, município de Mar de Es- mandasse buscar”.(10) havia quem quisesse comprá-lo”,(11)
panha, e dizia o anúncio que era o que poderia gerar nova fuga
Diante disto, Joaquim Gama de João, diante de sua recusa de
“a quarta vez que foge e em todas pediu providências ao delegado ter novo senhor.
ellas tem procurado o centro da pro- de seu município, “o qual deixou Seja por qual motivo fosse, a
víncia de Minas, para chegar a Bahia
o escravo nesta fazenda para evitar fuga sinalizava para o cativo a
e dalli ao Ceará, donde é filho”.(8)
despezas a Srª”. E embora o dele- possibilidade de construção de
Em outros casos, a mudança gado tivesse por três vezes ofici- uma nova vida e mesmo a cons-
de proprietário motivava a rea- alizado o fato ao delegado da ci- tituição de um núcleo familiar,
ção escrava. Assim, Claudiano dade do Serro para comunicar ainda que juridicamente o fugi-

(6) Em Minas Gerais alugar escravos era uma prática usada desde o século XVIII, tendo se expandido ao longo do século XIX, principalmente
após o término do tráfico negreiro, devido à alta dos preços de cativos. O setor agrícola parece ter sido aquele que mais se beneficiou com
o sistema de aluguel de escravos, e a Zona da Mata (produtora de café) a região da provincia que concentrava maior número de escravos
jornaleiros no último quartel do século passado (LIBBY, 1988, p.95).
(7) Diário de Minas, Ouro Preto, 5/9/1877, p. 4.
(8) Liberal Mineiro, Ouro Preto, 5/1/1882, p. 4.
(9) O Bom Senso, Ouro Preto, 2/06/1856, p. 4. LARA (1988) chama a atenção para casos ocorridos no Rio de Janeiro, onde escravos interferiam
em sua própria venda.
(10) Noticiador de Minas, Ouro Preto, 22/10/1868, p. 3.
(11) ibidem, p. 3.

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Vivendo a liberdade: fugas e estratégias no cotidiano escravista mineiro

tivo permanecesse escravo, cor- em Ponte Alta nos últimos dias associadas a algum tipo de saber
rendo o risco de ser reconheci- do ano de 1874, “onde se achava ou especialização, o que possibi-
do e preso a qualquer momen- trabalhando por offício de pedreiro”. litava a sobrevivência e o suces-
to. Muitas vezes o sucesso da fu- Acreditamos que esse escravo so da fuga. Vicente, “mulato cor
ga, expresso na sua duração, era fosse alugado, pois constava, no de rapadura”, escravo do padre
garantido pela mobilidade do anúncio de sua fuga, que João Amador de Barros Mello, mora-
cativo, que poderia circular mais levou a quantia de 80.$000 em dor na freguesia de Ouro Fino,
livremente pelas regiões, execu- dinheiro – possivelmente o pre- mesmo tendo “signais de castigo
tando variadas atividades. ço da execução da tarefa exercida nas nádegas”, era tocador de vio-
– e “sahio dizendo que ia procurar la, “alegre e risonho”. Constava
serviço”; entretanto, “não appare- que ele havia fugido “novamen-
ceo” mais. O proprietário descon- te” no dia 10 de abril de 1856 e
Estratégias fiava que o fugitivo “se dirigio à que, quando isto ocorria, Vicen-
cotidianas cidade de Barbacena onde tem conhe- te andava de “carapuça ou lenço
cimento”.(12) na cabeça”, além de mudar o
No transcorrer do tempo, o Esse exemplo mostra a mobi- nome, “sendo conhecido em alguns
escravismo sofreu transforma- lidade do escravo ao sair por lugares da província, e da de São
ções e adaptações no que se re- conta própria e procurar “servi- Paulo por Juca, e Zeca pião, em ou-
fere às formas de exploração e ço”, provavelmente em lugares tros por José Amaro, e José Baptista,
ocupação da força de trabalho onde ele era conhecido, ou tinha etc., tendo-se casado na penúltima
escrava, como o sistema de alu- amigos e parentes, ou mesmo fugida, em que andou nove annos em
guel. Esse sistema, amplamente onde havia trabalhado. Isto de- vários pontos” da provincia minei-
utilizado no Brasil e Estados monstra a flexibilidade do siste- ra. O escravo entendia de “arre-
Unidos, era uma forma de tra- ma escravista no que tange à ar, ferrar, de adornar, e de fazer
balho praticada tanto no campo abertura de campos de possibi- lombilhos, e trançar de laços, etc., de
como na cidade e facultava aos lidades para o escravo, permitin- carpinteiro, alfaiate, e alguma cousa
escravos alugarem seu próprio do-lhe escolher como ocupar seu de ler e escrever, e de ajudar a missa,
tempo e força de trabalho “sem tempo, garantindo sua sobrevi- etc”(13). Esse conhecimento vasto
intermediários”, vivendo em liber- vência e, em momentos propíci- para trabalhar em vários ofícios
dade (Algranti, 1988, p.49/50). os, sua liberdade, ainda que tem- possibilitava ao fugitivo manter-
Isto acarretava problemas graves porária. se durante anos, por conta pró-
para a administração provincial Seria de se presumir que, por pria, inserido no mercado de tra-
(particularmente no meio urba- sua condição de escravos, os fu- balho, provavelmente estabele-
no), cuja função era zelar pela gitivos fossem indivíduos tristo- cendo contratos sob bases não
manutenção da ordem social. nhos, mal-humorados, acabru- escravistas(14). Por outro lado, a
Tarefa difícil para os administra- nhados. Nossos dados, porém, estratégia de mudança de nomes
dores públicos, incluindo os falam de fujões alegres, falantes, contribuía para dificultar sua
agentes da repressão, pois torna- prosas, “políticos”, mesmo tendo identificação e manter o sucesso
va-se complicado identificar a sinais de castigo pelo corpo, das fugas, levando Vicente, in-
real condição social do indivíduo muitas vezes em função de ou- clusive, a contrair matrimônio
nos núcleos urbanos provinciais tras fugidas. Essas características em uma dessas ocasiões, em que
mineiros, como veremos adian- comportamentais poderiam aju- ficou nove anos foragido. Quan-
te. É ilustrativo o caso de João dar o escravo em seus contatos to ao uso da carapuça ou lenço
Africano, que fugiu da fazenda pessoais, especialmente quando na cabeça, vale lembrar a possi-

(12) Diário de Minas, Ouro Preto, 21/1/1875, p. 4.


(13) O Bom Senso, Ouro Preto, 5/6/1856, p. 6.
(14) Sobre o impacto social das fugas na constituição do mercado de trabalho livre na província mineira ver REIS (1991).

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 16-23, out. 1995 19


Liana Maria Reis

bilidade de se tratar de um me- que representavam o poder ins- daqueles nas Guardas Munici-
canismo de identidade cultural titucional, cuja função era man- pais. Em 1884, um escravo fugiu
africana. As variedades de arran- ter a ordem social e reprimir os da cidade de Santa Luzia do Sa-
jos utilizados pelos africanos e infratores das leis, criminosos e bará “em companhia de um ex-sol-
seus descendentes no Brasil escravos fugidos. dado, de nome Manoel Alves (vulgo
correspondiam à variedade de O policiamento da provincia Passarinho), em demanda do Cur-
procedências regionais africanas mineira constituiu um grave velo”(18). Um ano antes, o escravo
e poderiam significar simbolica- problema para as autoridades, José, de 24 anos, fugiu da cidade
mente “proteção”. (Freyre, 1979, ao longo do século, e as tentati- de Formiga, tendo sido visto em
p. 113). vas encontradas para sua reso- São João Del Rei, constando ou
Não seria à toa, portanto, o lução, como a criação das Guar- presumindo-se que ele preten-
uso que Vicente fazia do adere- das Municipais (1873), não sur- dia “assentar praça no corpo de po-
ço à cabeça: servia para atrair a tiam os resultados esperados. No lícia ou exército”(19). Já Cipriano,
proteção de divindades (resis- ano de 1875, o delegado de Polí- cativo do cônego Antônio Cha-
tência cultural religiosa), garan- cia, Antônio Soares de Alberga- ves, que fugiu da cidade de Mon-
tindo a vitória de suas fugidas ria, chamava a atenção do Presi- tes Claros, em 1866, conseguiu
tão prolongadas, a despeito das dente da Província para a crise integrar o corpo policial da capi-
tentativas de capturá-lo. No dia das Guardas Municipais. Além tal da província. Dizia o anún-
15 de maio do mesmo ano de da falta de armamento e di- cio de sua fuga:
1856, Vicente fora atacado por ficuldades de transporte para
uma escolta na freguesia de São agilizar a sua ação, a experiência “Consta que vai com o nome de Ma-
noel Francisco, com o qual fugio de
José de Jaguari, havia demonstrado ser impossí- S. Paulo em 1862, e assentou praça
vel a organização completa das na tropa de linha de Ouro Preto, co-
“a que resistio com uma faca, e uma esquadras municipais. Isso por- mo recruta, sendo em 1863 reivindi-
garruxa dando fogo na escolta, e com cado por seo senhor. Consta que dese-
quanto fosse ferido na cabeça e bra-
que, segundo o delegado, “só se
offerecem, em regra, para esse servi- ja assentar praça; e é natural que seja
ço, todavia escapou-se deixando na recrutado. Leva caminho d’Ouro
peleja até o chapéo, e na caza em que ço indivíduos que, mais que todos,
Preto, e ate a Conceição teve-se delle
se curou, gabou-se que tinha desabu- precisão ser policiados”.(16) notícias”.(20)
ssado a dita escolta, e o mesmo hiria E concluía Albergaria: duran-
fazendo para as partes de Prasunun-
te o ano de 1874 a força policial Novamente percebe-se que a
ga, para onde consta ter-se dirigi-
do”(15). da província foi “composta de pe- mudança de nome era a estraté-
sima gente, desarmada e sem a mí- gia de defesa usual dos escravos,
Além de enfrentar a escolta nima disciplina”.(17) e que naquele momento a pos-
com as armas de que dispunha, Essa situação, entretanto, pa- sibilidade de confirmar a veraci-
a atitude de Vicente em gabar- rece não ter se modificado ao dade da identificação do indiví-
se do feito – escapulindo mesmo longo dos anos de 1870 e 1880 e duo era extremamente limitada,
ferido – expressava a sua valen- nossos dados revelam o possível mesmo se tratando da incorpo-
tia e tenacidade, bem como a fra- estabelecimento de relações de ração num corpo policial. Este
gilidade e incompetência do cor- amizade e solidariedade entre caso vem reafirmar as palavras
po de policiais no cumprimento escravos fugidos e ex-policiais, do delegado Albergaria, no que
do dever. Na realidade, tratava- bem como a tentativa, em alguns tange aos integrantes da polícia
se de um desafio aos indivíduos casos bem-sucedida, de entrada mineira.

(15) O Bom Senso, Ouro Preto, 5/6/1856, p. 6.


(16) Apud Relatório do Presidente da Província Pedro Vicente de Azevedo, Secretaria de Polícia de Minas, 20/17/1875, Apenso 1, p.5.
(17) Idem, ibidem, p. 5.
(18) Liberal Mineiro, Ouro Preto, 6/6/1884, p. 3.
(19) Colombo, Campanha, 31/8/1883, p. 4.
(20) Diário de Minas, Ouro Preto, 3/2/1867, p. 3.

20 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 16-23, out. 1995


Vivendo a liberdade: fugas e estratégias no cotidiano escravista mineiro

Porém, outras estratégias de Não raro, os cativos, para fu- Uma vez preso o colega, An-
sobrevivência foram amplamen- gir da perseguição policial e con- tônio retirou-se para outras re-
te utilizadas pelos fugitivos, al- tinuar na “clandestinidade”, opta- giões, prevenindo-se contra a
gumas com requintes de criati- vam por um outro recurso: a fal- sua identificação e conseqüente
vidade e sagacidade. sificação de documentos. Zaca- aprisionamento. Alguns escra-
A escrava Joaquina da Nação rias, crioulo fula, que fugiu de vos, mesmo quando presos, não
Monjolo fugiu de Ouro Preto em Itabira do Mato Dentro no ano desistiam de tentar novas fugi-
1867, juntamente com o escravo de 1878, costumava mudar o no- das, como o africano Manoel
Camilo e foram me quando se evadia e “sempre” Mendanha que se evadiu de
obtinha “passaporte falso”.(24) Da uma fazenda em Porto Novo da
“encontrados pedindo esmollas em mesma forma, o escravo Cândi- Cunha em fins de novembro de
Catas Altas de Matto Dentro e Pon-
te Nova, a negra fingindo-se cega e
do, há oito anos fugido da fazen- 1876. Como falasse “bem”, pare-
o negro guiando-a, e dizião a todos da do termo da cidade de Piran- cia “crioulo” e tinha sinais de
que lhes perguntavão de onde vi- ga, possuía “carta ou documentos açoites e “pega” espalhados pelo
nham, que desta cidade, e que seo falsos”,(25) o que lhe garantia en- corpo: “elle a primeira vez que fu-
senhor os tinha forrado”(21). ganar as batidas policiais e o su- giu foi preso em S. João Baptista de
cesso da fuga. Esses falsos docu- Minas Novas, e tornou a fugir 2ª
Outros cativos utilizavam re-
mentos poderiam ser desde car- vez e foi preso em Catas Altas na fa-
cursos curiosos de sobrevivên-
tas de alforria até autorização zenda de um dos Srs. Drumonds”.
cia, como o africano Manoel (Na-
dos senhores para a viagem ou Seu Senhor mandou buscá-lo e
ção Congo) que se fingia “muito
a execução de determinadas ta- “elle evadio-se nas immediações do
humilde”, mas era “bastante sagaz
refas em outras regiões. Porto Novo” e tinha costume de
para illudir”.(22) Ou como o escra-
A existência no plantel escra- “dizer que é forro”.(27)
vo Cláudio, que fugiu da cidade
vo de indivíduos alfabetizados Na luta pela liberdade, os fu-
de Queluz, em 1874, sendo “bem
poderia facilitar a aquisição des- gitivos esmeravam-se na cons-
civilisado”, tendo “boa figura” e
ses tipos de documentos, uma trução cotidiana de mecanismos
podendo “com facilidade (...) pas-
vez que a própria condição de de resistência, num jogo de so-
sar por forro”.(23) É interessante
cativo e fugitivo criava redes de brevivência no qual tudo valia:
observar a distinção socialmen-
sociabilidade e solidariedade en- mudar de nome, fingir-se humil-
te feita da figura do escravo e do
tre eles, constituindo, por sua de e deficiente, ser civilizado, va-
liberto. O alforriado era percebi-
vez, estratégias de resistência, lente, usar a força das armas, ar-
do como indivíduo mais “ci-
ainda que provisórias. Tendo fu- riscar novas fugidas, falsificar
vilisado”, ocupando, de fato, um
gido da fazenda Barra do Turvo, documentos e, sobretudo, pas-
lugar diferenciado e superior ao
município da cidade do Piranga, sar-se por alforriado. Tudo era
cativo na estrutura social, embo-
em 1886, o escravo Antônio válido para garantir a sonhada
ra na prática fosse também visto
“liberdade”. Liberdade arriscada e
pela administração e pela socie- “esteve na cidade da Itabira onde tra- difícil de ser mantida numa so-
dade (principalmente se negro) balhou em serviço de pedras para o
ciedade na qual eram persegui-
como elemento cujos passos de- Sr. José Maria Pimenta, com o nome
de José Antônio em companhia de dos, vigiados e marginalizados,
veriam ser controlados e vigia-
um outro escravo que foi preso na- mas que, contraditoriamente,
dos, particularmente se estabe- quella cidade; consta ter seguido pa- também os incorporava à vida
lecesse “relações perigosas” (de ra a Lagoa Dourada com destino a econômica e social.
qualquer ordem) com escravos. cidade do Serro”.(26)

(21) Diário de Minas, Ouro Preto, 19/7/1867, p. 3.


(22) O Bem Público, Ouro Preto, 6/12/1860, p. 4.
(23) Diário de Minas, Ouro Preto, 22/3/1875, p. 4.
(24) A Província de Minas, Ouro Preto, 26/4/1883, p. 4.
(25) ibidem, 19/4/1883, p. 4.
(26) ibidem, 30/5/1886, p. 4.
(27) A Actualidade, Ouro Preto, 18/6/1878, p. 3.

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 16-23, out. 1995 21


Liana Maria Reis

Se a análise da estrutura e que lhe garantia um lugar “lega- prio e, acima de tudo, passar-se
funcionamento do escravismo lizado” na estrutura social, mas por forro.
permite verificar a existência de a liberdade possível. Podemos O sistema de aluguel, propi-
um processo de reificação do es- aventar a hipótese de que em ciando lucros para o senhor,
cravo, o resgate do cotidiano es- casos de sucesso da fuga, a per- abria caminhos para maior auto-
cravista possibilita perceber co- manência na clandestinidade nomia escrava no que se refere
mo homens e mulheres, subme- seria a melhor solução para o à mobilidade e liberdade de cir-
tidos à escravidão, gerenciavam fugitivo. Isto porque nem sem- culação, permitindo ao cativo
suas vivências, ainda que limita- pre possuir pecúlio suficiente estabelecer contatos com indiví-
das estruturalmente. para comprar a carta de alforria duos das diversas condições so-
As reflexões sobre as experi- era sinônimo de liberdade, con- ciais, base de muitas estratégias
ências diárias dos escravos, ori- siderando uma sociedade carac- de luta e projetos de liberdade.
ginadas da leitura das fontes terizada pela pequena e média As autoridades administrati-
documentais, evidenciam agen- posse de escravos, com a minei- vas, embora atentas aos proble-
tes históricos nada passivos, ao ra. Nesta realidade, possuir cati- mas originados dessas “relações
contrário, espertos, inteligentes, vos, ainda que em número redu- perigosas” estabelecidas entre
determinados. Sujeitos com per- zido, era condição básica de so- escravos e demais agentes histó-
cepções próprias, forjadores de brevivência para os senhores e ricos, não conseguiram impedir
várias estratégias, fazendo esco- garantia de status social. Neste a construção de redes de socia-
lhas que atendiam a seus inte- caso, não deveria ser raro pro- bilidade e solidariedade entre os
resses pessoais. Não heróis ou ví- prietários se negarem a conceder indivíduos, mesmo os “fora da
timas, mas indivíduos que sou- a carta de alforria, mesmo medi- lei”.
beram, diante das oportunida- ante pagamento. Soma-se a isto As iniciativas particulares e
des surgidas, optar por cami- o aumento do preço do escravo originais próprias dos escravos
nhos que eles imaginavam que no pós-1850, fortalecendo a ne- eram criadas em suas experiên-
os conduziriam a uma vida me- cessidade de manutenção do cias diárias, na tentativa de alar-
lhor. plantel escravista existente. Por gar o campo de possibilidades
A fuga era um dos mecanis- outro lado, o fugitivo, ainda que para a melhoria de suas condi-
mos adotados pelos escravos na vivendo uma situação de in- ções de existência concreta e pa-
busca da sonhada “liberdade”. segurança, conseguia trabalhar, ra a conquista de uma liberdade
Não a “melhor liberdade”, aque- conhecer pessoas e lugares, vivenciada: uma liberdade his-
la conseguida juridicamente, constituir núcleo familiar pró- toricamente possível.

22 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 16-23, out. 1995


Vivendo a liberdade: fugas e estratégias no cotidiano escravista mineiro

Referências bibliográficas
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LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista de Minas Gerais no século XIX.
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Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 16-23, out. 1995 23


Mônica Eustáquio Fonseca

APARÊNCIAS E APARIÇÕES – ESTÉTICA


BARROCA – A IMAGEM OCULTA

Mônica Eustáquio Fonseca


Departamento de História da PUC•MG

A
RESUMO pesar de o Barroco ser exaustivamen-
Cinco artistas, quatro europeus
e um brasileiro, servem como fon- te tratado, sob os mais diferentes ân-
tes de referência para a elabora-
ção de um tipo de leitura sobre a gulos de visão, ainda restam ins-
estética barroca. Esta implica a
configuração de dimensões que li- tigantes campos nos quais podemos trabalhar.
dam com o “objeto” oculto. A tra-
jetória assim construída institui Um deles é o tratamento que o Barroco dá à ima-
um espaço ilusionista que tende
a nos induzir a dimensões não gem.
capturáveis na imediaticidade do
olhar. Sendo assim, a imagem pro- Quando se diz imagem, indiretamente es-
posta pelo barroco estabelece uma
acessibilidade hierarquizada, que tá-se falando também do olhar, porque a ima-
tem seu ponto de consecução no
acionamento da racionalidade, a gem subentende o olhar. Para os olhos que não
qual se opõe a uma percepção pu-
ramente sensorial e a radicaliza. vêem não há imagem, pelo menos não a ima-
O objetivo desse trabalho é es-
tabelecer a aproximação dos pro- gem real, física, concreta que nos é dada pelo
pósitos expressivos adotados por
esses artistas e encontrar os re- olhar.
cursos formais de que se servem
para chegar a seus fins. Aqui, tomamos emprestado a Ferreira
Gullar uma “tentativa de compreensão”, uma ver-
tente interpretativa através da qual podemos encontrar dois tipos de
olhares no Barroco: um olhar que chamaremos de físico, este que aca-
bamos de citar, que nos oferece a possibilidade de apreender o mundo

24 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 24-27, out. 1995


Aparências e aparições – Estética barroca – A imagem oculta

e a sua realidade visual; e um A Renascença introduz um metria e clareza, o Barroco é exa-


olhar metafórico, aquele que vai olhar decisivo na História da Ar- tamente o contrário: é a irregu-
além da realidade aparente, que te, na história da experiência es- laridade, a assimetria, a paixão, o
penetra num universo oculto e tética do homem. Naquele mo- delírio, o inesperado e o oculto.
reconstrói o mundo e a realida- mento o homem, por uma série A validação do Barroco como
de mesma a partir dessa desco- de razões, constrói um espaço fenômeno estético se deu ape-
berta. harmônico, objetivo, racional. O nas quando o tipo de olhar que
A visão – o olhar – é um ele- Renascimento introduz uma ele construiu sobre as coisas do
mento essencial quando se trata mudança substantiva; ele intro- mundo tornou-se compreensí-
de apreender o fenômeno das duz o mundo moderno, carre- vel. Isso só aconteceu na época
artes plásticas, e no caso do Bar- gado de novos valores da racio- moderna no final do século XIX,
roco, ele é fundamental, já que nalidade, uma certa libertação depois do Impressionismo. Só a
é sobre ele e através dele que se do homem em relação à supers- Modernidade foi capaz de acei-
constitui a estética do Barroco. tição e ao domínio religioso. O tá-lo e compreendê-lo como fe-
A importância da visão na homem constrói por si mesmo nômeno decorrente das múlti-
apreensão da realidade e a sua sua experiência do mundo e pa- plas variáveis que dominaram a
utilização como fundamento ra isso se serve da racionalidade civilização ocidental, resultado
para a construção de um deter- de que é depositário. Cria um es- do intenso trânsito e intercâm-
minado tipo de olhar relacio- paço de razão. Na estética do bio de formas entre as nações. A
nam-se ao fato de que a percep- Renascimento, a perspectiva é o configuração espacial que o Bar-
ção do homem é histórica. instrumento básico dessa nova roco propõe quebra toda a pers-
visão. No período medieval, a pectiva central que havia sido
“O Barroco é um modo de ver a reali- dimensão perspectiva era de ou- implantada com a Renascença.
dade, que surge num determinado
momento da história da visualidade.
tra natureza: o espaço quase sem A Renascença coloca a obra di-
Através da história, o homem apren- profundidade apresentava-a ante da visibilidade de um es-
de a ver, criou modos de ver que desa- eventualmente ambígua, ela não pectador imóvel, num ponto de
pareceram e inventou outros modos” tinha a clareza nem a racionali- vista determinado. O Barroco
(Gullar, 1988, p. 218). dade que passa a ter com o Re- nos faz olhar suas figuras de vá-
nascimento. rios ângulos, elas se mexem, vo-
Assim vemos o mundo com
O Barroco surge no século am sobre nós e se entortam, se
nossa noção da história, enquan-
XVII, inconsciente de si mesmo deslocam em amplas diagonais
to indivíduos e enquanto huma-
mas resultado de uma tentativa para o espaço interior ou saltam
nidade. E não é preciso que co-
derradeira de expressar a gran- sobre nós. Na perspectiva renas-
mecemos tudo outra vez, já que
deza do homem. Para alguns crí- centista, o mundo está enqua-
o fundo da história sobre o qual
ticos e historiadores de arte do drado dentro da cena, dentro da
existimos e nos construímos nos
século XVIII, era absurdo e de tela. No Barroco estabelece-se
permite avançar sobre a experi-
mau gosto. Era visto como uma uma conexão, uma continuida-
ência pregressa.
coisa desorganizada, irregular, de entre o espaço da obra e o es-
Utilizando-nos dos funda-
exibicionista, sinônimo de tudo paço real. O olhar em si é um
mentos conceituais de Wöllflin,
que se considerava como antiar- elemento importante dessa co-
apelamos ao olhar renascentista
tístico, não estético. Somente o nexão. Em Velázquez especial-
para podermos entender com
século XIX resgata o Barroco mente, os olhos brincam conos-
mais propriedade o olhar barro-
como expressão estética válida e co, nos buscam, convidam, se-
co e daí atingir o seu jogo de
como fenômeno estético de alta duzem e através deles aden-
imagem, aquela imagem que nos
qualificação. tramos aquele universo virtual.
sensibiliza fisicamente o olhar e
Assim, enquanto a Renascen- Há, assim, um comprometimen-
aquela que o nosso olhar meta-
ça se caracteriza pelo equilíbrio, to maior com a realidade impor-
fórico constrói, a imagem poten-
pela harmonia, pela racionalida- tante para a compreensão da vi-
cial que permanece oculta.
de das construções espaciais, si- são barroca.

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 24-27, out. 1995 25


Mônica Eustáquio Fonseca

O sentido do real depende ráter estático que prevalecem


basicamente do olhar, mas tan-
O uso das relações como elemento visual em Cara-
to a realidade como a irrealidade espaciais vaggio.
nos são dadas pelo olhar, muito Em Rembrandt, o centro de
mais que qualquer outro senti- A construção interesse não é o contraste mas
do. O Barroco trabalha com a ilu-
são, é uma estética que caminha
do jogo a gradação. Também ele vai jo-
gar com a luz e criar um espaço
ao encontro de um espaço ilu- em volta da figura, maior do que
sionista através da ilusão do olhar, Trabalharemos com artistas em Caravaggio. A articulação
o “trompe-l’oeil”. Assim, se europeus mas falaremos um entre figura/espaço/iluminação é
pouco também de um artista dada a partir da figura, ela é o
“é precisamente porque é pela visão, moderno brasileiro, criado e for- centro irradiador, ao mesmo
é pelo olhar que eu apreendo e assen-
mado na tradição européia, e tempo dada a conhecer pela pe-
to os termos da realidade (que) a arte
que trabalha com a ilusão desse sen- que, de regresso ao Brasil e, em numbra circundante. “Os corpos
tido chega a violentar a noção de rea- especial, após sua transferência de Rembrandt são aparências reve-
lidade com eficácia”. (Gullar: 1988, para Minas Gerais, assumiu a ladas por penumbras” (Venturi:
p. 221) identidade da linguagem visual 1968, p. 110). Toda a sua materia-
de Minas, que é a linguagem das lidade e peso são excluídos, são
Através de um recurso ilusio-
montanhas, da sinuosidade do imagens de paixões. Os corpos
nista, o Barroco cria a dupla di-
traçado topográfico. Esse artis- são espirituais e não materiais,
mensão do olhar e, recorrendo
ta é Alberto da Veiga Guignard. luzes que são sombras. Rem-
a um jogo de imagens, monta o
A curva é o traço das Minas, e é brandt não pinta o que vê mas o
duplo espaço do que é visível,
também o do Barroco. Falaremos que imagina ver. Sua pintura é
apreensível pelo olhar físico, e o
então de Guignard, de Caravag- uma vibração cósmica, a forma
que é oculto mas induzido a ser
gio, de Vermeer, de Velázquez e do invisível! Então pergunto:
visto pelo olhar metafórico. Na
de Rembrandt. por ser invisível, será um ser me-
verdade, o espectador constrói
Cada um deles tem a sua ma- nos real? A realidade (de Rem-
a imagem que não está dada,
neira própria de exercer a dico- brandt) é sentida e se torna for-
percorre um espaço que oscila
tomia sobre a realidade que con- ma de sentimento, sua visibili-
entre o real e o imaginário e que
figura a estética barroca. Cara- dade só é real através do olhar -
atua sobre nós com a realidade
vaggio vai levar até as últimas sentimento do artista. Daí ser di-
das coisas verdadeiras.
conseqüências o efeito de luz e luída a forma plástica e nos de-
Vários instrumentos formais
sombra, que buscou em Ticiano. pararmos com uma iluminação.
foram utilizados pelos diferen-
Estabelece-se uma nova relação Outro aspecto da dimensão
tes artistas que comungaram
entre as figuras e o espaço. O ilusionista desenvolvida pelo
esse olhar vertiginoso-ilusionis-
efeito de luz realisticamente tra- Barroco e que se mostra impor-
ta. Apresentaremos alguns des-
tado imerge áreas imensas da tante para a compreensão de
ses artistas, tentando destacar,
obra em zonas da mais absoluta dois dos nossos artistas é o sen-
na medida do possível, as carac-
sombra. Resulta daí uma ilumi- so intimista que atravessa gran-
terísticas de cada um. Como o
nação fantástica onde a luz e a de parte dessas obras. Intimistas
que nos interessa é perceber o
sombra destacam o que deve ser foram Velázquez e Vermeer, este
sentido do visível e do oculto na
contado e os volumes saltam aos mais do que nenhum outro.
imagem barroca, valer-nos-emos
nossos olhos. Caravaggio, atra- Vermeer levou a sua visão da
em cada artista daquele elemen-
vés do uso de uma luz particu- realidade à dimensão interior do
to chave que nos permitirá essa
lar, imprime no espectador todo homem. Não só o homem no in-
abordagem particular de sua
o impacto visual dos corpos só- terior de seu mundo privado
obra.
lidos, da massa dos objetos, ain- mas, sobretudo, no interior de
da que estejam ocultos. São a si mesmo. Assim, a casa, a mu-
caracterização corpórea e o ca- lher, o quarto, a janela vista de

26 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 24-27, out. 1995


Aparências e aparições – Estética barroca – A imagem oculta

dentro são os temas preferidos “O olhar do pintor, dirigido para fora “No jogo de ilusões do Barroco, as
desse artista. Assim, é o silêncio do quadro, ao vazio que lhe faz face, cidades nunca se mostram de uma só
aceita todos os modelos”. vez, mas se deixam brincar de escon-
pairando, imagem retratada, “O olhar soberano do pintor define o de-esconde, com fugas e contrafugas,
“vista” pelo artista, que é objeto percurso até o lugar invisível do mo- caminhos e descaminhos. Depois de
de nosso olhar. Quando olha- delo e até a figura provavelmente volteios e volutas, ela se mostra ge-
mos para Vermeer, olhamos para esboçada na tela virada”. nerosa e bela, no efeito ótico dos te-
o silêncio, íntimo, imensidão en- “Olhamo-nos (modelo virtual que lhados e nas torres de igrejas.” (Mo-
somos) olhados pelo pintor e torna- rais: 1974, p.72).
tre quatro paredes, às vezes co- dos visíveis a seus olhos pela mesma
nectado ao mundo através de luz que no-lo faz ver”. (Foucault: Guignard abraçou essa paisa-
uma fresta de janela, uma corti- 1987, p. 19, 20, 21). gem e inventariou seus bens. As-
na levantada que deixa desenro- sumindo o jogo infantil de escon-
lar a cena diante de nosso olhar. Em Velázquez a invisibilida-
de-esconde, lançou suas alvas
A visão que Vermeer nos de do objeto chega ao seu re-
igrejas, seus trens de ferro, na
transmite é o rigor sábio, arqui- quinte: ele não mostra aquilo
paisagem que confundia terra e
tetural, de uma espiritualidade que vê (vale lembrar que o pin-
céu, ora verde-azulada, ora cin-
secreta. tor retratado na obra é o próprio
za-esverdeada e fez do grande
Não há obra mais apropria- Velázquez) e, colocados no lugar
silêncio das montanhas seu per-
da do que As Meninas para que daquilo que é visto, somos con-
sonagem, ao mesmo tempo pre-
possamos falar de Velázquez. fundidos como participantes
sente e ausente, visível e invisí-
Não há palavra mais apropria- daquele espetáculo diante do
vel que percorremos movidos
da que a de Michel Foucault qual jamais construiremos certezas.
pela necessidade da descoberta:
para descobrir As Meninas: Segundo Frederico de Mo-
personagem oculto que jamais
rais, o Barroco é mais que um
“O pintor emerge da tela... Fixa um
se revela por inteiro. Nossos
estilo de arte, é um estilo de vi-
ponto invisível... Ele reina no mar olhos descansam em Minas.
da, um comportamento. A pró-
dessas duas visibilidades incompatí-
veis: a tela reserva e o ponto invisí-
pria paisagem mineira é essen-
vel”. cialmente barroca:

Referências bibliográficas
BAZIN, Germain. Barroco e Rococó. São Paulo: Martins Fontes, 1993. (Coleção A).
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
GULLAR, Ferreira. Barroco: olhar e vertigem. In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
MORAIS, Frederico. Guignard. Rio de Janeiro: Centro de Artes Novo Mundo, 1974.
VENTURI, Lionello. Para compreender a pintura, de Ediotto a Chagall. Lisboa: Editorial Estudio-Cor, 1968.
WÖLLFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais da história da arte: o problema da evolução dos estilos na arte mais
recente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 24-27, out. 1995 27


Eduardo França Paiva

A MASSA DESVELADA: COMENTÁRIO


SOBRE QUATRO ESTUDOS E
UMA PERSPECTIVA DE
ANÁLISE HISTÓRICA

Eduardo França Paiva


Departamento de História das Faculdades
Integradas Newton Paiva

RESUMO: Quatro estudos


Este artigo é fruto de reflexões

O
sobre a participação popular nos
processos de transformação na s textos-base deste comentário foram
História. Um dos principais ob-
jetivos é problematizar a utiliza- produzidos nos anos 60 e 70, por
ção inflexível de paradigmas de
análise pouco adaptáveis à inves- historiadores que gozam de grande
tigação de processos ricos, comple-
xos e desconhecidos pela historio- prestígio no cenário historiográfico atual. Em
grafia. Trata-se de identificar e
buscar compreender as variadas ordem cronológica de publicação, são eles: “A
formas de resistência empregadas
por populares, coletiva e indivi- multidão na história; estudo dos movimentos
dualmente. Isso significa, portan-
to, reconhecê-los como agentes populares na França e na Inglaterra 1730-1848”,
históricos, impedir sua redução ao
papel de vítimas indefesas e res- de George Rudé;(1) “La economia ‘moral’ de la
gatar a identidade cultural que
permeou sua atuação. multitud en la Inglaterra del siglo XVIII”, de
E. P. Thompson; (2) “Ritos de violência”, de
Natalie Zemon Davis(3) e “História do medo no Ocidente; 1300-1800,
uma cidade sitiada”, de Jean Delumeau.(4)

(1) O texto foi originalmente publicado em inglês: RUDÉ, George. The Crow in History, 1730-1848. New York, 1664.
(2) Originalmente publicado em inglês: THOMPSON, E.P. The moral economy of the English crowd in the eighteenth century. Past and
Present, Oxford, n. 50, p. 76-136, 1971.
(3) Originalmente publicado em inglês: DAVIS, Natalie Zemon. The rites of violence: religious riot in sixteenth-century France. Past and
Present, Oxford, n. 59, p. 51- 91, 1973.
(4) Originalmente publicado em francês: DELUMEAU, Jean. Lapeur en Occident (XIV-XVIII siècles): une cité assiégée. Paris, Fayard, 1978.

28 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 28-33, out. 1995


A massa desvelada: comentário sobre quatro estudos e uma perspectiva de análise histórica

Outros textos desses e de ou- para compreender o processo tores de seu próprio tempo. Nes-
tros autores, como Charles Tilly, histórico e, mais do que ele, re- te sentido, os caminhos percor-
Christopher Hill e Eric J. Hobs- corre à Antropologia na busca de ridos pelos estudiosos foram di-
bawm, poderiam, dadas as se- um arcabouço conceitual que versos e muitas vezes influenci-
melhanças na linha de análise, possa auxiliar sua análise. Delu- ados por concepções teóricas an-
integrar essa lista, mas isto sig- meau, por sua vez, percebe o teriores. Elementos dos para-
nificaria extrapolar os limites ini- medo como componente (talvez digmas durkheimiano e marxia-
cialmente imaginados para este um dos menos estudados) da es- no foram retomados, assim co-
trabalho. trutura social, determinante das mo o pensamento dos Annales,
Entre os quatro historiadores transformações históricas. dos antropólogos funcionalistas
escolhidos, dois têm suas ativi- Utilizando-se de caminhos às (Malinowski, Radcliffe-Brown,
dades mais ligadas ao que se vezes semelhantes, esses histo- Evans-Pritchard) e até mesmo a
convencionou chamar de revi- riadores vão analisar a atuação sociologia de Gilberto Freyre.
sionismo marxista: George Rudé histórica da multidão, sobretudo Outros caminhos foram abertos
e E.P. Thompson. Rudé, desde os na Europa, entre os séculos XVI pelo revisionismo marxista in-
anos 50, engajara-se entre os que e XIX, buscando demonstrar sua glês e pela nouvelle histoire fran-
preconizavam novas interpreta- decisiva participação no proces- cesa. Em seu conjunto, as altera-
ções marxistas para a História so de construção daquelas soci- ções metodológicas processadas
Social, passando a vislumbrar a edades. O resgate da participa- determinaram a revisão da bibli-
“história vinda de baixo”. Thom- ção coletiva de populares en- ografia anterior e a formulação
pson, ex-membro do Partido Co- quanto agentes históricos é pois, de um novo tratamento para a
munista Inglês, coloca-se seme- uma das características que per- as fontes primárias, ampliando
lhantemente nos mesmos qua- mitem a inclusão desses autores a variedade dos registros histó-
dros revisionistas, preocupando- num mesmo grupo. ricos passíveis de consulta e pro-
se com uma história trabalhista movendo o reexame da docu-
baseada nas atividades dos tra- mentação já conhecida.
balhadores e não nas institui- A recuperação dos movimen-
ções. Em 1963 publica sua obra
A perspectiva de tos de massa da Europa “pré-in-
mais importante, The making of análise histórica dustrial”, sobretudo na Inglater-
the English working class(5), on- ra e na França, é um reflexo das
de já aparecem a redefinição do novas preocupações dos histori-
conceito de classe social e a con- No final dos anos 50, uma adores e está presente nos qua-
cepção de cultura enquanto for- nova visão de História procura- tro textos aqui analisados. De
ça de transformação da história, va trazer para o primeiro plano uma forma geral, os motins, re-
negando o reducionismo econo- da análise os grupos que, embo- beliões e insurreições estudados
micista comum naqueles tem- ra tivessem concretamente atua- são vistos dentro de um deter-
pos. do, deixaram poucos registros de minado padrão de acontecimen-
Natalie Davis e Jean Delu- suas intervenções sociais e per- tos comum ao período anterior
meau têm ligações mais estreitas maneciam anônimos. Homens e à efetiva industrialização das so-
com a linha de pensamento dos mulheres de diferentes condi- ciedades e à irrevogável centra-
Annales e com a histoire des men- ções sociais, idades, crenças reli- lização do Estado Moderno. Nem
talités, embora Davis tenha ini- giosas e identidades culturais, sempre recorrendo à violência e
ciado suas atividades mais vol- precisavam ser resgatados como na maior parte das vezes apre-
tada ao marxismo, integrando, agentes históricos e, para tanto, sentando uma certa organização,
em seguida, o já referido movi- era necessário explicitar as nu- mesmo que precária, os movi-
mento revisionista. Ela, assim co- merosas maneiras encontradas mentos populares começam a
mo Thompson, parte da cultura por eles para se fazerem constru- ser investigados sob novos parâ-

(5) A tradução brasileira é de 1987.

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 28-33, out. 1995 29


Eduardo França Paiva

metros e passam a ser diferenci- timarem o papel da tradição e da lheres no processo revolucioná-
ados da tradicional imagem da cultura nas comunidades, bus- rio francês, mas não em outros
turba de assassinos, saqueadores cando aí a explicação da legiti- eventos. Elas, entretanto, desem-
e vagabundos. Contudo, o es- mação das ações da multidão, penharam importante papel na
pontaneismo – entendido como são acusados por Suzanne De- maior parte das agitações popu-
a inexistência de prévia organi- san de camuflar os conflitos in- lares, em áreas urbanas e rurais.
zação e da não consciência dos ternos pelo poder e de privilegi- Natalie Davis as identificou nas
alvos a serem atingidos – é to- ar a coesão comunitária em de- lutas e quebra-quebras promo-
mado como característica ima- trimento das transformações vidos por católicos e protestan-
nente daqueles movimentos. Es- ocorridas (Desan, 1992, p. 63-69). tes franceses do século XVI (Da-
ta fórmula, entretanto, torna-se Examinar os movimentos de vis, 1990, p. 153). Jean Delumeau
incoerente diante da identifica- massa sob o prisma da tradição, as considera “motor nas comoções
ção, feita pelos autores, de lide- da cultura, do imaginário ou do provocadas pela carestia e pela escas-
ranças entre os grupos insatisfei- medo, vale dizer, privilegiando sez de cereais”, levadas por “uma
tos. Delumeau, por exemplo, elementos superestruturais, re- espécie de reflexo biológico”, visan-
aponta os artesãos, padres e pre- sultou em novas versões dos do defender “a vida de seus filhos
gadores como os chefes da mul- acontecimentos e nova proble- e a existência física de seu lar” (De-
tidão e afirma que ela “não age matização do tema. Resultou, lumeau, 1990, p. 189).
sem chefes e só adquire segurança le- também, em muitas “brigas” O recente interesse pela atu-
vada por eles” (Delumeau, 1990, com alas marxistas mais ortodo- ação feminina junto aos proces-
p. 191). Ao mesmo tempo em xas. Thompson é um bom exem- sos históricos é um dos temas
que o potencial em si da multi- plo para o caso. A revisão de con- que melhor exemplificam as no-
dão é subestimado, o esponta- ceitos importantes como o de vas preocupações dos “revisio-
neísmo passa a ser um conceito classe social encontrou forte re- nistas”. As “excluídas” da histó-
questionável. As influências re- sistência inicialmente, mas acha- ria, assim como outros grupos
cebidas pelas massas antes das se, hoje, ampla e internacional- sociais menosprezados, estão se
sublevações são presumíveis, mente aceita. Suas reflexões teó- consubstanciando em um dos
mas superficialmente analisa- rico-metodológicas sobre a for- objetos de análise mais impor-
das. mação da classe operária ingle- tantes para as novas gerações de
Outro ponto em comum é a sa exercem grande influência so- pesquisadores. Isto não vem
demonstração de que as esferas bre o estudo de outros temas, co- ocorrendo por puro modismo,
econômica e política são incapa- mo, por exemplo, as mais recen- mas como resposta à historiogra-
zes de, sozinhas, explicar os mo- tes investigações em torno do es- fia que os ignorou ou subesti-
vimentos de massa. As tradições cravismo moderno; a mesma ob- mou e, dessa maneira, acabou
constituem-se em um elemento servação pode ser feita em rela- por forjar uma idéia um tanto
fundamental das análises. Seja ção à nouvelle histoire e à histoire facciosa sobre a história dos ho-
sob a forma de “crenças generali- des mentalités. mens na Terra.
zadas” para Rudé (Rudé, 1991, p. No bojo das discussões pro- No segundo caso, a miséria e
242), de “preparo psicológico para postas pelas novas vertentes his- a penúria generalizadas, a ga-
revoltas posteriores” para Delu- tóricas aparecem, também, as- nância por lucros identificada
meau (Delumeau, 1990, p. 174- suntos praticamente negligenci- junto a moleiros, padeiros e se-
175), integradas à religião e à ri- ados até então. Entre os textos nhores feudais e a frequência das
tualização da violência como se ora comentados, pelo menos dois rebeliões ou suas ameaças de ir-
vê em Natalie Davis (Davis, 1990, desses assuntos devem ser des- rupção, levaram à formação de
p. 129-156) ou expressas através tacados: a constante atuação fe- uma mentalidade revolucionária
de uma “economia moral da multi- minina nos acontecimentos e ou pelo menos sediciosa entre a
dão”, como propõe Thompson as sublevações no imaginário po- população. Uma predisposição
(Thompson, 1984, p. 62-134). Es- pular. No primeiro caso, já era respaldada nos costumes de ca-
tes dois últimos, por sobrees- conhecida a participação de mu- da comunidade que, evidente-

30 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 28-33, out. 1995


A massa desvelada: comentário sobre quatro estudos e uma perspectiva de análise histórica

mente, emanava de sistemas cul- bre a vida cotidiana. Seu vincu- que se trate de uma estratégia
turais, políticos e econômicos lo com as ações mais rotineiras, equivocada conforme a nossa
possuidores de peculiaridades. com as atitudes mais banais das compreensão contemporânea?
Em Thompson, o desenvolvi- pessoas é intenso, tanto no pla- Qual é a grande diferença exis-
mento desse processo é visto a no individual quanto no coleti- tente entre a lógica desta ação
partir de um modelo paterna- vo. Porém, toda essa influência hipotética e a lógica de uma su-
lista de supervisão dos mercados é pouco visível e este fato tem blevação urbana, contrária às
e de proteção do consumidor, in- contribuído para que o compor- condições de vida e à estrutura
corporado e adaptado pela mul- tamento das massas na História de poder reinantes, que derru-
tidão, que, assim, legitimava a permaneça sendo examinado ba um dos símbolos máximos do
decretação do preço justo dos ce- dentro de rígidos padrões con- Estado e que no prosseguir dos
reais apreendidos aos produto- ceituais; existem as exceções, evi- acontecimentos destitui o Rei e
res e vendidos em praça públi- dentemente. a monarquia, para mais tarde
ca. Dessa forma, a possibilidade Não obstante os ganhos even- voltar a aceitá-la? Não é minha
de distúrbios populares estava, tuais e as alterações ou manuten- pretensão avaliar o alcance das
também, no imaginário dos co- ções de certos elementos estru- transformações advindas dessas
merciantes e proprietários, que turais, os movimentos de massa insurreições, nem ignorar a rup-
em alguns casos capitularam aos são geralmente considerados tura proporcionada pela Revo-
primeiros sinais de inquietação (pelos ortodoxos e até pelos re- lução Francesa em todas as esfe-
da massa (Thompson, 1984, p. visionistas, como Rudé) não po- ras das relações sociais. O obje-
111). líticos, por não serem estrategi- tivo é simplesmente observar
Também Bronislaw Baczko camente orientados. O fato de que a lógica dos movimentos é
preocupou-se com essa proble- não se dirigirem claramente con- semelhante, o que justifica o en-
mática. Analisando as insurrei- tra o Estado e não buscarem, quadramento de ambos na cate-
ções populares seiscentistas con- quase nunca, romper com a es- goria de estrategicamente orien-
tra a progressão do Estado Mo- trutura de poder prevalecente, tados.
derno na França, ele afirma: tem sido o argumento utilizado Mais importante, entretanto,
para negar-lhes a inclusão na- que excluir ou incluir motins em
“Os imaginários sociais intervêm quela categoria; a exceção seria categorias analíticas pouco flexí-
continuamente ao longo dos motins
a Revolução Francesa. Ora, há de veis, é refletir sobre a utilização
e a diversos níveis. As suas funções
são múltiplas: designar o inimigo no se questionar sobre o entendi- de conceitos alienígenas à Histó-
plano simbólico; mobilizar as ener- mento popular em torno da ria, às vezes responsáveis por
gias e representar as solidariedades; idéia de Estado ou de onde ema- abordagens anacrônicas, onde o
cristalizar e ampliar os temores e es- na o poder e sobre as formas de contexto e a importância dos
peranças difusos. Todos convergem
atuação que buscavam uma rup- acontecimentos são negligencia-
para a legitimação da violência po-
pular.” (Baczko, 1985, p. 316). tura, mesmo que parcial, com o dos. Certamente, a “economia
sistema. moral da multidão” não desper-
O imaginário social é, tam- Se a multidão se dirige a um taria o interesse de historiadores
bém, construído e adaptado pe- senhor feudal, representante lo- que estivessem “cegamente”
las camadas populares, embora cal do Rei (ou do poder a ele atri- procurando por estratégias po-
em muitas outras vezes seja ge- buído), exigindo transformações liticamente orientadas para com-
rado e imposto de cima para bai- sociais (e no processo podendo, provarem a eficácia de modelos
xo, manipulado pelo poder, que até mesmo, negar-lhe subservi- revolucionários. A observação
o mantém sob estreito controle. ência, expulsá-lo do feudo ou cabe, também, às categorias mui-
Num caso e no outro, e é o que matá-lo), ela não o estaria consi- to flexíveis que, em última aná-
interessa aqui, não é correto in- derando a fonte do poder con- lise, podem vir a forjar um pas-
terpretá-lo como uma espécie de tra o qual se insurgia? O alvo do sado completamente desvirtua-
adorno da vida material ou co- movimento não estaria sendo a do de sua realidade. Para não in-
mo uma instância que paira so- fonte de poder central, mesmo correr nos extremos, é funda-

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 28-33, out. 1995 31


Eduardo França Paiva

mental lembrar que “os fatos não Estratégias diferentes podem ter realidade social. Para vários his-
podem falar enquanto não tiverem objetivos semelhantes. No caso, toriadores brasileiros,(6) estudar a
sido interrogados”, e “que aquilo que ganhos coletivos parecem estar atuação da massa de cativos e de
podem dizer e parte de seu vocabu- quase sempre colocados na base libertos significa entendê-los
lário” podem ser “determinados dos movimentos. como agentes históricos transfor-
pelas perguntas feitas pelo histo- A visão dos historiadores é madores de seu tempo. Mais ain-
riador” (Thompson, 1981, p. 40). fruto de sua época, mas nem por da, significa examinar nossa for-
No processo de moderniza- isso pode estar desatenta à pers- mação cultural, explicar nossas
ção industrial europeu, muitas e pectiva de tempos passados. A identidades e avaliar nossa po-
profundas alterações ocorreram avaliação do movimento das tencialidade transformadora.
quase que naturalmente, ou pe- massas precisa ser rediscutida – Desvelar a massa, portanto,
lo menos sem estarem progra- os autores ora comentados vêm significa reconhecer a efetiva par-
madas. Modelos de comporta- contribuindo neste sentido – sob ticipação popular (através das
mento, regime alimentar, trans- pena de se desconsiderar partes mais variadas estratégias de atua-
ferência do eixo das transforma- do processo revolucionário ou se ção) na formação da história hu-
ções históricas para a cidade. Di- reduzir a noção de revolução mana. Significa, também, rever
ante dos novos padrões, grupos somente à ruptura com o insti- uma grande produção histo-
de camponeses, artesãos e menu tucional e o institucionalizado. riográfica que excluiu, estereo-
peuple, todos fortemente ligados Além disso, as grandes transfor- tipou ou condenou ao anonima-
à antiga estrutura, contestaram mações estruturais teriam um to as intervenções desses ho-
a perda de garantias consuetu- único caminho a percorrer: a mens e mulheres inconformados
dinárias e tentaram impedir a ação armada. O comportamen- com suas condições de vida. As-
destruição de seus sistemas de to e as mentalidades são descar- sim, através de abordagens me-
vida. Não foram incomuns os es- tados pelo modelo clássico, até nos enquadradas, tem sido pos-
forços de retorno a velhos cos- mesmo enquanto componentes sível identificar e analisar facetas
tumes comunitários, tradicional- revolucionários. pouco conhecidas de nossas ma-
mente reconhecidos pelos pode- O resgate da participação po- trizes culturais, de traços coleti-
rosos. Embora não se possa de- pular nas transformações histó- vos de nossas personalidades, de
nominar revolucionária tal atitu- ricas tem demonstrado aos pes- nosso passado e de nossas vidas
de, avaliá-la como simples rea- quisadores sociais, sobretudo aos hoje. Vem ocorrendo, ainda, o
ção ao projeto capitalista parece historiadores, a premência de resgate de tradições populares
reduzir sua dimensão social. A noções mais maleáveis e mais de sedição e de transformação
idéia de reação, neste caso, apa- sensíveis à complexidade das re- social, vale dizer, de estratégias
rece com menos importância do lações entre os homens. Neste de resistência que, adaptadas a
que seu oposto, isto é, a idéia de sentido, as revisões historiográ- cada contexto e período históri-
“pro-ação”, que estaria signifi- ficas e os debates metodológicos co, permanecem lapidando as
cando um avanço no processo. mais recentes têm contribuído relações sociais.
Deve-se perguntar, então, se for- para uma compreensão mais Neste final de século, o pro-
mas de resistência coletiva não aprofundada da história huma- jeto comunista de sociedade tem
estariam sendo subestimadas em na, em todas as partes do mun- sido irremediavelmente abalado
favor de movimentos mais per- do. No caso brasileiro, é eviden- e junto com ele agonizam mo-
feitamente encaixáveis em mo- te o desenvolvimento de nossas delos revolucionários e paradig-
delos analíticos preestabelecidos. reflexões acerca das relações es- mas de análise. Já se falou, até
Outra dúvida merece ser levan- cravistas que, em última análise, mesmo, em “fim da história”.
tada: em que medida os dois ti- constituem-se em um dos ele- Concomitantemente, e isto vem
pos de ação encontram-se des- mentos mais profundamente sendo dito há algum tempo, a
vinculadas ou são excludentes? determinadores de nossa atual maior de todas as revoluções – a

(6) Ver entre outros: CHALHOUB (1990), LARA (1988), MATTOSO (1988), PAIVA (1993) e SOUZA (1986).

32 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 28-33, out. 1995


A massa desvelada: comentário sobre quatro estudos e uma perspectiva de análise histórica

feminina – não pegou em armas, tabelecimento de padrões de cisa, pois, ser devidamente (re)
não derramou sangue, não ele- comportamento e na definição conhecida pelos estudiosos, sob
geu o Estado como exclusivo ou de nossas próprias vidas. Neste pena de concluírem por uma
principal alvo de ataques, mas sentido, vêm demonstrando que equivocada passividade dos
parece estar sendo a mais profí- profundas e duradouras trans- “dominados”, não obstante toda
cua. Elas, bem antes de pensa- formações no institucionalizado a atuação cotidiana que os cre-
dores e de intelectuais, parecem não podem negligenciar ou dencia como “resistentes”. Talvez
ter percebido, no dia-a-dia, a im- prescindir das mais diversas ex- fosse o caso de se enfocar mais o
portância da cultura, das tradi- pressões culturais de uma cole- processo que o aparente resulta-
ções e do imaginário social no es- tividade. A atuação popular pre- do final.

Referências bibliográficas
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da, 1985. v. 5, p. 296-332.
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DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
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LARA, Sílvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através
dos testamentos. Belo Horizonte: UFMG, 1993. (Dissertação de Mestrado).
RUDÉ, George. A multidão na história: estudo dos movimentos populares na França e na Inglaterra – 1730-1748.
Rio de Janeiro: Campus, 1991.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial.
São Paulo: Cia das Letras, 1986.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 3 v.
__________. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 1981.
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Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 28-33, out. 1995 33


Victor Serrão; Magno Mello

A PINTURA DE TECTOS DE PERSPECTIVA


ARQUITECTÓNICA NO PORTUGAL
JOANINO (1706-1750)

Vitor Serrão
Instituto de História da Arte da Universidade de Coimbra
Magno Mello(*)
Doutorando em História da Arte pela Universidade de Coimbra

Introdução: do “brutesco nacional” à pintura de perspectiva

E
xcluíndo alguns breves contributos de historiadores de arte como
Reynaldo dos Santos, (1) Ayres de Carvalho, (2) Nelson Cor-
reia Borges(3) e Margarida Calado,(4) o estudo da pintura de tectos
de perspectiva arquitectónica no Portugal do tempo de D. João V en-
contra-se ainda por cumprir. Trata-se de lacuna considerável, não só
pela qualidade dos espécimes que ainda subsistem dessa época, como
pelo “verdadeiro espírito de renovação” que, segundo o primeiro dos cita-
dos autores, tais decorações traduzem.
Além da dificuldade de base que decorre do facto de muitos dos exem-
plares pictóricos de perspectiva arquitetónica haverem desaparecido, ou
sido gravemente adulterados, por virtude do terremoto de 1755, observa-
mos que continua a faltar-nos o conhecimento rigoroso dos espécimes

(*) Bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian.


(1) SANTOS. A pintura de tectos do século XVIII em Portugal, p. 13-22.
(2) CARVALHO. D. João V e a Arte do seu Tempo. (obra que contem diversas referências pioneiras à introdução da “perspectiva”, e a
Baccarelli, Antônio Lobo, etc.).
(3) BORGES. A pintura, p. 70-73.
(4) CALADO. Pintura de tectos, p. 475-478.

34 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 34-44, out. 1995


A pintura de tectos de pespectiva arquitectónica no Portugal joanino (1706-1750)

subsistentes (tanto na metrópo- resto, se tem manifestado uma a uma solução subsidiária, quan-
le como nas franjas do Mundo atitude de negligência da Histó- do a nova modalidade de espa-
Português, e muito designada- ria da Arte portuguesa face à ços prospécticos de origem itali-
mente no Brasil), assim como o autonomia relativa deste “gé- ana penetra em Portugal. Então,
exaustivo levantamento das fon- nero” pictural. Assim, todo o tra- com a vinda de Vincenzo Bacca-
tes arquivísticas (no geral inex- balho de crítica ou mesmo uma relli e com a difusão dos ideários
ploradas), a definição das perso- tentativa de avaliação do acervo do Tratado de Perspectiva de
nalidades dos principais produ- em causa surge dificultado pe- Andrea Pozzo, o novo figurino
tores de pintura e, sobretudo, o los efeitos do megassismo de encontra larga fortuna, constitu-
enquadramento estético desta 1755 em Lisboa, exactamente indo uma rica “escola” com mai-
“atitude” pictural na sua relação uma área de maior concentração or expressão na época de D. João
com os modelos barrocos italia- destes exemplares de pintura V, que vem modificar o aspecto
nos.(5) Acresce, também, o geral ornamental – considerados jus- decorativo dos interiores das
mau estado de conservação dos tamente os precursores de uma igrejas e palácios barrocos.
tectos pintados que chegaram “segunda geração”, já na segun- Importante lembrar, entre-
aos nossos dias. da metade do século XVIII, que tanto, que o tipo de decoração
Foi a partir de 1710, com a in- maior ou menor incidência se que antecedeu essa inovação
tervenção do pintor florentino abre ao figurino “rococó”. não foi de modo algum inter-
Vicenzo Baccarelli na Portaria de O ilusionismo na pintura de rompida, antes se prolongou em
São Vicente de Fora em Lisboa, tectos, amplamente usado na Itá- termos de respostas anacrónicas
que se introduziram, com a “pers- lia do Renascimento e do Manei- bem dentro do século XVIII: tra-
pectiva aérea”, as modificações rismo, chega a Portugal no mo- ta-se de uma questão corrente da
essenciais no conceito da deco- mento de máxima expressão da evolução das formas estéticas e
ração espacial das coberturas pintura do chamado “brutesco das preocupações do mercado,
portuguesas. Estas inovações nacional”, solução ornamental na violência dialéctica que decor-
iam no sentido da ruptura com com raízes quinhentistas e que re do confronto entre a “novi-
a tradição dominante na pintu- se impusera entre nós como do- dade” e a “tradição”; o que acon-
ra de tectos – a da pintura orna- minante na segunda metade do teceu é que os “brutescos” em Se-
mental de “brutesco” – e vão co- século XVII, quer em caixotões tecentos se impuseram menos
nhecer grande voga quase de de apainelados, quer em co- na pintura dos tectos e sobretu-
imediato; chegarão inclusive ao berturas afrescadas, ou em espa- do como subsidiários da decora-
Brasil, no quarto decénio do sé- ços onde os motivos acânticos se ção do Azulejo ou do lavor da
culo XVIII, quer com a activida- expandem com a sua decoração Talha.
de de António Simões Ribeiro larga, formando como que uma É ponto fundamental na ava-
em Salvador da Baía, quer com “escola nacional” sui-generis, liação da pintura de coberturas
a de Caetano da Costa Coelho no com transposições e directas in- setecentistas (principalmente as
Rio de Janeiro. fluências, também, na região do ciclo joanino) o não esqueci-
As análises que cumpre efec- brasileira de Minas Gerais.(6) mento da tradição do brutesco,
tivar neste âmbito derivam ne- A autonomia do brutesco que irá coexistir no campo da
cessariamente do estudo das seiscentista, na sua diversidade pintura de tectos mesmo após a
obras particulares (que são em com o uso do “fresco”, do óleo e presença inovadora do italiano
número bem mais amplo do que da têmpera, será precisamente Baccarelli em Portugal. O brutes-
geralmente se supõe), já que as interrompida no início do sécu- co continuará, em essência, a
fontes escritas são escassas e, de lo XVIII e condicionada de novo manifestar-se incidente nas de-

(5) Este vasto tema de investigação está neste momento a ser alvo de estudo exaustivo da parte de um dos autores (Magno Moraes Mello),
com vista à sua tese de doutorado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, sob o título provisório “A adaptação dos modelos europeus de
pintura de tectos em Portugal e suas transposições, reinterpretações e originalidades no período de 1700 a 1800”.
(6) SERRÃO. A pintura de Brutesco do Século XVIII em Portugal e suas repercussões no Brasil, p. 113-136 e DACOS & SERRÃO. Des
grottesques à la peinture de “brutesques”, p. 41-45.

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Victor Serrão; Magno Mello

corações de igrejas lisboetas do ções de Lanfranco, de Cortona e O único exemplo dessa nova
século XVIII. E, tal como sucedia de Gaulli. Deve referir-se que o fórmula decorativa sobreviven-
na pintura brutescada do tempo fenómeno da pintura de pers- te em Portugal, da sua autoria, é
de D. Pedro II, também na pin- pectiva do Barroco italiano tem o citado tecto da Portaria de São
tura de perspectiva do tempo de as suas raízes longínquas nas Vicente de Fora, cobertura rebai-
D. João V existirá, quase sempre, experiências do ilusionismo de xada que remonta a 1710,(9) com
um quadro central com figura- Correggio em Parma, até atingir envolvimento de florões orna-
ções do hagiológio de Santos, da o ápice nas decorações romanas mentais da autoria do seu discí-
Vida da Virgem ou da Paixão de do pintor e jesuíta Andrea Poz- pulo Vitorino Manuel da Serra.
Cristo... zo(7). A sua influência italiana A fama do pintor florentino era
será, aliás, notada por toda a testemunhável, em Lisboa, por
Europa, não só pela sua apoteó- outros tectos perspectivados, um
tica pintura na abóbada e na fal- deles no palacete Galveias do
Vincenzo Baccarelli sa cúpula da Igreja de Santo Campo Pequeno, destruído por
e o tecto da Portaria Ignacio em Roma (1693-94), mas um incêndio, outro na igreja do
também pelo rico Tratado de Mosteiro de São Bento da Saú-
de São Vicente de Perspectiva que escreveu. de. O artista florentino trabalhou
Fora O ilusionismo parietal encon-
tra a sua origem remota em Pom-
também, segundo documenta-
ção inédita, na Igreja de Nossa
peia e Herculano, na Roma Anti- Senhora do Loreto, aí pintando
O grande fenômeno de rup- ga, onde se testemunham os pri- entre 1702 e 1704 a composição
tura é constituido pela presença meiros exemplos de “simulação” de perspectivas, a “fresco”, do
de Baccarelli (1682-1745) – pin- do espaço ilusório; a perspecti- sub-coro do templo, obra essa
tor que se instalou a Portugal ain- va será depois, com o Renasci- que infelizmente desapareceu
da em finais do século XVII, após mento e o Maneirismo, alvo de com o terremoto.(10)
aprendizado com Alesandro grande sistematização (desde As formas arquitectónicas do
Gherardini, e que regressou a Mantegna a Correggio e a Zuc- tecto de São Vicente de Fora, aci-
Roma em 1718 –, cuja “novida- caro), e levada às últimas conse- ma da cornija original, simulam
de” na visão da pintura de tectos quências nas deformações ana- colunas com capitéis compósi-
modificou radicalmente todo o mórficas tão cultuadas em Itália tos, mísulas, volutas com “putti”,
processo estético que vinha sen- e França nos séculos XVII e balcões e balaustradas, dispostas
do produzido até então. XVIII, como jogo de efeitos geo- em planos harmoniosos em
Após a celebrada pintura da métricos chamados anamorfoses trompe-l’oeil que se projectam
Portaria do Mosteiro de São cilíndricas (8). Desta forma, no “para fora”, criando a ilusão da
Vicente de Fora (1710), o fenó- dealbar de Setecentos, Vincenzo tridimensionalidade. A rica ba-
meno “baccarelliano” fez-se pre- Baccarelli introduz a “quadratu- laustrada, que antecede um for-
sente nos melhores artistas coe- ra” na simulação de arquitectu- te e maciço arco fingido, impõe
tâneos, com a difusão e adapta- ras pintadas, e a perspectiva aé- e reforça a visão dos espaços que
ção do novo processo que na Itá- rea no centro da composição, co- se projectam “para cima”, a
lia do Barroco seiscentista se mo elevação máxima da visão de emoldurarem o dinâmico tema
estruturara a partir das decora- infinito. barroco do “quadro” central,

(7) Cf. MELLO. Lo sviluppo del decoro spaziale nei soffitti fra i Secoli XVI e XVIII in Italia.
(8) Cf. MONTICOLO. Prospettiva e finzione pittorica.
(9) Segundo Cyrillo [Colleção de Memorias..., 1823], o reboco deste tecto caiu com o terremoto, e alguns “ignorantes mestres” (sic) caiaram a
composição, “e o que parecia uma das mais belas e regulares de toda a cidade, ficou parecendo a mais defeituosa, baixa e irregular ”. Em
1796, o tecto foi “reintegrado” na sua forma original pelo pintor Manuel da Costa.
(10) Cf. Arquivo da Igreja Italiana de Nossa Senhora do Loreto, Livro 37 de Contas (1703-1705), fls. 23 a 27. Inéditos. Esta obra orçou o preço de
225.000 rs, segundo o contrato de 2 de junho de 1702. De referir que estes e outros documentos, ainda por estudar na sua globalidade,
serão alvo de análise circunstanciada na referida tese em preparação de Magno Moraes Mello.

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A pintura de tectos de pespectiva arquitectónica no Portugal joanino (1706-1750)

Santo Agostinho e a Vitória da manual prático para a com- pectiva para direccionar os prin-
Igreja, em tratamento vaporoso preensão das complicadas “qua- cípios cenográficos acima referi-
e etéreo das formas. Em Bacca- dratture” e sua aplicação com os dos, razão pela qual o seu trata-
relli, o espaço rasga o tecto e in- alinhamentos geométricos e a do terá tão ampla e rápida difu-
vade a espacialidade na então absorção de um sistema que faz são por todo o mercado artístico
perspectiva aérea central, moti- com que na cobertura da abóba- da Europa. Entre nós, e dadas as
vo de grande polémica entre a da as colunas e entablamentos divergências de conceito entre a
“geração” dos seus contemporâ- no ponto de observação sotto in tendência prospéctiva vigente e
neos portugueses, que a inter- sù adquiram um carácter rectilí- a “perspectiva arquitectónica”
rompe numa conotação mais fi- neo manipulado a ponto de ilu- usada na Itália de Seiscentos (da-
nita que infinita, como tradicio- dir o observador. Assim, o trata- da a falta, entre nós, de uma tra-
nalmente (ou tratadisticamente) do torna-se como corolário de dição neste sentido...), não foi to-
se deveria fazer... uma nova experiência assumida mado como forma indispensável
na riqueza dos interiores barro- no caso específico do rasga-
cos desde o início do século XVII, mento do tecto o uso da perspec-
sejam palácios ou igrejas, como tiva aérea, o que levaria a conse-
A importância do o tecto de Sant’Andrea della Val- guir repesentar no centro das
“Perspectiva le (1625-28) por Lanfranco (se- composições o “infinito interrom-
guindo a plena maturidade do pido”. Isto não significa uma boa
Pictorum et triunfalismo barroco), os do Pa- ou má compreensão das lições
Architectrum” lácio Barberini e de Santa Maria
in Vallicella (1664-1665) de Pietro
baccarellianas (ou italianas, em
geral), mas sim uma atenção di-
(1693-1700) de da Cortona, e sobretudo o da versa em comparação com o la-
Igreja de Gesú (1676-1679) de do obsessivo dos pintores italia-
Andrea Pozzo e Giovanni Battista Gaulli, síntese nos em romperem os espaços
sua influência em inteligente com combinação de construídos...
elementos, materiais e idéias no Todos estes motivos explicam
Portugal reforço da concepção ilusionís- a boa fortuna do Tratado de Pers-
tica de grande largueza espaci- pectiva de Andrea Pozzo e a sua
Este importantíssimo tratado al. A dialéctica da Igreja triden- rápida difusão, comprovada pe-
chegou a Portugal no início do tina, quer nos interiores dos tem- la sua presença em bibliotecas lu-
século XVIII, influenciando to- plos, sejam em cúpulas ou abó- sas, e bem assim se conhecem as
dos os artistas da “primeira ge- badas, naves ou capelas-mores, traduções comentadas de 1732
ração” da perspectiva, que fize- a representação do seu mundo (esta da autoria do Arquitecto Fi-
ram a partir dele as suas refle- espiritual, da sua verdade dog- gueiredo Seixas),(11) e de 1768 (da
xões sobre a nova espacialidade mática, num apelo ao convenci- autoria do escultor bracarense
do ilusionismo prospéctico no mento no rasgamento do mun- Frei José de Santo António Vila-
âmbito da festa barroca. do terreno e finito até às projec- ça)(12) – ambas nunca publicadas.
O tratato alude em primeira cões “infinitas” do espaço celes- Também reduzida a manuscrito,
instância à actualidade da pin- tial divino. mas mais importante porque an-
tura de “trompe-l’oeil”, como o O tratadista e pintor Andrea terior aos anteriormente citados,
mais perfeito corolário ornamen- Pozzo (autor do tecto de Santo é a tradução (escrita com varia-
tal e cenográfico dos espaços re- Ignacio, em Roma) teorizará nos ções, e sem as figuras do origi-
ligiosos, dentro do apelo contra- dois volumes da sua obra (o pri- nal de Pozzo) da autoria de um
reformista da Igreja Romana, e meiro de 1693, o segundo de anónimo escalabitano de cerca
assume-se também como um 1700) sobre o bom uso da pers- de 1725, que foi descoberta pelo

(11) O manuscrito encontra-se na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice 222 (ref. em Rafael Moreira, “Uma Utopia Urbanística
Pombalina o “Tratado de Ruação” de José de Figueiredo Seixas”, in Pombal Revisitado, Lisboa, 1984, p. 131-144, Lisboa, 1984.

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Victor Serrão; Magno Mello

Professor Flávio Gonçalves e tem (muito louvada por Cyrillo Vol- baccarelliana”, com o desenho
o grande interesse de integrar kmar Machado) ou desapareceu compositivo a integrar uma “fal-
anotações respeitantes a obra do com o terremoto, ou foi modifi- sa arquitectura” onde se nota um
pintor António Simões Ribei- cada por efeitos dos estragos: raro exemplo do uso da “quadra-
ro(13). O seu autor, provavelmen- neste caso, inclui-se o grande tura” pozziana. Quanto ao qua-
te um membro das Academias li- tecto da nave da Igreja de Nossa dro recolocado (que representa
terárias santarenas tão difundi- Senhora da Pena em Lisboa, úni- uma etérea e vaporosa Coroação
das no tempo de D. João V, pre- ca obra sua que chegou até hoje, da Virgem), ele integra em si, em
tendia, decerto, preparar um encomendada pela Irmandade linhas de força dos sistemas cons-
manual prático para apoio aos do Santíssimo Sacramento des- trutivos na lateral da perspecti-
artistas de perspectiva do seu sa freguesia, e que segundo o va aerial, o ponto de fuga das co-
tempo... “instrumento de quitação” de 27 de lunas, dos entablamentos e das
Março de 1718, que descobrimos, balaustradas (estas, ocupadas
envolvia o elevado preço de por elegantes anjos). Deste mo-
580.000rs. (14) Já Reynaldo dos do, a composição da “quadratura”
Os pintores Santos o considerava “um dos pri- assume-se rigorosa e bem estru-
portugueses de meiros tectos do novo estilo (...), e turada.
dos melhores que conhecemos, com- O segundo pintor importan-
influência posto com notável sentido das pers- te do “baccarellianismo” foi An-
“baccarelliana” pectivas arquitectónicas (...) e evi-
dentemente anterior a 1719”.(15) In-
tónio Simões Ribeiro, que é con-
siderado discípulo de Lobo (Cy-
felizmente, apurámos que esta rillo, José da Cunha Taborda), e
No núcleo formado com Bac- composição de perspectiva foi que até hoje se sabia apenas ter
carelli, pode-se pensar em três muito danificada pela catástrofe executado os três tectos da Bibli-
siginificativos pintores de tectos de 1755, a ponto de haver sido oteca Joanina da Universidade
de perspectivas, todos eles edu- quase por inteiro substituída em de Coimbra (1723-1724, em co-
cados sob a directa esfera ideo- 1781, através de um novo “risco laboração com Vicente Nunes);
lógica do mestre florentino. de pintura de architectura e perspec- na realidade, e segundo o docu-
O lendário Antônio Lobo, seu tiva” dado a fazer ao pintor Luís mento inédito apenso a uma tra-
discípulo, de quem o próprio Baptista(16) – “risco” esse que cor- dução manuscrita do Padre Poz-
Baccarelli teria afirmado, ao par- responde, assim, ao essencial do zo, acima citado, sabemos tam-
tir, “que era bem capaz de suprir a tecto que hoje se pode admirar, bém que pintara (imediatamen-
sua falta”, foi membro da Irman- ainda que ele deva ter seguido o te antes dos de Coimbra) os tec-
dade de São Lucas e morreu em “espírito” da composição anteri- tos da nave da Igreja de São Mar-
1719, um ano após o regresso a or. Este imenso tecto constitui tinho, do sub-coro da Igreja do
Itália do seu mestre. A sua obra um bom exemplo da “sequência Hospital de Jesus Cristo (datado

(12) Cf. SMITH. Frei José de Santo Antonio Ferreira Vilaça, p. 64. Este arquiteto e escultor também foi pintor de perspectiva, conforme se vê
em capelas da igreja do Mosteiro de Pombeiro, dentro dos cânones “nasonianos” da pintura de perspectiva.
(13) Este precioso manuscrito intitula-se Primeira primeyra parte de prospetiva de Pintores, e Arquitetura. Mostrase o methodo mais fasil e espedito de
de-liniar com estilo prospetico, tudo aquilo que pertence a Arquitetura, inventado e (...) primeiramente publicado em Roma, por Fr. Andre Poço, da
Companhia de Jesus. Porem agora pª favor, e uzo dos estudiosos não muyto sientes desta Arte, se fes de veliume mais piqueno, por João Boxbartho,
empresor, anno de 1719. Foi descoberto pelo saudoso historiador de arte Prof. Flávio Gonçalves, que o comunicou a um dos autores (V.S.).
Encontra-se actualmente em depósito na Biblioteca Municipal da Póvoa de Varzim. Os nossos agradecimentos ao seu Director, Manuel
Lopes, e à Dra. Maria José Gonçalves, viúva do referido historiador de arte.
(14) Arquivo da Igreja de Nossa Senhora da Pena, Livro dos Acórdãos de 1709-1783, fl. 20 (documento citado por Nuno Saldanha, “Pintura na
Igre-ja de Nossa Senhora da Pena em Lisboa – séculos XVIII-XIX. A iconografia, função da imagem e seu controlo”, sep. do Boletim
Cultural da As-sembleia Distrital de Lisboa, 1989). Os nossos agradecimentos ao Rev. Henrique Wiborg Pietra Torres, pároco de N. Sª da
Pena, pelas facilidades concedidas na consulta do arquivo.
(15) SANTOS. op. cit., p. 16.
(16) Arquivo de N. Sª da Pena, Livro 2º dos Acórdãos, 1771-1843, fl. 14. Inédito. O termo do ajuste, datado de 21 de janeiro de 1781, envolve a ele-
vada quantia de um milhão e 200.000 rs pela “nova pintura do tecto” que refazia ou substituía a de Lobo. Segundo Cyrillo, esta intervenção
res-tringiu-se apenas às “arquitecturas prospécticas” e não envolveu o quadro central.

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A pintura de tectos de pespectiva arquitectónica no Portugal joanino (1706-1750)

de 1723), e da Sala da Irmanda- composições de perspectiva cumentação do colégio inaciano,


de da Igreja de Santa Cruz da Ri- arquitectónica – os três da Bi- pintara em 1689 o desaparecido
beira, todos na cidade de Santa- blioteca Joanina de Coimbra, os tecto do corpo da Igreja do Co-
rém, de que só o primeiro desa- de Santa Cruz e do Hospital de légio(20); mas pela sua análise es-
pareceu.(17) Jesus Cristo em Santarém, e o do tilística, em cotejo com as que
O artista deslocou-se depois Colégio de Salvador da Baía – re- acima referenciámos de Coimbra
(1735-1748) para o Brasil, radi- velam o mesmo espírito e são to- e Santarém, não temos a míni-
cando-se em Salvador da Baía, dos devidos à mesma “mão”: ma dúvida em vincular à “mão”
onde foi o grande responsável mostram estar concebidos com o de Simões Ribeiro esta excepcio-
pela introdução deste “género” mesmo tipo de desenho e com nal ornamentação de espírito
de pintura, no seio da “escola” idênticas “projecções de arquitec- “baccarelliano”, confirmando-se
baiana. Em 17 de Outubro de turas fingidas”, no encontro de assim a boa intuição de Clarival
1736, dado que “havia pouco tem- um círculo central bem definido, do Prado Valladares(21) e de Ro-
po tinha chegado do Reino hum Pin- ricamente trabalhado em volu- bert C. Smith(22) quanto a esta
tor por nome António Simões Ribei- tas, guirlandas, consolos, balcões obra... Numa mesma conotação
ro o qual hera muito perfeyto na sua semi-circulares e formas que si- estilística, os elementos arquitec-
arte”, a mesa da Misericórdia mulam conchas, quase que a tônicos em sua “quadratura” e a
baiana encomendou-lhe a pin- prepararem o olhar para as ale- cena central mantêm um idênti-
tura da abóbada da capela-mor gorias religiosas representadas co comportamento face aos dois
da Igreja da Misericórdia, por ao centro. Estamos em con- tectos de Santarém (Hospital e
preço de 150.000rs(18) (essa obra dições, assim, de solucionar em Santa Cruz), e também ao de
desapareceu). Já antes, a 4 de definitivo uma das questões Nossa Senhora do Desterro de
Maio de 1735, fizera em Salva- mais polémicas da História da Salvador, no que toca à figura,
dor a “pintura do forro da Sala Arte brasileira: a autoria do ex- sua expressão, sua postura, de-
grande das Vereações do Senado da cepcional tecto prospéctico re- signadamente no estudo dos
Câmara”, igualmente desapareci- presentando o Triunfo da Sabe- planejamentos e no eixo de or-
da, e em Setembro e Outubro de doria que orna a Sala da Biblio- denação. Os elementos de “falsa
1745 estava ainda em actividade teca do Colégio jesuítico (actual arquitectura” no texto da Biblio-
em Salvador, pois pintou os tec- Sé) de Salvador, uma das peças teca de Salvador (mísulas, fustes,
tos prospécticos do sub-coro e da brasileiras que maior discussão volutas, capitéis) mostram simi-
sacristia da Igreja do Convento tem levantado quanto à autoria lar preocupação de enquadra-
do Desterro, que subsistem par- e à cronologia: Carlos Ott consi- mento, tanto como a composição
cialmente.(19) derou-o obra de um “insigne pin- alegórica do centro, esta supos-
Estes sete tectos pintados com tor de Roma” que, segundo a do- tamente em escorço sotto in sù e

(17) O fólio em causa inclui um desenho de “quadrattura”, acompanhado pelo seguinte e muito elucidativo texto: “Este modo de pintar com Lus
por baxo em huma prospetiva o uzou tambem Antonio Simões em a moldura do painel de S. Martinho desta Vª, porém de outra sorte uzou na prespetiva
de San-cretia de Sta Cruz, pondo os claros de Alvaiade no lugar da Cor de perolla, e a cor de perola no llugar da segunda tinta (...). Observey em humas
reprezas, ou cachorros, que Antonio Simões pintou no theto do Couro do Sitio desta Vª (actual Igreja do Hospital de Jesus Cristo), que são
encarnaddos terem por primeira tinta huma Cor rozada clara de vermelhão e alvaayde, que rebaxara ao alvaayde meyo grão, a segunda tinta hé também
de alvaayde vermelhão, e a terceira tinta hé de vermelhão estreme, e a quarta tinta hé de vermelhão e sinopla”. A respeito das pinturas de Santa Cruz
e do Hospital de Jesus Cris-to, Cf. SERRÃO, Santarém, p. 88-90 e 118, das três “perspectivas” pintadas por Simões Ribeiro em Santarém,
só o tecto da Igreja de S. Mar-tinho desapareceu, destruído em 1755, e substituído a seguir por outro de Luís Gonçalves Sena, que também
pereceu com o arrasamento da igreja já no actual século.
(18) OTT. A Santa Casa da Misericórdia da cidade do Salvador, p. 181.
(19) ALVES. Dicionário de artistas e artifices na Bahia, p. 145-146.
(20) OTT. Pequena história das artes plásticas na Bahia, entre 1550-1900, p. 44-45 e 48-49.
(21) VALLADARES. Aspectos da arte religiosa no Brasil, p. 4; idem, “Notícia sobre a pintura religiosa monumental no Brasil”, Bracara
Augusta, vol. XXVII, nº 63, 1973 (cite-se a refª a p. 251, onde este historiador observou, a propósito, ser este o único exemplo em todo o
Brasil de forro com “arquitectura corrigida, tanto em relação à cercadura de elementos ornamentais e arquitectónicos, como das figuras
e alegorias”). Cfr. também, ainda do mesmo autor, “O Ecumenismo na Pintura Religiosa Brasileira dos Setecentos”, Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, vol. 17, 1969.
(22) SMITH. Arquitetura civil no período colonial, p. 27 e 125, observara já as “grandes afinidades” deste tecto baiano com os três da
Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, sublinhando “o estilo caracterizador da pintura em perspectiva (...), com as figuras em
escorço.”

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Victor Serrão; Magno Mello

em vôo aéreo, pois ainda man- presenta a Assunção da Virgem, É significativo, ainda a propó-
tém uma “visão em frontalida- num belo escorço em perspecti- sito do Cabo Espichel, que após
de”, a despeito da boa acentua- va ascendente; como se uma li- se dobrar o meado do século
ção do escorço. nha perpendicular à nave fosse XVIII as pinturas de tectos não
O terceiro nome relevante estirada de baixo para cima da mais iriam interessar-se desta
desta “escola” foi Lourenço da igreja, num romper da frequen- maneira pela arquitectura fingi-
Cunha, único que teve compro- te frontalidade a uma crescente da, e passam a ser instituídas
vada educação italiana, já que, aproximação dos espaços lumi- aplicações de estuques num
embora “de humilde nascimento” nosos e infindos. O ilusionismo completo desinteresse pelas es-
(Cyrillo), pôde estadear em Ro- representado neste tecto impõe truturas da “quadratura”. Talvez
ma, de onde voltou em 1744, um ponto de observação que nessa realidade-outra desta “ter-
dando entrada então na Irman- obriga os fiéis a posicionarem-se ceira geração” se possa falar com
dade de São Lucas, celebrizan- num campo visual restrito e pré- propriedade no “quadro de altar
do-se como cenógrafo, e mor- determinado pelo artista, que se recolocado”, pois as estruturas de-
rendo em 1760. Antes, porém, já situa à entrada do recinto cultu- corativas que então ornamen-
pintara a obra prima “baccarellia- ral e que deve, concomitante- tam o tecto já não têm carácter
na” que é o tecto da Igreja do mente, relacionar-se com o ritu- de sustentação e nem mesmo si-
Santuário de Nossa Senhora do al próprio das festivas procissões mulam uma abertura (um bom
Cabo Espichel (1740), infeliz- do círio de Nossa Senhora do exemplo são vários tectos de Pe-
mente muito arruinado e hoje Cabo. A simulação pictural mos- dro Alexandrino...). O estudo do
num estado que faz prever o seu tra-se bem concebida, com os tecto prospéctico na perspectiva
desaparecimento inelutável.(23) seus arcos fingidos de relevos que ora nos interessa pode en-
Trata-se, mesmo assim, de um falsos. Tudo surge como um “sus- tão ser concluído com a belíssi-
dos melhores trabalhos de ilu- tentante” para o entablamento e ma obra de Lourenço da Cunha,
sionismo prospéctico subsisten- o balcão que se eleva para o cen- expoente fiel das inovações de
te do Portugal joanino. Em cote- tro, abrindo-se à ilusão de um Baccarelli.
jo com o tecto da Igreja da Pena, outro balcão e de um último ar- Entretanto, o fenómeno do
verifica-se de imediato que o es- co, numa perfeita envolvência “baccarellianismo” não se esgotou
paço em profundidade e a preo- cenográfica à visão luminosa do na obra destes três seus directos
cupação em romper o espaço quadro central. As colunas apoi- continuadores, pois se enume-
real construído são mais fortes e adas na “falsa balaustrada”, em ram outros mestres imbuídos da
ousados do que a proposta de fuste liso e capitéis compósitos, mesma orientação estética, e to-
Antônio Lobo (refeita por Luís são suficientemente fortes para dos carecidos ainda de um estu-
Baptista). Um aspecto que distin- a sustentação de mais um andar do pormenorizado: é o caso do
gue Lourenço da Cunha dos em arquitectura fingida, que nos enigmático jesuíta Padre Veláz-
seus contemporâneos é o facto seus entablamentos sustentam quez que terá pintado, no início
de que, enquanto os outros in- novamente um outro espaço pa- do século XVIII, o tecto da igreja
terrompiam a centralidade espa- ra a formação de um arco pleno do Seminário de Santarém(24);
cial com uma visão típica de ca- que se encerra numa membra- caso de Antônio Pimenta Rolim
valete, o autor do tecto do Espi- na arquitectónica que fecha a (discípulo de Lobo e autor de tec-
chel procurava impôr uma espa- totalidade da falsa arquitectura. tos muito refeitos, como o da
cialidade mais próxima dos ita- O artista trabalhou ainda em tec- Igreja dos Paulistas(25), e o da
lianos, e das lições de Baccarelli tos nas igrejas dos Inglesinhos, Igreja de Aldeia Galega da Mer-
– apesar de não usar literalmen- das Trinas do Mocambo, e dos ceana [1746], perto de Alen-
te a perspectiva aérea italiana. É Clérigos Pobres de Lisboa – to- quer)(26); caso de Caetano da Cos-
no centro, naturalmente, que re- dos arrasados em 1755. ta Coelho (com actividade a par-

(23) SERRÃO. Uma obra-prima do pintor barroco Lourenço da Cunha: a pintura de perspectiva ilusionística do tecto da Igreja do Cabo
Espichel (1740), p. 21-22.

40 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 34-44, out. 1995


A pintura de tectos de pespectiva arquitectónica no Portugal joanino (1706-1750)

tir de 1732 no Brasil, onde foi o contra, por estudar, na região de


formador da “escola fluminen- Braga(32), etc. Entre as obras anô-
A pintura de tectos
se”)(27); caso de Jerônimo da Silva nimas mas que seguem investi- perspectivados
(autor do tecto da capela-mor da gações cenográficas de arquitec-
Igreja da Pena [1720](28) e, com João tura fingida conta-se o tecto da após 1755
Nunes de Abreu, do da Igreja do Igreja da Misericórdia de Soure
Menino Deus [c. 1730])(29); caso (Coimbra), pintado em 1760 e Na obra de Baccarelli os deta-
ainda de Vitorino Manuel da em deplorável estado de conser- lhes arquitectónicos e a precisão
Serra (1692-1747; pintou o tecto vação (33) . Neste panorama de da “quadratura” adaptavam-se ao
da Igreja da Misericórdia de conjunto, não poderemos deixar conceito da total “ilusão do enga-
Abrantes [1728-29] e o do Con- de registrar, enfim, o caso mais no do olhar”, conforme referia
vento das Trinas do Rato, ambos conhecido do maltês Nicolau Pozzo no seu tratado.
desaparecidos)(30), que segundo Nasoni (pinturas de perspectiva Esta pintura de São Vicente de
Cyrillo seria o autor, e não Jeróni- na Sé de Lamego e na do Porto), Fora (1710) tornou-se, assim, o
mo da Silva, do tecto da Igreja a justificar estudo particular, e o marco separador entre o “brutesco
do Menino Deus; caso do esca- caso mais tardio de Pascoal Pa- nacional” do reinado de D. Pedro
la-bitano Luís Gonçalves Sena rente, italiano radicado em Co- II (de Francisco Ferreira de Araú-
(1713-1790; pintou por 1740-50 o imbra em 1756, cujos tectos do jo, por exemplo) e as formas pers-
tecto de perspectivas da capela- Seminário de Coimbra (1760), de pectivadas da época quinto-joa-
mor da Igreja do Seminário em Nossa Senhora da Esperança de nina. Mudança definitiva e que
Santarém)(31); caso enfim do pin- Abrunhosa (1763) e da Igreja dos até à segunda metade do século
tor portuense (ou barcelense) Terceiros do Carmo de Viseu(34) XVIII e também parte do XIX (em
Manuel Furtado, artista ainda continuam a explorar a tradição casos específicos como a região de
muito ignorado, mas com impor- romana das “arquitecturas fingidas”, Minas Gerais, por exemplo), será
tante obra subsistente que se en- dentro do gosto da época joanina. presente como moda dominante

(24) SERRÃO. O tecto da Igreja do Seminário de Santarém e os seus presumíveis autores, p. 253-261. Coevo talvez das obras de 1713 na
capela-mor desse templo jesuítico, este tecto deriva menos do “virtuosismo prospéctico” de Baccarelli que de uma interpretação
pessoalizada das “receitas” de Pozzo, pelo que a visão ascendente assumida pelo padre-pintor inaciano que o teria executado surge algo
mal “resolvida”. Os textos jesuíticos atribuem o tecto ao referido Padre Velázquez, um inaciano espanhol sobre o qual nada se sabe, com
a colaboração de um noviço Félix.
(25) Este tecto, muito enegrecido e alterado na sua estrutura original, foi repintado em 1770 por Simão Baptista e Jerónimo de Barros (SAN-
TOS. op. cit., p. 18).
(26) Esta obra foi pintada em colaboração com Francisco Pinto Pereira: Cf. FALCÃO. Documentos da Real Casa de Nossa Senhora da
Piedade da Merceana relativos aos pintores Antônio Pimenta Rolim e Francisco Pinto Pereira.
(27) Cf. o estudo essencial de OLIVEIRA. A pintura de perspectiva em Minas Colonial (ciclo barroco).
(28) Arquivo da Igreja da Pena, Lº 1º de Acórdãos, 1709-1783, fl. 23. Inédito.
(29) Cf. atribuição em SANTOS. op. cit., p. 18.
(30) Para a primeira dessas obras, executada com Vicente Nunes (o colaborador de Simões Ribeiro na Biblioteca Joanina em Coimbra), cfr. os
documentos do Arquivo Histórico Municipal de Abrantes, Santa Casa da Misericórdia de Abrantes, Cx. 1, docs. nºs 36 e 39. Inéditos. A
pintura do tecto da igreja orçou em 140.000 rs.
(31) SERRÃO. Luis Gonçalves Sena, pintor de Santarém no século XVIII, p. 263-270.
(32) Este muito esquecido artista (só brevemente citado por SMITH. Marcelino de Araújo, p. 40 e 84) surge documentado em Barcelos em
1725 (activo então nas obras da Igreja do Senhor da Cruz) e em 1734, e surge regularmente em Braga a partir de 1737. Deixou uma obra
muito interessante e original, quer no desenho bastante pessoalizado das suas figuras, quer no cromatismo em tons frios, quer na uti-
lização de gordas arquitecturas barrocas, que definem uma verdadeira “tendência provincial do baccarellianismo”, ainda por estudar: é seu
o tecto prospéctico do sub-coro catedralíceo e o que encima as excepcionais “caixas de órgão” do escultor Marceliano de Araújo, na Sé de
Braga (1737-38); e podem ser-lhe atribuídos também, por evidenciadas razões de estilo, o tecto da nave da Capela das Convertidas (da-
tado de 1722), encomenda do Arcebispo D. Rodrigo de Moura Telles, o da capela-mor da Igreja do Convento do Salvador (actual Lar
Conde de Agrolongo, datado de 1724), e o de um Salão do Palácio dos Biscainhos (1724), todos em Braga. Temos, ao todo, cinco conjuntos
de pintura de perspectiva arquitectónica saídos de uma mesma oficina, activa nos anos 1722-1738. Estão por explorar no Arquivo Distrital
de Braga os livros notariais de Barcelos para esses anos, que seguramente darão algumas pistas a respeito do pintor Manuel Furtado...
Deve afirmar-se, entretanto, que o Noroeste português preserva um interessante acervo de pintura prospéctica de tectos barrocos e “ro-
cocós”, como o da Igreja de São Miguel de Entre-Ambos-os-Rios (Ponte da Barca), este do terceiro quartel de Setecentos (e não longe da
concepção de “forros de tipo muro-parapeito”, depois tão divulgados no Brasil), obras essas que carecem de estudo preliminar.
(33) MARUJO. Inventário histórico-artístico do Conselho de Soure.
(34) DIAS. As obras de Pascuale Parente na Beira Alta.

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 34-44, out. 1995 41


Victor Serrão; Magno Mello

em abóbadas afrescadas ou em Jerônimo Gomes Teixeira, Inácio com as arquitecturas de sotto in sù


forros de madeira em igrejas e pa- de Oliveira Bernardes (1695-1781), construídas acima da cimalha dos
lácios do Mundo Português. etc. De observar o facto, tardio e interiores dos templos(38). O qua-
Pode-se pensar, assim, em duas periférico, de também as “gera- dro pictórico mineiro alastra-se a
(ou mesmo três) grandes “ge- ções” de artistas baianos (José Jo- outras regiões, com a dominante
rações” sequenciais de artistas que aquim da Rocha(36), José Teófilo de e fundamental figura maior da
se comprazeram a explorar as Jesus, António Joaquim Franco pintura monumental brasileira, o
mesmas propostas, conforme Velasco, etc.) haverem executado pintor Manuel da Costa Ataíde,
aponta Reynaldo dos Santos(35) – tectos essencialmente com acen- natural de Mariana, activo entre
a primeira concomitante com o tuação do “quadro recolocado”. 1800 e 1828, já convertido ao re-
reinado do Magnânime, a última Quanto à pintura mineira, po- ceituário “rococó”, e que em 1814
posterior a 1755. A reconstrução dem-se situar fundamentalmen- chegou a tentar fundar uma “es-
efectuada em algumas igrejas e as te dois grandes “ciclos”, o ciclo bar- cola” de Desenho na região. Este
intervenções de restauro em pin- roco na tradição “arquitectónica”, novo “ciclo rococó” mineiro mostra,
turas de perspectiva ilusionística, com a obra do portuense António em oposição ao anterior ciclo bar-
ou mesmo da sua substituição to- Rodrigues Belo (tecto da Igreja de roco-joanino, a integração de
tal (como sucederá no caso do Cachoeira do Campo, 1755-1756), “arquitecturas fingidas” já despro-
tecto da Igreja da Pena), ou enfim português que introduz na região vidas de sentido integrador e
a gradual introdução do estuque de Minas Gerais o gosto pelas “sustentante”, mas meramente de-
na ornamentação das coberturas arquitecturas perspectivadas, corativas (é o caso dos chamados
(Grossi, etc.), revelam os novos numa postura que se estenderá a tectos com “muro-parapeito”, como
gostos de um mercado que não Diamantina com a obra do Guar- o da igreja do Carmo de Sabará
mais partilharia do uso das “qua- da-Mor José Soares de Araújo, [1818] por Joaquim Gonçalves da
draturas” nos tectos com arquitec- natural de Braga(37). Este último Rocha); por outro lado, as deco-
turas perspectivadas, que agora artista acentuará o gosto do ciclo rações das coberturas tendem a
somente simulam medalhões barroco, não só no colorido e na alargar-se ao âmbito parietal das
recolocados, enrolamentos e orna- luminosidade, como no que rela- capelas-mores, com “retábulos fin-
mentações de gosto “rococó” ou já tivo à temática contrareformista, gidos” de arquitectura simulada,
neoclássico. até ao final de Setecentos, com as “arquitecturas fingidas” nas paredes
O carácter da pintura de tec- suas obras em Diamantina, vila laterais, etc(39).
tos prospécticos da época áurea de mineira onde morre em 1799. É Com o avançar dos anos na
D. João V perdeu-se, de facto, após muito significativo observar que segunda metade do século XVIII,
o terremoto de 1755, com a “gera- a perspectiva aérea não integra o gosto pelo requinte ilusionís-
ção” onde pontificam José An- estas obras citadas do “ciclo bar- tico das arquitecturas perspecti-
tônio Narciso (1731-1811), Pedro roco mineiro”, que terão sempre vadas “ao italiano” vai desapa-
Alexandrino de Carvalho (1730- o infinito interrompido por uma recendo, assim como desapare-
1810), Simão Caetano Nunes, forte frontalidade, se comparada ce o uso da “quadratura” bacca-

(35) SANTOS. op. cit.


(36) Este pintor, educado em Portugal, ainda se mostra fiel à “quadratura” e às arquitecturas fingidas; ver o tecto da igreja de Nossa Senhora da
Conceição da Praia (1772-1774), em Salvador da Baía.
(37) Este grande pintor de tectos do Brasil era natural da freguesia de S. Vítor, e já em 1766 se encontrava em Minas (nomeado então guarda-
mor das terras e águas de mineração do Arraial do Tijuco de Serrofrio), trabalhando muito em Diamantina (tectos da igreja do Carmo e
da igreja de S. Francisco de Assis). Não se lhe conhecem referências antes da partida. Cf. OLIVEIRA. Estudos sobre o século XVIII em
Braga, p. 212-213.
(38) Cf. a respeito deste “ciclo barroco no Brasil”, entre outros, os estudos de DEL NEGRO. Nova contribuição ao estudo da pintura mineira,
pintura dos tetos de Igrejas, de OLIVEIRA. A pintura de perspectiva em Minas Colonial, ciclo rococó, p. 171-180, e de VALADARES.
No-tícia sobre a pintura religiosa monumental no Brasil, p. 238-272.
(39) Esta organização cenográfica dos espaços de culto, movida por razões financeiras e revelando uma inteligente gestão de recursos por
parte de irmandades quase sempre modestas, não é restrita ao Brasil, ao contrário do que se tem dito: também em Portugal subsistem
exemplos, como a Capela do Bom Sucesso em Soure (Coimbra), com forro pintado em 1787 e decoração que se estende às paredes,
ingenuamente pintadas com “fingimento de arquitecturas”.

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A pintura de tectos de pespectiva arquitectónica no Portugal joanino (1706-1750)

relliana, e os “medalhões” centrais


das coberturas, despidos do seu
caráter etéreo e “rasgado”, assu-
mem-se mais como quadros de
altar aplicados no tecto. A pin-
tura do brilhante ciclo que ora se
pretendeu estudar chegava as-
sim, paulatinamente, à fase do
seu próprio esgotamento...

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44 Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 34-44, out. 1995


Crise ideológica e produção intelectual: esquemas de pensamento próprio a uma situação histórica

CRISE IDEOLÓGICA E PRODUÇÃO


INTELECTUAL: ESQUEMAS DE
PENSAMENTO PRÓPRIO A UMA
SITUAÇÃO HISTÓRICA

Helenice Rodrigues da Silva


Centre National des Recherches Scientifiques – CNRS – Paris

A
RESUMO abordagem de um tal assunto pres-
O presente ensaio, situado no cam- supõe, a priori, a elucidação de uma
po ainda recente da história intelec-
tual, parte de uma reflexão sobre o
engajamento político dos intelectuais área de pesquisa relativamente re-
franceses para o estudo de uma po-
lítica sócio-cultural. Através de uma cente, na França, ou seja, a interrogação sobre
abordagem textual – o discurso dos
intelectuais – e extratextual ou his- um campo pouco estudado pelos historiado-
tórica – o contexto do pós-guerra na
França – além das premissas filo- res que se interessam pela análise da cultura e
sóficas do existencialismo e do per-
sonalismo, busca-se analisar as rela-
ções intrínsecas entre a ética dos in-
das idéias. Essa área, que se denomina história
telectuais e a política, o discurso e a
ação, a reflexão e a práxis.
intelectual, situa-se na interseção e na fronteira
de outras disciplinas.
Embora não tenha objetos nem métodos próprios, a história inte-
lectual difere da antiga história das idéias que, na maioria das vezes,
restringia-se a uma crônica das idéias e à justaposição cronológica de
resumos de textos políticos e/ou filosóficos. No entanto, o historiador
que se lança nesse domínio enfrenta (por razões inerentes à própria
lógica desse terreno) uma série de problemas de ordem metodológica e
epistemológica. Com efeito, ele não pode conceber suas pesquisas em
termos unicamente históricos; conseqüentemente, ele se vê na obri-

Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 45-49, out. 1995 45


Helenice Rodrigues da Silva

gação de se abrir a outras áreas ral e histórica precisa: o pós- minado momento histórico? Co-
do saber (à filosofia, à sociologia, guerra na França. No caso espe- mo ele os transforma em um ato
à lingüistica, à antropologia, cífico da nossa pesquisa, trata-se pessoal ou coletivo, capaz de tra-
etc.), a fim de escolher um “es- de elucidar as normas de condu- duzir um certo esprit du temps
quema” de interpretação ou de ta e de ação, as formas de per- (um fenômeno de moda)? De
definir uma certa inteligibili- cepção e de pensamento dos in- que maneira ocorre uma nova
dade. telectuais franceses no momen- distribuição, ou seja, a definição
A história intelectual se situa, to da descolonização e da guer- do panorama cultural? Por exem-
então, na fronteira de diversos ra da Argélia. Através de uma plo: do ponto de vista intelectu-
domínios do conhecimento. abordagem textual – o discurso al, a França do pós-guerra foi
Desse modo, ela visa a dois pó- dos intelectuais – e extra-textual marcada pela voga do existen-
los distintos de análise: por um – os acontecimentos históricos – cialismo (anos 40 e 50); em segui-
lado, o conjunto de funciona- as premissas filosóficas do exis- da pelo estruturalismo (anos 60
mento de uma sociedade intelec- tencialisme e do personalisme ex- e 70) e pelo chamado “retorno do
tual, suas práticas, seu modo de pressas, respectivamente, nas re- sujeito” (anos 80).
ser, suas regras de legitimação, vistas Esprit e Les Temps Mo- É certo que a prática e/ou a vi-
suas modalidades de exclusão e dernes, tentamos analisar as re- gência de um paradigma intelec-
de inclusão; por outro, as carac- lações intrínsecas entre a ética tual dependem de uma série de
terísticas de um momento histó- dos intelectuais (a chamada “éti- elementos discordantes entre si,
rico e conjuntural (por exemplo, ca de responsabilidade”, segun- ligados, ou não, ao domínio das
no caso francês, o pós-guerra, ou do expressão de Max Weber) e a idéias, mas também às condições
seja, a guerra fria, a descoloniza- política, o discurso e a ação, a re- políticas do momento, às quere-
ção, os chamados “30 anos glori- flexão e a práxis. las institucionais, às batalhas de
osos”: 1945/75, etc.), que impõe poder, às ilusões ou desilusões
esquemas de percepção, siste- coletivas, etc.
mas de valores e modalidades Na revista Le Débat (jan./fev.
específicas de pensar e de agir,
Aspecto metodoló- de 1990), o americano Thomas
por parte dos intelectuais. gico e epistemo- Pavel, autor de vários artigos so-
Para a investigação desse bre a história intelectual france-
campo, ainda pouco definido e lógico da história sa, questiona-se sobre esse as-
estudado, propomos colocar
questões de ordem metodológi-
intelectual sunto da maneira seguinte:

ca (viabilidade de conceitos e “Numa cultura tão centralizada co-


mo a da França, que fatores determi-
procedimentos de análise) e de Como abordar essa área de
nam as mudanças de paradigmas in-
ordem epistemológica (condi- estudo, essa “sub-disciplina”, es- telectuais? (...) O espírito do mundo?
ções de possibilidade, pistas pa- se domínio do conhecimento Um pequeno número de intelectuais
ra uma aplicação a uma situação ainda pouco trabalhado que, parisienses que conscientemente rejei-
histórica particular, por exem- muitas vezes, se confunde com taram as idéias de Sartre? A incoe-
rência mesma dessas idéias e a incoe-
plo). Partindo da reflexão sobre a chamada história cultural ou
rência das posições políticas que elas
uma forma de pensamento e de com a sociologia do campo inte- justificaram? A incapacidade de Sar-
comportamento (o chamado lectual? tre de explicar (ou pelo menos de acei-
“engajamento” político dos inte- A primeira questão que a his- tar) a existência do goulag? A expli-
lectuais franceses), propomos es- tória intelectual deve colocar é a cação se deve a uma questão de astú-
cia ou da razão? Da astúcia de um
tudar uma prática sócio-cultural: seguinte: por que alguém (um
grupo de pensadores? Da imperfeição
o “campo” intelectual (P. Bour- pensador ou um grupo de pen- de todo sistema de pensamento? Ou
dieu), ou seja, suas regras de fun- sadores) se apropria de uma sobretudo dos erros de uma teoria teo-
cionamento, suas estratégias, a “idéia” ou de um sistema de pen- lógica-política particular que, não obs-
“posição” dos intelectuais em samento e os transforma em pa- tante sua inaptidão, gozou, no pós-
guerra, de uma certa influência?”...
relação a uma situação conjuntu- radigma intelectual, num deter-

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Crise ideológica e produção intelectual: esquemas de pensamento próprio a uma situação histórica

Ora, a nossa hipótese se asse- lógica e epistemológica. Ela diz mesmo da confusão inextricável en-
melha à de Pavel, ou seja: a vi- respeito ao trabalho do historia- tre o quase-presente, relembrando tal
como ele foi vivido no momento do
gência ou o “modismo” de um dor face à sua prática, a seu dis- acontecimento, e a reconstrução fun-
paradigma intelectual “parisien- curso e ao discurso do Outro. Ela dada somente nos documentos, sem
se” (marxismo, freudianismo, es- coloca também o problema do contar as distorções inerentes à se-
truturalismo, história das men- “vestígio”, do “documento”, pa- leção interessada – e mesmo desin-
talidades, etc.) emerge de um ra a escrita da história. Logo, essa teressada – operada pela memória”.
certo espírito de “conquista” e de questão conduz à interrogação
No que diz respeito, em parti-
uma certa vontade de “domina- do valor mesmo dos textos (uti-
cular, ao domínio das idéias, essa
ção cultural” por parte dos pró- lizados pelo historiador), da va-
história do tempo curto requer
prios intelectuais (em virtude lidez de uma tal fonte, da fiabili-
técnicas e procedimentos espe-
mesmo da própria concepção dade de testemunhos. A questão
cíficos de organização das fon-
universalista da cultura france- do material para a escrita da his-
tes. Isso se deve talvez menos à
sa, profundamente centraliza- tória conduz à necessidade de se
relação existente entre a proximi-
da). Uma vez que o novo para- questionar sobre as condições de
dade temporal do acontecimen-
digma é aceito, adotado e legiti- possibilidade de se fazer do tem-
to e o ato da sua escritura que ao
mado pela comunidade intelec- po recente do acontecimento,
efeito do modismo – l’ air du
tual, ele comanda e determina, uma história.
temps – sobre a consciência dos
por um certo tempo, a fidelida- A escolha do corpus do meu
atores/testemunhos dessa histó-
de por parte dos pesquisadores trabalho sobre o engajamento
ria. Na verdade, a história inte-
desse “modelo dominante”. Por político dos intelectuais foi, em
lectual está ligada à idéia mesma
exemplo, durante o período his- parte, determinada por conside-
de mutação, de mudança e de
tórico da guerra fria, o intelectu- rações de ordem metodológica.
rupturas. O fim do marxismo,
al “legítimo” (valorizado e reco- Delimitando esse estudo aos tex-
como quadro teórico, e do comu-
nhecido como tal) é “engajado” tos das revistas intelectuais Es-
nismo, como modelo cultural e
e da esquerda. prit e Les Temps Modernes, ou
político, produziu, nesses últi-
Nessa última década, os inte- seja, destacando ou acentuando
mos anos, no campo cultural
lectuais franceses tornaram-se a narração dos atores/testemu-
francês, uma mudança radical
objeto de estudo da história e da nhos contemporâneos dos acon-
do paradigma intelectual.
sociologia. Se os intelectuais são tecimentos, eu quis me distanci-
Ora, a experiência histórica
os atores e escritores dessa his- ar das malhas da difícil dialética
dos intelectuais dos anos 60, ins-
tória recente, resta saber como história/memória. Escrever a his-
pirada grandemente pelo mito e
conciliar, então, uma auto-histó- tória do tempo presente, utili-
pela utopia, é hoje criticada, abo-
ria com a história dos historiado- zando o testemunho dos atores/
minada e renegada por esses
res? sobreviventes dessa história, é
mesmos intelectuais que vive-
É necessário que o historiador um exercício perigoso, pois a his-
ram esse período de crença re-
saia do universo naturalizado tória sofre o risco de tornar-se tri-
volucionária. Logo, a reconsti-
dos atores, é essencial que ele butária da memória. As proble-
tuição dessa ação intelectual, no
adote uma postura de etnólogo, máticas ligadas à noção do tem-
terreno político e ideológico, ten-
é importante que ele se desligue po têm incidência sobre a memó-
de a ser parcial e pouco fiel à ver-
e se desarticule de seu objeto de ria dos atores. A seleção, a defor-
dade. Em outras palavras, o tes-
estudo. Daí a importância, para mação consciente ou inconscien-
temunho deles é tendencioso.
o historiador, da escolha de suas te, operadas pela memória, po-
Os atores/testemunhos dessa
fontes. dem falsificar a leitura dos acon-
história estão sujeitos à pressão
Sem dúvida, a noção da “ver- tecimentos.
“ideológica” do momento pre-
dade” é indissociável, para o his- Segundo Paul Ricoeur, em
sente, ou seja, à influência de no-
toriador, da crítica do testemu- Les Temps et le récit,
vas correntes de pensamento in-
nho. Essa questão remete a ou-
“a crítica do relato dos sobreviven- telectual e político.
tras questões de ordem metodo- tes é um exercício difícil, em razão

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Helenice Rodrigues da Silva

lhes uma certa autoridade mo- É certo que a crise dos tem-
Os impasses do ral. O processo Dreyfus será uma pos atuais determina a produção
presente: o inte- referência histórica, altamente de um novo discurso ideológico,
simbólica, a todos os momentos o aparecimento de novos objetos
lectual e a nova de crise social e política da na- de estudo e de novos conceitos.
conjuntura ção.
Entretanto, a definição do ter-
Nesses últimos cinco anos, per-
cebemos que a produção intelec-
histórica mo intelectual, que varia segun- tual (histórica, sociológica, filo-
do a evolução mesma da socie- sófica, etc.) investiu na reflexão
Antes de abordar esse item, dade e da história francesa, é do conceito de identidade. “Iden-
convém tentar elucidar, inicial- problemática. Na verdade, o in- tidade nacional” tornou-se, as-
mente, essa figura mítica, simbó- telectual não corresponde a um sim, um objeto de reflexão. Face
lica e histórica que representa o conceito, mas a um comporta- à crise econômica atual, às incer-
“intelectual total” (Pierre Bour- mento. Até meados dos anos 70, tezas futuras quanto à constru-
dieu). Associado à idéia do “in- o intelectual se autodetermina- ção de uma Europa sem frontei-
telectual-profeta”, ou seja, aque- va não pela sua participação em ras, ao aumento da imigração
le pensador que anuncia e enun- uma profissão sociocultural, mas (do leste e do sul), a França se
cia o “progresso” ou o “fim da pelo uso que ele fazia de sua fecha e se inclina em direção a
História”, esse personagem foi notoriedade (já adquirida), em valores de referência como a na-
encarnado, no pós-guerra, de favor da defesa de uma causa, ção, a pátria, a memória nacio-
maneira exemplar pela pessoa através de um ato político: assi- nal, etc.
de um Sartre. naturas, petições, etc. Aqueles que trabalham na
Essencialmente francesa, a No sentido próprio e/ou figu- área do saber e das idéias (os no-
noção do intelectual tem um ca- rado do termo, o desapareci- vos intelectuais) elaboram dis-
ráter multiforme. Do ponto de mento de um Sartre, de um Bar- cursos sem paixão, extremamen-
vista histórico, sabemos que o thes, de um Foucault ... marca, te racionais, tentando analisar os
substantivo intelectual aparece simbolicamente, o fim de uma diversos aspectos da atual situa-
pela primeira vez, no final do época intelectual e o início mes- ção francesa. Os mais audacio-
século passado, durante o “caso mo de uma crise de representa- sos elaboram estudos prospecti-
Dreyfus”. Os assinantes de peti- ção de um modelo. Isso sem fa- vos.
ção pela revisão do processo em lar no final de toda uma cultura No número da revista Maga-
nome da justiça e da razão de política: a queda do comunismo zine Littéraire de julho de 1993,
Estado, são designados ironica- ou do marxismo, que serviram Edgar Morin, considerado o “so-
mente pelos anti-dreyfusards de modelo teórico e político, ou ciólogo e o filósofo das incerte-
como intelectuais. Num primeiro seja, de referência moral a diver- zas”, afirma o seguinte:
momento, essa palavra, com for- sas gerações de intelectuais. O
retorno ao consenso político (a “... O incerto, o provável, o indeter-
te conotação pejorativa, assimi- minado, o contraditório estão na na-
la o intelectual ao intelectual de inexistência mesma, na França,
tureza das coisas. Nosso mundo é
esquerda; quer dizer, a todos de categorias como “esquerda” um mundo onde há o imprevisível e
aqueles que exercem uma pro- e “direita”) e o retorno do intelec- a desordem, logo, o incerto. Não só o
fissão mental e que, tendo adqui- tual ao seu objeto de trabalho incerto empírico mas também o in-
(pesquisas, cursos) são sinais re- certo cognitivo, porque nossas cate-
rido uma certa notoriedade gorias mentais não conseguem apre-
(como um Emile Zola), colocam- veladores das novas tendências
ender as realidades propriamente in-
se a serviço da comunidade na- culturais. Essas revelam a exis- concebíveis como a origem do mun-
cional defendendo princípios tência de um novo tipo de inte- do. A incerteza profunda do mundo,
universais como a” verdade” e a lectual (apolítico, individualista a incerteza do futuro, diagnosticada
e egocêntrico), cuja única causa como sendo a ‘crise do futuro’, o des-
justiça. A intervenção pública moronamento das certezas ligadas à
dos intelectuais, resultando na a defender é ainda o domínio
idéia do progresso garantido in-
revisão do processo, assegura- fluido dos direitos humanos. troduziu em toda parte a certeza da

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Crise ideológica e produção intelectual: esquemas de pensamento próprio a uma situação histórica

incerteza. (...) os 45 anos de guerra nacionalismo, do estado-nação e nacionalismo está presente, no


fria foram 45 anos de certezas. Os do indivíduo-nação em diversos interior mesmo de suas própri-
miradores e os arames farpados cons-
tituíam a fronteira mais segura e evi-
pontos do território europeu. Da as fronteiras. Estados democrá-
dente. A geopolítica da guerra fria ex-União Soviética à ex-Yugoslá- ticos e aparentemente consolida-
desenhava o mundo numa carta cla- via, o nacionalismo parece ter dos, como a Bélgica e a Itália, su-
ra; e era preciso ir-se até a periferia triunfado. Justamente no seio cumbem a essa tentação centrí-
do conflito central para encontrar desses países, que antes prega- peta.
qualquer nuvem mais escura. Esse
período excepcional deu maus há-
vam a tolerância ou o fim de par- De volta à atualidade, a na-
bitos de pensamento”, conclui E. ticularismos nacionais. O debate ção é um novo tema de debate,
Morin. sobre Maastrich mostrou clara- determinando, desse modo,
mente que, mesmo nos países da uma grande parte da produção
É certo que, nesses últimos Europa Ocidental, o retorno ao intelectual francesa.
anos, presenciamos o retorno do

Referências bibliográficas
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BELKHIR, Jean. L’Intellectuel, l’intelligentsia et les manuels. Paris: Anthropos, 1983.
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DOSSE, François. Histoire du structuralisme. Paris: La Découverte, 1993.
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LEENHARDT, J. La force des mots: le rôle des intellectuels. Paris: Magrélis, 1981.
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