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Quem um dia irá dizer O Eduardo achou estranho e melhor não

Que existe razão comentar,


Nas coisas feitas pelo coração? Mas a menina tinha tinta no cabelo.
E quem irá dizer
Que não existe razão? Eduardo e Mônica eram nada parecidos
Ela era de Leão e ele tinha dezesseis.
Eduardo abriu os olhos, Ela fazia Medicina e falava alemão
Mas não quis se levantar E ele ainda nas aulinhas de inglês.
Ficou deitado e viu que horas eram.
Enquanto Mônica tomava um conhaque Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus,
No outro canto da cidade, De Van Gogh e dos Mutantes,
Como eles disseram... Do Caetano e de Rimbaud.
E o Eduardo gostava de novela
Eduardo e Mônica um dia se encontraram E jogava futebol-de-botão com seu avô.
sem querer
E conversaram muito mesmo pra tentar se Ela falava coisas sobre o Planalto Central,
conhecer... Também magia e meditação
Um carinha do cursinho do Eduardo que E o Eduardo ainda estava no esquema
disse "Escola, cinema, clube, televisão..."
"Tem uma festa legal e a gente quer se E, mesmo com tudo diferente
divertir!" Veio mesmo, de repente
Uma vontade de se ver
Festa estranha, E os dois se encontravam todo dia
Com gente esquisita E a vontade crescia,
"Eu não 'tô' legal, Como tinha de ser... (eeer)
Não agüento mais birita!"
E a Mônica riu e quis saber um pouco Eduardo e Mônica fizeram natação,
mais fotografia
Sobre o boyzinho que tentava Teatro, artesanato e foram viajar.
impressionar A Mônica explicava pro Eduardo
E o Eduardo, meio tonto, só pensava em Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar.
ir pra casa
"É quase duas, eu vou me ferrar!" Ele aprendeu a beber,
Deixou o cabelo crescer
Eduardo e Mônica trocaram telefone E decidiu trabalhar.
Depois telefonaram e decidiram se E ela se formou no mesmo mês
encontrar. Que ele passou no vestibular.
O Eduardo sugeriu uma lanchonete,
Mas a Mônica queria ver o filme do E os dois comemoraram juntos
Godard. E também brigaram juntos, muitas vezes
depois
Se encontraram então no parque da E todo mundo diz que ele completa ela
cidade E vice-versa,
A Mônica de moto e o Eduardo de Que nem feijão com arroz.
camelo.
Construíram uma casa há uns dois anos Porque o filhinho do Eduardo
atrás Tá de recuperação.
Mais ou menos quando os gêmeos Ah! Ahan!
vieram.
Batalharam com grana e seguraram legal E quem um dia irá dizer
A barra mais pesada que tiveram. Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília E quem irá dizer
E a nossa amizade dá saudade no verão. Que não existe razão?
Só que nessas férias não vão viajar,

A razão 

Ela sempre acordava tarde, demorava demais em se soltar dos sonhos, da fantasia
em que a irrealidade nos faz feliz. Abria os olhos com preguiça e se perguntava quanto
tempo teria dessa vez, até os gêmeos chegarem perto e começarem brigar e chorar de
novo. Não passava muito tempo em casa, seu trabalho exigia que ficasse até tarde, sob
estresse e com muitas responsabilidades. A medicina tira das pessoas o melhor e o pior
que elas têm.
Eduardo, inversamente, estava pronto antes da hora, antes de todo mundo acordar
e começar um novo e maravilhoso dia. Ele tinha as piores tarefas na casa: acordar às
crianças, fazê-las tomar banho, preparar o café-da-manhã, vesti-las, levá-las para escola,
buscá-las e trazê-las de novo, limpar, passar, cozinhar, em fim, todas as faxinhas da casa e
o cuidado das criaturas.
As coisas tinham mudado muito desde a adolescência, desde aquela época de
namoro, de borboletas na barriga, de se conhecer aos poucos. Tinham saudades desses
dias em que ele acordava tarde e andava de bicicleta sem preocupações enquanto ela
passava as tardes filosofando em alemão com os colegas do curso de medicina.
Agora, adultos, os problemas eram mais dos que podiam se contar com os dedos
das mãos, mais dos que achavam que iriam ter. Já se conheciam, sabiam o melhor e o pior
do outro e o utilizavam em infinitas batalhas rotineiras.
A fila andava, mas nem todos estavam felizes. O Edu estava querendo voltar ao
trabalho, já tinham se passado mais de dois anos e não voltara à procura. Sua mente
estava dividida: por um lado queria ficar e cuidar dos meninos, mas por outro estava com
saudades dos colegas, do ambiente laboral, do escritório, em poucas palavras, desejava
aquela outra vida que ficara para trás.
Por sua vez Moni não parava de reclamar, todo dia tinha um novo quesito para
diligenciar, uma nova questão para protestar. Sua vida agora orientava-se à solução de
conflitos ou à criação deles. Ora tinha algo para reclamar, ora inventava algo para reclamar.
Tudo era dilema.
Eles já tinham brigado infinitas vezes, porém esta vez parecia diferente. Lembravam
como já batalharam com grana e seguraram legal, enquanto agora não conseguiam nem se
olhar nos olhos. Seria difícil, contudo haveriam de se separar.
Ela resolveu ir embora, deixar os pequenos com o pai, na casa em Brasília, iria
morar no Rio, onde tinham lhe oferecido um ótimo trabalho no hospital do centro. Sabia que
eles estariam melhor com suas coisas, seus brinquedos, amigos, colegas da escola, a
própria escola era excelente (não queria mudá-las daí). Todo o que eles tinham estava lá,
ela ainda não tinha nada no Rio, mas quando tiver os chamaria para morar com ela.

Passaram-se uns meses, ela tinha arranjado apartamento, decorado os quartos,


encontrado escola para os meninos, até tinha adoptado um gatinho, só faltavam seus filhos
para que fosse um lar. O problema, agora, era convencer o Eduardo para que os deixasse ir
morar lá.
Viajou para Brasília e ficou na casa de uma amiga. Ela tinha recomendado fazer
jantar e conversar com os infantes sobre o apartamento no Rio, mas a Mónica decidira
levá-los para o parque, sendo que lá poderia jogar a bomba e deixá-los processá-la
enquanto brincavam. A tarde passava-se bem até que o Eduardo chegou, vinha procurar os
gêmeos para levá-los novamente para casa. Ela afastou-o um instante e lhe disse:

- Temos que falar.


- Então, fala.
- Agora que tenho como mantê-los e quero que venham para o Rio comigo.
- Você está falando sério? - disse ele com expressão confusa.
- Tô. Não aguento a saudade, não consigo estar longe dos meus anjos.
- Mas Moni… entenda, eles têm tudo aqui, quer tirar isso deles?
- Claro que não, mas também quero lhes dar a oportunidade de estar comigo lá, na
praia, numa cidade belíssima, por algo é chamada de ¨cidade maravilhosa¨, com isto
não estou dizendo que Brasillia não seja linda, não, tô querendo dizer que podem ter
as duas coisas: um tempo aqui, outro lá.

Claro que isso era mentira, ela só queria tirá-las daí, mas não podia dizer nada,
senão seu plano não daria certo. Seria bem mais fácil se ele não soubesse nada. Bateram
papo mais um pouco e decidiram acabar a conversa mais tarde na casa dele, era algo que
devia se pensar com calma.
Cumprimentaram-se apressadamente e partiram em direção oposta. Tudo ia bem,
seguia-se o plano, estava tudo calculado. Era só questão de tempo para que o oficial da
polícia chegasse à porta dela e informasse da tragédia.
Sua amiga esperava impaciente junto ao telefone enquanto enxergava pela janela
as árvores do parque esperando ver as luzes do carro de patrulha, porém, nada acontecia.
As amigas se perguntavam onde estaria o Eduardo nesse instante, morriam de intriga,
precisavam saber se a sua obra-prima sucedera.
A hora do jantar se aproximava e as notícias não chegavam, ela teria que ir à casa
dele e aquilo não era bom sinal, não tinham planejado que continuasse com vida para essa
hora. O que acontecera com o assassino? Será que tinha fugido?
A Mónica xingava para se mesma enquanto caminhava rumo ao apartamento do
infeliz (assim o chamava quando estava chateada com ele). Pensava que algo fora do
esperado tinha acontecido e escapara das mãos dela. Nessa hora ela podia estar sendo
processada por tentativa de homicídio, era coisa séria, a preocupação e os nervos a
corroiam.
Chegou devagar e tocou a campainha, o Monardo abriu a porta e cumprimentou a
mãe com beijos e abraços. Juntos entraram e começaram falar dos desenhos favoritos dele.
Minutos depois o irmão apareceu junto do pai e mal cumprimentaram ela enquanto
dirigiam-se à cozinha. Ela ficou brincando com o Mono (o apelido tinha sido colocado pela
avó depois do episódio com o monopatim) até que o jantar ficou pronto. Jantaram todos
juntos e quando os diabinhos foram dormir, os adultos ficaram na sala tomando um café,
tentando chegar a um acordo.

- Hoje aconteceu algo super louco, deixa eu te contar... - disse o Eduardo enquanto
soprava a xícarinha - Estávamos no supermercado quando uns bandidos entraram
gritando e exigindo que todo mundo ficasse deitado no chão.
- O que??? sério? com as crianças aí? ay, meu Deus, o que aconteceu? diga! vamos!
fala logo! - os gritos quase acordaram às crianças.
- Tranquila… - falou com tom calmo- estamos bem, está tudo bem, já passou. Ainda
não contei a melhor parte, deixa eu acabar a história, sim?
- Vai, te escuto… - resmungou tentando se acalmar.
- Então, nessa hora que começaram os gritos quase todo mundo foi de cabeça pro
chão, só que quem não fez isso foi o Carlão, lembra dele? o cara que fez comigo o
vestibular... tanto faz… Questão, o mano foi lá e encarou eles. Disse que sabia
quem eles eram e que caso tentassem fazer o golpe ele mesmo os mataria. Tirou
uma arma do cinto e berrou: “brigado Bolso!” - fez uma pausa e concluiu - pode
acreditar ?
- Nossa! que loucura, sorte sua que ele estivesse lá. Graças a Deus não aconteceu
nada com ninguém.
- Poisé… pena que ficamos demorados nesse lugar um tempão, não podíamos ir
embora até todas a testemunhas tiverem feito o depoimento, isso foi chato demais.
- ah… - exclamou pensativamente - deve ter sido por isso que você não esteve onde
devia estar às dez…
- como? - perguntou surpreso o Edu.
- Nada, nada, deixa pra lá. Bobagens sobre o trânsito nesta cidade, nada sério. -
apressou-se a aclarar quando tentava disfarçar a sua cara de espanto.
- Está bem. - disse desconfiadamente, enxergando os gestos cambiantes do rosto
dela.
- Olha, Edu, tô cansada, será que posso ficar no quarto de hóspedes? amanhã a
gente fala, tá?
- Tudo bem, descansa, vá com Deus.

A Mônica pousou a cabeça no travesseiro e deixou os pensamentos a invadirem.


Não sabia o que acontecera com o mercenário que contratara, ainda assim estava
arrependida de tê-lo empregado; seus filhos puderam ter corrido riscos desnecessários,
riscos que ela por sempre detestaria. Nesse momento dava igual se o cabra fugira ou não
conseguira chegar perto por causa do atraso, o que importava era que o idiota ainda estava
no caminho e com ele aí, ela não poderia afastar as crianças. Nos sonhos encontraria a
resposta, saberia o que fazer, sempre achava as soluções lá, pois existe razão para as
coisas feitas pelo coração, só faz falta saber encontrá-la. Devagar fechou os olhos e a
realidade foi sumindo, até a calma apoderar-se de tudo.
Frente a ela aparecia o trapaceiro, o mesmo criminoso que ela tinha pagado para
matar o Edu, caminhando devagar pelo corredor da casa. Portava um rifle e via-se a
convicção que tinha, era imparável. Chegou à porta desejada, abriu-a lentamente e
percorreu uns passos. Apontou, atirou.

Abriu os olhos, mas não quis se levantar, ficou deitado e viu que horas eram. O
relógio marcava as duas, o coração batia forte, o susto remanescia no seu corpo. O
Eduardo dormira quinze horas seguidas.

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