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Quem Um Dia Ira Dizer
Quem Um Dia Ira Dizer
A razão
Ela sempre acordava tarde, demorava demais em se soltar dos sonhos, da fantasia
em que a irrealidade nos faz feliz. Abria os olhos com preguiça e se perguntava quanto
tempo teria dessa vez, até os gêmeos chegarem perto e começarem brigar e chorar de
novo. Não passava muito tempo em casa, seu trabalho exigia que ficasse até tarde, sob
estresse e com muitas responsabilidades. A medicina tira das pessoas o melhor e o pior
que elas têm.
Eduardo, inversamente, estava pronto antes da hora, antes de todo mundo acordar
e começar um novo e maravilhoso dia. Ele tinha as piores tarefas na casa: acordar às
crianças, fazê-las tomar banho, preparar o café-da-manhã, vesti-las, levá-las para escola,
buscá-las e trazê-las de novo, limpar, passar, cozinhar, em fim, todas as faxinhas da casa e
o cuidado das criaturas.
As coisas tinham mudado muito desde a adolescência, desde aquela época de
namoro, de borboletas na barriga, de se conhecer aos poucos. Tinham saudades desses
dias em que ele acordava tarde e andava de bicicleta sem preocupações enquanto ela
passava as tardes filosofando em alemão com os colegas do curso de medicina.
Agora, adultos, os problemas eram mais dos que podiam se contar com os dedos
das mãos, mais dos que achavam que iriam ter. Já se conheciam, sabiam o melhor e o pior
do outro e o utilizavam em infinitas batalhas rotineiras.
A fila andava, mas nem todos estavam felizes. O Edu estava querendo voltar ao
trabalho, já tinham se passado mais de dois anos e não voltara à procura. Sua mente
estava dividida: por um lado queria ficar e cuidar dos meninos, mas por outro estava com
saudades dos colegas, do ambiente laboral, do escritório, em poucas palavras, desejava
aquela outra vida que ficara para trás.
Por sua vez Moni não parava de reclamar, todo dia tinha um novo quesito para
diligenciar, uma nova questão para protestar. Sua vida agora orientava-se à solução de
conflitos ou à criação deles. Ora tinha algo para reclamar, ora inventava algo para reclamar.
Tudo era dilema.
Eles já tinham brigado infinitas vezes, porém esta vez parecia diferente. Lembravam
como já batalharam com grana e seguraram legal, enquanto agora não conseguiam nem se
olhar nos olhos. Seria difícil, contudo haveriam de se separar.
Ela resolveu ir embora, deixar os pequenos com o pai, na casa em Brasília, iria
morar no Rio, onde tinham lhe oferecido um ótimo trabalho no hospital do centro. Sabia que
eles estariam melhor com suas coisas, seus brinquedos, amigos, colegas da escola, a
própria escola era excelente (não queria mudá-las daí). Todo o que eles tinham estava lá,
ela ainda não tinha nada no Rio, mas quando tiver os chamaria para morar com ela.
Claro que isso era mentira, ela só queria tirá-las daí, mas não podia dizer nada,
senão seu plano não daria certo. Seria bem mais fácil se ele não soubesse nada. Bateram
papo mais um pouco e decidiram acabar a conversa mais tarde na casa dele, era algo que
devia se pensar com calma.
Cumprimentaram-se apressadamente e partiram em direção oposta. Tudo ia bem,
seguia-se o plano, estava tudo calculado. Era só questão de tempo para que o oficial da
polícia chegasse à porta dela e informasse da tragédia.
Sua amiga esperava impaciente junto ao telefone enquanto enxergava pela janela
as árvores do parque esperando ver as luzes do carro de patrulha, porém, nada acontecia.
As amigas se perguntavam onde estaria o Eduardo nesse instante, morriam de intriga,
precisavam saber se a sua obra-prima sucedera.
A hora do jantar se aproximava e as notícias não chegavam, ela teria que ir à casa
dele e aquilo não era bom sinal, não tinham planejado que continuasse com vida para essa
hora. O que acontecera com o assassino? Será que tinha fugido?
A Mónica xingava para se mesma enquanto caminhava rumo ao apartamento do
infeliz (assim o chamava quando estava chateada com ele). Pensava que algo fora do
esperado tinha acontecido e escapara das mãos dela. Nessa hora ela podia estar sendo
processada por tentativa de homicídio, era coisa séria, a preocupação e os nervos a
corroiam.
Chegou devagar e tocou a campainha, o Monardo abriu a porta e cumprimentou a
mãe com beijos e abraços. Juntos entraram e começaram falar dos desenhos favoritos dele.
Minutos depois o irmão apareceu junto do pai e mal cumprimentaram ela enquanto
dirigiam-se à cozinha. Ela ficou brincando com o Mono (o apelido tinha sido colocado pela
avó depois do episódio com o monopatim) até que o jantar ficou pronto. Jantaram todos
juntos e quando os diabinhos foram dormir, os adultos ficaram na sala tomando um café,
tentando chegar a um acordo.
- Hoje aconteceu algo super louco, deixa eu te contar... - disse o Eduardo enquanto
soprava a xícarinha - Estávamos no supermercado quando uns bandidos entraram
gritando e exigindo que todo mundo ficasse deitado no chão.
- O que??? sério? com as crianças aí? ay, meu Deus, o que aconteceu? diga! vamos!
fala logo! - os gritos quase acordaram às crianças.
- Tranquila… - falou com tom calmo- estamos bem, está tudo bem, já passou. Ainda
não contei a melhor parte, deixa eu acabar a história, sim?
- Vai, te escuto… - resmungou tentando se acalmar.
- Então, nessa hora que começaram os gritos quase todo mundo foi de cabeça pro
chão, só que quem não fez isso foi o Carlão, lembra dele? o cara que fez comigo o
vestibular... tanto faz… Questão, o mano foi lá e encarou eles. Disse que sabia
quem eles eram e que caso tentassem fazer o golpe ele mesmo os mataria. Tirou
uma arma do cinto e berrou: “brigado Bolso!” - fez uma pausa e concluiu - pode
acreditar ?
- Nossa! que loucura, sorte sua que ele estivesse lá. Graças a Deus não aconteceu
nada com ninguém.
- Poisé… pena que ficamos demorados nesse lugar um tempão, não podíamos ir
embora até todas a testemunhas tiverem feito o depoimento, isso foi chato demais.
- ah… - exclamou pensativamente - deve ter sido por isso que você não esteve onde
devia estar às dez…
- como? - perguntou surpreso o Edu.
- Nada, nada, deixa pra lá. Bobagens sobre o trânsito nesta cidade, nada sério. -
apressou-se a aclarar quando tentava disfarçar a sua cara de espanto.
- Está bem. - disse desconfiadamente, enxergando os gestos cambiantes do rosto
dela.
- Olha, Edu, tô cansada, será que posso ficar no quarto de hóspedes? amanhã a
gente fala, tá?
- Tudo bem, descansa, vá com Deus.
Abriu os olhos, mas não quis se levantar, ficou deitado e viu que horas eram. O
relógio marcava as duas, o coração batia forte, o susto remanescia no seu corpo. O
Eduardo dormira quinze horas seguidas.