Em relação aos hom ens qu e estão longe d e nós, basta qu e
saibam os os fins a qu e se p rop õem p ara os aceitarm os ou os rejeitarm os em m assa. Ju lgam os os qu e estão m ais p erto d e nós p elos m eios qu e u sam p ara alcançar os seu s fins; e m u itas vezes não concord am os com os seu s fins, m as os am am os em virtu d e d os m eios qu e u sam e p or cau sa d a qu alid ad e d o seu qu erer. Ora, os sistem as filosóficos são só inteiram ente verd ad eiros p ara os seu s criad ores: os filósofos p osteriores consid eram -nos norm alm ente u m erro enorm e, e p ara os esp íritos m ais fracos não p assam d e u m a som a d e erros e d e verd ad es, enqu anto fim su p rem o são, em tod o o caso, um erro e, por isso condenável. Eis porque tantos desprezam o filósofo: é p orqu e os seu s fins d iferem d os fins qu e aqu eles se p rop õem ; esses só d e longe nos d izem resp eito. Qu em , em contrap artid a, se alegra com grand es hom ens, tam bém tem a su a alegria em tais sistem as, p ois, m esm o qu e sejam inteiram ente errôneos, não d eixam d e ter u m p onto com p letam ente irrefu tável, u m a d isp osição p essoal, u m a tonalid ad e; p od em u tilizar-se p ara constru ir a im agem d o filósofo: assim com o a p artir d e u m a p lanta se p od em tirar conclu sões sobre o solo. Em tod o o caso, trata-se d e u m a m aneira d e viver e d e ver as coisas hu m anas qu e já existiu , e qu e, p or isso, é p ossível: o "sistem a" ou , p elo m enos, u m a p arte deste sistema, é a planta nascida neste mesmo solo. Vou fazer a narração d e u m a versão sim p lificad a d a história d esses filósofos: d e cad a sistem a qu ero ap enas extrair o fragm ento de personalidade que contém e que pertence ao elemento irrefutável e ind iscu tível qu e a história d eve gu ard ar: é u m com eço para reencontrar e recriar essas natu rezas através d e com p arações. É tam bém a tentativa d e d eixar soar d e novo a p olifonia d a alm a grega. A tarefa consiste em trazer à lu z o qu e d evem os am ar e venerar sem p re e qu e não nos p od e ser rou bad o p or nenhu m conhecimento posterior: o grande homem.
II
Esta tentativa d e contar a história d os filósofos gregos m ais
antigos se d istingu e d e ou tras tentativas sem elhantes p ela su a concisão. Esta consegu iu -se p orqu e, em cad a filósofo, se m encionou ap enas u m nú m ero m u ito lim itad o d as su as teorias, em virtu d e, p ortanto, d e não ap resentar u m a im agem com p leta. Mas escolheram-se as d ou trinas em qu e ressoa com m aior força a p ersonalid ad e d e cad a filósofo, ao p asso qu e u m a enu m eração com p leta d e tod as as teses qu e nos foram transm itid as, com o é costu m e nos m anu ais, só leva a u m a coisa: ao total em u d ecim ento d o qu e é p essoal. É p or isso qu e esses relatos são tão aborrecid os: p ois em sistem as qu e foram refu tad os só nos p od e interessar a p ersonalid ad e, u m a vez qu e é a ú nica realid ad e eternam ente irrefu tável. Com três aned otas é p ossível d ar a im agem d e u m hom em ; vou tentar extrair três aned otas d e cad a sistem a, e não m e ocupo do resto. A FILOSOFIA NA ÉPOCA TRÁGICA DOS GREGOS
H á inim igos d a filosofia, e é bom os escu tar p rincip alm ente
quando desaconselham a metafísica às cabeças doentes dos Alemães e lhes p regam a p u rificação p ela física, com o Goethe, ou a cu ra p ela m ú sica, com o Richard Wagner. Os m éd icos d o p ovo rejeitam a filosofia; e qu em qu iser ju stificá-la terá d e d em onstrar p ara qu e é qu e os p ovos sãos p recisam e p recisaram d a filosofia. Se tal consegu ir d em onstrar, p od e ser qu e até os d oentes chegu em ao conhecim ento salu tar d as cau sas p elas qu ais a filosofia lhes é prejudicial. Há, sem dúvida, bons exemplos de uma saúde que pode su bsistir sem filosofia, ou qu e d ela faz u m u so m u ito m od erad o, qu ase lú d ico; e foi assim qu e os Rom anos p assaram a su a ép oca d ou rad a sem filosofia. Mas, será p ossível encontrar o exem p lo d e u m p ovo d oente ao qu al a filosofia tivesse restitu íd o a saú d e perdida? Se alguma vez ela manifestou ser útil, salutar e preventiva, foi p ara com os p ovos sãos; aos d oentes tornou -os sem p re aind a m ais d oentes. Se algu m a vez u m p ovo se d esm em brou e ficou ligad o aos seu s elem entos singu lares com u m a tensão frou xa, a filosofia nu nca religou intim am ente estes ind ivíd u os ao tod o. Sem p re qu e algu ém se d isp ôs a afastar-se e a constru ir à su a volta u m a barreira d e au to-su ficiência, a filosofia esteve sem p re p ronta p ara o isolar aind a m ais e o d estru ir através d esse m esm o isolam ento. Ela é p erigosa, qu and o não goza d a p lenitu d e d os seu s d ireitos, e só a saú d e d e u m p ovo, em bora não a d e cad a p ovo, lhe dá esse direito. Olhem os agora p ara aqu ela au torid ad e su p rem a qu e d ecid e o qu e se p od e cham ar d e são nu m p ovo. Os Gregos, enqu anto p ovo verd ad eiram ente são, ju stificaram a filosofia d e u m a vez p ara sem p re, p elo sim p les fato d e terem filosofad o; e m ais d o qu e tod os os ou tros p ovos. N em d eixaram d e o fazer a tem po; p ois até na árid a velhice se com p ortaram com o ard entes ad ora d ores d a filosofia, em bora entend essem p or filosofia ap enas os sofism as p ied osos e as su btilezas sacrossantas d a d ogm ática cristã. Por não terem sid o cap azes d e p arar a tem p o, encu rtaram m u ito o serviço que poderiam ter prestado à posteridade bárbara que, na ignorância e na im p etu osid ad e d a su a ju ventu d e, teve d e find ar fatalm ente presa nas redes e nas malhas artificialmente tecidas. Em contrap artid a, os Gregos sou beram com eçar na altu ra p róp ria, e ensinam m ais claram ente d o qu e qu alqu er ou tro p ovo a altu ra em qu e se d eve com eçar a filosofar. N ão só na d esgraça, como pensam aqueles que derivam a filosofia do descontentamento. Mas antes na felicid ad e, na p lena m atu rid ad e viril, na alegria ard ente d e u m a id ad e ad u lta corajosa e vitoriosa. Qu e os Gregos tenham filosofad o nesse m om ento [d a su a história] inform a-nos tanto sobre o qu e é a filosofia e sobre o qu e ela d eve ser com o sobre os p róp rios Gregos. Se eles tivessem então sid o esses hom ens p ráticos, esses brincalhões sóbrios e p recoces, tom o os im agina o filisteu eru d ito d os nossos d ias, ou se tivessem vivid o ap enas nu m lu xu rioso transp orte, ressoar, resp irar e sentir, com o su p õe o fantasista incu lto, a fonte d a filosofia nu nca teria vind o à lu z no meio deles. Quanto muito, teria surgido um regato que rapidamente d esap areceria na areia ou se evap oraria em nevoeiro, m as nu nca aqu ele rio largo d e ond u lação m ajestosa, qu e conhecem os com o a filosofia grega. É certo qu e se em p enharam em ap ontar o qu anto os gregos p od eriam encontrar e ap rend er no estrangeiro, no Oriente, e qu antas coisas, d e fato, trou xeram d e lá. Era, sem d ú vid a, u m esp etácu lo cu rioso, qu and o colocavam lad o a lad o os p retensos m estres d o Oriente e os p ossíveis alu nos d a Grécia e exibiam agora Zoroastro ao lad o d e H eráclito, os hind u s ao lad o d os eleatas, os egíp cios ao lad o d e Em p éd ocles, ou até m esm o Anaxágoras entre os ju d eu s e Pitágoras entre os chineses. N o p articu lar, p ou ca coisa ficou resolvid a; m as já a id éia geral, nós a aceitaríam os d e bom grad o, contanto qu e não nos viessem com a conclu são d e qu e a filosofia, com isso, germ inou na Grécia ap enas com o im p ortad a e não d e u m solo natu ral d om éstico, e até m esm o qu e ela, com o algo alheio, antes arru inou d o qu e beneficiou aos gregos. N ad a é m ais tolo d o qu e atribu ir aos gregos u m a cu ltu ra au tóctone: p elo contrário, eles sorveram tod a a cu ltu ra viva d e ou tros p ovos e, se foram tão longe, é p recisam ente p orqu e sabiam retom ar a lança ond e u m ou tro p ovo a aband onou , p ara arrem essá-la m ais longe. São ad m iráveis na arte d o ap rend izad o fecu nd o, e assim com o eles d evem os ap rend er d e nossos vizinhos, u sand o o ap rend id o p ara a vid a, não p ara o conhecim ento eru d ito, com o esteios sobre os qu ais lançar-se alto, e m ais alto d o qu e o vizinho. As p ergu ntas p elos inícios d a filosofia são com p letam ente ind iferentes, pois p or tod a p arte o início é o tosco, o am orfo, o vazio e o feio, e em tod as as coisas som ente os níveis su p eriores m erecem consid eração. Qu em , em lu gar d a filosofia grega, p refere d ed icar-se à egíp cia ou p ersa, p orqu e essas são talvez m ais "originais" e, em tod o caso, m ais antigas, p roced e com tanta d esatenção qu anto aqu eles qu e não p od iam contentar-se com a m itologia grega, tão esp lênd id a e p rofu nd a, enqu anto não a red u ziram a trivialid ad es físicas, sol, relâm p ago, tem p estad e e nu vem , com o seu s p rim órd ios, e qu e, p or exem p lo, p ensam ter reencontrad o na lim itad a ad oração d e u m a ú nica abóbad a celeste, nos ou tros ind ogerm anos, u m a form a d e religião m ais p u ra d o qu e a p oliteísta d os gregos. O cam inho em d ireção aos inícios leva p or tod a p arte à barbárie; e qu em se d ed ica aos gregos d eve sem p re ter p resente qu e o im p u lso d e saber, sem freios, é em si m esm o, em tod os os tem p os, tão bárbaro qu anto o ód io ao saber, e qu e os gregos, p or consid eração à vid a, p or u m a id eal necessid ad e d e vid a, refrearam seu im p u lso d e saber, em si insaciável - p orqu e aqu ilo qu e eles ap rend iam qu eriam logo viver. Os gregos filosofaram tam bém com o hom ens civilizad os e com os alvos d a civilização e, p or isso, pou p aram -se d e inventar m ais u m a vez, p or algu m a p resu nção au tóctone, os elem entos d a filosofia e d a ciência, m as p artiram logo p ara cu m p rir, au m entar, elevar e p u rificar esses elem entos ad qu irid os, d e tal m od o qu e som ente agora, em u m sentid o su p erior e em u m a esfera m ais p u ra, tornaram-se inventores. Ou seja, inventaram a cabeça filosófica típ ica, e a p osterid ad e inteira nad a m ais inventou d e essencial a acrescentar. Tod os os p ovos se envergonham qu and o se ap onta p ara u m a socied ad e d e filósofos tão m aravilhosam ente id ealizad a com o a d os velhos m estres gregos, Tales, Anaxim and ro, H eráclito, Parm ênid es, Anaxágoras, Em p éd ocles, Dem ócrito e Sócrates. Tod os esses hom ens são talhad os d e u m a só p ed ra. O seu p ensam ento e o seu caráter estão ligad os p or u m a necessid ad e estrita. Ignoram tod as as convenções, p orqu e naqu ela altu ra não havia nenhu m a classe d e filósofos e d e sábios. Tod os eles são, nu m a solid ão extraord inária, os ú nicos hom ens qu e então viviam votad os ao conhecim ento. Tod os p ossu em a energia virtu osa d os Antigos, p ela qu al su p eram tod os os qu e vêm d ep ois, e qu e lhes p erm ite encontrar a su a form a p róp ria e d ar a esta o seu d esenvolvim ento p leno, nos p orm enores m ais p equ enos e nas p rop orções m ais am plas, graças à m etam orfose. Pois não veio m od a algu m a ao seu encontro qu e se p restasse a aliviá-los. E assim eles form am , em conju nto, aqu ilo qu e Schop enhau er cham ou , em op osição à Rep ú blica d os sábios, u m a República de gênios: um gigante interpela outro através dos espaços vazios d o tem p o, e, sem se d eixarem p ertu rbar p elos anões m aliciosos e baru lhentos qu e gu incham p or baixo d ele, continu am o seu diálogo espiritual sublime. Propus-m e narrar d este elevad o d iálogo esp iritu al o qu e a nossa su rd ez m od erna d ele p od e ou vir e com p reend er: isto qu er, com certeza, d izer o m ínim o. Parece-m e qu e, neste d iálogo, os velhos sábios, d e Tales a Sócrates, falaram , se bem qu e d a form a mais geral, sobre aquilo que aos nossos olhos constitui a essência do esp írito helênico. Manifestam nos seu s d iálogos, com o tam bém já nas su as personalid ad es, os grand es traços d o gênio grego, d o qu al toda a história grega é uma impressão vaga, uma cópia difusa e que, p or isso; nos fala em term os p ou co claros. Mesm o qu e interp retássem os corretam ente tod a a vid a d o p ovo grego, encontraríam os sem p re ap enas o reflexo d a im agem qu e brilha em cores m ais vivas nos seu s gênios m ais elevad os. Já o p rim eiro acontecim ento d a filosofia em solo grego, a sanção d os sete sábios, é um traço nítido e inesquecível da imagem do gênio helênico. Outros p ovos têm santos, os Gregos têm sábios. Disse-se, com razão, qu e u m p ovo não é só caracterizad o p elos seu s grand es hom ens, m as sobretu d o p ela m aneira d e os reconhecer e d e os honrar. N ou tros tem p os, o filósofo é u m viajante solitário, casu al, em red ond ezas hostis, qu e abre o seu cam inho ou fu rtivam ente ou aos em p u rrões e d e p u nhos cerrad os. Só nos Gregos é qu e o filósofo não ap arece p or acaso: qu and o su rge, nos sécu los sexto e qu into, entre os perigos enorm es e as tentações d e u m a vid a secu larizad a, e qu and o avança, com o se tivesse saíd o d o antro d e Trofônio, p ara a op u lência, a alegria d a d escoberta, a riqu eza e a sensu alid ad e d as colônias gregas, ad ivinham os qu e ele vem com o ad m oestad or nobre e para o qu al nasceu a tragéd ia nesse sécu lo e qu e os m istérios órficos su gerem nos hieróglifos grotescos d os seu s ritos. O ju ízo d esses filósofos sobre a vid a e sobre a existência em geral é m u ito m ais significativo d o qu e u m ju ízo m od erno, p orqu e tinham d iante d e si a vid a nu m a p lenitu d e exu berante e p orqu e neles o sentim ento d o p ensad or não se enred a, com o em nós, na cisão d o d esejo d a liberd ad e, d a beleza, d a grand eza d a vid a, e d o instinto d e verd ad e, que só pergunta: o que é que a vida vale? A tarefa que o filósofo tem d e realizar no âm bito d e u m a civilização au têntica e p ossu id ora d e u m a grand e u nid ad e" d e estilo não se ad ivinha a p artir d a nossa cond ição e d a nossa exp eriência, p orqu e não tem os u m a tal civilização. Pelo contrário, só u m a civilização com o a grega p od e resp ond er à p ergu nta relativa à tarefa d o filósofo, só ela p od e, com o eu d izia, ju stificar a filosofia em geral, porqu e só ela sabe e pod e p rovar p orqu e razão e com o o filósofo não é u m viajante qu alqu er, acidental e surge disperso aqui e ali. Há uma necessidade férrea que acorrenta o filósofo a u m a civilização au têntica: m as o qu e acontece qu and o esta civilização não existe? Então, o filósofo é com o u m com eta im p revisível e assu stad or, ao p asso qu e, nu m a boa ocorrência, brilha com o o astro-rei no sistem a solar d a civilização. Os Gregos ju stificam o filósofo, p orqu e este, ju nto d eles, não é nenhum cometa. II
Dep ois d estas consid erações, ningu ém ficará chocad o p or eu
falar d os filósofos p ré-p latónicos com o se form assem u m a socied ad e coerente, e p or p ensar em d ed icar só a eles este critério. Com Platão, com eça u m a coisa com p letam ente nova; ou , com o com igu al razão se p od e d izer, em com p aração com aqu ela Rep ú blica d e gênios qu e vai d e Tales a Sócrates, falta aos filósofos, d esd e Platão, algo de essencial. Qu em se qu er p ronu nciar d esfavoravelm ente sobre aqu eles m estres m ais antigos, p od e consid erá-los u nilaterais, e os seu s ep ígonos, com Platão à frente, p oligonais. Seria m ais correto e m ais franco conceber os ú ltim os com o caracteres m istos e os p rim eiros com o os tip os p u ros. O p róp rio Platão é o p rim eiro caráter m isto extraordinário, tanto na sua filosofia como na sua personalidade. Na su a teoria d as Id éias, encontram -se u nid os elem entos socráticos, p itagóricos e heraclíticos: é p or isso qu e ela não é nenhu m fenôm eno d o tip o p u ro. Tam bém com o hom em , Platão m istu ra em si os rasgos d a reserva real e d a m od eração d e H eráclito, d a com p aixão m elancólica d o legislad or Pitágoras e d o d ialético p erscru tad or d e alm as Sócrates. Tod os os filósofos p osteriores são caracteres m istos d este tip o; qu and o neles sobressai algo d e u nilateral, com o acontece com os Cínicos, não se trata d e u m tip o, mas de uma caricatura. Mas é muito mais importante que eles sejam fu nd ad ores d e seitas e qu e as seitas p or eles fu nd ad as sejam tod as institu ições d e op osição contra a civilização helênica e contra a u nid ad e d e estilo até então existente. Bu scam , à su a m aneira, u m a redenção - m as só p ara p essoas ind ivid u ais ou , qu anto m u ito, p ara gru p os p róxim os d e am igos e d e d iscíp u los. A ativid ad e d os filósofos m ais antigos rem onta, em bora d isso não sejam conscientes, a u m a salvação e p u rificação em geral; não se p retend e interrom p er o cu rso im p onente d a civilização grega, d evem afastar-se d o seu cam inho os p erigos terríveis, o filósofo p rotege e d efend e a su a p átria. Mas agora, d esd e Pia tão, ele encontra-se no exílio e consp ira contra a pátria. É u m a grand e d esgraça qu e tenham os conservad o tão p ou co d estes p rim eiros m estres ,d a filosofia e qu e só nos tenham chegad o fragm entos. Por cau sa d esta p erd a, ap licam os-lhes, involu ntariam ente, m ed id as errad as' e som os inju stos p ara com os Antigos, em virtu d e d o fato p u ram ente casu al d e nu nca terem faltad o nem ad m irad ores nem cop iad ores a Platão e a Aristóteles. H á qu em ad m ita u m d estino p róp rio p ara os livros, u m fatu m libelloru m : m as d eve ter sid o u m d estino m u ito m aligno, se ele hou ve p or bem tirar-nos H eráclito, o p oem a m aravilhoso d e Em p éd ocles, os escritos d e Dem ócrito, qu e os Antigos equ ip araram a Platão e qu e u ltrap assa este ú ltim o em ingenu id ad e, e em troca nos d eu os escritos d os Estóicos, d os Ep icu ristas e d e Cícero. É p rovável qu e tenham os p erd id o a p arte m ais grand iosa d o p ensam ento grego e d a su a exp ressão em p alavras: u m d estino qu e não d evia su rp reend er qu em se lem bra d as d esventu ras d e Escoto Eriúgena ou de Pascal, e quem pensa que, neste século esclarecido, a p rim eira ed ição d o Mu nd o com o Vontad e e Rep resentação d e Schop enhau er teve d e fazer-se em m acu latu ra. Se algu ém qu er admitir para tais coisas a existência de um poder fatalista, que o faça e qu e d iga com Goethe: "Übers N ied erträchtige niem and sich beklage; d enn es ist d as Mächtige, w as m an d ir au ch sage". ("De realid ad es infam es ningu ém se qu eixe, p orqu e são p od erosas, d iga- se o qu e se d isser"). É sobretu d o m ais p od eroso d o qu e o p od er d a verd ad e. É tão raro qu e a hu m anid ad e p rod u za u m bom livro em qu e se entoe com liberd ad e au d az o canto d e gu erra d a verd ad e, o hino d o heroísm o filosófico: e, no entanto, é d os acasos m ais m iseráveis, d e obscu recim entos rep entinos d as cabeças, d e convu lsões su p ersticiosas e d e antip atias, e, em ' ú ltim a análise, tam bém d os d ed os d e escribas p regu içosos ou até d os insetos e d a chu va, qu e d ep end e se este livro vive m ais u m sécu lo ou se volta à p od rid ão e à terra. Mas não qu erem os qu eixar-nos, vam os antes ou vir as p alavras d e conclu são e d e consolação qu e H am ann d irige aos esp íritos cu ltos qu e se qu eixam d e obras p erd id as: "N ão tinha o artista, qu e fazia p assar u m a lentilha p elo fu nd o d e u m a agu lha, o su ficiente p ara treinar a habilid ad e ad qu irid a com u m alqu eire d e lentilhas? Qu er fazer-se esta p ergu nta a tod os os esp íritos eru d itos, qu e não sabem fazer m elhor u so d as obras d os Antigos d o qu e o homem faz das lentilhas". No nosso caso, deveria acrescentar-se que nenhu m a p alavra, nenhu m a aned ota, nenhu m a d ata p recisava d e nos ser transm itid a p ara além d o qu e já nos foi transm itid o, u m a vez qu e nos chegaria m enos p ara constatar a d ou trina geral, segundo a qual os Gregos justificam a filosofia. Um a ép oca qu e sofre d aqu ilo a qu e se cham a cu ltu ra geral, mas qu e não tem cu ltu ra nenhu m a, nem na su a vid a tem u nid ad e d e estilo, nu nca saberá o qu e fazer com a filosofia, m esm o qu e ela seja proclamada nas estradas e nos mercados pelo gênio da Verdade em p essoa. N u m a época assim , ela será m u ito m ais o m onólogo erudito d o p asseante solitário, o rou bo qu e o ind ivíd u o faz p or acaso, o segred o d o qu arto fechad o ou a conversa inofensiva d e velhos acad êm icos com crianças. N ingu ém p od e ou sar cu m p rir a lei d a filosofia em si, ningu ém vive filosoficam ente com aqu ela leald ad e elem entar qu e obrigava u m Antigo, ond e qu er qu e estivesse e fosse o qu e fosse qu e fizesse, a com p ortar-se, com o Estóico, se tinha ju rad o fid elid ad e à Stoa. Tod o o filosofar m od erno é restringid o a u m a ap arência d e eru d ição, p oliticam ente e p olicialm ente, p or governos, p or Igrejas, p or acad em ias, p or costu m es, p or m od as e p elas cobard ias d os hom ens: fica-se p elo su sp iro "se" ou p ela constatação "era u m a vez". A filosofia já não tem razão d e ser e, por isso, o hom em m od erno, se fosse corajoso e honesto, d everia rejeitá-la e bani-la com p alavras sem elhantes àqu elas com qu e Platão exp u lsou os p oetas trágicos d o seu Estad o. Ela p od eria, sem d ú vid a, rep licar, com o tam bém os poetas trágicos retorqu iram a Platão. Se fosse obrigad a a falar, p od eria, p or exem p lo, d izer: "Pobre p ovo! Será p or m inha cu lp a qu e eu vagu eio no teu solo como uma profetiza e que tenho de me esconder e de me d isfarçar, com o se fosse u m a p ecad ora e vós os m eu s ju ízes? Olhai a m inha irm ã, a arte Acontece-lhe com o a m im , refu giam o-nos ju nto d os Bárbaros e já não sabem os salvar-nos. Aqu i, é verd ad e, já não tem os nenhu m a boa razão d e ser: m as os ju ízes, p erante os qu ais encontram os razão, tam bém vos ju lgam e hão d e d izer-vos: "Tend e p rim eiro u m a civilização; d ep ois, ap rend ereis qu e a filosofia qu er e pode".
III
A filosofia grega p arece com eçar com u m a id éia absu rd a, com
a p rop osição: a águ a é a origem e a m atriz d e tod as as coisas. Será m esm o necessário d eter-nos nela e levá-la a sério? Sim , e p or três razões: em p rim eiro lu gar, p orqu e essa p rop osição enu ncia algo sobre a origem d as coisas; em segu nd o lu gar, p orqu e faz sem im agem e fabu lação; e enfim , em terceiro lu gar, p orqu e nela, em bora apenas em estad o d e crisálid a, está contid o o p ensam ento: "Tu d o é u m ". A razão citad a em p rim eiro lu gar d eixa Tales aind a em com u nid ad e com os religiosos e su p ersticiosos, a segu nd a o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em virtu d e d a terceira, Tales se torna o p rim eiro filósofo grego- Se tivesse d ito: "Da águ a p rovém a terra", teríam os ap enas u m a hip ótese científica, falsa, m as d ificilm ente refu tável. Mas ele foi além d o científico. Ao exp or essa rep resentação d e u nid ad e através da hipótese da água, Tales não superou o estágio inferior das noções físicas d a ép oca, m as, no m áxim o, saltou p or sobre ele. As p arcas e d esord enad as observações d a natu reza em p írica qu e Tales havia feito sobre a p resença e as transform ações d a águ a ou , m ais exatam ente, d o ú m id o, seriam o qu e m enos p erm itiria ou m esm o aconselharia tão m onstru osa generalização; o qu e o im p eliu a esta foi u m p ostu lad o m etafísico, u m a crença qu e tem su a origem em u m a intu ição m ística e qu e encontram os em tod os os filósofos, ao lad o d os esforços sem p re renovad os p ara exp rim i-Ia m elhor - a proposição: "Tudo é um". E notável a violência tirânica com qu e essa crença trata tod a a em p iria: exatam ente em Tales se p od e ap rend er com o p roced eu a filosofia, em tod os os tem p os, qu and o qu eria elevar-se a seu alvo m agicam ente atraente, transp ond o as cercas d a exp eriência. Sobre leves esteios, ela salta p ara d iante: a esp erança e o p ressentim ento p õem asas em seu s p és. Pesad am ente, o entend im ento calcu lad or arqu eja em seu encalço e bu sca esteios m elhores p ara tam bém alcançar aqu ele alvo sed u tor, ao qu al su a com p anheira m ais d ivina já chegou . Dir-se-ia ver d ois and arilhos d iante d e u m regato selvagem , qu e corre rod op iand o p ed ras; o p rim eiro, com p és ligeiros, salta p or sobre ele, u sand o as p ed ras e ap oiand o-se nelas p ara lançar-se m ais ad iante, aind a qu e, atrás d ele, afu nd em bru scam ente nas p rofu nd ezas. O ou tro, a tod o instante, d etém -se d esam p arad o, p recisa antes constru ir fu nd am entos qu e su stentem seu p asso p esad o e cau teloso; p or vezes isso não d á resu ltad o e, então, não há deus que possa auxiliá-lo a transpor o regato. O qu e, então, leva o p ensam ento filosófico tão rap id am ente a seu alvo? Acaso ele se d istingu e d o p ensam ento calcu lad or e m ed iad or p or seu vôo m ais veloz através d e grand es esp aços? N ão, p ois seu pé é alçad o p or u m a p otência alheia, lógica, a fantasia. Alçad o p or esta, ele salta ad iante, d e p ossibilid ad e em p ossibilid ad e, qu e p or u m m om ento são tom ad as p or certezas; aqu i e ali, ele m esm o apanha certezas em vôo. Um p ressentim ento genial as m ostra a ele e ad ivinha d e longe qu e nesse p onto há certezas d em onstráveis. Mas, em p articu lar, a fantasia tem o p od er d e cap tar e ilu m inar com o u m relâm p ago as sem elhanças: m ais tard e, a reflexão vem trazer seu s critérios e p ad rões e p rocu ra su bstitu ir as sem elhanças p or igu ald ad es, as contigü id ad es p or cau salid ad es. Mas, m esm o qu e isso nu nca seja p ossível, m esm o no caso d e Tales, o filosofar ind em onstrável tem aind a u m valor; m esm o qu e estejam rom p id os tod os os esteios qu and o a lógica e a rigid ez d a em p iria quiseram chegar até a proposição "Tudo é água", fica ainda, sempre, d ep ois d e d estroçad o o ed ifício científico, u m resto; e p recisam ente nesse resto há u m a força p rop u lsora e com o qu e a esp erança d e uma futura fecundidade. N atu ralm ente não qu ero d izer qu e o p ensam ento, em algu m a lim itação ou enfraqu ecim ento, ou com o alegoria, conserva aind a, talvez, u m a esp écie d e "verd ad e": assim com o, p or exem p lo, qu and o se p ensa em u m artista p lástico d iante d e u m a qu ed a d 'águ a, e ele vê, nas form as qu e saltam ao seu encontro, u m jogo artístico e p refigu rad or d a águ a, com corp os d e hom ens e d e anim ais, m áscaras, p lantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral, com tod os os p rotótip os p ossíveis: d e tal m od o qu e, p ara ele, a p rop osição "Tu d o é águ a" estaria confirm ad a. O p ensam ento d e Tales, ao contrário, tem seu valor - m esm o d ep ois d o conhecim ento d e qu e é ind emonstrável - em p retend er ser, em tod o caso; não- m ístico e não-alegórico. Os gregos, entre os qu ais Tales su bitam ente d estacou tanto, eram o op osto d e tod os os realistas, p ois propriamente só acreditavam na realidade dos homens e dos deuses e consid eravam a natu reza inteira com o qu e ap enas u m d isfarce, m ascaram ento e m etam orfose d esses hom ens-d eu ses. O hom em era p ara eles a verd ad e e o nú cleo d as coisas, tod o o resto ap enas ap arência e jogo ilu sório. Ju stam ente p or isso era tão incrivelm ente difícil para eles captar os conceitos como conceitos: e, ao inverso dos m od ernos, entre os qu ais m esm o o m ais p essoal se su blim a em abstrações, entre eles o m ais abstrato sem p re conflu ía d e novo em u m a p essoa. Mas Tales d izia: "N ão é o hom em , m as a águ a, a realidade das coisas"; ele começa a acreditar na natureza, na medida em qu e, p elo m enos, acred ita na águ a. Com o m atem ático e astrônomo, ele se havia tornado frio e insensível a todo o místico e o alegórico e, se não logrou alcançar a sobried ad e d a p u ra p rop osição "Tudo é u m " e se d eteve em u m a exp ressão física, ele era, contu d o, entre os gregos d e seu tem p o, u m a estranha rarid ad e. Talvez os ad m iráveis órficos p ossu íssem a cap acid ad e d e cap tar abstrações e d e p ensar sem im agens, em u m grau aind a su p erior a ele: m as estes só chegaram a exp rim i-lo na form a d a alegoria. Tam bém Ferécid es d e Siros, qu e está p róxim o d e Tales no tem p o e em m u itas d as concep ções físicas, oscila, ao exp rim i-Ias, naqu ela região interm ed iária em qu e o m ito se casa com a alegoria: d e tal m od o qu e, p or exem p lo, se aventu ra a com p arar a Terra com u m carvalho alad o, su sp enso no ar com as asas abertas, e qu e Zeu s, d ep ois d e sobrep u jar Kronos, reveste d e u m fau stoso m anto d e honra, ond e bord ou , com su a p róp ria m ão, as terras, águ as e rios. Contrap osto a esse filosofar obscu ram ente alegórico, qu e m al se d eixa trad u zir em im agens visu ais, Tales é u m m estre criad or, qu e, sem fabu lação fantástica, com eçou a ver a. natu reza em su as p rofu nd ezas. Se p ara isso se serviu , sem d ú vid a, d a ciência e d o d em onstrável, m as logo saltou p or sobre eles, isso é igu alm ente u m caráter típ ico d a cabeça filosófica. A p alavra grega qu e d esigna o "sábio" se p rend e, etim ologicam ente, a sap io, eu saboreio, sap iens, o d egu stad or, sisyp hos, o hom em d o gosto m ais ap u rad o; u m ap u rad o d egu star e d istingu ir, u m significativo d iscernim ento, constitu i, p ois, segu nd o a consciência d o p ovo, a arte p ecu liar d o filósofo. Este não é p ru d ente, se cham am os d e p ru d ente àqu ele qu e, em seu s assu ntos p róp rios, sabe d escobrir o bem . Aristóteles d iz com razão: "Aqu ilo qu e Tales e Anaxágoras sabem será cham ad o d e insólito, assom broso, d ifícil, d ivino, m as inú til, p orqu e eles não se im p ortavam com os bens hu m anos". Ao escolher e d iscrim inar assim o insólito, assom broso, d ifícil, d ivino, a filosofia m arca o limite qu e a sep ara d a ciência, d o m esm o m od o qu e, ao p referir o inú til, m arca o lim ite qu e a sep ara d a p ru d ência. A ciência, sem essa seleção, sem esse refinam ento d e gosto, p recip ita-se sobre tu d o o qu e é p ossível saber, na cega avid ez d e qu erer conhecer a qualquer p reço; enqu anto o p ensar filosófico está sem p re no rastro d as coisas dignas de serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes. Mas o conceito d e grand eza é m u tável, tanto no d om ínio m oral qu anto no estético: assim a filosofia com eça p or legislar sobre a grand eza, a ela se prend e u m a d oação d e nom es. "Isto é grand e", d iz ela, e com isso eleva o hom em acim a d a avid ez cega, d esenfread a, d e seu im p u lso ao conhecim ento. Pelo conceito d e grand eza, ela refreia esse im p u lso: aind a m ais p or consid erar o conhecim ento m áxim o, d a essência e d o nú cleo d as coisas, com o alcançável e alcançad o. Qu and o Tales d iz: 'Tu d o é águ a", o hom em estrem ece e se ergu e d o tatear e rastejar verm iform es d as ciências isolad as, p ressente a solu ção ú ltim a d as coisas e vence, com esse p ressentim ento, o acanham ento d os grau s inferiores d o conhecim ento. O filósofo bu sca ressoar em si m esm o o clangor total d o m u nd o e, d e si m esm o, exp ô-lo em conceitos; enqu anto é contem p lativo com o o artista p lástico, com p assivo com o o religioso, à esp reita d e fins e cau salid ad es com o o hom em d e ciência, enqu anto se sente d ilatar-se até a d im ensão d o m acrocosm o, conserva a lu cid ez p ara consid erar-se friam ente com o o reflexo d o m u nd o, essa lu cid ez qu e tem o artista d ram ático qu and o se transform a em ou tros corp os, fala a p artir d estes e, contu d o, sabe p rojetar essa transform ação p ara o exterior, em versos escritos. O qu e é o verso p ara o p oeta, aqu i, é p ara o filósofo o p ensar d ialético: é d este qu e ele lança m ão p ara fixar-se em seu enfeitiçam ento, para petrificá-la. E assim com o, p ara o d ram atu rgo, p alavra e verso são ap enas o balbu cio em u m a língu a estrangeira, p ara d izer nela o qu e viveu e contem p lou e qu e, d iretam ente, só p od eria anu nciar p elos gestos e p ela m ú sica, assim a exp ressão d aqu ela intu ição filosófica p rofu nd a p ela d ialética e p ela reflexão científica é, d ecerto, p or u m lad o, o ú nico m eio d e com u nicar o contem p lad o, m as u m m eio raqu ítico, no fu nd o u m a transp osição m etafórica, totalm ente infiel, em u m a esfera e língu a d iferentes. Assim contem p lou Tales a u nid ad e d e tu d o o qu e é: e qu and o qu is com u nicar-se, falou d a água!
IV
Enqu anto o tip o u niversal d o filósofo, na im agem d e Tales,
como que apenas se delineia de neblinas, já a imagem de seu grande su cessor nos fala m u ito m ais claram ente. Anaxim and ro d e Mileto, o p rim eiro escritor filosófico d os antigos, escreve com o escreverá o filósofo típ ico, enqu anto solicitações alheias não o d esp ojaram d e su a d esenvoltu ra e d e su a ingenu id ad e: em inscrições sobre p ed ra, estilo grandioso, frase por frase, cada uma testemunha de uma nova ilu m inação e exp ressão d o d em orar-se em contem p lações su blim es. O p ensam ento e su a form a são m arcos d e m ilha na send a qu e cond u z àqu ela sabed oria altíssim a. N essa concisão lap id ar, d iz Anaxim and ro u m a vez: "De ond e as coisas têm seu nascim ento, ali tam bém d evem ir ao fu nd o, segu nd o a necessid ad e; p ois têm d e p agar p enitência e d e ser ju lgad as p or su as inju stiças, conform e a ord em d o tem p o". Enu nciad o enigm ático d e u m verd ad eiro p essim ista, inscrição oracu lar sobre a p ed ra lim iar d a filosofia grega, com o te interp retarem os? O ú nico m oralista seriam ente intencionad o d e nosso sécu lo, nos Parerga (volu m e II, cap ítu lo 12, su p lem ento à d ou trina d o sofrim ento d o m u nd o, ap ênd ice aos textos conexos), d epõe sobre nosso coração u m a consideração sim ilar. "O verd ad eiro critério p ara o ju lgam ento d e cad a hom em é ser ele p rop riam ente u m ser qu e absolu tam ente não d everia existir, m as se p enitencia d e su a existência p elo sofrim ento m u ltiform e e p ela m orte: o qu e se p od e esp erar d e u m tal ser? N ão som os tod os p ecad ores cond enad os à m orte? Penitenciam o-nos d e nosso nascim ento, em p rim eiro lu gar, p elo viver e, em segu nd o lu gar, p elo m orrer." Qu em lê essa d ou trina na fisionom ia d e nossa sorte hu m ana u niversal e já reconhece a m á índ ole fu nd am ental d a cad a vid a hu m ana no sim p les fato d e nenhu m a d elas su p ortar ser consid erad a atentam ente e m ais d e p erto - em bora nosso tem p o habitu ad o à ep id em ia biográfica p areça p ensar d e ou tro m od o, e m ais favoravelm ente, sobre a d ignid ad e d o hom em - qu em , com o Schop enhau er, ou viu , "nas altu ras d os ares hind u s", a p alavra sagrad a d o valor m oral d a existência, d ificilm ente p od erá ser im p ed id o d e fazer u m m etáfora altam ente antrop om órfica e d e tirar aqu ela d ou trina m elancólica d e su a restrição à vid a hu m ana p ara aplicá-la, por transferência, ao caráter universal de toda existência. Pod e não ser lógico, m as, em tod o caso, é bem hu m ano e, além d isso, está no estilo d o salto filosófico d escrito antes, consid erar agora, com Anaxim and ro, tod o vir-a-ser com o u m a emancipação d o ser eterno, d igna d e castigo, com o u m a inju stiça qu e d eve ser exp iad a p elo su cu m bir. Tu d o o qu e algu m a vez veio a ser, também perece outra vez, quer pensemos na vida humana, quer na águ a, qu er no qu ente e no frio: p or tod a p arte, ond e p od em ser percebid as p rop ried ad es, p od em os p rofetizar o su cu m bir d essas p rop ried ad es, d e acord o com u m a m onstru osa p rova exp erim ental. N u nca, p ortanto, u m ser qu e p ossu i p rop ried ad es d eterm inad as, e consiste nelas, p od e ser origem e p rincíp io d as coisas; o qu e é verdadeiram ente, conclu i Anaxim and ro, não p od e p ossu ir p rop ried ad es d eterm inad as, senão teria nascid o, com o tod as as ou tras coisas, e teria d e ir ao fu nd o. Para qu e o vir-a-ser não cesse, o ser originário tem d e ser ind eterm inad o. A im ortalid ad e e eternid ad e d o ser originário não está em su a infinitu d e e inexauribilidade - com o com u m ente ad m item os com entad ores d e Anaximandro -, m as em ser d estitu íd o d e qu alid ad es d eterm inad as, qu e levam a su cu m bir: e é p or isso, tam bém , qu e ele traz o nom e d e "o indeterminado".l O ser originário assim d enom inad o está acim a d o vir-a-ser e, ju stam ente p or isso, garante a eternid ad e e o cu rso ininterru p to d o vir-a-ser. Essa u nid ad e ú ltim a naqu ele "ind eterm inad o", m atriz d e tod as as coisas, p or certo só p od e ser d esignad a negativam ente p elo hom em , com o algo a qu e não p od e ser d ad o nenhu m p red icad o d o m u nd o d o vir-a-ser qu e aí está, e p od eria, p or isso, ser tom ad a com o equ ivalente à "coisa-em-si" kantiana. É certo qu e qu em é cap az d e se p ôr a d iscu tir com ou tros sobre o qu e tenha sid o p rop riam ente essa p roto-m atéria, se é p orventu ra u m a coisa interm ed iária entre ar e águ a, ou talvez entre ar e fogo, não entend eu nosso filósofo: o m esm o se p od e d izer d os qu e p ergu ntam seriam ente se Anaxim and ro p ensou su a p roto- m atéria com o m istu ra d e tod as as m atérias existentes. Tem os, antes, d e d irigir nosso olhar ao p onto d e ond e p od em os ap rend er qu e Anaxim and ro já não m ais tratou a p ergu nta p ela origem d este mundo de maneira puramente física, e de orientá-lo segundo aquela p rop osição lap id ar ap resentad a no início. Se ele p referiu ver, na p lu ralid ad e d as coisas nascid as, u m a som a d e inju stiças a ser exp iad as, foi o p rim eiro grego qu e ou sou tom ar nas m ãos o novelo d o m ais p rofu nd o d os p roblem as éticos. Com o p od e p erecer algo qu e tem d ireito d e ser! De ond e vem aqu ele incansável vir-a-ser e engend rar, d e ond e vem aqu ela contorção d e d or na face d a natu reza, d e ond e vem o infind ável lam ento m ortu ário em tod o o reino d o existir? Desse m u nd o d o inju sto, d o insolente d eclínio d a u nid ad e originária d as coisas, Anaxim and ro refu giou -se em u m abrigo m etafísico, d o qu al se d ebru ça agora, d eixa o olhar rolar ao longe, p ara enfim , d ep ois d e u m silêncio m ed itativo, d irigir a tod os os seres a p ergu nta: "O qu e vale vosso existir? E, se nad a vale, para qu e estais aí? Por vossa cu lp a, observo eu , d em orais-vos nessa existência. Com a morte tereis de expiá-la. Vede como murcha vossa Terra; os m ares se retraem e secam ; a concha sobre a m ontanha vos m ostra o qu anto já secaram ; o fogo, d esd e já, d estrói vosso m u nd o, qu e, no fim , se esvairá em vapor e fu m o. Mas sem p re, d e novo, voltará a ed ificar-se u m tal m u nd o d e inconstância: qu em seria capaz de livrar-vos da maldição do vir-a-ser?". Para u m hom em qu e faz tais p ergu ntas, cu jo p ensar arrebatad o rom p e constantem ente as m alhas em p íricas p ara logo lançar-se no m ais alto vôo su p ralu nar, nem tod o m od o d e viver pode ter sido bem-vindo. De bom grado aceitamos a tradição de que ele se ap resentava em ind u m entária p articu larm ente cerim oniosa e m ostrava u m orgu lho verd ad eiram ente trágico em seu s gestos e hábitos d e vid a. Vivia com o escrevia; falava tão solenem ente qu anto se vestia; elevava a m ão e p ou sava o p é com o se esse estar-aí fosse u m a tragéd ia em qu e ele teria nascid o p ara tom ar p arte com o herói. Em tu d o ele foi o grand e m od elo d e Em p éd ocles. Seu s concid ad ã os elegeram-no p ara cond u zir u m a colônia em igrante - talvez se alegrassem d e p od er ao m esm o tem p o venerá-lo e d esvencilhar-se dele. Também seu pensa m ento em igrou , e fu nd ou colônias: em Éfeso e Eléia não se d esvencilharam d ele e, se não p u d eram d ecid ir-se a p erm anecer ond e ele estava, sabiam , contu d o, qu e foram gu iad os p or ele ao lugar de onde agora, sem ele, se dispunham a prosseguir. Tales m ostra a necessid ad e d e sim p lificar o reino d a p lu ralid ad e e red u zi-lo a u m m ero d esd obram ento ou d isfarce d a ú nica qu alid ad e existente, a águ a. Anaxim and ro o u ltrap assa em dois passos. Pergunta-se, da primeira vez: "Mas, se há em geral uma u nid ad e eterna, com o é p ossível aqu ela p lu ralid ad e?", e d ed u z a resp osta d o caráter contrad itório d essa p lu ralid ad e, qu e consom e e nega a si m esm o. Su a existência se tom a p ara ele u m fenôm eno m oral, qu e não se legitim a, m as se p enitencia, p erp etu am ente, p elo su cu m bir. Mas, em segu id a, ocorre-lhe a p ergu nta: "Por qu e, então, tu d o o qu e veio a ser já não foi ao fu nd o há m u ito tem p o, u m a vez qu e já transcorreu tod a u m a eternid ad e d e tem p o? De ond e vem o flu xo sem p re renovad o d o vira-ser?" Ele só sabe salvar-se d essa p ergu nta p or p ossibilid ad es m ísticas: o vir-a-ser eterno só p od e ter su a origem no ser eterno, as cond ições p ara o d eclínio d aqu ele ser em u m vir-a-ser na inju stiça são sem p re as m esm as, a constelação d as coisas tem d esd e sem p re u m a índ ole tal qu e não se p od e p rever nenhu m térm ino p ara aqu ele sair d os seres isolad os d o seio d o "indeterminado". Aqui ficou Anaximandro: isto é, ficou nas sombras p rofu nd as qu e, com o gigantescos fantasm as, d eitam -se sobre a m ontanha d e u m a tal contem p lação d o m u nd o. Qu anto m ais se procurava aproximar-se do problema - como, em geral, pode nascer, p or d eclínio, d o ind eterm inad o o d eterm inad o, d o eterno o temporal, do justo a injustiça -, maior se tornava a noite.
H eráclito d e Éfeso su rgiu no m eio d esta noite m ística qu e
envolvia o p roblem a d o d evir d e Anaxim and ro, e ilu m inou -o com u m raio d e lu z d ivino: "Contem p lo o d evir", d iz ele, "e nu nca algu ém contem p lou com tanta atenção o flu xo e o ritm o eternos d as coisas. E o qu e é qu e eu vi? Legalid ad es, certezas infalíveis, vias imutáveis do direito, as Erinias que julgam todas as infrações às leis, o m u nd o inteiro a oferecer o esp etácu lo d e u m a ju stiça soberana e d e forças natu rais d em oníacas, p resentes em tod o o lad o e su bm issas ao seu serviço. Contem p lei, não a p u nição d o qu e no d evir entrou , m as a ju stificação d o d evir. Qu and o é qu e o crim e, a secessão se manifestou em formas invioláveis, em leis piedosamente venerad as? Ond e d om ina a inju stiça, d epara-se com o arbitrário, a d esord em , a irregu larid ad e, a contrad ição; m as ond e só reinam a lei e a d iké, filha d e Zeu s, com o neste m u nd o, com o p od eria aí vigorar a esfera d a cu lp a, d a exp iação, d a cond enação e, p or assim d izer, o lugar de suplício de todos os condenados ?" Heráclito tirou desta intuição duas negações entre si solidárias, qu e só vêm com p letam ente à lu z p ela com p aração com os ensinam entos d o seu p recu rsor. Em p rim eiro lu gar, negou a d u alid ad e d e d ois m u nd os totalm ente d iferentes, qu e Anaxim and ro se vira obrigad o a ad m itir; já não d istingu e u m m u nd o físico e u m m u nd o m etafísico, u m d om ínio d e qu alid ad es d efinid as e u m d om ínio d a ind eterm inação ind efinível. Ap ós este p rim eiro p asso, tam bém já não p ôd e coibir-se d e u m a m aior au d ácia d a negação: negou o ser em geral. Pois o ú nico m u nd o qu e ele conservou - um m u nd o rod ead o d e leis eternas não escritas, anim ad o d o flu xo e d o reflu xo d e u m ritm o d e bronze - nad a m ostra d e p erm anente, nad a d e ind estru tível, nenhu m balu arte no seu flu xo. H eráclito exclam ou m ais alto d o qu e Anaxim and ro: "Só vejo o d evir. N ão vos d eixeis enganar! É à vossa vista cu rta e não à essência d as coisas qu e se d eve o fato d e ju lgard es encontrar terra firm e no m ar d o d evir e d a evanescência. Usais os nom es d as coisas com o se tivessem u m a d u ração fixa; m as até o p róp rio rio, no qu al entrais p ela segu nd a vez, já não é o mesmo que era da primeira vez". O d om real d e H eráclito é a su a facu ld ad e su blim e d e representação intu itiva; ao p asso qu e se m ostra frio, insensível e hostil p ara com o ou tro m od o d e rep resentação qu e se efetiva em conceitos e com binações lógicas, p ortanto, p ara a razão, e p arece ter p razer em p od er contrad izê-la com algu m a verd ad e alcançad a p or intu ição; fá-lo com u m a insolência tal, em frases com o: "Tod as as coisas, em todos os tempos, têm em si os contrários", que Aristóteles o acu sa d e crim e su prem o p erante o tribu nal d a razão, d e p ecad o contra o p rincíp io d e contrad ição. Mas a rep resentação intuitiva engloba d ois asp ectos d iferentes: o p rim eiro é o m u nd o p resente, colorid o e em m u d ança, qu e se com p rim e à nossa volta em tod as as exp eriências, e p ortanto, as cond ições qu e tornam p ossível a experiência deste mundo, isto é, o tempo e o espaço. Pois se o tempo e o esp aço existem sem conteú d o d efinid o, p od em ser ap ercebid os ind ep end entem ente d e tod a a exp eriência, d e m aneira p u ram ente intu itiva. N este m od o d e consid eração d o tem p o, d esligad o d e tod as as exp eriências, H eráclito tinha o m onogram a m ais instrutivo, qu e resu m e tu d o o qu e se encontra no d om ínio d a rep resentação intu itiva. A su a concep ção d o tem p o é, p or exem p lo, a d e Schop enhau er, p ara o qu al cad a instante d o tem p o só existe na m ed id a em qu e d estru iu o instante p reced ente, seu p ai, p ara bem d ep ressa ser ele p róp rio tam bém d estru íd o; p ara ele, o p assad o e o futuro são tão vãos como qualquer sonho, e o presente é unicamente o lim ite, sem extensão nem consistência, qu e a am bos sep ara. Com o o tem p o, tam bém o esp aço, e, com o este, tam bém tu d o o qu e nele e no tem p o existe só tem u m a existência relativa, só existe p ara u m ou tro, a ele sem elhante, qu er d izer, qu e não tenha m ais p erm anência d o qu e ele. Eis u m a verd ad e d e evid ência im ed iata, acessível a tod os e, ju stam ente p or isso, d ifícil d e atingir p ela via d os conceitos e d a razão. Mas qu em a tem d iante d os olhos d eve tam bém p assar im ed iatam ente à conseqü ência heraclítica e d izer que a essência total da realidade é só atividade e que para ela não há ou tro m od o d e ser; foi o qu e Schop enhau er exp ôs (O Mu nd o com o Vontad e e Rep resentação, tom o I, livro p rim eiro, p arágrafo qu arto): "Ela só enche o esp aço, só enche o tem p o, na m ed id a em qu e age: a su a ação sobre o objeto im ed iato cond iciona a intu ição, na qu al u nicam ente existe; a conseqü ência d a ação d e qu alqu er ou tro objeto m aterial sobre ou tro só se conhece e só é consistente na m ed id a em que o último age agora de maneira diferente sobre o objeto imediato. A essência total d a m atéria só é, p ortanto, cau sa e efeito; o seu ser é a su a ação. De m od o m u itíssim o ap rop riad o se d esigna u m alem ão o conju nto d as coisas m ateriais com a p alavra "Wirklichkeit" [realid ad e efetiva], qu e é m u ito m ais exp ressiva d o qu e "Realitat". Aqu ilo sobre o qu e ela age, é d e novo a m atéria: tod o o seu ser e a su a essência consiste, p ois, ap enas na m od ificação regu lar qu e u m a p arte d esta m atéria p rod u z nu m a ou tra; p or consegu inte, ela é, p or natu reza, inteiram ente relativa, segu nd o u m a relação qu e só é válid a no âm bito d os seu s lim ites, e neste asp ecto é sem elhante ao tempo, semelhante ao espaço". O d ever ú nico e eterno, a inconsistência total d e tod o o real, qu e som ente age e flu i incessantem ente, sem algu m a vez ser, é, como Heráclito ensina, uma idéia terrível e atordoadora, muitíssimo afim , na su a influ ência, ao sentim ento d e qu em , nu m trem or d e terra, p erd e a confiança qu e tem na terra firm e. Foi p recisa u m a energia su rp reend ente p ara transform ar este efeito no seu contrário, em sublimidade e no assombro bem-aventurado. Heráclito chegou a este p onto graças a u m a observação d o verd ad eiro cu rso d o d evir e d a d estru ição, qu e ele concebeu sob a form a d a p olarid ad e, com o a d isju nção d e u m a m esm a força em d u as ativid ad es qu alitativam ente d iferentes, op ostas, e qu e tend em d e novo a u nir- se. Incessantem ente u m a qu alid ad e se cind e em si m esm a e se d ivid e nos seu s contrários: p erm anentem ente esses contrários tend em d e novo u m p ara o ou tro. O vu lgo, é verd ad e, ju lga reconhecer algo d e rígid o, acabad o, constante; na realid ad e, em cad a instante, a lu z e a som bra, o d oce e o am argo estão ju ntos e ligad os u m ao ou tro com o d ois lu tad ores, d os qu ais ora a u m , ora a ou tro cabe a su p rem acia. O m el é, segu nd o H eráclito, sim u ltaneam ente am argo e d oce, e o p róp rio m u nd o é u m jarro cheio d e u m a m istu ra qu e tem d e agitar-se constantem ente. Tod o o d evir nasce d o conflito d os contrários; as qu alid ad es d efinid as qu e nos p arecem d u rad ou ras só exp rim em a su p eriorid ad e m om entânea d e u m d os lu tad ores, m as não p õem term o à gu erra: a luta persiste pela eternidade fora. Tudo acontece de acordo com esta lu ta, e é esta lu ta qu e m anifesta a ju stiça eterna. É u m a id éia ad m irável, oriu nd a d a m ais p u ra fonte d o gênio helênico, qu e consid era a lu ta com o a ação contínu a d e u m a ju stiça hom ogênea, severa, vincu lad a a leis eternas. Só u m Grego era cap az d e fazer d esta rep resentação o fu nd am ento d e u m a cosm od icéia; é a boa Éris d e H esíod o, transfigu rad a em p rincíp io cósm ico, é a id éia d e com p etição d os Gregos singu lares e d a cid ad e grega, transferid a d os ginásios e d as p alestras d os agons artísticos, d a lu ta d os p artid os p olíticos e d as cid ad es entre si, p ara o m ais u niversal, d e m aneira qu e agora a engrenagem d o cosm os nela gira. Assim com o cad a Grego lu ta, com o se ap enas ele tivesse razão e com o se u m critério infinitam ente segu ro d a d ecisão ju d iciária d efinisse em cad a instante p ara qu e lad o tend e a vitória, assim tam bém lu tam entre si as qu alid ad es, segu nd o regras e leis invioláveis, im anentes ao com bate. As p róp rias coisas qu e a inteligência lim itad a d o hom em e d o anim al ju lga sólid as e constantes não têm existência real, não passam d o lu zir e d o faiscar d e esp ad as d esem bainhad as, são o brilho da vitória na luta das qualidades opostas. Essa lu ta qu e é p rópria d e tod o o d evir, essa flu tu ação eterna d a vitória, é assim d escrita p or Schop enhau er (O Mu nd o com o Vontad e e Rep resentação, tom o I, livro segu nd o, p arágrafo 27): "É necessário qu e a m atéria p ersistente m u d e incessantem ente d e form a, p orqu e fenôm enos m ecânicos, físicos, qu ím icos, orgânicos, gu iad os p ela cau salid ad e, lu tam com avid ez p elo p rim eiro p lano e d ilaceram m u tu am ente a m atéria, já qu e cad a u m qu er m anifestar a su a id éia.. Este conflito p od e observar-se em tod a a natu reza, p orqu e tam bém ela só existe m ed iante este conflito". As p áginas segu intes ap resentam as ilu strações m ais notáveis d este conflito: m as a tônica fu nd am ental d essa d escrição já não é a d e H eráclito p orqu e a lu ta, p ara Schop enhau er, não p assa d e u m a p rova d a au tocisão d o qu erer-viver, u m a au tocorrosão d este instinto som brio e confu so; é u m fenôm eno absolu tam ente horroroso, nad a beatificante. A arena e o objeto d esta lu ta é a m atéria, qu e as forças natu rais tentam d ilacerar u m as às ou tras, e tam bém o esp aço e o tempo, cuja união através da causalidade é precisamente a matéria.
VI
Enqu anto a im aginação d e H eráclito p erscru tava o u niverso
agitad o infatigavelm ente, a "realid ad e", com o olhar d o esp ectad or encantad o qu e vê lu tar com alegria inú m eros p ares sob a vigilância d e árbitros severos, teve u m p ressentim ento aind a m ais su blim e; já não p od ia consid erar os p ares a lu tar e os ju ízes com o sep arad os u ns d os ou tros, os p róp rios ju ízes p areciam estar a lu tar, os lu tad ores p areciam estar a ju lgar-se a si m esm os - sim , u m a vez qu e ele, no fu nd o, só se ap ercebeu d a ju stiça eternam ente reinante, ousou exclamar: "A própria luta dos seres múltiplos é a pura justiça! E, d e resto, o u no é o m ú ltip lo. Pois, qu al é a essência d e tod as essas qu alid ad es? Deu ses im ortais? São seres sep arad os qu e, d esd e o com eço e sem fim , agem p or si m esm os? E se o m u nd o qu e vem os só conhece o d evir e a d estru ição e ignora o qu e p erm anece, não d everiam talvez essas qu alid ad es constitu ir u m m u nd o m etafísico d e ou tra esp écie: não p rop riam ente u m m u nd o d a u nid ad e, com o o qu e Anaxim and ro p rocu rava atrás d o véu flu tu ante d a m u ltip licid ad e, m as u m m u nd o d e m u ltip licid ad es eternas e essenciais ?" - Em bora o tenha negad o com veem ência, não voltou talvez H eráclito a entrar, p or u m d esvio, na ord em cósm ica d u p la, a braços com u m Olim p o d e nu m erosos d eu ses e d em ônios im ortais - isto é, d e m u itas realid ad es - e com u m m u nd o hu m ano, qu e só vê as nu vens d e p oeira d a lu ta olím p ica e o brilho d as lanças d ivinas - isto é, u m d evir e nad a m ais? Anaxim and ro tinha-se p recisam ente abrigad o d as qu alid ad es d efinid as, refu giand o-se no seio d o "Ind efinid o"m etafísico, p orqu e essas qu alid ad es nascem e p erecem , tinha-lhes negad o a existência verd ad eira e essencial; m as não p arece agora qu e o d evir é ap enas o evid enciar d e u m a lu ta d e qu alid ad es eternas? N ão se d everia voltar à fraqu eza p ecu liar d o conhecim ento hu m ano, qu and o falam os d o d evir - enqu anto na essência d as coisas talvez não haja d evir algu m , m as u nicam ente a coexistência de múltiplas realidades verdadeiras que se subtraem ao devir e à destruição? Eis saíd as e falsos cam inhos qu e não são d ignos d e H eráclito; ele grita p ela segu nd a vez: "o u no é o m ú ltip lo". As inúmeras qualidades de que podemos aperceber-nos não são essências eternas, nem fantasm as d os nossos sentid os (Anaxágoras ad m itira a p rim eira [d estas p ossibilid ad es], Parm ênid es a segu nd a), não são u m ser rígid o e arbitrário, nem a ap arência fu gi d ia qu e atravessa os cérebros hu m anos. A terceira p ossibilid ad e, a ú nica qu e restava a H eráclito, não p od erá ser ad ivinhad a nem calcu lad a antecip ad am ente p or ningu ém d otad o d e faro d ialético: p ois o qu e ele inventou aqu i é u m a realid ad e, até no d om ínio d as id éias místicas m ais inacred itáveis e d as m etáforas cósm icas m ais inesperadas. - O m u nd o é o jogo d e Zeu s ou , em term os físicos, d o fogo consigo m esm o, o u no só neste sentid o é sim u ltaneam ente o múltiplo. Para exp licar agora a introd u ção d o fogo concebid o com o força criad ora d o m u nd o, record o o d esenvolvim ento qu e Anaxim and ro tinha d ad o à teoria d a águ a com o origem d as coisas. Em bora confiand o em Tales no tocante ao essencial e reforçand o e d esenvolvend o as su as observações, Anaxim and ro não estava, no entanto, convencid o d e qu e não hou vesse qu alqu er ou tro grau d e qu alid ad e antes e, p or assim d izer, p or d etrás d a águ a; p arecia-lhe antes qu e o ú m id o se form ava p or si m esm o a p artir d o qu ente e d o frio. Por isso, o quente e o frio deveriam ser os estádios preliminares d a águ a, as qu alid ad es aind a m ais originárias. O d evir com eça qu and o elas se separam d o ser p rim ord ial, d o "Ind efinid o". H eráclito qu e, com o físico, se su jeitou à au torid ad e d e Anaxim and ro, interp reta esta teoria d o qu ente segu nd o Anaxim and ro com o o sop ro, o hálito qu ente, os vap ores secos, em su m a, o elem ento ard ente; acerca d este fogo, d iz o qu e Tales e Anaxim and ro tinham d ito d a águ a: qu e p ercorre em inú m eras m etam orfoses a send a d o d evir, sobretu d o nos três estad os p rincip ais, qu e são o qu ente, o ú m id o e o sólid o. Pois a águ a qu e d esce torna-se terra, e a águ a qu e sobe torna-se fogo; ou , com o H eráclito p arece ter d ito com m ais p recisão: d o m ar só se elevam os vap ores m ais p u ros, qu e servem d e alim ento ao fogo celeste d os astros; d a terra só se elevam os vap ores escu ros e nebu losos, qu e servem d e alim ento ao ú m id o. Os vap ores p u ros são a transição d o m ar p ara o fogo, os vap ores im p u ros são a transição d a terra p ara a águ a. É assim qu e o fogo segu e d u as vias d e m etam orfose qu e sobem e d escem incessantem ente, vão e vêm , lad o a lad o, d o fogo à água, daí à terra, da terra de novo à água e da água ao fogo. Embora H eráclito siga Anaxim and ro no tocante às m ais im p ortantes d estas concep ções, p or exem p lo, qu and o d iz qu e o fogo é su stentad o p elas evap orações, ou qu and o afirm a qu e d a águ a se sep ara em p arte a terra, em parte o fogo, mostra-se independente e contradiz o mestre, porque exclui o frio do processo físico, ao passo que Anaximandro o tinha colocad o ju nto d o qu ente p ara fazer nascer o ú m id o d a u nião d e am bos. Esta d ecisão era realm ente u m a necessid ad e p ara H eráclito: p ois se tu d o é fogo, nad a p od e haver, em tod as as p ossibilid ad es d a su a m etam orfose, qu e possa ser o seu contrário absolu to. H eráclito interp reta assim o qu e se cham a frio ap enas com o u m grau d o qu ente; e p ôd e ju stificar esta interp retação sem d ificu ld ad e algu m a. Mas m u ito m ais im p ortante d o qu e este afastamento da doutrina de Anaximandro é uma outra coincidência: ele acred ita, com o este ú ltim o, nu m colap so d o m u nd o, qu e se rep ete p eriod icam ente, e no su rgim ento sem p re novo d e u m ou tro m u nd o, nascid o d a conflagração cósm ica qu e tu d o aniqu ila. É extrem am ente su rp reend ente qu e H eráclito caracterize o p eríod o em qu e o m u nd o acorre ao encontro d essa conflagração cósm ica e d a d esintegração no fogo p u ro, com o u m d esejo e u m a necessid ad e, e a p lena consu m ação p elo fogo com o a sacied ad e; e só nos resta p ergu ntar com o entend e e d esignou ele o acord ar d o novo im p u lso d e form ação d o m u nd o, o efu nd ir-se nas form as d a m u ltip licid ad e. O p rovérbio grego segu nd o o qu al "a sacied ad e gera o crim e" (a hybris) p arece vir em nosso au xílio; e p od e m os, com efeito, perguntar-nos p or u m instante se H eraclito fez d erivar d a hybris este retorno à m u ltip licid ad e. Tom e-se este p ensam ento a sério: à sua luz, a face de Heráclito transforma-se aos nossos olhos, apaga-se o brilho orgu lhoso d os seu s olhos, traça-se no seu rosto u m a ru ga p rofu nd a d e renú ncia d olorosa e d e im p otência; p arece qu e com p reend em os p or qu e razão a Antigu id ad e tard ia lhe cham ou o "filósofo qu e chora". N ão é tod o o p rocesso u niversal u m castigo d a hybris? E não é a m u ltip licid ad e o resu ltad o d e u m crim e? N ão é a m etam orfose d o p u ro no im p u ro u m a conseqü ência d a inju stiça? N ão é a cu lp a transferid a p ara o p róp rio coração d as coisas? E se, assim, o mundo do devi r e dos indivíduos é dela libertado, não está ao mesmo tempo condenado a sofrer sempre as conseqüências dela?
VII
Esta p alavra p erigosa, a hybris, é d e fato a p ed ra d e toqu e d e
tod o o d iscíp u lo d e H eráclito; é aqu i qu e ele p od e d em onstrar se com p reend eu ou não o m estre. Será qu e este m u nd o está cheio d e culpa, de injustiça, de contradições e de sofrimento? Sim , grita H eráclito, m as só p ara o hom em lim itad o qu e vê as coisas sep arad as u m as d as ou tras e não no seu conju nto, não p ara o seu contu itivo; p ara este, tod os os contrários conflu em nu m a harm onia, invisível, é verd ad e, ao olhar hu m ano com u m , m as inteligível p ara qu em , com o H eráclito, se assem elha ao d eu s contem p lativo. Perante o seu olhar d e fogo, não su bsiste nenhu m a gota d e inju stiça no m u nd o d erram ad o em seu red or; e chega mesmo a superar, mediante uma comparação sublime, a dificuldade p rincip al em exp licar com o é p ossível qu e o fogo p u ro p ossa assu m ir form as tão im p u ras. N este m u nd o, só o jogo d o artista e d a criança tem u m vir à existência e u m p erecer, u m constru ir e u m d estru ir sem qu alqu er im p u tação m oral em inocência eternam ente igu al. E, assim com o brincam o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente ativo, constrói e destrói com inocência - e esse jogo joga-o o Eão consigo mesmo. Transformando-se em água e em terra, junta, como uma criança, montinhos de areia à beira-mar, constrói e derruba: de vez em quando, recomeça o jogo. Um instante d e sacied ad e: d ep ois, a necessid ad e ap od era-se ou tra vez d ele, tal com o a necessid ad e força o artista a criar. N ão é a p erversid ad e, m as o im p u lso d o jogo sem p re d esp ertand o d e novo qu e cham a ou tros m u nd os à vid a. As vezes, a criança lança fora o brinqu ed o: mas depressa recomeça a brincar com uma disposição inocente. Mas, logo qu e constrói, liga e ju nta as form as segu nd o u m a lei e em conformidade com uma ordem intrínseca. Ao m u nd o só assim o contem p la o hom em estético, qu e d ivisou no artista e na gênese d a obra d e arte com o o conflito d a multiplicidade que pode, no .entanto, ter em si uma lei e um direito, com o o artista se coloca m ed itativam ente acim a d a su a obra e nela está qu and o trabalha, com o a necessid ad e e o jogo, o conflito e a harmonia se jungem constantemente para gerar a obra de arte. Qu em irá exigir aind a d e u m a tal filosofia u m a ética com os im p erativos constranged ores d o "tu d eves", ou qu em acu sará H eráclito d e d ela carecer? O hom em é, até à su a ú ltim a fibra, necessid ad e, é absolu tam ente "não-livre" - qu and o se entend e p or liberd ad e a p retensão estú p id a d e p od er m u d ar arbitrariam ente a su a essentia com o se fora u m vestid o, p retensão esta qu e, até agora, tod as as filosofias sérias rejeitaram com o d esp rezo m erecid o. Se é tão p equ eno o nú m ero d e hom ens qu e vivem conscientem ente no jogos e em conform id ad e com o olho d o Artista qu e tu d o d om ina, é p orqu e as su as alm as são ú m id as e p orqu e os olhos, os ou vid os e, sobretu d o, o intelecto d os hom ens são m ás testem u nhas, qu and o "lam a ú m id a se ap od era d as su as alm as". N ão se p ergu nta p orqu e razão assim é, com o tam bém não se p ergu nta p orqu e é qu e o fogo transform a em terra e em águ a. H eráclito não tem razão algu m a p ara se sentir obrigad o a p rovar (com o Leibniz) qu e este m u nd o é o m elhor d e tod os; basta-lhe qu e seja o jogo belo e inocente d o Eão. Em geral, até consid era o hom em u m ser irracional; isto não im p ed e qu e em tod o o seu ser se cu m p ra a lei d a Razão soberana. Ele nem sequ er tem u m lu gar p rivilegiad o na natu reza, cu ja m anifestação m áxim a é o fogo, p or exem p lo, com o astro, m as não o hom em tolo. Se este, m ed iante a necessid ad e, recebeu algu m a p arte no fogo, já é u m p ou co m ais razoável; na. m ed id a em qu e consiste em águ a e em terra, d ificilm ente p articip a d a su a razão. N ad a o obriga, p elo fato d e ser. hom em , a conhecer o jogos. Mas, p orqu e é qu e há águ a, p orqu e é qu e há terra? Eis u m p roblem a qu e é bastante m ais sério p ara H eráclito d o qu e p ergu ntar p orqu e é qu e os hom ens são tão estú p id os e tão m au s. Tanto no hom em su p erior com o no m ais m ed íocre se revela a m esm a conform id ad e im anente à lei, a m esm a ju stiça. Mas, se se qu isesse p ergu ntar a H eráclito: "Porqu e é qu e o fogo não é sem p re fogo, p orqu e é qu e agora é águ a e logo terra?", este resp ond eria sim p lesm ente: "É u m jogo, não se abord a p ateticam ente e, sobretu d o, d e u m m od o m oral !" H eráclito só d escreve o m u nd o qu e existe e acha nele o m esm o p razer contem p lativo com qu e o artista olha p ara a su a obra em vias d e realização. Só os qu e não se d ão p or satisfeitos com a su a d escrição natu ral d o hom em é qu e o acham triste, m elancólico, choroso, som brio, bilioso, p essim ista e, nu m a só p alavra, od ioso. Mas esses hom ens, assim com o as su as antip atias e sim p atias, o seu ód io e o seu am or, tê-lo-iam d eixad o ind iferente, e ele tê-las-ia servid o com algu m as verd ad es d este tip o: "Os cães lad ram aos d esconhecid os", ou "O burro prefere a palha ao ouro". Tam bém é d esses d escontentes qu e p rovêm as nu m erosas queixas acerca da obscuridade do estilo de Heráclito: é provável que jam ais u m hom em , em tem p o algu m , tenha escrito d e u m m od o m ais claro e m ais lu m inoso. É verd ad e qu e se trata d e u m estilo m u ito lacônico e, p or isso, obscu ro p ara leitores m u ito ap ressad os. Mas é com p letam ente inexp licável qu e u m filósofo escrevesse d e p rop ósito com p ou ca clareza - acu sação qu e se costu m a fazer a Heráclito -, a não ser qu e tivesse razões p ara escond er os seu s p ensam entos, ou qu e fosse su ficientem ente tratante p ara d issim u lar em p alavras o vazio d o seu p ensam ento. É p reciso evitar cu id ad osam ente, m ed iante a clareza, com o d iz Schop enhau er, m esm o nas circu nstâncias norm ais d a vid a p rática, m al-entendidos possíveis; como é que alguém deveria poder exprimir-se de maneira p ou co p recisa, e até enigm ática, ao tratar d o objeto m ais d ifícil, m ais abstru so e m enos acessível ao p ensam ento, d as tarefas d a filosofia? Mas Jean-Pau l d á u m bom conselho, no tocante à brevid ad e: "Em geral, é bom qu e tu d o o qu e seja grand e - tu d o o qu e tenha sentid o p ara grand es esp íritos - se exp rim a em term os breves e (p ortanto) obscu ros, p ara qu e os esp íritos m ed íocres antes vejam ai u m não- sentid o d o qu e o trad u zam p ara a su a insip id ez. Pois os esp íritos vu lgares têm a habilid ad e rep u gnante d e só verem , nas p alavras m ais p rofu nd as e m ais ricas, a su a p róp ria op inião d e tod os os d ias". De resto, H eráclito não escap ou aos "esp íritos m ed íocres"; já os Estóicos o interp retaram su perficialm ente, rebaixand o a su a percepção estética fu nd am ental d o jogo d o m u nd o p ara a consid eração vu lgar p elas conveniências d o m u nd o, sobretu d o p elas vantagens d os hom ens; d e m aneira qu e a su a física, naqu elas cabeças, se tornou u m otim ism o grosseiro, com o constante convite dirigido a Pedro e a Paulo para o "Plaudite amici!"
VIII
H eráclito era orgu lhoso, e qu and o o orgu lho entra nu m
filósofo, então, é u m grand e orgu lho. A su a ação nu nca o rem ete p ara u m "p ú blico", p ara o ap lau so d as m assas e p ara o coro entu siasta d os seu s contem p orâneos. Segu ir u m cam inho solitário p ertence à essência d o filósofo. O seu d om é o m ais raro e, d e certa m aneira, o m enos natu ral, exclu ind o e am eaçand o tod os os ou tros d ons. O m u ro d a su a au to-su ficiência d eve ser d e d iam ante, p ara não ser d estru íd o nem p artid o, p orqu e tu d o se m ovim enta contra ele. A su a viagem p ara a im ortalid ad e é m ais p enosa e m ais contrariad a d o qu e qu alqu er ou tra; e, no entanto, ningu ém m ais d o qu e o filósofo p od e estar segu ro d e nela alcançar o seu p róp rio fim - p orqu e só ele sabe p erm anecer nas asas abertas d e tod as as ép ocas. O d esp rezo p elo p resente e p elo m om entâneo é p arte integrante d a grand e natu reza filosófica. Ele possu i a verd ad e: a rod a d o tem p o p od e rod ar p ara ond e qu iser, nu nca p od erá su btrair-se à verd ad e. E im p ortante saber se estes hom ens já viveram . N u nca se p od eria, p or exem p lo, im aginar u m orgu lho sem elhante ao d e H eráclito com o sim p les p ossibilid ad e. Parece qu e tod o o esforço p elo conhecim ento está, p or natu reza, votad o a nu nca ser satisfeito nem satisfatório. Por isso, ninguém, a não ser quem tenha sido ensinado pela história, p od erá acred itar nu m a tão régia au to-estim a e convicção d e ter sid o o ú nico galantead or d a verd ad e qu e teve êxito. H om ens assim vivem num sistema solar próprio; e é aí que se devem procurar. Um Pitágoras, u m Em p éd ocles tratavam -se a si m esm os com u m a consid eração sobre-hu m ana, com u m tem or qu ase religioso; m as o víncu lo d a com p aixão, conexo com a fé p rofu nd a na m etem p sicose e na u nid ad e d e tod os os seres vivos, voltou a levá-los aos ou tros hom ens, à su a salvação e red enção. Contu d o, é só nas m ontanhas m ais selvagens e m ais solitárias qu e se p od e vislu m brar, com u m arrep io, o sentim ento d a solid ão qu e invad ia o habitante efésio d o tem p lo d e Ártem is. Dele não jorra nenhu m a em oção p rep otente d e compaixão, nenhu m a ânsia d e aju d ar, d e salvar e d e rem ir. E u m astro sem atm osfera. O seu olhar ard ente, voltad o p ara d entro, vira- se, m orto e gélid o, p ara fora, com o se p ara som ente u m a ap arência. A sua volta, diretamente contra a fortaleza do seu orgulho, batem as vagas d a lou cu ra e d a p erversid ad e: ele volta-lhes as costas, cheio d e náu sea. Mas até os hom ens qu e têm u m coração sensível evitam esta m áscara, qu e p arece feita d e m etal; nu m santu ário isolad o, no m eio d e im agens d e d eu ses e ao p é d e u m a arqu itetu ra fria e d e calm a su blim id ad e, u m ser assim p od e p arecer m ais com p reensível. Com o hom em entre hom ens, H eráclito tem algo d e inacred itável; e se é verd ad e qu e foi visto a observar os jogos d e crianças baru lhentas, ao m enos nessa altu ra rep arou naqu ilo qu e jam ais algu ém consid erara nu m a ocasião d essas: o jogo d a grand e criança u niversal, o jogo d e Zeu s. Ele não p recisava d os hom ens, sem sequ er p ara o seu conhecim ento; tod as as inform ações qu e d eles se p od iam obter ao interrogá-los e tu d o o qu e os ou tros sábios antes d ele tinham tentad o p esqu isar não lhe interessavam . Falava com d esp rezo d esses hom ens interrogad ores, colecionad ores, em su m a, "históricos". "Foi a m im m esm o qu e eu p rocu rei e investigu ei", d izia ele d e si p róp rio, com u m a p alavra com qu e se d esigna a d ecifração d e u m orácu lo: com o se ele, e m ais ningu ém , fosse o verd ad eiro realizad or e cu m p rid or d o p receito d e Delfos: "Conhece-te a ti mesmo". Mas consid erou tu d o o qu e extraiu d esse orácu lo com o sabed oria im ortal e d igna d e ser eternam ente interp retad a, como tend o u m a ação ilim itad a no fu tu ro longínqu o segu nd o o m od elo d os d iscu rsos p roféticos d a Sibila. É su ficiente p ara a hu m anid ad e m ais d istante: d esd e qu e se ap liqu e a interp retar, com o se d e orácu los se tratasse, o qu e ele, com o o d eu s d e Delfos, "não d iz nem escond e". Em bora a anu ncie "sem u m sorriso, sem ornato e sem bálsam o", m as antes com u m a "boca esp u m ante", esta sabed oria d eve chegar ao m ilenário fu tu ro. Pois o m u nd o p recisa eternam ente d a verd ad e, p recisa, portanto, eternam ente d e H eráclito: em bora ele não p recise d o m u nd o. Qu e lhe im p orta a su a glória? A glória d os "m ortais em incessante flu xo !", com o ele brad a com d esd ém . A su a glória im p orta aos hom ens, não a ele; im ortalid ad e d a hu m anid ad e p recisa d ele, ele não p recisa d a im ortalid ad e d o hom em H eráclito. O qu e ele contem p lou , a d ou trina d a lei no d evir e d o jogo na necessid ad e, d eve contem p lar-se eternam ente a p artir d e agora: foi ele quem levantou a cortina deste espetáculo sublime.
IX
Enqu anto em tod as as p alavras d e H eráclito exp rim e-se a
im p onência e a m ajestad e d a verd ad e, m as d a verd ad e ap reend id a na intu ição, não d a verd ad e galgad a p ela escad a d e cord a d a lógica; enqu anto ele em u m êxtase sibilino vê, m as não esp ia, conhece m as não calcu la, ap arece ao lad o seu contem p orâneo Parm ênid es, com o u m p ar; igu alm ente com o tip o d e u m p rofeta d a verd ad e, m as com o qu e form ad o d e gelo, não d e fogo, vertend o em torno d e si uma luz fria e penetrante. N o fim d a su a vid a, p rovavelm ente, Parm ênid es teve u m m om ento d a m ais p u ra abstração, p u rificad a d e tod a efetivid ad e e com p letam ente exangu e; este m om ento - não-grego com o nenhu m ou tro nos d ois sécu los d a ép oca trágica -, cu jo p rod u to é a teoria d o ser, foi p ara su a p róp ria vid a u m p onto d e d em arcação qu e a d ivid iu em d ois p eríod os; este m esm o m om ento sep ara igu alm ente o p ensam ento p ré-socrático em d u as m etad es, send o qu e a p rim eira p od e ser cham ad a anaxim ând rica e a segu nd a p arm eníd ica. O p rim eiro e m ais antigo p eríod o d o p róp rio filosofar d e Parm ênid es aind a carrega igu alm ente a ru brica d e Anaxim and ro; este p eríod o p rod u ziu u m sistem a físico-filosófico efetivo com o resp osta às p ergu ntas d e Anaxim and ro. Qu and o m ais tard e ele foi acom etid o d aqu ele calafrio d e abstrações glaciais e form u lou a m ais sim p les p rop osição referente ao ser e ao não-ser, lá estava o seu p róp rio sistem a, entre as m u itas teorias antigas qu e su a p rop osição red u zia a nad a. Tod avia, ele p arece não ter p erd id o tod a a p ied ad e p aternal em relação à criança forte e bem form ad a d e su a ju ventu d e; e p or isto d iz: "Verd ad eiram ente existe ap enas u m cam inho correto; m as, querendo dirigir-se por outro caminho, o único correto é o da minha antiga op inião, p or seu s bens e su a conseqü ência". Protegend o-se com essa locu ção, d eu ao seu antigo sistem a físico u m im p ortante e extenso esp aço naqu ele grand e p oem a sobre a natu reza, o p róp rio p oem a qu e d evia p roclam ar o novo conhecim ento com o o ú nico itinerário p ara a verd ad e. Esta consid eração p aterna, exatam ente qu and o através d ela u m erro p od eria insinu ar-se, é u m resto d e sensibilid ad e hu m ana nu m a natu reza qu ase transform ad a em u m a m áqu ina d e p ensar, inteiram ente p etrificad a p ela intransigência lógica. Parm ênid es, cu jas relações p essoais com Anaxim and ro não m e p arecem inverossím eis, qu e não ap enas verossim ilm ente m as evidentemente teve na teoria de Anaximandro seu ponto de partida, tinha as m esm as su sp eitas em relação à p erfeita sep aração entre u m m u nd o qu e ap enas é e u m m u nd o qu e ap enas vem a ser, su sp eita qu e tam bém H eráclito ap reend era e qu e o cond u zira à negação d o ser. Am bos p rocu ravam u m a saíd a, fora d aqu ela op osição e sep aração d e u m a d u p la ord em d o m u nd o. Aqu ele salto no Ind eterm inad o, no ind eterm inável, através d o qu al Anaxim and ro escap ara d e u m a vez p or tod as ao reino d o vir-a-ser e d e su as qu alid ad es em p íricas d ad as, não era fácil p ara d u as cabeças tão ind ep end entes e d iferentes com o as d e H eráclito e Parm ênid es; eles p rim eiram ente p rocu raram and ar tão longe qu anto p od iam e reservaram o salto p ara aqu ele lu gar ond e o p é não encontra m ais ap oio e ond e se p recisa saltar p ara não cair. Am bos viam rep etid am ente aqu ele m esm o m u nd o qu e Anaxim and ro tão m elancolicam ente cond enara, exp licand o-o com o o lu gar d o crim e e sim u ltaneam ente d a exp iação p ara a inju stiça d o vir-a-ser. Com o já sabem os, em su a visão H eráclito d escobria qu e m aravilhosa ord enação, regu larid ad e e certeza m anifestam -se em tod o vir-a-ser; d aí conclu ía ele qu e o vir-a-ser não p od eria ser inju sto nem criminoso. Parm ênid es teve u m a visão com p letam ente d iferente; ele comparava as qualidades umas com as outras e acreditava descobrir qu e elas não seriam tod as id ênticas, m as p recisavam ser ord enad as em duas classes. Por exemplo: ele comparou a luz e a obscuridade e, assim , a segu nd a qu alid ad e era m anifestam ente ap enas a negação d a p rim eira; e assim ele d iferenciava qu alid ad es p ositivas e negativas, esforçand o-se seriam ente p or reencontrar e assinalar esta op osição fu nd am ental em tod o o reino d a natu reza. Seu m étod o era o segu inte: ele tom ava algu ns op ostos, p or exem p lo, leve e p esad o, su til e d enso, ativo e p assivo, e os rem etia àqu ela op osição m odelo entre lu z e obscu rid ad e; o qu e corresp ond ia à lu z era a qu alid ad e p ositiva e o qu e corresp ond ia à obscu rid ad e, a qu alid ad e negativa. Ele tom ava p or exem plo o p esad o e o leve: o leve ficava ao lad o d a lu z, o p esad o d o lad o obscu ro; e assim o p esad o valia p ara ele ap enas com o negação d o leve; este valend o com o qu alid ad e p ositiva. N este m étod o já se revela u m a ap tid ão ao p roced im ento lógico abstrato, resistente e fechad o às insinu ações d os sentid os. O p esad o p arece oferecer-se insistentem ente aos sentid os como qu alid ad e p ositiva, o qu e não d etinha Parm ênid es em m arcá-lo com u m a negação. Da m esm a form a ele ind icava a terra em op osição ao fogo, o frio em op osição ao qu ente, o d enso em op osição ao su til, o fem inino em op osição ao m ascu lino, o p assivo em op osição ao ativo, cad a u m ap enas com o negação d o ou tro; d e tal m aneira qu e, segu nd o su a visão, nosso m u nd o em p írico cind ia-se em d u as esferas sep arad as: naqu ela d as qu alid ad es p ositivas - com u m caráter lu m inoso, ígneo, qu ente, d elgad o, ativo, m ascu lino - e naqu ela d as qu alid ad es negativas. As ú ltim as exp rim em p rop riam ente ap enas a falta, a au sência d as ou tras, d as p ositivas; ele d escrevia tam bém a esfera ond e faltavam as qu alid ad es p ositivas com o obscu ra, terrestre, fria, p esad a, esp essa e em geral com caracteres p assivo-fem ininos. Ao invés d as exp ressões "p ositivo" e "negativo", ele tom ava os rígid os term os "ser" e "não- ser" e chegava com isso à tese, em contrad ição a Anaxim and ro, qu e este nosso mundo contém algo de ser e sem dúvida também algo de não-ser. N ão se d eve p rocu rar o ser fora d o m u nd o e com o qu e acim a d o nosso horizonte; d eve-se bu scá-lo d iante d e nós, em tod o vir-a-ser está contido algo de ser e em atividade. Entretanto, restava para ele a tarefa de dar a resposta correta à p ergu nta: "O qu e é o vir-a-ser?" E este era o m om ento em qu e ele p recisava saltar p ara não cair, aind a qu e, talvez, p ara tais natu rezas com o a d e Parm ênid es, tod o salto equ ivalesse a u m a qu ed a. Enfim , caím os no nevoeiro, na m ística d as qu alitates occu ltae, talvez até m esm o na m itologia. Parm ênid es vê, com o H eráclito, o vir-a-ser e o não-p erm anecer u niversais, m as ap enas p od e interp retar u m perecer de tal maneira que nele o não-ser precise ter uma culpa. Pois como podia o ser ter a culpa do perecer! Entretanto, o nascer precisa igu alm ente realizar-se p elo au xílio d o não-ser: p ois o ser está sem p re p resente e não p od eria, p or si m esm o, nascer nem exp licar nenhu m nascer. Assim , tanto o nascer com o o p erecer são produzidos pelas qualidades negativas. O fato de ter um conteúdo o qu e nasce e p erd er u m conteú d o o qu e p erece, p ressu p õe qu e as qu alid ad es p ositivas - isto é, aqu ele - p articip em igu alm ente d e am bos os p rocessos: "Ao vir-a-ser é necessário tanto o ser qu anto o não ser; se eles agem conjuntamente, então resulta um vir-a-ser". Mas com o colaboram o p ositivo e o negativo? Eles não d eviam ao contrário rep elir-se constantem ente com o contrad itórios, fazend o assim tod o vir-a-ser im p ossível? Aqu i, Parm ênid es lança m ão d e u m a qu alitas occu lta, d e u m a m ística tend ência d os contraditórios a ap roxim arem -se e atraírem -se, sim bolizand o aqu ela op osição p elo nom e d e Afrod ite, através d a conhecid a relação m ú tu a e em p írica entre m ascu lino e fem inino. O p od er d e Afrod ite é ligar os contrad itórios, o ser e o não-ser. Um d esejo u ne os elem entos qu e conflitu am e se od eiam : o resu ltad o é u m vir-a-ser. Qu and o o d esejo está satisfeito, o ód io e o conflito interno im p u lsionam novam ente o ser e o não-ser à sep aração - e então o homem fala: "A coisa perece".
Mas ningu ém se engana im p u nem ente com abstrações tão
terríveis com o são o ser e o não-ser. O sangu e se coagu la p ou co a pouco quando se toca nelas. Houve um dia em que Parmênides teve u m a estranha id éia, qu e p arecia invalid ar tod as as su as combinações anteriores, de forma que ele tinha prazer de jogá-las de lad o com o se joga u m saco d e m oed as sem valor. Su p õe-se habitu alm ente qu e na invenção d aqu ele d ia teve influ ência não ap enas a conseqü ência interna d e tais conceitos com o ser e não-ser m as tam bém u m a im p ressão externa, o conhecim ento d a teologia do velho e errante rap sod o, cantor d e u m a m ística d ivinização d a natureza, Xenófanes de Colofão. Xenófanes vivia u m a vid a extraord inária com o p oeta nôm ad e e tornou -se, através d e su as viagens, u m hom em m u ito instru íd o e m u ito instru tivo, qu e sabia interrogar e narrar; p or isso H eráclito o contava entre os p oli-historiad ores e em geral entre as natu rezas "históricas" no sentid o m encionad o. De ond e e qu and o lhe veio o im p u lso m ístico ao Uno e eternam ente Im óvel, ningu ém p od e verificar; ela é talvez a concep ção d e u m hom em qu e finalm ente se tom ou velho e sed entário, qu e ap ós o m ovim ento d e su a od isséia e ap ós u m ap rend er e investigar infatigáveis concebe o m aior e o su p rem o na visão d e u m rep ou so d ivino, na p erm anência d e tod as as coisas e u m a p az p anteística originária. N o restante, p arece-me p u ram ente casu al qu e, exatam ente no m esm o lu gar, em Eléia, conviviam d ois hom ens, cad a u m trazend o na cabeça u m a concep ção d a Unid ad e; eles não form am nenhu m a escola e não têm nad a em com u m , nad a qu e u m p u d esse ter ap rend id o d o ou tro e então ensinad o. Pois a origem d e concep ção d a Unid ad e é nu m completamente diferente, mesmo oposta à do outro; e, se um tivesse ap rend id o a teoria d o ou tro, ele p recisaria, ap enas p ara entend ê-la, traduzi-Ia p rim eiram ente em su a p róp ria lingu agem . Em tod o caso, nesta trad u ção se p erd eria exatam ente o esp ecífico d a ou tra teoria. Se Parmênides chegava à unidade do ser puramente através de uma su p osta conseqü ência lógica, retirand o-a d os conceitos d e ser e não- ser, Xenófanes é um místico religioso e, com aquela unidade mística, p ertence com efeito ao VI sécu lo. Ele não era u m a p ersonalid ad e tão transform ad ora com o Pitágoras; m esm o assim , teve em su as p eregrinações sem p re os m esm os im p u lsos e inclinações: cu rar, p u rificar e m elhorar os hom ens. Ele é o m oralista, m as aind a na categoria d os rap sod os; em u m a ép oca p osterior ele teria sid o u m sofista. Em su a ou sad a cond enação d os costu m es vigentes ela não tem p ar na Grécia; p or isso não se recolhia d ~ m aneira algu m a à solid ão, com o Platão e H eráclito, m as colocava-se, não com o u m Térsites d iscord ante, exatam ente d iante d aqu ele p ú blico qu e ele cond enava com cólera e ironia, p ela su a ad m iração ru id osa p or H om ero, p ela su a inclinação ap aixonad a às honras d os festivais d e ginástica, p or su a ad oração p elas p ed ras com form a hu m ana. Com ele a liberd ad e d o ind ivíd u o está no seu p onto m ais alto; e, nesta fu ga qu ase sem lim ites d e tod as as convenções, ele está m ais p róxim o d e Parm ênid es d o qu e naqu ela su p rem a u nid ad e d ivina qu e ele viu u m a vez, em u m d aqu eles estad os d e visão d ignos d e seu sécu lo, qu e tem em com u m com a visão d o ser d e Parm ênid es apenas a expressão e a palavra mas não certamente a origem. Foi antes em u m estad o d e esp írito op osto qu e Parm ênid es encontrou as teoria d o ser. N aqu ele d ia e nesse estad o ele exam inava aqu elas op osições coop erantes cu jo d esejo e ód io constitu íam o m u nd o e o vir-a-ser, o ser e o não-ser, as qu alid ad es p ositivas e negativas; e então ele se prend eu rep entinam ente, d esconfiad o, ao conceito d e qu alid ad e negativa, d o não-ser. Algo qu e não é p od e ser u m qu alid ad e? Ou , interrogad o no p lano d os p rincíp ios: algo qu e não é, p od e ser? Mas a ú nica form a d o conhecim ento qu e nos oferece im ed iatam ente u m a segu rança incond icional e cu ja negação igu ala a lou cu ra é a tau tologia A = A. Este m esm o conhecim ento tau tológico lhe d izia im p lacavelm ente: "O qu e não é, não é! O qu e é, é!" Rep entinam ente ele sentiu p esar sobre su a vid a u m m onstru oso p ecad o lógico; ele sem p re havia su p osto sem escrú p u lo qu e existiam qu alid ad es negativas, nãoseres em geral, havia su p osto qu e, form alm ente exp resso, A = não A: o qu e som ente a m ais com p leta p erversid ad e d o p ensam ento p od eria form ar. Mas, vend o as coisas d e p erto, com o ele m esm o p ercebeu , tod a a grand e m aioria d os hom ens ju lgava com a m esm a p erversid ad e; ele m esm o tinha ap enas tom ad o p arte d o crim e geral contra a lógica. Mas o m esm o m om ento qu e o acu sa d este crim e ilumina-o com a glória d e u m a d escoberta: ele encontrou u m princípio, a chave para o mistério universal, separado de toda ilusão hu m ana; na firm e e terrível m ão d a verd ad e tau tológica sobre o ser, ele desce agora ao abismo das coisas. N o cam inho ele encontra H eráclito: u m encontro infeliz! Para ele, que tinha colocado tudo na mais rigorosa separação entre o ser e o não-ser, os jogos d e antinom ias d e H eráclito tinham qu e ser p rofu nd am ente od iosos; p rop osições com o: "N ós sim u ltaneam ente som os e não som os"... "Ser e não-ser são e não são os m esm os", p rop osições através d as qu ais tu d o o qu e ele tinha d estrinchad o e esclarecid o se tornaria novam ente op aca e inexp licável, levaram -no ao fu ror. "Fora com os hom ens qu e nad a sabem e p arecem ter d u as cabeças", gritava ele. "Ju nto d eles está tu d o, tam bém seu p ensam ente, em flu xo. Eles ad m iram as coisas p erenem ente m as p recisam ser tão su rd os qu anto cegos p ara m istu rarem assim os contrários!" A com p reensão d a m assa, glorificad a através d os jogos d e antinom ias e exaltad a com o o cu m e d e tod o conhecim ento, era para ele uma vivência dolorosa e ininteligível. Ele m ergu lhava então no banho frio d e su as terríveis abstrações. O que é verdadeiro precisa estar no presente eterno, dele não p od e ser d ito "ele era", "ele será". O ser não p od e vir-a-ser: p ois d e qu e ele teria vind o? Do não-ser? Mas o não-ser não é e não p od e p rod u zir nad a. Do ser? Isto não seria senão p rod u zir-se a si m esm o. O m esm o acontece com o p erecer; ele é igu alm ente im p ossível, com o o vir-a-ser, com o tod a m u tação, com o tod o au m ento, com o tod a d im inu ição. É válid a em geral a p rop osição: tu d o d o qu e p od e ser d ito "foi" ou "será", não é; d o ser, entretanto, nu nca pode ser dito "não é". O ser é ind ivisível, p ois ond e está a segu nd a p otência qu e d evia d ivid i-lo? Ele é im óvel, p ois p ara ond e ele d evia m ovim entar- se? Ele não p od e ser nem infinitam ente grand e nem infinitam ente p equ eno, p ois ele é acabad o e u m infinito d ad o p or acabad o é u m a contrad ição. Assim lim itad o, acabad o, im óvel, em equ ilíbrio, em tod os os p ontos igu alm ente p erfeito com o u m a esfera, ele p aira, m as não em u m espaço, p ois caso contrário este esp aço seria u m segu nd o ser. Mas não p od em existir vários seres, p ois p ara sep ará- los p recisaria haver algo qu e não fosse u m ser: o qu e é u m a su p osição qu e se su p rim e a si m esm a. Assim , existe ap enas a Unidade eterna. Mas, se agora Parm ênid es voltava seu olhar ao m u nd o d o vira-ser, cu ja existência ele antes tinha p rocu rad o com p reend er através d e com binações tão engenhosas, ele zangava-se com os seu s olhos p or verem o vir-a-ser e com seu s ou vid os, p or ou vi-lo. Seu im p erativo agora era: "N ão siga os olhos estú p id os, não siga o ou vid o ru id oso ou a língu a, m as exam ine tu d o som ente com a força d o p ensam ento". Com isto ele op erava a p rim eira crítica d o ap arelho d o conhecim ento, extrem am ente im p ortante e fu nesta em su as conseqü ências, se bem qu e aind a m u ito insu ficiente. Através d isso ele rep entinam ente sep arou os sentid os e a cap acid ad e d e p ensar abstrações, a razão, com o se fossem d u as facu ld ad es inteiram ente d istintas, d esintegrou o p róp rio intelecto e anim ou aqu ela d ivisão com p letam ente errônea entre corp o e esp írito qu e, esp ecialm ente d esd e Pia tão, p esa sobre a filosofia com o u m a m ald ição. Tod as as p ercep ções d os sentid os, p ensa Parm ênid es, d ão ap enas ilu sões; e su a ilu são fu nd am ental é sim u lar qu e o não-ser é, qu e o vir-a-ser tem u m ser. Tod a aqu ela m u ltip licid ad e e varied ad e d o m u nd o conhecid o p ela exp eriência, a troca d e su as qu alid ad es, a ord enação d e seu s altos e baixos, foram p ostas d e lad o im p ied osam ente com o u m a ilu são e p u ra ap arência; não há nad a p ara ap rend er d ela, está p erd id o tod o trabalho qu e se tem com este m u nd o m entiroso, nu lo e alcançad o através d os sentid os. Qu em p ensa d esta m aneira, com o o fez Parm ênid es, su p rim e a possibilidade de ser um investigador da natureza; seu interesse pelo fenômeno cai, forma-se um ódio em não poder livrar-se desta eterna frau d e d os sentid os. Agora a verd ad e ap enas p od e habitar nas m ais d esbotad as e p álid as generalid ad es, nas caixas vazias d as m ais ind eterm inad as p alavras, com o nu m castelo d e teias d e aranha; e ao lad o d e u m a tal "verd ad e" senta-se o filósofo, igu alm ente exangu e com o u m a abstração, e lu ta enclau su rad o em fórm u las. A aranha qu er o sangu e d e su as vítim as; m as o filósofo p arm enid iano od eia ju stam ente o sangu e d e su a vítim a, o sangu e d a em p iria p or ele sacrificada.
XI
E ele era u m grego, cu jo "florescim ento" é ap roxim ad am ente
contem p orâneo à eclosão d a revolu ção jônica. Era então p ossível a um grego fugir da profusa efetividade como de um puro e impostor esqu em a d a im aginação. Fu gir, não, p or exem p lo, com o Pia tão, p ara o p aís d as id éias eternas, p ara a oficina d o artesão d o m u nd o, para passear os olhos nos protótipos imaculados, e inquebráveis das coisas - m as p ara o rígid o sossego d a m orte d o m ais frio e inexp ressivo conceito, o ser. Qu erem os gu ard ar-nos d e interp retar este fato notável segundo falsas analogias. Aquela fuga não era uma fu ga u niversal no sentid o d os filósofos hind u s, p ara ela não era exigid a a p rofu nd a convicção religiosa d a p erversid ad e, m u tabilid ad e e infelicid ad e d a existência; aqu ela m eta final, o rep ou so d o ser, não era asp irad a com o o m ergu lho m ístico em u m a rep resentação totalm ente satisfatória e encantad ora qu e, p ara os hom ens com u ns, é u m enigm a e u m escând alo. O p ensam ento d e Parm ênid es não traz em si nad a d o p erfu m e som brio e em briagante d os hind u s, p erfu m e qu e talvez não seja totalm ente im p ercep tível em Pitágoras e Em p éd ocles; o m ilagroso naqu ele fato, p ara aqu ele tem p o, é antes o inod oro, o incolor, o inanim ad o, o d eform ad o, a falta total d e sangu e, d e religiosid ad e e d e calor ético, o esqu em atism o abstrato - em u m grego! O m ilagroso é antes d e tu d o a terrível energia d a asp iração à certeza em u m a ép oca d e p ensam ento m ístico, fantástico e su m am ente m óvel. A oração d e Parmênides é: "ó deuses, concedei-me apenas uma certeza! E que ela seja u m a tábu a sobre o m ar d a incerteza, ap enas larga o su ficiente p ara p erm anecer sobre ela. Tom ai p ara vós tu d o o qu e vem -a-ser, o qu e é exu berante, m u lticolorid o, florescente, enganad or, excitante e vivo; e dai-me apenas a única, pobre e vazia certeza". Na filosofia de Parmênides preludia-se o tema da ontologia. A experiência não lhe apresentava em nenhuma parte um ser tal como ele o p ensava, m as, d o fato qu e p od ia p ensá-lo, ele conclu ía qu e ele p recisava existir: u m a conclu são qu e rep ou sa sobre o p ressu p osto d e qu e nós tem os u m órgão d e conhecim ento qu e vai à essência d as coisas e é ind ep end ente d a exp eriência. Segu nd o Parm ênid es, o elem ento d e nosso p ensam ento não está p resente na intu ição m as é trazid o d e ou tra p arte, d e u m m u nd o extra-sensível ao qu al nós tem os u m acesso d ireto através d o p ensam ento.. Aristóteles já fizera valer, contra, tod as as d ed u ções análogas, qu e a existência nu nca p ertence à essência, qu e o ser-aí nu nca p ertence à essência d as coisas. Exatam ente p or isso não se p od e, a p artir d o conceito "ser" - cu ja essentia é ap enas o ser -, conclu ir u m a existentía d o ser. A verd ad e lógica d aqu ela op osição entre o ser e não-ser é com p letam ente vazia, se não p od e ser d ad o o objeto su bjacente, se não p od e ser d ad a a intu ição através d a qu al esta op osição é d ed u zi d a p or abstração; sem este retorno à intu ição, ela é ap enas u m jogo com abstrações através d o qu al nad a é conhecid o d e fato. Pois o p u ro critério lógico d a verd ad e, com o Kant ensina, isto é, a concord ância d e u m conhecim ento com as leis form ais e gerais d o entendimento e da razão, é apenas o conditío sine qua non, portanto a cond ição negativa d e tod a verd ad e: a lógica não p od e ir m ais longe nem d escobrir, através d e nenhu m p roced im ento, o erro qu e se refere não à form a m as ao conteú d o. Assim , qu and o se p rocu ra o conteúdo para a verdade lógica da oposição: "O que é, é; o que não é, não é", não se encontra, d e fato, nem u m a ú nica efetivid ad e qu e lhe seja rigorosam ente conform e; d e u m a árvore eu tanto p osso d izer "ela é", em comparação com todas as coisas restantes, como "ela vem a ser", em com p aração com ela m esm a nu m novo m om ento d o tem p o, ou finalm ente, tam bém , "ela não é", "ela aind a não é árvore", p or exem p lo, enqu anto eu consid erava o arbu sto. As p alavras são ap enas sím bolos d as relações d as coisas entre si e conosco, elas não fu nd am em p arte algu m a a verd ad e absolu ta; e a p alavra "ser" ind ica ap enas a relação m ais geral qu e liga tod as as coisas, igu alm ente com o a palavra "não-ser". Mas, se a p róp ria existência d as coisas não é d em onstrável, então a relação d as coisas entre si, o chamado "ser" e "não-ser", não pode ajudar a aproximarmo-nos nem u m p asso d o p aís d a verd ad e. Através d e p alavras e conceitos nós não chegam os jam ais a p enetrar a m u ralha d as relações, nem m esm o a algu m fabu loso fu nd am ento originário d as coisas; e m esm o nas p u ras form as d a sensibilid ad e e d o entend im ento, no espaço, no tem p o e na cau salid ad e, nós não ganham os nad a qu e se assem elhe a u m a veritas aeterna. É incond icionalm ente im p ossível, p ara o su jeito, qu erer conhecer e ver algo acim a d e si m esm o; tão im p ossível qu e conhecim ento e ser são, d e tod as as esferas, as m ais contrad itórias. Se Parm ênid es, na ingenu id ad e ignorante d a crítica do intelecto de então, podia presumir chegar a um ser-em-si a partir d e u m conceito eternam ente su bjetivo, hoje, d ep ois d e Kant, é u m a ignorância atrevid a colocar aqu i e ali, com o tarefa d a filosofia, p articu larm ente ju nto aos teólogos m al instru íd os qu e qu erem brincar d e filósofos, "ap reend er o absolu to com a consciência", ap roxim ad am ente na form a: "O absolu to já está p resente, senão com o ele p od eria ser p rocu rad o?" - com o se exp rim iu H egel. Ou na direção de Beneke: "O ser precisa estar dado de alguma maneira, ele p recisa d e algu m a m aneira estar acessível, sem o qu e nem m esm o o conceito d o ser p od eríam os ter". O conceito d o ser! Com o se ele já não m ostrasse na etim ologia a m ais p obre origem em pírica. Pois, no fu nd o, esse qu er d izer ap enas resp irar; e, qu and o o hom em o em p rega em relação a tod as as ou tras coisas, ele transfere a convicção qu e ele m esm o resp ira e vive às coisas, através d e u m a metáfora, isto é, através de algo ilógico, compreendendo a existência d estas coisas com o u m resp irar, segu nd o a analogia hu m ana. Logo, confunde-se o significad o original d as p alavras, p erm anecend o sem p re o fato d e qu e o hom em rep resenta o ser-aí d as ou tras coisas segu nd o a analogia com seu p róp rio ser-aí, p ortanto, antrop om orficam ente, em tod o o caso, através d e u m a transp osição ilógica. Mesm o p ara os hom ens, p ortanto, à p arte aqu ela transp osição, a p rop osição "eu resp iro, logo existe u m ser" é com p letam ente insu ficiente: p ois contra ela p od e ser feita a mesma objeção que contra o ambulo ergo sum ou ergo est.
XII
O ou tro conceito, d e m aior conteú d o qu e o d o ser e
igu alm ente já encontrad o p or Parm ênid es, é o d e Infinito, se bem qu e aind a não tão bem m anejad o com o p or seu d iscíp u lo Zenão. N ão p od e existir nad a d e infinito acabad o. O fato qu e nossa efetivid ad e, nosso m u nd o p resente, traga em si o caráter d aqu ele acabad o, significa segu nd o su a essência u m a contrad ição contra o lógico, em conseqü ência contra o real, e é ilu são, m entira, fantasm a. Zenão u sava sobretu d o u m m étod o d e d em onstração ind ireta; ele d izia, p or exem p lo: "N ão p od e existir nenhu m m ovim ento d e u m lu gar p ara ou tro, p ois, se existisse u m tal m ovim ento, estaria d ad o u m infinito acabad o, o qu e é u m a im p ossibilid ad e". N a corrid a, Aqu iles' não p od e alcançar a tartaru ga qu e tem u m a p equ ena vantagem . Pois, ap enas p ara alcançar o p onto d e ond e a tartaru ga p artiu , ele já p recisaria ter p ercorrid o u m a inú m era qu antid ad e d e esp aços, qu antid ad e infinita; p rim eiram ente m etad e d aqu ele esp aço, d ep ois a qu arta p arte, d ep ois a oitava, a d écim a sexta e assim ao infinito. Se ele d e fato alcança a tartaru ga, este é u m fenôm eno ilógico, em tod o o caso, não é nem u m a verd ad e, nem u m a realid ad e, nem u m ser verd ad eiro, m as ap enas u m a ilu são. Pois nu nca é p ossível term inar o infinito. Um a ou tra form a p op u lar d e exp ressão d esta teoria é a d a flecha qu e está em m ovim ento e entretanto em rep ou so. Em cad a m om ento d e seu vôo ela ocu p a u m lu gar, neste lu gar ela rep ou sa. Seria a som a d os infinitos lu gares d e rep ou so id êntica ao m ovim ento? Seria o rep ou so, rep etid o infinitam ente, o m ovim ento, logo, seu p róp rio op osto? Aqu i, o infinito é u tilizad o com o o sol vente d a efetivid ad e; ju nto a ele, ela se d esfaz. Tod avia, se os conceitos são rígid os, eternos e existentes - e ser e p ensar coincid em p ara Parm ênid es -, se, p ortanto, o infinito nu nca p od e estar acabad o, se o rep ou so nu nca p od e tornar-se m ovim ento, então em verd ad e a flecha não voou ; ela não saiu d e seu lu gar e d e seu rep ou so, não flu iu nenhu m m om ento tem p oral. Ou , exp resso d e ou tra m aneira: não existe nesta cham ad a efetivid ad e, nesta efetivid ad e ap enas su p osta, nem tem p o nem esp aço ou m ovim ento. Finalm ente a p róp ria flecha é ap enas u m a ilu são: p ois ela d escend e d a m u ltip licid ad e, d a fantasm agoria d o não-uno produzida pelos sentidos. Supondo que a flecha tivesse um ser, então ele seria im óvel, intem p oral, rígid o, eterno e estaria fora d e vir-a-ser u m a rep resentação im p ossível! Su p ond o qu e o m ovim ento fosse realm ente verd ad eiro, então não haveria rep ou so, logo não haveria nenhum lugar para a flecha, nenhum espaço - uma rep resentação im p ossível! Su p ond o qu e o tem p o fosse real, então ele não p od eria ser infinitam ente d ivisível; o tem p o d e qu e a flecha necessita consistiria em u m nú m ero lim itad o d e m om entos tem p orais, cad a u m d estes m om entos p recisaria ser u m átom o - uma representação impossível! Tod as as nossas rep resentações, enqu anto seu conteú d o em p iricam ente d ad o, seu conteú d o extraíd o d este m u nd o intu itivo é su p osto com o veritas aeterna, cond u zem -nos à contrad ição. Se existe o m ovim ento absolu to, então não existe nenhu m esp aço; se existe o esp aço absolu to, então não existe nenhu m a m u ltip licid ad e; se existe a m u ltip licid ad e absolu ta, então não existe nenhu m a u nid ad e. Aqu i d everia ficar claro o qu ão p ou co nós, com tais conceitos, tocam os o coração d as coisas ou d esatam os os nós d a realid ad e; e entretanto, ao invés d isto, Parm ênid es e Zenão fixam -se na verd ad e e valid ad e u niversal d os conceitos, rep u d iam o m u nd o intu itivo com o o contrário d os conceitos verd ad eiros e universalmente válid os, com o u m a objetivação d o qu e é ilógico e com p letam ente contrad itório. Em tod as as su as d em onstrações eles p artem d o p ressu p osto com p letam ente ind em onstrável, m esm o inverossím il, segu nd o o qu al nós tem os naqu ela facu ld ad e d e conceitos o mais alto e decisivo critério sobre o ser e o não-ser, isto é, sobre a realidade objetiva; não se deve confirmar ou corrigir aqueles conceitos ju nto à efetivid ad e, com o ind u bitavelm ente d erivad os d ela, m as, ao contrário, eles é qu e d evem d irigir e m ed ir a efetividad e e, em caso d e u m a contrad ição com o qu e é lógico, condená-la. Para p od er conced er-lhes esta com p etência d iretora, Parmênides precisava lhes conferir o mesmo ser do que ele em geral ad m itia com o o ser. Agora não era m ais p ara serem tom ad os com o d ois m od os d iferentes d o ser, o p ensam ento e aqu ela esfera d o ser p erfeita e fora d o vir-a-ser, p ois não p od ia existir nenhu m a d u p licid ad e. Assim , tornou -se necessária a id éia ou sad íssim a d e explicar o pensamento e o ser como idênticos; aqui não podia vir em auxílio nenhu m a form a d e visibilid ad e, nenhu m sím bolo, nenhu m a m etáfora; a id éia era com p letam ente irrep resentável m as era necessária; e ele até m esm o festejava, nesta falta d e tod a p ossibilid ad e d e rep resentação, o m aior triu nfo sobre o m u nd o e as exigências d os sentid os. O p ensam ento e aqu ele ser nod u lar e esférico, com p letam ente m orto e m aciço, im óvel e im u tável, p recisavam , segu nd o o im p erativo d e Parm ênid es e p ara o terror d a im aginação, coincid ir e ser totalm ente u m e o m esm o. Esta id entid ad e p od e contrad izer os sentid os! Exatam ente isto é a garantia de que ela não toma deles nada emprestado. XIII
N o restante, p od er-se-ia apresentar contra Parm ênid es
p od erosos argu m entos ad hom inem ou ex-concessis, através d os qu ais não viria à lu z a verd ad e, m as sim a inverd ad e d aqu ela sep aração entre m u nd o d os sentid os e m u nd o d os conceitos e daquela identidade entre ser e pensar. Primeiramente, se é real o pensamento da razão por conceitos, então a m u ltip licid ad e e o m ovim ento tam bém p recisam ter realid ad e, p ois o p ensam ento racional é m óvel, é em verd ad e u m m ovim ento entre conceitos, logo entre u m a qu antid ad e d e realid ad es. Contra isso não existe nenhu m su bterfú gio, é com p letam ente im p ossível qu alificar o p ensam ento com o u m rígid o p erm anecer, com o u m eterno e im óvel p ensar-se-a-si-m esm o d a unidade. Em segu nd o lu gar, se d os sentid os vem ap enas engano e ap arência, e se em verd ad e existe ap enas a id entid ad e real entre ser e p ensam ento, então o qu e são os p róp rios sentid os? De qu alqu er m od o, eles certam ente tam bém são ap enas ap arência, p ois não coincid em com o pensam ento e o seu p rod u to, o m u nd o d os sentid os, não coincid e com o ser. "Mas se os p róp rios sentid os são ap arência, p ara qu em eles o são? Com o eles p od em , com o irreais, aind a ilu d ir? O não-ser p od e enganar. O p roblem a d e ond e p roced e a ilusão e a aparência permanece u m enigm a, m esm o u m a contrad ição. N ós cham am os estes argu m entos ad hom inem : a objeção d a razão m óvel e a objeção d a origem d a ap arência. Do p rim eiro segu iria a realid ad e d o m ovim ento e d a m u ltip licid ad e; d o segu nd o, a im p ossibilid ad e d a ap arência p arm eníd ica, su p ond o qu e a teoria fu nd am ental d e Parm ênid es, a teoria sobre o ser, seja ad m itid a com o fu nd ad a. Esta teoria fu nd am ental d iz ap enas qu e som ente o ser tem u m ser e qu e o não-ser não é. Mas, se o m ovim ento é u m tal ser, então vale p ara ele o qu e vale p ara o ser em geral e em tod os os casos: ele está fora d o vir-a-ser, é eterno, ind estru tível, não é su scetível d e au m ento nem d e d im inu ição. Se a ap arência d este m u nd o é negad a com o au xílio d aqu ela p ergu nta p ela origem d a ap arência, fica ao abrigo d a cond enação d e Parm ênid es o p alco d o cham ad o vir-a-ser, a m u tação, nossa existência incansavelm ente m u ltiform e, colorid a e rica; então é necessário caracterizar simultaneamente este mundo da alternância e d a m u tação com o u m a som a d e tais seres verd ad eiros, essencialid ad es existentes em tod a a eternid ad e. Com esta su p osição não se p od e falar natu ralm ente em u m a m u tação no sentid o rigoroso, em u m vir-a-ser. Mas agora a m u ltip licid ad e tem u m ser verd ad eiro, tod as as qu alid ad es têm u m ser verd ad eiro e o movimento não menos; e de cada momento deste mundo, mesmo se estes m om entos arbitrariam ente escolhid os fossem sep arad os p or m ilênios, p recisaria ser d ito: tod a as essencialid ad es verd ad eiras p resentes neles existem sim u ltaneam ente sem exceção, im u táveis, irred u tíveis, sem au m ento, sem d im inu ição. Um m ilênio m ais tard e elas são as m esm as, nad a se transform ou . A d esp eito d isto, se o m u nd o p arece u m a vez com p letam ente d iferente d o qu e em ou tra, isto não é nenhu m a ilu são, não é nenhu m a ap arência, m as conseqüências do movimento eterno. Os seres verd ad eiros são m ovim entad os ora d e u m a m aneira, ora d e ou tra, ora u m em d ireção ao ou tro, ora em d ireções contrárias, ora p ara cim a, ora p ara baixo, ora ju ntos, ora confundidos.
XIV
Esta consid eração já nos fez p enetrar u m p ou co na d ou trina
d e Anaxágoras. É ele qu em levanta com tod a a força d u as objeções contra Parm ênid es, u m a acerca d a m obilid ad e d o p ensam ento e ou tra acerca d a origem d a ap arência. N o entanto, a p rop osição fundamental d e Parm ênid es continu a a su bju gá-lo, com o tam bém a tod os os filósofos e, natu ralm ente, m ais novos. Tod os eles negam a p ossibilid ad e d o d evir e d o p arecer, no sentid o qu e lhe d á o vu lgo e qu e Anaxim and ro e H eráclito tinham ad m itid o com m ais p rofu nd a reflexão, em bora aind a d e m aneira irrefletid a. Esta gênese m itológica a p artir d o nad a, esta d issolu ção no nad a, esta transform ação arbitrária d o nad a em qu alqu er coisa, esta troca arbitrária, este tirar ou revestir d e qu alid ad es, p assou a ser absu rd o: m as d o m esm o m od o e p elas m esm as razões se consid era absu rd a a gênese d o m ú ltip lo a p artir d o u no, d as qu alid ad es m ú ltip las a p artir d e u m a qu alid ad e p rim ord ial, em su m a, a d erivação d o m u nd o d e u m a m atéria originária, à m aneira d e Tales ou d e H eráclito. Agora é qu e estava p osto o verd ad eiro p roblem a d e transp or p ara este m u nd o p resente a d ou trina d o ser alheia ao d evir e im p erecível, sem bu scar u m refú gio na teoria d a ap arência e d a ilu são d os sentid os. Mas se não se qu er ad m itir qu e o m u nd o em p írico é u m a ap arência, se as coisas nem p od em p rovir d o nad a nem d e u m ser ú nico, é p reciso qu e estas m esm as coisas contenham u m ser verd ad eiro, é p reciso qu e o seu conteú d o seja absolu tam ente real, e toda a modificação só se pode referir à forma, isto é, à posição, à ord em , ao agru p am ento, à m istu ra ou à d issociação d essas essencialid ad es eternas qu e existem sim u ltaneam ente. É com o no jogo de dados: os dados são sempre os mesmos, mas, por caírem ora d este m od o, ora d aqu ele, significam p ara nÓs algo d e d iferente. Tod as as teorias anteriores rem ontavam a u m elem ento p rim ord ial, seio e cau sa original d o d evir, fosse este a águ a, o ar, o fogo ou o indefinido de Anaximandro. Anaxágoras, pelo contrário, afirma que o d issem elhante nu nca p od e p rovir d o sem elhante e qu e a m u d ança nu nca se p od erá exp licar a p artir d e u m ente. Im agine-se esta m atéria em estad o d e rarefação ou em estad o d e cond ensação, nu nca se chegará a exp licar p or rarefação ou p or cond ensação o qu e se d eseja exp licar: a m u ltip licid ad e d as qu alid ad es. Mas, se o mundo está efetivam ente cheio d as qu alid ad es m ais d iversas, é necessário qu e essas qu alid ad es tenham , caso não sejam ap arência, u m ser, qu er d izer, é p reciso qu e sejam eternas, qu e não p rovenham d o d evir, qu e não sejam p erecíveis e existam sem p re simultaneamente. N ão p od em ser u m a ap arência, p ois a qu estão d a origem d a ap arência aind a se m antém sem resp osta, m ais: é resp ond id a com u m "não". Os investigad ores m ais antigos tinham qu erid o sim p lificar o p roblem a d o d evi r, com a ad m issão d e u m a ú nica su bstância qu e trazia no seu seio tod as as p ossibilid ad es d o d evir. Agora, p elo contrário, d iz-se: há inú m eras su bstâncias, m as nu nca há m ais, nem m enos, nem novas. H á ap enas o m ovim ento qu e as arrem essa sem p re d e novo: m as qu e o m ovim ento é u m a verd ad e e não u m a ap arência foi o qu e Anaxágoras d em onstrou , contra Parm ênid es, p ela su cessão incontestável d as nossas representações no pensamento. Pelo simples fato de pensarmos e de term os rep resentações, tem os, p ois, acesso im ed iato à verd ad e d o m ovim ento e d a su cessão. Eis, p ortanto, d e qu alqu er m od o, afastad o o ser rígid o, im óvel e m orto d e Parm ênid es; há m u itos seres, tão segu ram ente com o tod os estes seres (existências, su bstâncias) estão em m ovim ento. A m u d ança é m ovim ento - mas d e ond e p rovém o m ovim ento? Será qu e este m ovim ento d eixa totalm ente intacto o ser genu íno d essas nu m erosas su bstâncias, ind ep end entes e isolad as, e não tem , necessariam ente, d e lhes ser estranho, d e acord o com o conceito m ais rigoroso d o ser? Ou será qu e, ap esar d e tu d o, p ertence às p róp rias coisas? Chegam os a u m p onto d ecisivo: conform e nos voltarm os, p enetrarem os no território d e Anaxágoras, d e Em p éd ocles ou d e Dem ócrito. É p reciso colocar esta grave qu estão: se há m u itas su bstâncias e se tod as elas se m ovem , o qu e é qu e as m ove? Movem -se u m as às ou tras? Ou só as m ove a força d a gravid ad e? Ou há forças m ágicas d e atração ou d e rep u lsa nas p rÓp rias coisas? Ou será qu e a ocasião d o m ovim ento resid e fora d estas nu m erosas su bstâncias reais? Ou , m ais p recisam ente, se d u as coisas revelam u m a su cessão, u m a mudança recíp roca d e situ ação, será qu e isso se d eve a elas m esm as? E d eve isso exp licar-se d e form a m ecânica ou m ágica? Ou , se assim não acontece, é u m a terceira força qu e as m ove? É u m p roblem a m u ito sério, p orqu e, m esm o qu e ad m itisse a existência d e m u itas su bstâncias, Parm ênid es teria p od id o sem p re p rovar a im p ossibilid ad e d o m ovim ento contra Anaxágoras. Pod ia, efetivam ente, d izer: tom ai d ois seres qu e existam em si, cad a u m com u m . ser absolu tam ente d iferente, au tônom o e incond icional- e as su bstâncias d e Anaxágoras são d este tip o -: nu nca p od em colid ir, ou m ovim entar-se, ou atrair-se m u tu am ente; entre elas, não há causalidade, não há ponte alguma, não se tocam, não se incomodam, não têm nad a a ver u m as com as ou tras. O choqu e seria tão inexp licável com o a atração m ágica; seres qu e são absolu tam ente estranhos u ns aos ou tros não p od em exercer nenhu m tip o d e ação entre si, p ortanto, tam bém não se p od em m over a si m esm os, nem p od em d eixar-se m ovim entar. Parm ênid es teria m esm o acrescentad o: a ú nica saíd a qu e vos resta é a atribu ir o m ovim ento às p róp rias coisas. Mas, então, tu d o o qu e conheceis e ved es com o m ovim ento é u nicam ente u m a ilu são e não é o verd ad eiro m ovim ento, p orqu e o ú nico tip o d e m ovim ento qu e p od eria atribuir-se a essas su bstâncias absolu tas e au tônom as seria ap enas u m m ovim ento esp ontâneo, sem ação algu m a. Ora, vós ad m itis o m ovim ento ju stam ente p ara exp licar essas ações d a alteração, d a d eslocação no esp aço, d a m u d ança,em resu m o, as cau salid ad es e as relações d as coisas entre si. Mas seriam p recisam ente essas ações qu e não se exp licariam e qu e p erm aneceriam tão p roblem áticas com o antes. Tam bém não se vê m ais nenhu m a razão p ara ad m itir a necessid ad e d e u m m ovim ento, u m a vez qu e não p rod u z o efeito qu e d ele se esp era. O m ovim ento não p ertence à essência d as coisas e é-lhes eternamente estranho. Os ad versários d a u nid ad e im óvel d os Eleatas foram levad os a aband onar u m a tal argu m entação m ed iante u m p reconceito oriu nd o d o m u nd o sensível. Parece tão irrefu tável qu e tod o o ser verd ad eiro seja u m corp o qu e ocu p a esp aço, u m p ed aço d e m atéria, grand e ou p equ eno, m as qu e, em tod o o caso, tem d eterm inad a extensão no espaço, que dois ou mais desses fragmentos não podem estar no m esm o esp aço. Sob este p ressu p osto, Anaxágoras, com o m ais tard e Dem ócrito, ad m itiu qu e d eviam tocar-se se, nos seu s m ovim entos, eram p ostos em contacto u ns com os ou tros, e qu e lu tariam p elo m esm o esp aço e qu e esta lu ta seria cau sa d e tod a a m u d ança. Por ou tras p alavras: essas su bstâncias absolu tam ente isolad as, totalm ente d iferentes e eternam ente im u táveis não eram p ensad as com o absolu tam ente heterogêneas, m as p ossu íam tod as, além d e u m a qu alid ad e esp ecífica m u ito p articu lar, u m su bstrato absolu tam ente hom ogêneo, u m fragm ento d e m atéria qu e enche o esp aço. Eram tod as igu ais no qu e d iz resp eito à p articip ação na m atéria e p od iam , p or isso, agir u m as sobre as ou tras, isto é, tocar- se. De resto, tod a a m u d ança não d ep end ia d e m od o algu m d a heterogeneid ad e d essas su bstâncias, m as d a hom ogeneid ad e d as m esm as enqu anto m atéria. Encontra-se aqu i u m erro lógico nas hip óteses d e Anaxágoras, p ois, o ser verd ad eiro tem d e ser absolu tam ente incond icionad o e u no, nad a p od e p ressu p or com o su a cau sa; ao p asso qu e tod as as su bstâncias d e Anaxágoras estão aind a su jeitas a u m a cond ição, a m atéria, cu ja existência já p ressu p õem . A su bstância "verm elho", p or exem p lo, não era, p ara Anaxágoras, apenas o vermelho em si, mas, além disso, tacitamente, u m fragm ento d e m atéria sem qu alid ad e algu m a. Só por m eio d esta m atéria é qu e o "verm elho em si" p od ia agir nou tras su bstâncias, não através d o verm elho, m as m ed iante o qu e não é nem verm elho, nem colorid o, nem qu alitativam ente d efinid o. Se, faland o estritam ente, o verm elho fosse tom ad o com o verm elho, com o a p róp ria su bstância, se fosse, p ortanto, p rivad o d esse su bstrato, Anaxágoras não teria certam ente ou sad o falar nu m a ação d o verm elho sobre ou tras su bstâncias, ao d izer, p or exem p lo, qu e o "verm elho em si" p rop aga p or m eio d o choqu e o m ovim ento recebid o d o "carnal em si". Tornar-se-ia então claro qu e u m tal ser verdadeiro nunca poderia mover-se.
XV
É p reciso olhar p ara os ad versários d os Eleatas p ara fazer
ju stiça às vantagens extraord inárias qu e oferece a hip ótese d e Parm ênid es. Qu e d ificu ld ad es - a qu e Parm ênid es se su btraíra - esp eravam Anaxágoras e tod os os qu e acred itavam na m u ltip licid ad e d as su bstâncias, na p ergu nta: "Qu antas su bstâncias há?" Anaxágoras d eu o salto, fechou os olhos e d isse: "Um nú m ero infinito"; assim escapou à com provação extrem am ente p enosa d e enu m erar d eterm inad o nú m ero d e m atérias p rim ord iais. Com o estas su bstâncias infinitam ente nu m erosas d eviam existir há eternid ad es sem au m ento e sem sem m od ificação, esta su p osição im p licava a id éia contrad itória d e u m a infinid ad e fechad a e realizad a. Em resu m o, a m u ltip licid ad e, o m ovim ento, o infinito, afu gentad os p or Parm ênid es graças ao p rincíp io ad m irável d o ser u no, voltavam d o exílio e lançavam as su as flechas sobre os ad versários d e Parm ênid es, p ara lhes fazerem ferid as qu e não têm cu ra. Estes ad versários não tinham , ap arentem ente, consciência clara d a força terrível d o p ensam ento d os Eleatas: "N ão p od e haver nem tem po nem m ovim ento nem esp aço, p orqu e só p od em os pensá-los com o infinitos, qu er d izer, infinitam ente grand es, p or u m lad o, d ivisíveis até ao infinito, p or ou tro; m as tod o o infinito não tem ser, não existe" - ningu ém contesta esta id éia d esd e qu e tom e a p alavra "ser" em sentid o estrito e qu e consid ere im p ossível a existência d e algo d e contrad itório, p or exem p lo, a d e u m a infinid ad e levad a a cabo. Mas, se é ju stam ente a realid ad e qu e nos ap resenta tu d o sob a form a d e u m a infinid ad e realizad a, torna-se evid ente qu e ela se contrad iz a si m esm a, qu e p ortanto, não tem realid ad e verd ad eira. Mas se esses ad versários qu isessem levantar a objeção: "N o vosso p róp rio p ensam ento, existe a su cessão, por conseguinte, o vosso pensamento poderia não ser real e, deste modo, tam bém nad a p od eria d em onstrar"Parm ênid es teria talvez p od id o resp ond er com o Kant resp ond era nu m caso sem elhante, confrontad o com a m esm a acu sação: "Posso realm ente d izer qu e as minhas rep resentações se su ced em , m as isso significa ap enas qu e tom am os consciência d elas nu m a su cessão tem p oral, qu er d izer, d e acord o com a form a qu e lhes d á o nosso sentid o interno. Por isso, o tempo não é uma coisa em si, nem uma determinação objetivamente ligad a às coisas". Seria, p ois, p reciso d istingu ir entre o p ensam ento p u ro, qu e seria intem p oral com o o ser u no d e Parm ênid es, e a consciência d este p ensam ento. Esta consciência já trad u ziria o p ensam ento na form a d a ap arência, p ortanto, d a su cessão, d a multip licid ad e e d o m ovim ento. É p rovável qu e Parm ênid es tivesse recorrid o a esta solu ção. De resto, seria p reciso levantar contra ele a mesma objeção que A. Spir (Denken und Wirklichkeit, 2.a ed., t. I, p. 209 ss.) levanta contra Kant: "Em p rim eiro lu gar, é claro qu e eu nad a p osso saber d e u m a su cessão em si, se não tenho sim u ltaneam ente os seu s elem entos su cessivos na m inha consciência. A p róp ria rep resentação d e u m a su cessão nad a tem d e su cessivo, é, p ortanto, com p letam ente d iferente d a su cessão d as nossas rep resentações. Em segu nd o lu gar, a su p osição d e Kant im p lica absu rd os tão evid entes qu e se fica su rp reend id o p or ele os não ter consid erad o. Segu nd o tal su p osição, César e Sócrates não estão verd ad eiram ente m ortos, estão tão vivos com o há d ois m il anos e p arecem ap enas estar m ortos, com o conseqü ência d a organização d o m eu "sentid o interno". Os hom ens qu e estão p or nascer já vivem agora, e se aind a não ap arecem com o vivos, isso tam bém se d eve a essa organização d o "sentid o interno". Antes d e m ais, é p reciso p ergu ntar aqu i: Com o é qu e o com eço e o fim d a vid a consciente, com tod os os seu s sentid os externos e internos, p od em existir na concep ção d o sentid o interno? Fato é ju stam ente qu e não se p od e negar a realid ad e d a m u d ança. Se se d eitar p ela janela fora, volta a entrar p elo bu raco d a fechad u ra. Diga-se: "Parece-m e ap enas qu e os estad os e as rep resentações m u d am " - esta aparência é algo que existe objetivamente, e a sucessão tem nela u m a realid ad e objetiva incontestável, aí a su cessão existe realm ente. - Além d isso, é p reciso ad vertir qu e tod a a critica d a razão só se encontra fu nd am entad a e legitim ad a sob o p ressu p osto d e qu e as nossas próprias representações nos aparecem como elas são. Pois, se as rep resentações nos ap arecessem igu alm ente d e m aneira d iferente d o qu e realm ente são, tam bém nad a d e válid o se p od eria afirm ar acerca delas. Por conseguinte, não se poderia elaborar uma teoria do conhecim ento nem fazer u m a investigação "transcend ental" qu e tivesse valor objetivo. Ora, é ind u bitável qu e as nossas p róprias representações nos aparecem em sucessão. A consid eração d esta su cessão e d este m ovim ento qu e, certam ente, são ind u bitáveis, levou Anaxágoras a u m a hip ótese m em orável. Obviam ente, as rep resentações m ovim entam -se a si m esm as, não eram em p u rrad as e não tinham nenhu m a cau sa exterior d o m ovim ento. Por isso, existe, d iz ele p ara si m esm o, u m a coisa qu e traz em si a origem e o com eço d o m ovim ento; em segu nd o lu gar, ele observa qu e esta rep resentação não só se m ovim enta a si m esm a, com o aind a m ove u m a coisa com p letam ente d iferente, o corp o. Descobre assim na exp eriência m ais im ed iata u m a ação d e rep resentações sobre a m atéria extensa, ação esta qu e se ap resenta com o o m ovim ento d esta m atéria. Para ele, isto era u m fato, só incid entalm ente é qu e foi levad o a também explicá-lo. Em su m a, p ossu ía u m esqu em a regu lativo p ara o m ovim ento no m u nd o qu e ele, na altu ra, concebia ou com o o m ovim ento d as essencialid ad es verd ad eiras e isolad as p ela facu ld ad e rep resentativa, o N ou s, ou com o o m ovim ento cau sad o p or algu m a coisa qu e já se encontrava em m ovim ento. Provavelm ente, escap ou -lhe qu e esta ú ltim a esp écie d e m ovim ento, a transm issão m ecânica d e m ovim entos e d e choqu es, tam bém continha em si u m p roblem a, em virtu d e d as su as su p osições básicas: a p resença com u m e qu otid iana d o efeito por choqu e fez, sem d ú vid a, com qu e o seu olhar d eixasse d e reagir ao caráter enigm ático d esse m esm o fenôm eno. Em contrap artid a, sentiu m u ito a natu reza p roblem ática, e até contrad itória, d e u m a ação d as rep resentações sobre su bstâncias qu e existem p or si m esm as e, por isso, tam bém tentou fazer rem ontar esta ação a u m fenôm eno m ecânico d e em p u rrões e d e choqu es qu e lhe p areceu exp licável. O N ou s tam bém era, em tod o o caso, u m a d essas su bstâncias d otad as d e existência, e foi p or ele caracterizad o com o u m a m atéria m u ito d elicad a, revestid a d a qu alid ad e esp ecífica d e p ensar. Um a vez ad m itid o u m tal caráter, a ação d esta m atéria sobre ou tra m atéria d evia, sem d ú vid a, ser sem elhante à ação d e u m a ou tra su bstância sobre u m a terceira, qu er d izer, u m a ação m ecânica m ovim entad a p or p ressão e p or choqu e. Pelo m enos, ele tinha agora u m a su bstância qu e se m ove a si m esm a e qu e m ove ou tras, cu jo m ovim ento não vem d e fora, nem d ep end e d e m ais ningu ém ; a m aneira d e p ensar este m ovim ento esp ontâneo p arecia qu ase ind iferente, p od ia ser qu alqu er coisa com o o m ovim ento d o vai e vem de pequenas bolinhas de mercúrio muito delicadas. Entre todas as p ergu ntas relativas ao m ovim ento, não há nenhu m a m ais m açad ora d o qu e a pergu nta acerca d a origem d o m ovim ento. Se realmente se p od em p ensar tod os os ou tros m ovim entos com o conseqü ências e efeitos, fica sem p re p or exp licar o p rim eiro e m ais originário d estes m ovim entos. Mas, nu m a seqü ência d e m ovim entos m ecânicos, o p rim eiro elem ento d a corrente não p od e resid ir nu m m ovim ento m ecânico, p orqu e isso equ ivaleria a recorrer à id éia absu rd a d a cau sa su i. Mas tam bém não se p od e atribu ir às coisas eternas e incond icionad as u m m ovim ento esp ontâneo qu e lhes seria d ad o com a existência, p or assim d izer d esd e a origem . Pois o m ovim ento não p od e rep resentar-se sem u m a d ireção e u m a tend ência, p ortanto, só p od e rep resentar-se com o relação e cond ição. Mas u m a' coisa d eixa d e ser existente em si e incond icional se, p or su a p róp ria natu reza, se refere necessariam ente a algo qu e exista fora d ela. Foi nesta d ificu ld ad e qu e Anaxágoras ju lgou encontrar a aju d a e salvação no N ou s qu e se m ove a si m esm o e qu e é ind ep end ente; a su a essência é su ficientem ente obscu ra e velad a p ara nos ilu d ir acerca d e qu e tam bém a su a ad m issão im p lica, no fu nd o, esta m esm a cau sa su i interd ita. O p ensam ento em p írico chega m esm o a estip u lar qu e a rep resentação não é u m a cau sa su i, m as u m a ação d o cérebro; p ara ela, d eve constitu ir u m a extravagância singu lar sep arar d a su a cau sa o "esp írito", p rod u to d o cérebro, e im aginar qu e ele aind a existe d ep ois d esta separação. Foi o qu e fez Anaxágoras; esqu eceu o cérebro, a su a virtu osid ad e su rp reend ente, a d elicad eza e a com p lexid ad e d as su as circu nvolu ções e d os seu s p rocessos, e d ecretou a existência d o "esp írito em si". Este "esp írito em si" tinha arbítrio, d e tod as as su bstâncias era a ú nica a ter iniciativa - d escoberta m aravilhosa! Pod ia com eçar, em qu alqu er m om ento, a m over as coisas fora d ele, ou p od ia ocu p ar-se u nicam ente d e si m esm o d u rante sécu los; em resu m o, Anaxágoras ad m itiu u m p rim eiro m ovim ento na origem d os tem p os com o o p onto germ inal d e tu d o o qu e se d esigna p or d evir, isto é, d e tod a a m u d ança, d e tod a a d eslocação e d e tod a a revolu ção d as su bstâncias eternas e das suas partículas. Mesmo que o espírito seja em si eterno, não é de m aneira algu m a obrigad o a tortu rar-se há eternid ad es com a d eslocação d os grãos d e m atéria; e, em tod o o caso, hou ve u m tem p o e u m estad o d essas p artícu las d e m atéria - im p orta p ou co que a duração fosse curta ou longa -, em que o Nous ainda não agira nelas, em qu e aind a eram im óveis. É esse o p eríod o d o caos d e Anaxágoras. XVI
O caso d e Anaxágoras não é u m a concep ção d e evid ência
im ed iata; p ara a cap tar, é p reciso ter com p reend id o a id éia qu e o nosso filósofo concebeu d o qu e se cham a "d evir". Pois o estad o d e tod as as existências elem entares heterogêneas antes d e tod o o m ovim ento não p rod u ziria necessariam ente u m a m istu ra absolu ta d e tod as as "sem entes d as coisas", com o reza a exp ressão d e Anaxágoras, u m a m istu ra qu e ele im aginava com o u m a confu são total d e tod as as coisas até às p artes m ais p equ enas, d ep ois d e tod as essas existências elem entares terem sid o d esfeitas com o qu e em argam assa e red u zid as a u m a p oeira d e átom os, d e m aneira a p od erem m istu rar-se u m as com as ou tras nesse caos, com o nu m cad inho. Pod er-se-ia d izer qu e esta concep ção d o caos nad a tem d e necessário; qu e seria su ficiente ad m itir u m a p osição acid ental qu alqu er d e tod as essas existências, m as não u m a d ivisão d as m esm as até ao infinito. Bastaria já u m a ju stap osição irregu lar, seria d esnecessária qu alqu er m istu ra e im p ensável u m a tão grand e confu são. Com o é qu e Anaxágoras chegou a esta rep resentação d ifícil e com p licad a? Pela concep ção qu e tinha d o d evir em p iricam ente d ad o, com o já foi referid o. Com eçou p or hau rir d a própria exp eriência u m a p rop osição extrem am ente su rp reend ente acerca d o d evir, e foi esta p rop osição qu e acarretou com o conseqüência a teoria do caos. A observação d os p rocessos d o nascim ento na natu reza, e não a referência a u m sistem a anterior, é qu e levou Anaxágoras à d ou trina d e qu e tu d o nasce d e tu d o: Esta era a convicção d o natu ralista, fu nd ad a nu m a ind u ção m ú ltip la, no fu nd o, é certo, extrem am ente ind igente. Ele d em onstrou -o d este m od o: se até o contrário pode nascer do contrário, o preto, por exemplo, do branco, então, tu d o é p ossível; m as isso só acontece qu and o a neve branca se d issolve em águ a p reta. Exp licava a nu trição d o corp o p elo fato d e os alim entos d everem conter p equ enas p arcelas invisíveis d e carne, d e sangu e ou d e ossos, qu e se d esagregam na alim entação e se u nem com o qu e lhes é análogo no corp o. Mas se tu d o p od e nascer d e tu d o, o qu e é sólid o d o qu e é líqu id o, o qu e é d u ro d o qu e é m ole, o preto d o branco, a carne d o p ão, é p orqu e tu d o d eve estar contid o em tu d o. Então, os nom es d as coisas só exp rim em a p rep ond erância d e u m a su bstância sobre as ou tras, qu e estão p resentes em m assas m ais p equ enas, p or vezes im p ercep tíveis. N o ou ro, isto é, no qu e se d esigna a p otiore p elo nom e d e "ou ro", tam bém d eve haver p rata, neve, p ão e carne, m as em com p onentes m u ito p equ enas. O conju nto tem o nom e d a su bstância d om inante, que é o ouro. Mas, com o é p ossível qu e u m a su bstância p red om ine e encha u m a coisa com m ais m assa d o qu e as ou tras su bstâncias? A experiência mostra que esta preponderância só é produzida pouco a p ou co p elo m ovim ento; qu e a p rep ond erância é o resu ltad o d e u m p rocesso qu e norm alm ente d esignam os p or d evir. Pelo contrário, o fato d e tu d o estar em tu d o não é o resu ltad o d e u m processo, m as antes o p ressu p osto d e tod o o d evir e d e tod o o m ovim ento; é, p ortanto, anterior a tod o o d evir. Por ou tras p alavras: a em p iria ensina qu e o sem elhante se ju nta incessantem ente ao sem elhante, p or exem p lo, p ela nu trição; p or isso, esses' elem entos não se encontravam lad o a lad o, nem estavam ju ntos d esd e a origem , m as sep arad os. N os p rocessos em p íricos qu e se oferecem aos nossos olhos, o sem elhante é antes sem p re extraíd o d o d issem elhante e m ovid o p ara d iante (p or exem p lo, na nu trição, as p artícu las d e carne a p artir d o p ão); assim , a m istu ra d as su bstâncias d iversas é a form a p rim itiva d a constitu ição d as coisas, e é anterior no tem p o a tod o o d evi r e a tod o o m ovim ento. Se, p ortanto, tu d o o qu e se cham a d evir é u m a d esagregação e p ressu p õe u m a m istu ra, é p reciso p ergu ntar p elo grau qu e essa m istu ra, essa confu são, d eve ter tid o na origem . Em bora o p rocesso qu e é o m ovim ento d o sem elhante p ara o sem elhante, o d evir, d u re já há u m tem po incom ensu rável, reconhece-se, no entanto, qu e m esm o agora tod as as coisas contêm restos e sem entes d e tod as as ou tras coisas, que estas sem entes agu ard am a su a d issociação, e qu e aqu i e ali se chegou à p red om inância d e u m a d elas; a m istu ra p rim ogênita teve d e ser total, isto é, u m a m istu ra até ao infinitam ente p equ eno, u m a vez que é preciso um tempo infinito para desfazer a mistura. Adere- se aqu i firm em ente à id éia d e qu e tu d o o qu e p ossu i u m ser essencial é divisível até ao infinito, sem alguma vez perder a própria natureza específica. Segu nd o estes p ressu p ostos, Anaxágoras im agina a existência p rim itiva d o m u nd o m ais ou m enos com o u m a m assa p oeirenta d e p ontos m ateriais infinitam ente p equ enos, d os qu ais cad a u m é esp ecificam ente sim p les e p ossu i ap enas u m a ú nica qu alid ad e, m as d e m aneira a rep resentar cad a u m a d essas qu alid ad es esp ecíficas nu m nú m ero infinito d e p ontos isolad os. Aristóteles cham ou hom eom erias a esses p ontos, p orqu e são as p artes sem elhantes entre si d e u m tod o hom ogêneo às p róp rias p artes. Mas seria u m grand e engano p ôr em p é d e igu ald ad e a m istu ra originária d e tod os esses p ontos, d as "sem entes d as coisas", e o elemento p rim ord ial d e Anaxim and ro: este ú ltim o elem ento, cham ad o "Ind efinid o", é u m a m assa absolu tam ente hom ogênea e p ecu liar, ao p asso qu e o caos d e Anaxágoras constitu i u m agregad o d e m atérias d iversas. Acerca d este agregad o d e m atérias p od e d izer-se, sem d ú vid a, o qu e se d izia d o Ind efinid o d e Anaxim and ro: foi o qu e fez Aristóteles; o agregad o d e m atérias não p od ia ser nem branco, nem cinzento, nem p reto, nem d e ou tra cor qu alqu er, era insíp id o, inodoro e, no seu todo, não era determinado nem quantitativamente, nem qu alitativam ente; é neste asp ecto qu e o Ind efinid o d e Anaxim and ro e a m istu ra p rim ord ial d e Anaxágoras são sem elhantes. Mas, à parte esta sem elhança negativa, d istingu em -se d e m aneira p ositiva, na m ed id a em qu e o segu nd o é com p osto e o primeiro é u m a u nid ad e. Ao ad m itir o caos, Anaxágoras tinha p elo m enos esta vantagem em relação a Anaxim and ro: não p recisava d e deduzir a multiplicidade a partir da unidade, nem o devir do ser. Teve certam ente d e tolerar u m a exceção na m istu ra u niversal d as sem entes: o N ou s não existia então e, m esm o agora, não está m istu rad o com coisa algu m a. Pois se estivesse m istu rad o com u m único ente, teria de habitar, em infinitas divisões, em todas as outras coisas. Esta exceção é extrem am ente contestável d e u m p onto d e vista lógico, sobretu d o p or estar d ad a a natu reza m aterial d o N ou s, antes d elinead a; tem algo d e m itológico e p arece arbitrária m as, d e acord o com as p rem issas d e Anaxágoras, era rigorosam ente necessária. De resto, o esp írito é d ivisível até ao infinito com o qu alqu er ou tra su bstância, só não é d ivisível p elas ou tras su bstâncias, m as p or si m esm o. Qu and o se d ivid e, d ivid ind o-se e aglomerando-se em m assas u m a vez grand es, ou tra vez p equ enas, tem d esd e tod a a eternid ad e u m a m assa e u m a qu alid ad e invariáveis, e o qu e neste instante é esp írito no m u nd o inteiro, nos anim ais, nas p lantas e nos hom ens, já o era há u m m ilhar d e anos, sem au m ento nem d im inu ição, em bora rep artid o d e ou tra m aneira. E qu and o ele algu m a vez tinha u m a relação com qu alqu er ou tra su bstância, nu nca se m istu rava nela, m as antes se ap od erava voluntariamente dela, movia-a e impelia-a como queria, em resumo, dominava-a. O esp írito, qu e é o ú nico a ter m ovim ento p róp rio, tam bém é o ú nico a ter d om ínio no m u nd o e d em onstra-o p ela m ovim entação d os grãos d e su bstâncias. Mas p ara ond e os m ove? Ou será qu e este m ovim ento é p ensável sem d ireção, sem cam inho? Será o esp írito tão cap richoso nos seu s im p u lsos com o qu and o d á ou não d á os seu s im p u lsos? Em su m a, será qu e no m ovim ento reina o acaso, isto é, a arbitraried ad e cega? É neste lim ite qu e entramos no santuário das concepções de Anaxágoras.
XVII
O qu e é qu e se d evia fazer com a confu são caótica d o estad o
originário antes d e tod o o m ovim ento p ara qu e d ela su rja, sem qu alqu er acrescentam ento d e su bstâncias ou forças novas, o m u nd o p resente com as órbitas regu lares d as estrelas, as form as regu lares d as estações e d as horas, a su a beleza m ú ltip la e a su a ord em , nu m a p alavra, p ara qu e o caos se transform asse em cosm os? Isto só p od eria resu ltar d o m ovim ento, m as d e u m m ovim ento d eterm inad o e ord enad o d e m aneira inteligente. É esse m ovim ento qu e é o m eio d e ação d o N ou s, o seu fim consistiria em d esligar com p letam ente d o agregad o tod as as p artes sem elhantes, fim qu e aind a não foi atingid o, p orqu e a d esord em e a m istu ra eram infinitas na origem . Só se chegará a esse fim graças a u m p rocesso im enso; nu nca p or ação d e u m a varinha d e cond ão m itológica. Se algu m a vez, nu m m om ento infinitam ente longínqu o, acontecer qu e tod as as su bstâncias sem elhantes sejam reu nid as e qu e as existências p rim ord iais ind ivisas rep ou sem lad o a lad o nu m a ord em bela, qu and o cad a p artícu la tiver reencontrad o os seu s companheiros e a sua pátria, quando a grande paz suceder à grande d isp ersão e à grand e d ivisão d as su bstâncias e qu and o já não hou ver fend as nem d ivisões, então, o N ou s regressará ao seu m ovim ento esp ontâneo; não se encontrand o já d ivid id o, p ercorrerá o m u nd o em m assas u m a vez grand es, ou tra vez p equ enas, sob a form a d e esp írito vegetal ou d e esp írito anim al e instalar-se-á no interior d e u m a ou tra m atéria. A su a tarefa, entretanto, aind a não está acabad a: m as o m od o d e m ovim ento, qu e o N ou s inventou p ara a realizar, ostenta u m a ad ap tação m aravilhosa aos seu s fins, p ois tend e a realizar cad a vez m elhor a su a tarefa; este m ovim ento é u m a rotação contínu a concêntrica, com eçou nu m p onto qu alqu er d a m istu ra caótica, p ercorre, na form a d e u m a p equ ena volta e p or cam inhos cad a vez m aiores, tod o o ser existente, extraind o d e tod as as coisas o sem elhante, p ara o ju ntar ao seu sem elhante. Prim eiram ente, esta revolu ção rolante ap roxim a, na m ed id a em qu e avança, o esp esso d o esp esso, o su btil d o su btil, e tam bém tu d o o qu e é som brio, claro, ú m id o, seco d o qu e 1hes é sem elhante; m as, acima destas rubricas gerais, ainda há duas mais vastas: o éter, isto é, tu d o o qu e é qu ente, claro, su btil, e o ar, ou seja, tu d o o qu e é som brio, frio, p esad o, com p acto. A sep aração d as m assas etéreas d as aéreas p rod u z com o p rim eiro efeito d esta rotação, qu e se vai alargand o, u m efeito sem elhante ao d o tu rbilhão qu e se gera em águ as estagnad as: as p artes p esad as são levad as p ara o centro e com p rim id as. Esse ciclone p rogressivo form a-se d a m esm a m aneira no caos: na su a p arte exterior, form a-se d e p artícu las etéreas, su btis, claras e, na su a p arte interior, d e p artícu las nebu losas, p esad as, ú m id as. N a seqü ência d este p rocesso, a águ a sep ara-se d a m assa etérea concentrad a no interior e, d ep ois, sep ara-se a terra d a águ a. Pela ação d e u m frio terrível, sep aram -se finalm ente as p ed ras d a terra. Por ou tro lad o, há fragm entos d e p ed ras qu e, p ela violência d a rotação, são arrancad os d e vez em qu and o à terra e p rojetad os p ara a região d o éter ard ente e claro. Aí, p ostos em brasa no elemento ardente e lançados na rotação etérea, transformados no sol e nos astros, irrad iam lu z e ilu m inam e reaqu ecem a terra som bria e fria. Tod a esta concep ção é d e u m a au d ácia e d e u m a sim p licid ad e ad m iráveis, e não se p arece nad a com a teleologia d esajeitad a e antrop om órfica qu e se associou tantas vezes ao nom e d e Anaxágoras. O qu e faz a grand eza e o orgu lho d essa concep ção é o fato d e d ed u zir d o ciclo em m ovim ento tod o o cosm os d o d evir, ao p asso qu e Parm ênid es consid erava o ser verd ad eiro com o u m a esfera im óvel e m orta. Desd e qu e este ciclo se m ovim ente e qu e role graças à ação d o N ou s, a ord em , a regu larid ad e e a beleza d o m u nd o torna-se a conseqü ência natu ral d este p rim eiro im p u lso. Com o é grand e a inju stiça p ara com Anaxágoras, qu and o é censu rad o d a su a abstenção sábia em relação à teleologia, qu e se revela nesta concep ção, e qu and o se fala d o seu N ou s com d esd ém , com o se fora u m d eu s ex m achina! Mas ju stam ente p orqu e afastara tanto os fenôm enos m aravilhosos d e origem m itológica ou teísta com o os fins e as u tilid ad es hu m anas, Anaxágoras teria p od id o p ronu nciar p alavras tão orgu lhosas com o as qu e Kant u sou na su a história natu ral d o céu . Pois é u m p ensam ento su blim e fazer rem ontar o esp lend or d o cosm os e a p recisão m aravilhosa d as órbitas das estrelas a um simples movimento puramente mecânico e tam bém a u m a figu ra m atem ática anim ad a; p or consegu inte, não rem ontam às intenções nem à intervenção m anu al d e u m d eu s m ecânico, m as sim p lesm ente a u m m od o d e vibração qu e, u m a vez d esencad ead o, p rossegu e d e m aneira necessária e d eterm inad a e obtém efeitos qu e se p arecem com os d os cálcu los m ais sábios d a inteligência e d o sentid o p rático m ais refletid o, send o, no entanto, com p letam ente d iferentes. "Saboreio o p razer", d izia Kant, "d e ver nascer u m tod o bem ord enad o, sem a aju d a d e ficções arbitrárias, em virtu d e d e leis d o m ovim ento estabelecid as, tod o qu e se p arece tanto com o nosso u niverso qu e não p osso d eixar d e acred itar qu e se trate d o m esm o. Parece-m e qu e se p od eria aqu i d izer, sem audácia presunçosa: dai-me a matéria e construirei um mundo!" XVIII
Su p ond o m esm o qu e se ad m ite a m istu ra p rim itiva como
corretam ente d ed u zid a p arece qu e, d o p onto d e vista m ecânico, se levantam algu m as objeções a este grand e esboço d a estru tu ra d o u niverso. Mesm o qu e o esp írito p rod u za u m m ovim ento giratório nu m p onto, é m u ito d ifícil im aginar a continu ação d o m esm o, sobretu d o p orqu e d eve ser infinito e d eve fazer girar, aos p ou cos e p ou cos, tod as as m assas existentes. Su p or-se-ia d esd e o p rincíp io qu e a p ressão d e tod o o resto d a m atéria teria d e esm agar este m ovim ento giratório fraco: qu e isto não aconteça p ressu p õe d a p arte d o N ou s m otor qu e intervenha d e rep ente com u m a força terrível, em tod o o caso, su ficientem ente d ep ressa p ara term os d e cham ar tu rbilhão ao m ovim ento. Dem ócrito tam bém im aginara u m tu rbilhão assim . E com o esse tu rbilhão tem d e ser infinitam ente forte p ara não ser entravad o p elo p eso d o u niverso infinito qu e o esm agaria, tam bém tem d e ser infinitam ente ráp id o, p orqu e a força, originalm ente, só p od e m anifestar-se na rap id ez. Em contrap artid a, qu anto m ais se alargam os anéis concêntricos, tanto m ais lento será esse m ovim ento. Se o m ovim ento p u d esse algu m a vez atingir o term o d a extensão u niversal infinita seria p reciso qu e já tivesse u m a rap id ez d e vibração infinitam ente p equ ena. Se, p elo contrário, im aginam os o m ovim ento com o infinitam ente grand e, qu er d izer, com o infinitam ente ráp id o, na origem d o m ovim ento, tam bém é p reciso qu e o ciclo original tenha sid o infinitam ente p equ eno. Deste m od o, obtem os no p rincíp io u m p onto qu e gira sobre si m esm o, com u m conteú d o m aterial infinitam ente p equ eno. Mas esse p onto não exp licaria a seqü ência d o m ovim ento, p od er-se-ia m esm o im aginar algu ns p ontos d a m assa p rim itiva girand o sobre si m esm os e d eixand o tod a a m assa im óvel e ind iferenciad a. N o caso d e, p elo contrário, esse p onto m aterial infinitam ente p equ eno, apanhado e im p elid o p elo N ou s, não ser levad o a girar sobre si m esm o, m as a fazer u m círcu lo p eriférico alargad o, isso chegaria p ara tocar, m ovim entar, lançar, fazer ressaltar ou tros p ontos e a su scitar d este m od o, aos p ou cos e p ou cos, u m tu m u lto em m ovim ento, cu jo p rim eiro resu ltad o seria a sep aração d as m assas aéreas d as m assas etéreas. Assim com o a iniciativa d o m ovim ento é u m ato arbitrário d o N ou s, tam bém o é o m od o d esta iniciativa, na m ed id a em qu e o p rim eiro m ovim ento d escreve u m círcu lo, cu jo raio é escolhido arbitrariamente como maior do que um ponto.
XIX
Sem d ú vid a, p od er-se-ia agora p ergu ntar p or qu e razão o
N ou s teve a id éia sú bita d e atingir u m p onto m aterial arbitrariam ente escolhid o nesse grand e nú m ero d e p ontos p ara o fazer girar na d ança agitad a e p or qu e razão não lhe ocorreu esta id éia m ais ced o. Anaxágoras resp ond eria: "Ele tem o p rivilégio d o arbitrário, tem o d ireito d a iniciativa, só d ep end e d e si m esm o, ao p asso qu e o resto é tod o d eterm inad o a p artir d e fora. N ão tem nenhu m a obrigação e, p ortanto; tam bém não existe cau sa algu m a qu e ele fosse obrigad o a d efend er. Se algu m a vez d esencad eou o m ovim ento e se fixou u m fim , isso não p assou d e" - a resp osta é difícil e Heráclito acrescentaria - "um jogo". Parece ter sid o sem pre esta a m elhor solu ção ou a resp osta ú ltim a qu e os Gregos tiveram nos lábios. Segu nd o Anaxágoras, o esp írito é u m artista, é o gênio m ais p od eroso d a m ecânica e d a arqu itetu ra, qu e cria com os m eios m ais sim p les as form as e os cam inhos m ais grand iosos e qu e tam bém cria u m a esp écie d e arqu itetu ra m óvel, m as sem p re em virtu d e d essa arbitraried ad e irracional, qu e jaz no fu nd o d a natu reza d o artista. Parece qu e Anaxágoras ap onta p ara Fíd ias e qu e, face à obra d e arte p rod igiosa qu e é o cosm os, brad a com o se se encontrasse p erante o Partênon: "O d evir não é u m fenôm eno m oral, é ap enas u m fenôm eno estético". Aristóteles narra qu e Anaxágoras resp ond era assim à p ergu nta acerca d o valor qu e a existência tinha p ara ele: "Qu e eu p ossa contem p lar o céu e a ord em d o cosm os", Tratava as coisas físicas com a m esm a p ied ad e e com o m esm o tem or d evoto qu e nós exp erim entam os p erante u m tem p lo antigo. A su a d ou trina tornou - se uma espécie de religião laica que se protegia com o odi profanum vu lgu s el arceo e qu e escolhia p ru d entem ente os ad ep tos d a m elhore m ais nobre socied ad e d e Atenas. N o cenácu lo fechad o d os anaxagoreanos d e Atenas, a m itologia p op u lar só era tolerad a com o u m a lingu agem sim bólica. Tod os os m itos, tod os os d eu ses, tod os os heróis su rgiam aí u nicam ente com o hieróglifos d e u m a interp retação d a natu reza, e m esm o a ép ica hom érica d evia ser o hino canônico qu e cantava o p od er d o N o"s e as lu tas e as leis d a p hysis. De vez .em qu and o, u m a p alavra vind a d esta socied ad e d e esp íritos livres e su blim es chegava até ao p ovo. E, sobretu d o, o grand e Em p éd ocles, sem p re au d az e ansioso p or novid ad es, m anifestava, através d a m áscara trágica, coisas qu e p enetravam com o u m a flecha no esp írito d as m assas e d as qu ais só se libertavam mediante caricaturas burlescas e interpretações ridículas. Mas o m aior d os anaxagoreanos, o hom em m ais p od eroso e m ais d igno d e tod os é Péricles, e é p recisam ente a seu resp eito qu e Platão d iz qu e só a filosofia d e Anaxágoras d eu ao seu gênio u m a d im ensão su blim e. Qu and o se ap resentava em p ú blico p ara falar ao p ovo, assem elhava-se, na su a beleza im óvel e rígid a, a u m olím p ico d e m árm ore; e qu and o agora, sereno, envolvid o no seu m anto, sem d esfazer o p regu ead o, sem m u d ar a exp ressão d o rosto, sem sorrir, sem mudar o tom forte da voz, falava, certamente não à Demóstenes, mas com o Péricles, lançand o raios e faíscas, aniqu iland o e red im ind o, era então qu e p arecia a abreviatu ra d o cosm os d e Anaxágoras, a im agem d o N ou s qu e constru iu p ara si a casa m ais bela e m ais d igna e tam bém a encarnação visível d a força constru tiva, m otriz, analítica, ord enad ora, sinóp tica, artístico- ind eterm inad a d o esp írito. O p róp rio Anaxágoras d isse qu e o hom em é já o ser m ais racional, ou qu e d everia trazer d entro d e si o N ou s em m aior abu nd ância d o qu e tod os os ou tros seres, sim p lesm ente p or p ossu ir órgãos tão ad m iráveis com o as m ãos. Conclu iu então qu e o N ou s, d e acord o com a extensão ou a m assa em qu e se ap rop ria d e u m corp o m aterial, constrói sem p re nessa m atéria instru m entos qu e corresp ond em ao seu grau qu antitativo, p ortanto, instru m entos m ais belos e m ais bem ad ap tad os ao seu fim qu and o ele ap arece na m aior p lenitu d e. E com o o ato m ais m aravilhoso e m ais eficaz d o N ou s tinha d e ser o m ovim ento p rim ord ial d e rotação, u m a vez qu e o esp írito estava aind a ind iviso e concentrad o em si m esm o, assim tam bém o efeito d a eloqü ência d e Péricles d evia p arecer m u itas vezes a Anaxágoras, qu e o escu tava, o sím bolo d esse m ovim ento giratório p rim itivo. Pois tam bém aqu i sentiu p rim eiro u m tu rbilhão d e p ensam entos, qu e se m ovim entava com u m a força terrível, m as com ord em , qu e se ap rop riava aos p ou cos e p ou cos d os ou vintes p róxim os ou longínqu os, levand o-os consigo e qu e, no fim d o d iscu rso, tinha transformado todo o povo num todo organizado. Os filósofos p osteriores d a Antigu id ad e acharam singu lar e qu ase im perd oável a m aneira d e Anaxágoras u sar o N ou s p ara exp licar o u niverso. Pareceu -lhes qu e tinha d escoberto u m instru m ento m agnífico sem o ter com p reend id o bem , e tentaram recu p erar o qu e o inventor negligenciara. Mas não com p reend eram o sentid o d a resignação d e Anaxágoras qu e, insp irad o p elo m ais p u ro esp írito d o m étod o d as ciências natu rais, p ergu nta em cad a caso e em p rim eiro lu gar p elo "m ed iante o qu e" u m a coisa é (cau sa efficiens) e não p elo "p orqu ê" d a coisa (cau sa finalis). Anaxágoras não invocou o N ou s p ara resp ond er à p ergu nta esp ecial: p orqu e razão há m ovim ento e com o é qu e há m ovim entos regu lares? Mas Platão acu sa-o d e não ter d em onstrad o o qu e d everia ter d em onstrad o, a saber: qu e cad a coisa se encontra, a seu m od o e no seu lu gar p róp rio, no estad o m ais belo, m elhor e m ais conveniente possível. Anaxágoras não teria ousado afirmar isto em nenhum caso p articu lar. Para ele, o m u nd o p resente nem sequ er era o m ais p erfeito p ossível, p orqu e via tod as as coisas nascerem u m as d as ou tras, e a sep aração d as su bstâncias p or m eio d o N O!4s não lhe p arecia realizad a nem acabad a, nem na extrem id ad e ,d o esp aço m aterial u niversal, nem nos seres ind ivid u ais. A su a cap acid ad e d e conhecer estava satisfeita p or ter encontrad o u m m ovim ento, cu ja sim p les d u ração p od e criar u m a ord em visível nu m caos totalm ente m istu rad o, e ele bem se abstinha d e p ergu ntar p elo p orqu ê d o m ovim ento, p ela cau sa racional d o m ovim ento. Pois se o N ou s realm ente tivesse u m fim necessário p or essência a realizar através d o m ovim ento, já não estaria à vontad e p ara com eçar o m ovim ento nu m m om ento qu alqu er. N a m ed id a em qu e é eterno, tam bém teria d e ter sid o d eterm inad o eternam ente p or esse fim , e então não p od eria ter existid o m om ento algu m em qu e faltasse o m ovim ento. N o p lano lógico, seria m esm o interd ito p ensar qu e o m ovim ento tivesse tid o u m com eço, o qu e tam bém tornaria logicam ente im p ossível a id éia d o caos original, fu nd am ento d e tod a a cosm ologia d e Anaxágoras. Para evitar as d ificu ld ad es criad as p ela teleologia, Anaxágoras teve d e afirm ar e d e su blinhar sem p re com energia qu e o esp írito age livrem ente. Tod os os seu s atos, m esm o o d o m ovim ento original, são atos d o "qu erer livre", ao p asso qu e, por ou tro lad o, tod o o resto d o m u nd o se form a a p artir d o m om ento p rim itivo com u m a d eterm inação rigorosa, u m a d eterminação m ecânica. Mas esse qu erer absolu tam ente livre só p od e p ensar-se com o d esligad o d e qu alqu er fim , à m aneira d e u m jogo d e crianças ou d o jogo d o instinto artístico. É sem razão qu e se im p u ta a Anaxágoras a confu são habitu al d os teleólogos qu e, m aravilhados com a u tilid ad e extraord inária d o m ecanism o, com a consonância d as p artes com o tod o, nom ead am ente no m u nd o orgânico, su p õem qu e o qu e existe p ara o intelecto tam bém d eve ter sid o introd u zid o p elo intelecto e qu e aqu ilo qu e eles só realizam com a aju d a d e u m conceito d e finalid ad e tam bém teve d e ser realizad o p ela natu reza, p or m eio d a reflexão e d e conceitos d e finalid ad e (Schop enhau er, O Mu nd o com o Vontad e e Rep resentação) volu m e II, livro segu nd o, cap ítu lo 26, a p rop ósito d a teleologia). Mas, no esp írito d e Anaxágoras, a ord em e a finalid ad e d as coisas são d iretam ente ap enas o resu ltad o d e u m m ovim ento cego e m ecânico. Anaxágoras ad m itiu o N ou s arbitrário, d ep end ente ap enas d e si m esm o, só para p od er d ar início ao m ovim ento, p ara p od er sair algu m a vez d o repouso mortal do caos. Nele, apreciou precisamente a qualidade de ser ind iscrim inad o, d e p od er, p ortanto, agir d e m aneira absolu ta, indeterminada, sem ter de obedecer a causas ou a fins.