“Lá estava eu, numa noite quente, sozinho em minha angústia, do
lado de fora de casa, preocupado com o futuro. Sonhando em passar num concurso que “resolveria os meus problemas”, pelo menos os financeiros. Não almejava a riqueza sem limites, mas é natural que um pai pense no futuro da sua filha. Sabia que se pode estragar um ser humano dando tudo que ele quiser. Mas pensar em minha família passando por dificuldades era um pensamento nem um pouco agradável. Eu não podia, dentro das minhas possibilidades, permitir que isso acontecesse. E se ela quiser ser médica? Como vou pagar a mensalidade de uma faculdade tão cara? Ou seja lá qual for o seu sonho, como vou ajudá-la? Entre essas e outras inquietações, o que aconteceu então foi o seguinte: - Eu daria qualquer coisa pra conseguir passar nesse concurso – pensava comigo. - Qualquer coisa? Ouvi uma voz. – Tem certeza disso? - Qualquer coisa! - Nesse caso, eu tenho uma proposta pra te fazer. - Espera aí, quem é você? E que tipo de proposta é essa? E de onde você surgiu? Ah! Eu sei quem você é! Primeiro consigo o que quero e depois você vem cobrar o preço. - Calma. Não sou quem você está pensando. Na verdade, o pacto que proponho é diferente, comigo você tem que entregar antes de receber. - Como assim, antes? E como é que vou aproveitar então? E o que é que você quer em troca? - Primeiro você entrega. Aliás, primeiro você se entrega. - Eu sabia! Eu sabia que eu tinha que entregar minha alma. - Calma, eu disse “se entregar”. Na verdade, é sim, se entregar de corpo e alma. Mas não é literalmente. - Como assim? - Tudo o que eu quero de você é dedicação, perseverança, trabalho duro e fé. - Trabalho muito duro? - Você acabou de dizer que daria qualquer coisa para passar nesse concurso... - Sim... mas durante quanto tempo? Dez anos? - Na verdade, essa é uma parte do contrato que vai ficar em aberto. Não acho uma boa ideia dizer o tempo certo. Isso te deixaria desleixado. Afinal, se você soubesse o tempo certo, ficaria tentado a sentar e esperar. - Mas você sabe qual é esse tempo... - Sim, eu sempre sei. - E se eu não aguentar e quiser desistir, o que acontece? - Aí você me chama. - Sei, aí você vem para cobrar a multa, né? Sei como funcionam os contratos. - Claro que não. Não há multa. Quando você me procurar eu venho para te incentivar, para te ajudar a não desistir. Venho para te lembrar o porquê de termos feito esse acordo. - E minha família, como é que ela vai aguentar todo esse tempo só com a promessa de um futuro melhor? Terei que ficar ausente. Minha filha está crescendo e precisa de mim. E eu dela. - Sua família vai entender. Talvez não seja fácil, mas ela vai entender. E lembre-se, eu estarei do seu lado. Pode me chamar, que eu converso com a sua mulher. E quanto a sua filhinha, não estou pedindo que a deixe de lado. Passe um tempo com ela todos os dias, mas garanta que esse tempo, já que vai ser curto, seja de qualidade, pois isso é o mais importante. Deixe-a sentir o amor que você sente por ela – e isso vale em relação a sua mulher também, não esqueça. - E as pessoas? Elas vão falar... vou passar anos só estudando, sem resultados para mostrar... Já até imagino, ano após ano: “e aí, o que anda fazendo, ainda estudando pra concurso?” - Quer dizer que dava tudo pra passar no concurso e agora não quer estudar por causa do que os outros vão falar? Preocupado com a opinião dos outros a seu respeito. Imagina se eu te peço pra construir uma arca! - Por favor, sem comparações... É que parece tão difícil. Não me sinto capaz. - Lembre-se do que eu disse uma vez: “nós somos o que fazemos repetidamente. A excelência, portanto, é uma questão de hábito”. - Foi você quem disse isso? - Sim. Quer dizer, não diretamente. Pedi que um filho meu dissesse. Muitas vezes eu inspiro as pessoas. Mas, infelizmente, elas nem sempre são ouvidas com a devida importância que merecem. - Tá bom, mas e você, o que faz? Qual é a sua parte? - Eu te ajudo. - Sempre? - Sempre que você precisar. E sempre que não precisar também. Pois aí eu também estarei te ajudando. Ajudando “a não precisar”, embora nesse momento você nem sempre tenha consciência disso e até, provavelmente, se esqueça de que eu estou ao seu lado. Carregando você no colo, na verdade. - Desculpa o trocadilho, mas é que quando a esmola é muita, o santo desconfia. Esse contrato está meio estranho. Pelo que eu tô vendo, só eu tenho a ganhar alguma coisa. E você, não leva nada? - Não sei como vocês ainda não entenderam. Tudo o que eu quero é ver vocês felizes. Você falou em sua filhinha. Quanto pretende cobrar dela pelo amor que está dando e por tudo que pretende fazer por ela? - Que é isso?! Lógico que não vou cobrar nada! - Pois é... eu amo vocês, meus filhos. Na verdade, eu não precisava aparecer aqui pra fazer qualquer contrato. Não preciso de contrato nenhum pra cuidar de vocês. Aliás, esse pacto sempre esteve feito. Eu sempre estive disposto a cumprir minha parte. Eu já faço isso todos os dias. Na verdade, eu assinei esse pacto há mais de dois mil anos, com o sangue do meu filho, lembra? Quer mais prova de que eu falo sério? - Está bem, se eu não preciso assinar nada, o que devo fazer então? - Basta que você acorde, queira de verdade, acredite do fundo do seu coração e cumpra a sua parte. A minha parte eu garanto, e olha que essa não é uma garantia qualquer...
...E foi assim que fiz meu pacto com Deus, quatro anos antes de passar no meu concurso. Nicandro Campos.