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REPARANDO ERROS Capa: Criação e arte final Flávio Machado

Projeto gráfico e Editoração eletrônica Petit


- Editoria de Arte
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Carlos, Antônio (Espírito)
Este Livro foi Digitalizado por Reparando Erros / pelo Espírito Antônio Carlos;
Emanuel Noimann dos Santos psicografado por Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho. São
e Corrigido por Fabiana Martins Paulo : Petit, 1997. ISBN 85-7253-008-8
1. Espiritismo 2. Romance mediúnico Vera Lúcia Marinzeck
deCarvalho. II. Título
REPARANDO ERROS CDU: 133.9

Copyright by (c) Petit Editora e Distribuidora Ltda. 1992/1997. índices para catálogo sistemático:
1a
Edição/impressão: Outubro/92 - 5.000 exemplares 1. Romances mediúnicos : Espiritismo 133.9
2a Reimpressão: Junho/93 - 3.000 exemplares S 3a
Reimpressão: Fevereiro/94 -5.000 exemplares Direitos autorais reservados. É proibida a reprodução total
4a Reimpressão: Setembro/94 - 5.000 exemplares ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio, salvo
5a Reimpressão: Novembro/94 - 5.000 exemplares com autorização da editora. Ao reproduzir este ou qualquer
6a Reimpressão: Fevereiro/95 - 10.000 exemplares livro pelo sistema de fotocopiadora ou outro meio, você estará
7a Reimpressão: Agosto/95 - 10.000 exemplares prejudicando: a editora, o autor e a você mesmo. Existem
8a Reimpressão: Abril/96 - 10.000 exemplares outras alternativas, caso você não tenha recursos para adquirir
9a Reimpressão: Março/97 - 5.000 exemplares a obra. Informe-se, é melhor do que assumir débitos. Impresso
10a Reimpressão: Julho/97 - 10.000 exemplares no Brasil no inverno de 1997
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REPARANDO ERROS
Pelo Espírito ANTÔNIO CARLOS
Introdução
Psicografia Vera LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO
Correspondência para Caixa Postal: 67545 Conheci o dr. Maurício num centro
- Ag.: Almeida Lima CEP: 03102-970
- São Paulo
espírita, uma casa anônima, local onde
- SP nenhum dos seus freqüentadores cultiva a
glória da personalidade humana e onde se
Outros livros presta valorosos serviços. Após um grande
psicografados pela médium socorro, no qual por doze horas consecutivas
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho nós, os desencarnados, trabalhamos na
recuperação perispiritual de inúmeros irmãos
Com o Espírito Antônio Carlos: que foram escravizados nos umbrais e se
- Reconciliação achavam em estados lastimáveis. Agora,
- Cativos e Libertos recuperados, dormiam e seriam encaminhados
- Copos que Andam para a colônia. Este facultativo, que ama
- Filho Adotivo muito o que faz, suspirou ao acabar de
- A Mansão da Pedra Torta socorrer o último irmão e elevou a voz numa
- Palco das Encarnações prece sincera: “Agradeço ao Senhor, pela
- Aconteceu oportunidade de trabalho. Sou grato, Pai, por
- Muitos São os Chamados servir em Seu nome e poder sanar dores,
- O Talismã Maldito enxugar lágrimas de irmãos sofredores; tudo
Com o Espírito Patrícia: que faço é ato de Sua bondade. Longe estou
- Violetas na Janela de ser digno de servir em Teu nome. Leva,
- Vivendo no Mundo dos Espíritos Pai, em favor, a minha vontade e ajuda-
- A Casa do Escritor me a ser servo útil. No término de mais um
- O Vôo da Gaivota auxílio, somos agradecidos e pedimos que
- Com espíritos diversos: nos oriente sempre no caminho do bem.” Seu
- Valeu a Pena semblante, sempre tão agradável, irradiava
- Perante a Eternidade felicidade no meio de tantas dores. O dr.
Maurício é muito conhecido no Plano Espiritual
ÍNDICE da Colônia São Sebastião, nos umbrais, nos
postos de socorros da região e também pelos
Página 1 encarnados que freqüentam o laborioso centro
espírita. Trabalhava as vinte quatro horas do
Reparando Erros dia com alegria infinda. Os sofredores, quando
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt o vêem, fixam seus olhos desesperados nele,
como os sedentos num copo d’água. É alto,
Introdução 07 esguio, ruivo, com sardas a enfeitar o rosto,
lábios grossos, onde o sorriso radiante e franco
Primeira parte é constante. Os olhos são verdes brilhantes,
1. Maurício 10 de expressão bondosa que demonstra toda
2. O casamento 21 alegria de viver servindo.
3. A felicidade no bem 31
4. Despertando 45 8
5. Sofrimento 58 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
6. Caminhando 71 Antônio Carlos

Segunda parte - Antônio Carlos


1. O exilado 83 - disse ele -, esperamos contar sempre
2. Resgatando 94 com sua colaboração. Certamente, teríamos
3. Aprendendo a dar valor 106 demorado mais tempo neste delicado trabalho,
4. Antônio 119 sem a sua preciosa ajuda. Embora saiba que
5. Vencendo a mim mesmo 131 outras tarefas o aguardam, é sempre um
6. A felicidade no bem 146 prazer tê-lo conosco.
7. Epílogo 159
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- Maurício, vejo como é amado por todos mais próximo. Plasmado espiritualmente, junto
que o rodeiam. Trabalha há muito tempo neste ao centro espírita, está um pequeno posto
local? de socorro, no espaço aberto, um singelo
- Faz tempo que estou desencarnado, jardim, com bancos, onde os trabalhadores
trabalhando no Plano Espiritual. Anos fiquei desencarnados do local descansam e se
no espaço Espiritual da cidade onde vivi reúnem para palestrar. Sentamos e, já curioso,
minha última encarnação. Quando este indaguei:
grupo, centro espírita, foi formado, em busca - Dr. Maurício, é agora um grande
de outras formas de trabalho, emigrei. Aqui sanador de dores mas que fez no passado?
estou, procurando servir com meus simples Terá sua história episódios tão pavorosos?
conhecimentos de medicina. - Pelos Céus!
- A medicina deve ser seu grande ideal - exclamou, rindo.
não é mesmo? - Lembrar o passado e ver inúmeros
- Leia o que está escrito ali. Mostrou- erros não é fácil, a não ser que, por eles,
me um quadro de madeira gravado, ornando aprendemos a acertar.
a parede: “Louvado seja o Senhor pelas - Sei disto. Uma grande parte acha
oportunidades de reparar nossos erros”. Com que é só desencarnar que o passado vem
seu sorriso constante, Maurício continuou, a tona. Para lembrarmos, necessitamos de
após uma ligeira pausa. um processo especializado e de eficiente
ajuda. Nem todos estão aptos a recordar seu
Página 2 passado, existências anteriores. O passado
Reparando Erros é nossa herança, está em nós. Recordam
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt aqueles que estão suficientemente maduros,
para não se perturbarem e que possam ao
- Não é maravilhoso que quem se utilizou saber, servir para sua melhoria. Os aptos
de um ideal para fazer o mal, espalhou a dor, recordam, encarnados ou desencarnados.
cometeu erros, possa, quando desperto para - Tantas vezes, Antônio Carlos, pensamos
o entendimento, sanar dores, espalhar alegria, que Deus nos é injusto pelos muitos sofrimentos
fazer o bem com o mesmo instrumento que sem explicações, pelas grandes dores que nos
utilizou para cometer seus erros. afligem. Porém, as dores são nossas colheitas
- Hum!... Como sou apreciador de e não sofremos um minuto mais além do que
histórias deixou-me curioso. Que será que somos capazes de suportar. O sofrimento é
esconde este sorriso, dr. Maurício? Se pela um despertamento. Quando despertamos, a
minha ajuda, como disse, o trabalho acabou oportunidade de reparação aparece. Sou feliz,
antes do previsto, poderíamos sentar no jardim reparo faltas.
e, sob a luz das estrelas, o senhor contar sua
história.
- Tem a certeza que quer? Olhe que PRIMEIRA PARTE
poderá chatear-se. Prometa-me, então, que,
se não o interessar, vai interromper-me.
Comovemo-nos sempre com a nossa própria Maurício Na minha última encarnação,
vida. Quem não tem o que contar? Saímos na qual recebi o nome de Maurício, vivi
do centro espírita, onde os encarnados no interior do Estado de São Paulo. Fui o
vêem um pequeno salão com cadeiras, uma sexto filho de uma prole de nove, meus pais
mesa e a saída dá para um espaço aberto.é eram ricos fazendeiros, plantadores de café.
um orientador espiritual do centro espírita Desde pequeno, interessei-me pelos estudos,
e instrutor de uma escola na Colônia São passando mesmo na frente de meus irmãos
Sebastião. O quadro no Plano Espiritual está mais velhos. “Quero ser médico!”
escrito em três idiomas: Português, Hindu e - falava sempre e meus pais concordavam
Indiano Antigo. alegres. Tínhamos muitos escravos na
fazenda, que eram tratados como empregados,
Reparando Erros viviam bem, não havia castigos. Mas, não me
interessava nem pela fazenda, nem pela política
Lugar sossegado onde o céu nos parece e tampouco pelos escravos, embora achasse
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uma grande injustiça social tê-los. Só pensava comprassem e alforriassem. Para mim, eram
mesmo em estudar e o fazia com gosto, lendo é são todos iguais, brancos e negros, todos,
muito. Era o único de minha casa a ler a vasta futuros clientes. Passei os anos de estudo
biblioteca de meu pai. Adolescente ainda, meu sonhando em me formar e, quando o fiz, era o
pai levou-me para estudar na capital do país, mais jovem da turma, senti enorme felicidade.
Rio de Janeiro. Ficou comigo até acertarmos Meus pais e cinco irmãos vieram para a minha
tudo e voltou, deixando-me acomodado numa formatura, que teve uma bonita festa. Voltei
pensão respeitável, perto da Faculdade de contente e resolvido a trabalhar mesmo. De
Medicina, onde morei os anos que lá estudei. uma das salas da nossa casa da cidade fiz
Estudar era a minha maior alegria e prazer. um pequeno consultório e logo fiquei amigo
Parecia que, e realmente estava, recordava o dos dois médicos já velhos da cidade. “São
aprendizado. Tinha grande interesse em tudo, ultrapassados estes dois colegas, necessitam
aprendendo rápido. Os professores elogiavam- estudar!”
me e os colegas estavam sempre pedindo - exclamava. Mas logo entendi que era
auxílio, o que fazia com simplicidade. muito trabalho para poucos facultativos, não
deixando tempo nem para o descanso, ainda
Página 3 mais para uma especialização. Naquela época,
Reparando Erros o médico, principalmente do interior, ia até as
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt residências dos doentes, ocupando muito de
seu tempo. Os enfermos da zona rural tinham
Gostava do Rio de Janeiro, que no que vir a cidade e não tinham onde ficar. “Como
século anterior era tranqüilo, mas amava o faz falta um hospital aqui!”
interior, seu sossego, sua beleza, seus campos - exclamava sempre. E Rosa, uma
empregada de minha casa, falou-me um dia:
Reparando Erros
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
e plantações, ansiava por acabar os Antônio Carlos
estudos e voltar. Raramente saía para
passear com colegas, preferia ler artigos - Por que o senhor não faz um?
recentes vindo da Europa, sobre medicina, - Um hospital! Isto! Por que não? Aluguei
ficando muito tempo no meu quarto amplo e uma casa bem localizada, muito grande, de um
arejado. Por vezes, ia a festas de estudantes, senhor falido e lá organizei meu consultório.
tendo alguns flertes, sem namorar, porque Rosa e Pedro, um casal de meia-idade, sem
achava que poderia atrapalhar meus estudos. filhos, que me queriam muito, empregados
Escrevia sempre aos meus pais e irmãos. Nas de minha casa, com a permissão de minha
ferias do final de ano voltava para a fazenda, mãe, vieram ajudar-me. Acomodei-os nos
onde descansava e sempre minha mãe me fundos e com o passar dos anos tornamo-
achava abatido e me alimentava bem. Meu nos grandes amigos. Dos muitos cômodos
pai tinha uma bonita casa na cidade perto da da casa, fizemos quartos; de uma das salas
fazenda, mas eu preferia passar as férias no fiz uma sala cirúrgica, onde podia operar.
sossego do campo. A escravidão começou a Parecia um sonho. Inaugurei meu pequeno
incomodar-me, grupos estudantis expunham hospital-casa, estava feliz, trabalhava muito,
suas idéias, escutava fatos sobre escravos sempre organizando-o, arrumando-o e foi
que me deixavam revoltado. Não compreendia um sucesso na cidade. Até meus colegas, os
o porque de subjugar uma raça pelo fato de velhos médicos, mandavam-me doentes, e
sua pele ser negra. Queria a libertação dos vinham, às vezes, ajudar-me. Eram os pobres
escravos, mas os abolicionistas quase sempre que mais me procuravam no hospital-casa, os
se envolviam na política, iniciando muitas que não tinham onde ficar e nem como pagar.
discussões, que quase sempre terminavam Se estavam satisfeitos, meu pai não.
em agressões. Não participei de grupo algum, - Maurício, você enche de pobres aquela
mas era amigo dos abolicionistas e sempre casa, não o formei para isto, pensei que seria
contribuía com uma parte de minha mesada como os outros médicos. Queria mesmo que
para que escondessem negros ou para que os eu fosse importante, cuidando dos ricos.
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Achava loucura o que estava fazendo, não contra. Mas meu cunhado acabou por autorizar
ganhando nada, nem para meu sustento. Ele e, no outro dia cedo, Helena estava em nosso
que me sustentava, pagava mini-hospital. Minha sobrinha era lindíssima,
cabelos castanhos, traços delicados e grandes
Página 4 olhos azuis. Alegrou logo o ambiente com seu
Reparando Erros sorriso, infantil e espontâneo, era como uma
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt flor a enfeitar. Inteligente, aprendeu rápido
nos ajudando muito, organizou tudo, fazendo
o aluguel da casa, os empregados. um balanço das despesas e orientando
Quando ficava mais exaltado, mamãe as compras. Acostumei-me tanto com sua
apaziguava. presença que ansiava por vê-la chegar, por
- Calma, calma! Maurício é jovem, ouvir seu riso. Um dia, adoentada com uma
idealista, logo cansará, é bom médico, todos simples gripe, não veio, senti tanto sua falta
na cidade já o procuram. Papai suspirava, que descobri que a amava.
lembrando dos elogios que ouvira sobre mim - Meu Deus, isto não! Como posso amá-
como clínico. la? É minha sobrinha! Tão menina! Escondi
- Talvez você tenha razão. De fato, atendia este sentimento, envergonhado. Para Helena
a todos, atencioso, ganhando a confiança até eu era o tio querido a quem muito admirava.
dos dois médicos que passaram a mandar- Depois, ela sempre me falava de seus sonhos,
me seus clientes mais graves. Atendia todos que era casar e ter filhos, muitos filhos para
igualmente, os fazendeiros, suas famílias e cuidar. Na possibilidade que viesse a amar-
seus escravos, ricos e pobres. Só que não ia me, não poderia realizar seus sonhos, como
em suas residências, só em raras exceções, tio e sobrinha o risco seria grande de ter
os ricos não gostavam de ir ao hospital-casa, filhos defeituosos. Depois, para a família,
como chamavam meu consultório. Tudo que seria uma calamidade, uma tragédia, que não
ganhava era para meu consultório, comprava valeria nem pensar. Não contei a ninguém e
remédios, equipamentos, o que achava ser temia que alguém pudesse desconfiar. Mas
necessário. Mas recebia pouco, muitos não Rosa, a meiga amiga, sem ir diretamente
podiam pagar, e de outros, principalmente dos ao assunto, estava sempre me chamando à
colonos, recebia porcos, galinhas, feijão, arroz, razão e confortando. As vezes, enchia-me de
que eram consumidos na casa mesmo. esperanças e pensava ser correspondido. Será
que Helena também me ama?”
Reparando Erros
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Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Meus irmãos já estavam todos casados Antônio Carlos
e a família aumentava, tendo já sobrinhos
grandes. Foi quando Helena, mocinha de Por mais que tentasse adivinhar os
quinze para dezesseis anos, filha de minha sentimentos de Helena, nada descobria. Pela
irmã mais velha, Desejou ajudar-me no razão, sentia seu carinho de sobrinha; pelo
hospital. coração, queria que me amasse. Consolava
- Tio meu coração só pelo fato de vê-la todos os
- disse entusiasmada -, deixe-me ajudá- dias, trabalhava feliz. Mas, quando fez dezoito
lo! Poderia fazer muitas coisas, posso atender anos, seu pai arrumou-lhe um noivo. Era um
as pessoas, fazer fichas, dar remédios. Deixe! bom moço de família amiga. Senti muito ciúme,
Não sei por que mulher não pode ser médica. pensei até em fugir com ela. Estive para falar
Gostaria tanto. do
- Também não sei, certamente seria uma
grande médica, dra. Helena. Gostaria muito Página 5
que viesse ajudar-me, necessito realmente de Reparando Erros
ajuda. Se seus pais deixarem... Helena saiu Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
pulando e naquela tarde de domingo, quando
estávamos reunidos na casa de meus pais, meu amor mas faltou-me coragem.
formou-se uma discussão, uns pró, outros - E se ela não me amar? Se contar a
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todos? É melhor calar, sou tio... Sinto que família começou a tecer elogios a uma moça de
ela não me ama. Sofri muito. Um dia Helena família do nosso círculo de amizade. “Maurício
chegou triste. precisa conhecer Maria das Graças, é um
- Tio, marcaram a data do meu casamento, anjo.” “Maria das Graças é educada, bonita...”
só virei ajudálo esta semana, Luís não quer Todos tinham elogios para ela, parecia ser ela
que eu saia de casa depois de casada. a moça perfeita. Eu ia em casa apenas para as
- Está triste, Helena, fale-me o que se refeições e para dormir e quando havia muito
passa com você. Não quer casar? Se puder trabalho fazia isto lá mesmo no hospital. Mas
ajudá-la, o farei. Se não quer este casamento, aos domingos para meus pais era sagrado, a
darei um jeito família se reunia para o almoço. Procurava ir
- indaguei, preocupado. Se ao menos ela sempre, porque sabia como estas reuniões
fosse feliz, me conformaria. Se não quisesse eram importantes, nos encontrávamos,
casar, faria qualquer coisa para ajudá-la, conversávamos, era gostoso rever todos.
esperei ansioso pela resposta. Domingo, como sempre, levantei mais cedo
- Não é por isto que estou triste tio, acho para estar na hora do almoço em casa. Atendi
mesmo que tenho que casar. Luís é bom moço, todos os meus clientes e voltei para casa, fui
ama-me muito. Casada, terei meus filhos, ao meu quarto para banhar-me, quando minha
as crianças que tanto quero. Aborreço-me velha ama entrou e disse:
é com este preconceito. Por que não posso - Meu sinhozinho doutor, seu pai combinou
sair de casa para vir ajudá-lo? Gosto tanto casar o sinhô com a sinhazinha Maria das
de trabalhar aqui, pela primeira vez me senti Graças. Vai se preparando...
útil. Gostaria de ter nascido em outra época, - Xii... bem que desconfiava, mas não
que não tivesse a mulher sob tanto domínio. pensei que me faria noivo sem consultar-me.
Queria estudar, ser médica como o senhor. Que faço? Nem a conheço ou lembro ter
Mas... Enxugou as lágrimas e saiu, senti muita conhecido. Se já combinaram, o almoço vai
tristeza, seria difícil acostumar-me sem ela esquentar. Não vou ficar noivo! Fiquei nervoso,
por ali. Uma semana passou rápido, Helena inquieto, fui para a sala de visitas onde me
não veio mais... O trabalho aumentou, isto apresentaram as convidadas, d. Etelvina e
fez com que esquecesse meu sofrimento. Na sua filha Maria das Graças. O esposo de d.
véspera de seu casamento, houve um incêndio Etelvina já havia falecido, fora muito amigo
numa casa, tendo muitos feridos, que foram de meu pai, tiveram três filhos, o mais velho,
transportados para meu hospital, não fui ao morava longe, trabalhando em uma fazenda
casamento de Helena. Sofri muito, às vezes que recebera de herança, Maria das Graças
sentia raiva de mim por não ter falado a ela e Leônidas, um doente mental, mongolóide.
do meu amor, quando mais calmo achava - Prazer... encantado
que agira certo. Conformava-me quando via - falei gentil, beijando as mãos que me
Helena feliz, sempre risonha e Luís bom e foram estendidas. Analisei Maria das Graças,
amável. Logo, muito contente, ela deu-me a elegante, educada, tinha dezessete anos,
notícia: morena
- Tio, vou ser mãe. Estou tão feliz!
Página 6
Reparando Erros Reparando Erros
15 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt

Resolvi tentar esquecê-la. Como o clara, miúda sem grandes atrativos,


trabalho era muito, não dava para curtir
esta desilusão, fui pensando menos nela e 16
o tempo foi passando. Estava só eu solteiro Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
em casa, meus pais sonhavam em ver-me Antônio Carlos
também casado. Apresentaram-me moças
e mais moças na esperança que gostasse embora não fosse feia. Todos fizeram
de uma. Mas nem pensava nesta hipótese, questão de empurrar-me para ela, meu pai a
decidira ficar solteiro. Comecei a desconfiar chamava de filha e, pelos olhares que meus
que planejavam casar-me, quando toda a familiares trocaram, tive a certeza que minha
6
velha ama não se enganara, queriam casar- ficar solteiro.
me. Almocei quieto, resolvi acabar com tudo, - Ama alguém?
antes de começar. Logo que terminamos de - Não.
almoçar, levantei e convidei Maria das Graças: - Então espero. Abaixou a cabeça
- Quer dar um passeio pelo jardim srta. impedindo-me de olhá-la, senti que sofria.
Maria das Graças? - Voltamos?
- Aceito. Ajudei-a educadamente a - convidei-a, ansioso para me ver livre
levantar e saímos da sala. Todos olharam-nos daquela situação deveras desagradável.
contentes e, ao sair, escutei os comentários: Calados, regressamos. Maria das Graças
“Que lindo casal formam.” “Foram feitos um entrou na sala e convidou a mãe para se
para o outro.” Andamos por alguns minutos retirarem. D. Etelvina deveria conhecer bem a
calados pelos canteiros floridos, achando que filha pois se levantou e foi se despedir. Maria
não deveria adiar mais tomei coragem e fui das Graças apressou-se e logo partiram. Meu
direto ao assunto. pai, nervoso, olhou para mim.
- Srta. Maria das Graças, sabe que - Que aconteceu Maurício?
planejam casar-nos? - Nada. Só disse a ela que não casaria,
- Sim não caso com ninguém, quando quiser casar
- respondeu, acanhada. escolho a noiva.
- Sinto muito, agem como se não - Você?!
fôssemos interessados no caso. Planejam - desmaiou. Foi um corre-corre, temi
sem consultar-nos. Não estou de acordo, não tê-lo matado. Percebi que dera um desgosto
gosto de casamentos arranjados. Por favor, aos meus pais, amava-os, respeitava-os, mas
senhorita, não se sinta comprometida comigo. casar era demais. Ainda mais que amava
- Mas eu concordei Helena, e esta chegou perto de mim, passou
- disse ela, levantando o rosto, encarando- devagar as mãos nos meus cabelos e disse:
me. - Tio Maurício, seja forte, logo passa a
- Pensei que você também estivesse de tempestade. Estou do seu lado, compreendo-o.
acordo. Acho-o simpático, médico de futuro Sorri a ela em resposta, nada faria eu aceitar
brilhante, nossas famílias são amigas. por esposa uma desconhecida. Papai logo
- Não terei futuro brilhante. Amo a voltou do desmaio e aos gritos me expulsou
medicina e a ela somente servirei. Vivo por de casa, fazendo mamãe
um ideal, sanar dores. Sinto, senhorita, que
você tenha concordado, não se ofenda; não Página 7
é por você, não quero é casar. A senhorita é Reparando Erros
bonita, prendada, merece casar com alguém Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
melhor que eu e que a ame. Maria das Graças
ruborizou, suas mãos tremiam ao desfolhar chorar aos berros. Fiz as malas e fui
uma pequena flor e se esforçou para dizer. para meu hospital, onde me acomodei e fiquei
- Se me acha bonita, prendada, poderá morando. Meu pai já havia pedido a mão de
amar-me. Não atrapalharei seu trabalho, posso Maria das Graças a d. Etelvina, sentiu-se
até ajudá-lo. Eu... amo você. Fiquei surpreso, amargurado por ter faltado com a palavra dada,
tentei ser gentil, afinal não tinha culpa de sua raiva não passou só com minha expulsão.
ela me amar, tínhamos nos visto tão pouco. Repartiu toda sua fortuna para meus irmãos,
Lembrei dela ao deserdando-me. A situação do hospital ficou
grave sem a ajuda do meu pai. Tendo que
Reparando Erros pagar o aluguel, os empregados, o dinheiro
17 não

vê-la, já a tinha visto pela cidade, não 18


me chamou atenção e até esqueci. Mas não Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
tinha vontade de casar e preferi ser honesto e Antônio Carlos
acabar ali com o assunto casamento.
- Desculpe-me, mas casamento não faz dava, passei a economizar em tudo
parte dos meus planos. Sinto muito, já decidi que podia e com tristeza constatei que não
7
conseguiria manter o hospital. Chamei Rosa da porta da frente do hospital.
e Pedro. - Dr. Maurício, veja o que encontrei
- Nossa situação é grave, não posso debaixo da porta, é dinheiro!
pagá-los como antes e... - disse, eufórica. Peguei, abri-o e, de fato,
- Aqui temos casa e comida, a situação continha dinheiro, contei-o.
ruim há de passar. Deus ajuda quem auxilia - Grande ajuda! Quem será que nos
a tantos mandou?
- disse Rosa. - Uma alma boa! Uma pessoa bondosa
- Dr. Maurício, não temos filhos e que sabe das nossas dificuldades
gostamos daqui, vamos ficar com o senhor, - exclamou contente Rosa. Cheguei à
quando puder nos pagará conclusão que deveria ser realmente uma
- disse Pedro. pessoa boa que quis nos ajudar sem ser
- Obrigado, vocês são excelentes reconhecida. O dinheiro ajudou-nos muito,
pessoas. Trabalham tanto e ganham tão paguei as dividas mais urgentes. E foi enorme
pouco. O senhor ganha? Está tendo lucro? a surpresa quando, no mês seguinte, lá estava
Não, eu. Por que não podemos ser como o outro envelope, com a mesma quantia. Era um
senhor? envelope comum, levemente perfumado, como
- Vocês são meus melhores amigos, terão o outro, sem nada escrito. Todo mês, entre os
aqui sempre o lar de vocês. Quase não saía dias três e cinco, encontrávamos debaixo da
do hospital, nenhum dos meus familiares veio porta o dinheiro que tanto necessitávamos.
falar comigo, soube por amigos que estavam Assim, com essas doações bondosas, não
proibidos de ver-me. Sentia-me triste, saudoso, fechei o hospital. Com economias, livrando-me
não queria ressentimentos e os carinhos de de muitas coisas, consegui atender a todos que
minha mãe faziam-me muita falta. Três meses nos procuravam. Passei a imaginar que seria
passaram, pensava seriamente em fechar a Helena a autora das doações. “Deve ser ela,
casa, as dívidas se acumulavam. Foi nesta sabe das nossas dificuldades porque trabalhou
época que deu entrada no hospital um negrinho aqui. Não nos esqueceu e quer ajudar-nos.
com seus treze anos, com o corpo coberto de Será realmente?” pensava. “Vive tão bem com
feridas. Para se ver livre dele, seus senhores o esposo
alforriaram-no, deixando-o liberto naquele
triste estado. Examinei-o demoradamente, Página 8
não conseguindo diagnosticar a causa das Reparando Erros
chagas. Quando este fato ocorria, ficava Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
quieto, meditava e pedia ajuda ao médico dos
médicos: Jesus. “É sarna, complicada por uma e é mãe de um belo garoto...” Evitava
alergia, não é grave” pensar nela, ocupava minha mente com o
- fui instruído. Separamos Miguel, assim trabalho, quando tinha tempo, estudava meus
se chamava o garoto, e tratamos dele, com apontamentos e meus livros da Faculdade.
banhos, com ervas, remédios caseiros e com Sentia falta da casa dos meus pais, deles, dos
boa alimentação, foi melhorando. Miguel era meus irmãos, sabia que mamãe sofria com
esperto, bom e cativou-nos. Curado, ficou minha expulsão. Um dia, fui surpreendido com
conosco, sendo como filho de Rosa e Pedro. a agradável visita de minha genitora.
Passou a ajudar-nos nos trabalhos de casa, - Maurício, meu filho, que saudade!
nos tempos difíceis, recebendo moradia e Abraçamo-nos saudosos.
alimentação. Quando dava, eu pagava um - Mamãe, está doente?
ordenado. Nesta época de dificuldade, sofri - Não, vim só para vê-lo, não agüentava
muito, não queria deixar de atender meus de saudade e para abençoá-lo.
pacientes pobres e não sabia como conseguir - Papai sabe?
- Não. O que aconteceu me deixou muito
Reparando Erros triste. E, embora não fale, a seu pai também.
19 Meu filho, por que não fazer as pazes? Por que
você não vai em casa? Peça perdão a ele e
manter meu pequeno hospital. Numa tudo ficara bem.
manhã, Rosa encontrou um envelope debaixo
8
20 casa da fazenda era muito grande, circundada
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / por jardins e pátios. A carruagem passava
Antônio Carlos desgovernada pelos canteiros dando a
impressão que iria virar. Como os cavalos
- Mas ele não irá querer casar-me? não acharam saída ficaram somente rodando
- Não, acho que seu pai também recebeu pelo jardim. Helena desesperada correu de
sua lição, não se pode obrigar ninguém a casar. encontro a carruagem, tentando para-la. Os
Não podendo demorar, mamãe despediu-se, cavalos pisotearam-na. Tudo aconteceu em
beijando-me. segundos, empregados e escravos correram
- Mamãe, vou hoje a noite em casa. e pararam os cavalos e nada aconteceu ao
Arrependi-me de ter me afastado de casa, fui menino. Corri para Helena e ao vê-la percebi
expulso, deserdado, mas cabia compreendê- que era grave seu estado. Peguei-a no colo
lo, já era tempo da raiva do meu pai passar. e levei-a para dentro, colocando-a no leito.
Logo após o jantar, arrumei-me para ir. A hemorragia era forte, Helena feriu-se na
- Afinal cabeça. Comecei a estancar os
- consolou-me Rosa -, o que pode
acontecer de pior é ser expulso novamente. Página 9
- Não tenho porque não tentar. Não quero Reparando Erros
continuar afastado deles. Com o coração Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
disparado, bati na porta, o criado atendeume,
pedi para ser anunciado. Esperei ansioso, ferimentos. Seu marido chorava
minutos pareceram-me horas e com alívio desesperado, a confusão era grande. Sabia
escutei: que não iria conseguir salvá-la, mas lutava
- Pode entrar sinhozinho, os amos estão desesperado contra a morte. A velha ama
na sala de estar. Emocionado, entrei no meu trouxe-me sais caseiros que a fiz inspirar,
antigo lar. Meus pais estavam sentados um ao Helena abriu os olhos e chamou pelo esposo.
lado do outro. Observei meu pai, estava triste,
com os cabelos mais brancos. Ajoelhei aos 22
seus pés, peguei sua mão beijei-a e lágrimas Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
correram pelo meu rosto. Antônio Carlos
- Perdão meu pai, abençoe-me! Nada
respondeu, olhou-me demoradamente, depois - Luís... Estou aqui, Helena. ;• • Nossos
estendeu os braços, abraçando-me forte. filhos... cuida... deles... Tombou a cabeça e
- Seu moleque teimoso. Deus lhe desencarnou. Não consegui dominarme e
abençoe! Mamãe chorava, nós três choramos chorei alto segurando suas mãos. Mamãe
e nos reconciliamos. Apesar de termos feito abraçou-me e afastou-me dela, tentou
as pazes, não voltei para casa, passei a consolar-me.
freqüentar as reuniões domingueiras, festas - A medicina lhe foi ingrata, meu Maurício,
familiares. Todos ficaram contentes, meus não pôde salvá-la. Está chorando por este
irmãos eram de paz e unidos. Passei a ver motivo, não é? Dedica-se tanto e, de repente,
Helena que teve seu segundo filho. 1 O percebe que a vida é dom de Deus.
casamento Três anos se passaram desde o - Não pude salvá-la, mamãe! Não pude!
dia em que me neguei a casar e fui expulso. - Médico não tem o dom da vida, suaviza
Era véspera de Natal e reunimo-nos todos na dores, chega a acabar com muitas delas, mas
fazenda para comemorar. A criançada fazia a morte é para todos.
tremenda algazarra, os sobrinhos enchiam - Jovem e tão bela! Nosso Natal naquele
a casa. Os adultos estavam espalhados a ano foi triste, todos sentiram a morte física
conversar, procurando lugares frescos, pois de Helena. Para mim, foi desesperador,
o calor estava sufocante. Meu tio acabara de parecia que um pedaço de mim morrera junto.
chegar e deixara a carruagem na porta, quando “Medicina, valerá se dedicar tanto a uma
ouvi gritos e o barulho da carruagem. O filho ciência?”
mais velho de Helena subira na carruagem, - indagava, amargurado. “Sabemos tão
soltando os cavalos que, assustados com os pouco, sei tão pouco.” Fiquei três dias na
gritos e o barulho, dispararam pelo jardim. A casa dos meus pais, triste, desanimado, nem
9
lembrei dos meus clientes nem do hospital. quem está nos mandando estes envelopes.
Rosa veio chamar-me. Ficará escondido a noite toda, não durma e
- Necessitamos do doutor. Por favor não fale nada a ninguém. Se vir a pessoa, não
venha! Lento, sem ânimo, segui-a e esperando- faça barulho. Ela não poderá ver você. Quero
me estava uma senhora chorando, trouxera o que me fale quem é. Certo? Arrumamos um
filho de nove anos com um enorme corte na bom esconderijo para Miguel, de onde, sem
perna, que se feriu com um machado quando ser visto, podia ver
trabalhava. O garoto, pálido, olhou-me em
rogativa. Página 10
- Dói muito, doutor. Bastou isso para Reparando Erros
chamar-me novamente as responsabilidades. Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Sofria, mas muitos outros sofriam e dependiam
de mim para ter suas dores findas. Logo, o todos que se aproximassem da porta.
garoto estava com o curativo feito e disse-me Fui dormir ansioso. Naquela noite, ninguém
aliviado: trouxe o envelope. Fiz Miguel dormir o dia todo
- Não dói mais! Obrigado doutor, obrigado. para vigiar a noite. “Pode deixar, dr. Maurício,
Sua mãe agradeceu: descubro quem traz estes envelopes”
- Sei do luto do senhor, mas não sabe - dizia todo importante o filho adotivo de
que é ver o filho machucado, sangrando e não Rosa. Outra noite de ansiedade, porém, no
saber o que fazer e nem ter dinheiro! Deus lhe outro dia cedo:
pague! Saíram, fiquei só, olhei o crucifixo que - Dr. Maurício, aqui está o envelope e a
ornava a sala de curativos. notícia.
- Fale logo. Você viu quem foi? ví
Reparando Erros - Foi o velho Geraldo, um escravo da d.
23 Etelvina, vi bem e conheço-o.

“Ah, meu Jesus! Deve ter motivos para 24


ter levado Helena. Se me deixou aqui na Terra, Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
não foi para lastimar. Pouco posso, mas neste Antônio Carlos
pouco quero ser útil. Seja feita Sua vontade.”
Fui ver os meus doentes, trabalhando como - D. Etelvina! Maria das Graças! Miguel
sempre, e pensando em como sobreviver não fale a ninguém, senão mando-o embora.
preocupei-me: “E agora, que faremos sem - Não falo, Virgem Maria! O doutor
o dinheiro de Helena?” Os dias passaram manda, eu obedeço. Onde vou se o doutor me
e no dia quatro lá estava o envelope com a mandar embora? Não falo!
salvadora quantia. “O envelope com o dinheiro! - Pode ir menino, vá dormir. Confio em
Então, não era Helena! Quem será?” você. Passei dias a pensar em Maria das
- fiquei intrigado. Pensei e conclui que Graças, deveria ser ela muito bondosa. Em vez
não poderia ter sido Helena, esta não era tão de odiar-me, ajudava-me em silêncio. Sempre
rica para dispor daquela quantia sem que o que podia, ia a missa aos domingos e, naquela
marido soubesse. Porque se Luís soubesse semana, fui na esperança de vê-la. Ela estava
não necessitaria mandar escondido. Senti, lá, o interessante é que a achei muito bonita.
no seu desencarne, que Helena não pensava Trajava um vestido muito elegante, cor-de-
mais no seu trabalho no hospital e que amava rosa, olhei-a muitas vezes, percebendo que a
o marido. Foi nele que pensou e nos filhos, fitava, encabulou-se. Naquele domingo, ao nos
quando sentiu que iria desencarnar. Ela era, reunirmos para o almoço, mamãe aconselhou-
fora, somente minha sobrinha e agora, tendo me:
recebido de novo o envelope, estava provado - Maurício você está passando da idade
não ser ela a pessoa que nestes anos todos de casar, não morrerei tranqüila sabendo-o
nos ajudara no anonimato. “Quem será? Quem sozinho, queria que tivesse uma esposa para
ajuda-me? E por quê?” Pensei num plano cuidar de você, é tão descuidado. Veja seus
para descobrir. No dia dois do mês seguinte, irmãos, todos casados, com filhos, até netos.
chamei Miguel. Não quer ter filhos, Maurício? Pensei muito
- Miguel, preste atenção, deverá descobrir no que mamãe disse, gostaria de ter filhos,
10
uma casa e acabei pensando em Maria das
Graças. “Afinal, Maria das Graças é rica e não as dezoito horas, estava a bater na
necessitarei sustentá-la. Se tem me ajudado, porta da casa de d. Etelvina. D. Etelvina e
certamente continuará a fazê-lo, depois de Maria das Graças trataram-me bem e logo
casarmos. Mas será que ela ainda me quer? me senti a vontade, o jantar estava delicioso
Será que ela realmente me amou? Ou ama- e conversamos muito, sem mencionar o
me?” desagradável episódio em que me recusei
- Falando sozinho, dr. Maurício? a ficar noivo. Achei Maria das Graças muito
- Rosa, você acha que devo casar? Acho agradável e meiga. Ao despedir-me, pedi
que deve, d. Maria das Graças é boa pessoa. permissão para acompanhá-la à missa no dia
Como sabe que pensava nela? seguinte.
- Não poderia ser outra, senão a bondosa
dama que nos tem sustentado. - Dr. Maurício
- Será que ela não está comprometida? - disse ela -, aqui, quando uma moça vai
- Logo saberemos. Miguel! Algumas acompanhada de um rapaz a missa, todos
horas após, Miguel volta com as informações. dizem que são comprometidos-. Sorri, criando
- Dr. Maurício, o senhor sabe como sou coragem, respondi:
esperto, descobri tudo, sem levantar suspeitas. - Você se importa? Tem namorado? Eu
A ama de d. Maria das Graças se chama Ana, também não sou comprometido. Não posso
falou uma parte e escutei aqui, perguntei ali e... esconder que estes comentários só me trariam
- Miguel, fale logo prazer.
- falei, ansioso.
- É ou não comprometida? 26
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Reparando Erros Antônio Carlos
25
Maria das Graças ruborizou-se. Venha
- Não, d. Maria das Graças já recusou buscar-me às oito horas.
dois pedidos de casamento, não namora - Serei pontual. Acompanhei-a e após a
ninguém, sai pouco, vai muito a Igreja e cuida missa ficamos felizes a conversar na frente
dos negócios sozinha. da Igreja, como era costume naquela época.
- Obrigado, Miguel! Resolvi aproximar- Depois acompanhei-a até a sua casa. Gostei
me dela. Rosa fez para mim um bonito muito de conversar com ela, Maria das Graças
ramalhete de flores, que colheu do nosso era inteligente e discreta. Os comentários
jardim, e escrevi um bilhete com os dizeres: corriam mesmo, já no almoço todos sabiam
Srta. Maria das Graças Aceite estas humildes e já nos consideravam comprometidos. Meu
flores, que mando de coração. Peçço-lhe que pai olhou-me e indagou: Maurício, foi expulso,
me receba sábado, para uma visita. Agradeço deu-nos enorme desgosto ao teimar em não
Maurício Miguel foi entregá-las e logo veio com casar, agora, espontaneamente, você vai
a resposta: Dr. Maurício As flores são lindas. procurá-la. Você pode me explicar o que lhe
Agradeço-o. Espero que venha jantar conosco acontece?
sábado às dezoito horas. Maria das Graças - Tenho pensado muito e entendi que o
- Viva! Viva! senhor tinha razão. Onde achar melhor esposa?
- exclamei contente. A tarde, fui vê-la, conversamos animados na
- Ela aceitou, acho que posso ter sala de visita de sua casa, sempre com Ana,
esperanças. Rosa ajudou-me, arrumando sua ama, ao lado. Na despedida, beijei-lhe as
minha melhor roupa. Desde que saí de casa, mãos.
não comprei mais roupas e as que tinha - Maria das Graças, você quer namorar
estavam velhas. Arrumei-me do melhor modo comigo? Não sei como pude ser tão bobo e
possível e, cego. Perdi muito tempo. Você está tão linda...
- Quero
Página 11 - respondeu, feliz. Nosso namoro agradou
Reparando Erros a todos e dois meses depois, numa grande
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt festa, ficamos noivos. Meu pai, como já havia
11
repartido as fazendas para meus irmãos, não
pôde me fazer herdeiro novamente. Porém, mim ela era um anjo que ajudava a fazer
comprou a casa que alugava e me deu de o meu trabalho.
presente, e também sua casa da cidade. - Maurício, agora, receberá em dobro,
Minha mãe comprou roupas novas e caras, só que não irá em envelopes as escondidas.
renovando meu guarda-roupa. Marcamos o Ajudarei você a sustentar seu hospital, minha
casamento, que se realizaria após três meses. fazenda, agora nossa, dá bom lucro.
Meu pai deu-me dinheiro para que fôssemos - Como você é boa!
viajar para a França em lua-de-mel. Ao contar - Não quero interferir no seu trabalho e sei
a Maria das Graças, esta pareceu adivinhar que também não terá tempo para os negócios.
meus pensamentos. Assim, você fará o seu e eu continuo a fazer o
- Maurício, não irá tranqüilo deixando seu meu; administrar a fazenda. Concorda?
hospital, não é? Sorri, ela continuou: - De acordo. Estou tão feliz! Como você
- Acho que no futuro poderemos viajar é maravilhosa! Farei você feliz, meu anjo.
mais tranqüilos. Mamãe está adoentada e não Prometi a mim mesmo fazê-la feliz. E fomos.
quero ficar longe dela. Ainda há Leônidas, só Combinávamos muito, procurei ser sempre
eu consigo acalmá-lo quando tem suas crises. atencioso, delicado com ela. Maria das Graças
Da fazenda sou eu quem cuida... Com este não interferiu na minha profissão, me dava
dinheiro você poderá reformar a casa, agora uma boa quantia em dinheiro todo mês, que
sua, o hospital necessita mesmo de reparos. empregava no hospital. Poucas vezes foi ao
hospital, era muito caseira, ia somente muito
Reparando Erros
27 28
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
- Maria das Graças, você é a mais linda Antônio Carlos
e bondosa das noivas! Adoro-a!
- falei entusiasmado, pegando-a no colo à igreja. Era boa administradora. No
e rodopiando-a no ar. Comecei a reforma começo, pedia opiniões, mas ela entendia
no outro dia e meu pai cedeu-me escravos, muito mais que eu sobre café, gado, etc.
empregados e madeira, e acabou me dando Maria das Graças administrava as finanças
mais dinheiro. A casa ficou como queria. O da família. E eu ocupava todo o meu tempo
dia do casamento chegou, Maria das Graças com meus doentes. Rosa, boa e leal servidora,
estava linda e casei feliz. Ao sairmos da Igreja, lembrava-me das datas importantes, assim,
muitos dos meus clientes pobres jogaram nunca esqueci do dia do nosso noivado,
flores em nós, com gritos de viva, o que me casamento, aniversário. Nestas ocasiões,
fez chorar emocionado. Fomos morar em casa comprava-lhe sempre um presente e Rosa
de d. Etelvina. Ao ficarmos a sós, Maria das fazia um ramalhete com as flores do nosso
Graças disse: jardim e levava para ela, deixando-a sempre
- Maurício, você recebe todo mês uma contente.
quantia em dinheiro? - Maurício, que bonito! Que amável!
- Recebo sim? Uma pessoa caridosa, um D. Etelvina era uma chata, vivia a nos
anjo que nos ajuda, sem esta ajuda não teria complicar a vida, reclamava muito e me dizia
conseguido sustentar aquela casa. Diga-me sempre: “Maurício, Maria das Graças é jovem,
Maria das Graças, como sabe disto? necessita passear, distrair-se. Você está
- Sou eu!-sorriu, contente. sempre naquele consultório, no hospital de
- Oh, meu anjo! Achei melhor não dizer a enjeitados... Não pára em casa, nem parece
ela que descobrira, fiquei com medo de magoá- um marido!” Não gostava que falassem mal
la, estava tão feliz, sentia que ela me amava de meu hospital, mas não respondia nada,
muito. Depois, anjo não é para ser magoado, agüentava os desaforos que minha sogra dizia,
para procurando tratá-la bem, para a harmonia do
meu lar. Minha esposa desgostava-se com o
Página 12 fato e procurava defender-me: “Mamãe, não
Reparando Erros gosto de sair. Maurício tem muito trabalho, por
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt favor, não interfira em nossa vida.” D. Etelvina
12
ia muito ao hospital para certificar-se de minha já não acordava gritando a noite. Logo após
presença, se de fato estava trabalhando. Dava o desencarne de minha sogra, Leônidas
palpites, implicava com meus empregados, ficou seriamente doente e desencarnou. Sem
isto deixava-me nervoso e queixava-me a minha sogra, meu lar ficou tranqüilo. Maria
Maria das Graças. Minha sogra foi culpada das das Graças não reclamava de nada, sempre
pequenas desavenças no meu lar. Leônidas, bondosa e paciente comigo. Miguel casou e
meu cunhado doente, em suas crises, gritava construiu para ele uma casinha nos fundos
e atirava objetos na parede, só a irmã do hospital, perto de seus pais adotivos, Rosa
conseguia acalmá-lo, dava-nos muito trabalho. e Pedro. Tornou-se um ótimo enfermeiro,
Aos poucos fui ganhando sua amizade e ele bondoso e prestativo. Fátima, sua esposa, uma
permitiu que o tratasse. Às vezes, acordava negrinha liberta, nos ajudava no hospital, seus
aos gritos durante a noite, fazendo-nos correr filhos cresceram ali, fortes e bonitos. Quando
até ele que, após uns agrados, adormecia. A Margarida tinha dois anos, Maria das Graças
fazenda que minha esposa herdara era grande, trouxe para nossa casa duas crianças muito
bem cuidada, tinha capatazes e administrador, bonitas, Antônio e Francisca. Olhei-as e amei-
tudo sob orientação de Maria das Graças que as, principalmente o garoto com seus quatro
ia sempre lá. Eu raramente ia, e quando o fazia anos, moreno, de olhos expressivos, parecia
era aos domingos a tarde, quando doentes me que o conhecia e lhe queria muito bem.
esperavam. Eu os consultava, não sobrando - Maurício
tempo para descansar ou passear por lá. Às - disse Maria das Graças -, ficaram
vezes, minha esposa se queixava. órfãos. O pai, meu empregado, morreu num
- Nem aqui tem sossego. Você não se acidente, a mãe, Tereza, morreu ao ter um
cansa? aborto.
- Não sinto cansaço, acho mesmo que - Um aborto! Por que não me chamaram
se me tirassem meus clientes, meu trabalho, ou trouxeram-na ao hospital?
morreria por não fazer nada. - Não sei ao certo, acho que escondeu
a gravidez, penso que não queria o bebê.
Reparando Erros Acharam-na agonizando e não deu tempo
29 para acudir.
- Que fato triste!
- Viúva, eu! Ao trabalho Maurício!
- ria alegre a me agradar. Meus pais 30
desencarnaram num espaço de seis meses. Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Sempre tive amizade com meus Antônio Carlos

Página 13
Reparando Erros - Também acho. Não sabendo o que fazer
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt com os órfãos, trouxe-os para casa.
- Coitadinhos! Tão lindos! Tão pequenos!
irmãos e sobrinhos e, mesmo com - Que faremos, Maurício? Deixá-los na
o desencarne de meus pais, reuníamo-nos casa da fazenda com uma empregada? Ou
sempre em datas importantes e festas. aqui em casa?
Tivemos três filhos, Jonas, José Hermídio - Meu anjo, queríamos ter muitos filhos,
e Margarida. No terceiro parto, Maria das acho que Deus nos deu mais dois. Vamos
Graças teve uma infecção e não pôde mais ter criá-los com os nossos. Assim, Antônio e
filhos. Ficamos tristes pois tínhamos planejado Francisca ficaram em nossa casa, como filhos
ter uma família numerosa. Logo após o adotivos. Trabalhava muito, ficava pouco em
nascimento de minha filha, d. Etelvina teve um casa e quase não via meus filhos. Sempre
derrame que a deixou acamada por oito meses achei certo o que minha esposa fazia e a ela
e desencarnou. Leônidas ficara adoentado e coube educar as crianças. Às vezes, achava
tinha muito ciúme das crianças, necessitando que ela os mimava. Se tocava no assunto, ela
ser vigiado o tempo todo. Com a doença de dizia que não e se aborrecia. Então, evitava
minha sogra, leveio para meu hospital onde falar ou dar palpites, ficava feliz, vendo-os
fez amizade com Miguel e ficou mais tranqüilo, fortes e sadios. Jonas era o mais rebelde
13
e briguento; José Hermídio era bondoso e que lá passarem os homens valiosos que
amigo, meninote interessou-se pela fazenda. construíram um local para curar doenças.”
Margarida era teimosa e chorona; Francisca Infelizmente, atingimos nossos objetivos
era meiga e boa; Antônio era o meu preferido, exaltando a vaidade das pessoas. Tudo fiz
vivo, inteligente, gostava de ir ao hospital, para conseguir um hospital grande e equipado,
brincar de médico, estava sempre sorrindo. realizando meu sonho. Com entusiasmo,
Para evitar ciúme, procurava não demonstrar construíram o hospital em tempo considerado
preferência. Quando a abolição veio, trouxe rápido. Nessa época, José Hermídio, que
muitas confusões, enchendo meu hospital amava a fazenda, passou a tomar conta da
de negros doentes, andavam os ex-escravos nossa com muita capacidade, se casou, e
pela cidade formando confusões, roubando, foi morar nela, aliviando o trabalho de minha
não tendo onde ficar e o que fazer. Aos esposa. As meninas, Margarida e Francisca,
poucos, com o tempo, foram se ajeitando. também casaram, na opinião de Maria das
Foi um período de muito perigo e trabalho, Graças, muito bem. Os netos começaram a
muitos crimes aconteceram. Cuidei de muitos enfeitar nossa casa. Irmãs de caridade vieram
negros doentes, mal nutridos, deformados trabalhar e direcionar o novo hospital, nossa
por castigos que receberam durante muitos moderna Santa Casa, grande e bonita para a
anos. Meus filhos estudaram, Jonas e Antônio épo
decidiram cursar medicina, orgulhei-me deles. - S. E. Círcuío da Luz BIBLIOTECA
“Continuarão meu trabalho!” Jonas, o mais I”””*”$i.o <ON:to
velho, estava um ano mais adiantado que
Antônio nos estudos. Levei meu filho Jonas Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
para estudar em São Paulo, como meu pai Antônio Carlos
fizera comigo. Arrumei
ca. A inauguração foi feita com uma
Página 14 grande festa. Tudo que podia ser utilizado do
Reparando Erros meu hospital foi para o novo. Após trinta anos,
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt meu hospital foi fechado. Amava muito meu
velho hospital, mas não me importei em fechá-
um local para que ficasse, numa lo, estava muito contente com o novo. Como
pensão familiar, já prevendo a ida de Antônio, previ, novos médicos vieram para a cidade.
organizando para que ficassem juntos. Rosa e Pedro não quiseram sair do cantinho
No outro ano, após as ferias, Antônio foi deles, já velhos, decidi aposentá-los, ou seja,
morar com Jonas. Antônio, estudioso, tirava continuar pagando seus ordenados e deixar
excelentes notas, enquanto Jonas estudava meus fiéis e dedicados ajudantes onde eles
para ser aprovado. O tempo passou. A queriam. Miguel também ficou morando nos
felicidade no bem A cidade foi crescendo e a fundos do antigo hospital e passou a trabalhar
população começou a sentir necessidade de de enfermeiro na Santa Casa. Mas meu velho
um bom e equipado hospital. Reuniram-se os hospital ficou fechado só por dois meses. Um
fazendeiros, as pessoas mais importantes e dia, Rosa foi procurar-me na Santa Casa.
de posses financeiras e decidiram construir
um. Pela primeira vez, fiz política, organizei - Dr. Maurício, uma senhora idosa,
reuniões, nas quais explicava a necessidade sofrida, espera-o em casa. Traz o filho doente.
de um bom hospital. “Um hospital na cidade - Por que não a encaminhou para cá?
só trará benefícios” - É que... é louco! Fui vê-lo, tinha trinta
- dizia. “Novos médicos virão para cá, anos, alto, forte, estava amarrado, sujo,
poderemos ter equipamentos modernos, despenteado, causando má impressão,
quartos luxuosos, onde poderão os senhores apiedei-me dele. O moço falava sem parar,
e suas famílias se alojar, caso adoeçam repetindo frases, desorientado. Sua mãe
gravemente. As enfermarias serão amplas, chorava baixinho, olhando com amor o filho
todos da região se beneficiarão com o novo naquele estado.
hospital. Como beneméritos, seus nomes - Dr. Maurício, ajude-me. Sou pobre,
ficarão gravados numa grande placa na viúva, este filho é tudo o que tenho. É doente
entrada, informando ao futuro e a todos da cabeça, enfurece-se e ataca a todos. Só o
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senhor pode ajudar-me. Não o aceitaram na uma esposa, como o senhor. Quero sustentar
Santa Casa, disseram que não é doente para a minha família! Doeu muito ouvir isto de um
lá. Não sei o que faço. Como deixálo assim, filho, reconhecia ser verdade. Evitei discutir
todo amarrado... com ele, não deixando, porém, de aproveitar
- Deixe-o aqui, cuido dele. as ocasiões propícias para chamá-lo ao bom
- Irá sarar? senso elucidando-lhe para a caridade que
- Só Deus sabe, mas farei a minha parte. se pode fazer dentro da medicina. Antônio
Acomodamo-lo em um dos quartos. Com formou-se e vi nele a minha esperança. Ótimo
carinho o desamarramos, demos banho nele, obstetra, os partos difíceis acabavam em
já suas mãos. Era bom, caridoso, estudioso,
sonhava em fazer pesquisas para o bem
Página 15 da humanidade. Passou a ajudar-me, tanto
Reparando Erros com os pobres na Santa Casa, como no meu
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt Sanatório. Conversávamos muito, já não
ligava mais de mostrar a minha preferência,
mais calmo, fizemos curativos em tornamo-nos grandes amigos, tínhamos as
muitos dos seus machucados, dêmos-lhe mesmas preferências e amávamos demais a
comida. Ele não nos atacou, ficou quieto a nos medicina, trocávamos idéias dos casos mais
olhar, depois voltou a conversar, acabou por difíceis e complicados, resolvendo-os em
dormir. Constatei o tanto que ele sofria e que comum. Só estavam os dois solteiros e não
necessitava de tratamento e cuidados. Bastou combinavam, quase não conversavam. Queria
este, para aparecer outros enfermos mentais que os dois fossem amigos, mas entendia que
da redondeza e região. Novamente Maria era difícil ser amigo de Jonas que era cínico e
das Graças veio ao meu auxílio, reformamos arrogante. Antônio começou a namorar uma
a casa, colocamos grades nas janelas e a moça simples e pobre desgostando minha
transformamos esposa que me chamou para interferir: 34

Reparando Erros Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /


33 Antônio Carlos

em sanatório - Maurício, converse com Antônio, ele


- o Sanatório do dr. Maurício. Miguel não pode me dar este desgosto. Um médico
voltou a ajudar-me, Rosa e Pedro voltaram ao casar com uma moça tão simples. Meus filhos
trabalho. Continuou tudo como antes, quem bem casados e ele teima em namorar uma
podia pagava, quem não podia era tratado do moça pobre, não me conformo. Certamente a
mesmo modo, todos com amor e carinho. O você ele escutará. Não queria interferir, mas
tratamento era mais com amor, os recursos não sendo capaz de negar um pedido de Maria
eram pouquíssimos para ajudá-los. Ainda hoje das Graças, conversei com ele.
desconhecemos muito da mente humana, - Antônio, está realmente apaixonado?
porque é visto corpo e espírito separadamente. Vai casar?
Se uma mente está desequilibrada é porque - Pai, gosto dela, não sei se vou casar,
o espírito está enfermo. Atendia meus ainda é cedo para resolver, acho que vou
pobres pela manhã na Santa Casa e a tarde namorar mais tempo.
passava com meus enfermos mentais. Jonas - Sua mãe não quer. Não dá para você
formou-se e começou a trabalhar na Santa escolher outra moça para namorar?
Casa. Amargurado e triste, vi que meu filho - Não.
ambicionava riqueza e importância. Tentava - Por mim, tudo bem. Acho-o sensato
conversar com ele, acabávamos por discutir e para não escolher certo. Dias depois, um
sua mãe vinha em seu socorro, defendendo-o. escândalo que deixou minha esposa acamada.
Uma vez, no calor da discussão, disse-me Jonas fugiu com a namorada do irmão.
asperamente: - Deserdo-o se casar com ela!
- Papai, quero ser importante, médico de - clamava Maria das Graças, sentida.
quem pode pagar. Os pobres já tem o senhor, Mas, não casou, dois meses depois voltou e
para que mais um? Não quero viver a custa de pediu perdão a mãe, prometeu agir com juizo
15
e deixar a moça. - É para mim! Eu o abençôo. Não permito
que o expulse, aqui é seu lar e voltará quando
Página 16 quiser. Abracei-o, ele pegou suas malas e saiu.
Reparando Erros Não voltou mais em casa, nos víamos todos
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt os dias no trabalho, teve filhos, ia sempre vê-
los, visitá-los. Gostava das crianças, de Inês e
Dei-lhe bons conselhos que ouviu, de sua mãe, d. Eugênia. Às vezes, lembrava
desta vez, quieto. Certo seria que casasse Antônio de casar. “Não quero. Uma coisa aqui”
com ela, porém Jonas afirmou que não a - mostrava o peito
amava. Para não magoar mais Antônio preferi - “me impede.” Achando que não deveria
dar o assunto por encerrado. Antônio estava interferir na sua vida particular, evitava tocar no
muito triste, trabalhando muito, adquirindo assunto. Maria das Graças e eu morávamos
confiança de seus pacientes que aumentavam sozinhos. Nossa casa estava sempre alegre
sempre. Maria das Graças resolveu casar com os netos. Ela era uma avó coruja,
Jonas. Escolheu uma moça de sua amizade mimava muito os netos. Alguns anos depois
e apreciação que Jonas namorou e casou que Antônio saiu de casa, sua companheira
satisfeito. Minha esposa começou a apresentar foi embora, deixando-o com as crianças.
moças a Antônio na esperança de casá- Indaguei-o, preocupado:
lo também, mas ele não se interessou por - Antônio sabe para onde ela foi? Com
nenhuma. Um dia, Antônio disse: quem? Por que foi embora?
- Pai, saio de casa, vou morar com Inês, - Não sei de nada. Achando-o magoado
minha antiga namorada. demais, entendendo que não gostava de falar
- Filho, sabe realmente o que quer? Já sobre isto, não comentei mais. Mas, novo
sofreu uma decepção amarga com ela. escândalo, a
- É isto que quero!
- Então casa, filho. Faça tudo direito. 36
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Reparando Erros Antônio Carlos
35
esposa de Jonas descobriu que ele
se encontrava com Inês, a excompanheira
- Inês é mãe de um garoto, filho de Jonas, de Antônio na sua casa de campo. Tudo
que é parecido com o senhor, sou padrinho fizeram para encobrir o acontecimento, não
dele, gosto do menino. Vamos morar juntos, conseguiram. Envergonheime profundamente
se der certo, no futuro casaremos. com o procedimento de Jonas, chamei-lhe a
- Sua mãe sabe? atenção e brigamos feio.
- Falarei com ela hoje, quero que o senhor - Pai, o senhor não deveria ter brigado
me ajude. Como temia, Maria das Graças fez com ele
um escândalo. - disse Antônio.
- Não e não! Não consinto! Deserdo você! - Inês foi culpada. Jonas é seu filho.
- Francisca e eu somos adotados, não - Você também, mais que ele. Jonas
iremos receber nada mesmo. deveria ter respeitado você. Que filho meu
- Criei-o como filho, é estudado, um Deus! Como pôde fazer isto? Você sabia e
doutor, é de boa família! não quis contar-me.
- Por favor, mamãe, compreenda, não - Inês escreveu um bilhete antes de partir,
vou casar com ela, vamos morar juntos. falando que ia embora com Jonas. Não quis
- Viverá em pecado. Você é um ingrato! que sofresse. Acho que Jonas sente ciúme
É assim que nos paga? Nunca mais volte a de mim.
esta casa. - Pode ser. Mas ele nada faz para afinar
- Maria das Graças! comigo. Você sim! O trabalho era muito e o
- gritei. tempo passou rápido, Antônio ficou morando
- Isto não! Esta casa será sempre dele. com d. Efigênia e com os filhos, eu acabei
Jonas também deu-lhe desgosto. por fazer as pazes com Jonas, não guardava
- Mas Jonas é meu filho! Este não! rancor e não gosto de inimizades.
16
todos desencarnados, muitos irradiavam luz
Página 17 e beleza, com as mãos estendidas em minha
Reparando Erros direção, falaram em coro:
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt - Deus lhe pague! Deus lhe pague!
Sorri encantado com tanto carinho. O círculo
O município crescia, a cidade progredia, humano davame boas-vindas. Vi uma enorme
o meu sanatório localizado no centro, enfeiava vasilha com água, me vi tirar água desta
a cidade. O prefeito resolveu construir um novo vasilha e distribuir e ela continuava cheia.
sanatório em lugar mais afastado e prometeu Escutei: “Quem distribui, tem em abundância!”
darme a direção. O local foi escolhido, o Tombei a cabeça e suavemente adormeci.
terreno doado, começaram as obras. Sonhava Acordei disposto, lembrei-me do ocorrido,
com o novo sanatório, com suas acomodações sentei no leito limpíssimo e observei o local.
modernas e amplas. Ao iniciar a construção, “Devo estar em algum hospital mas tenho a
comecei a sentir dores no peito, mediquei-me certeza que morri. Engraçado!”
e passei a descansar mais. Naquela noite, - resmunguei alto.
acordei três vezes com a dor me incomodando. - Boa-tarde, dr. Maurício!
Levantei mais tarde que o costume e fui ao - disse ao entrar no quarto uma simpática
Sanatório para saber de um doente em estado senhora Olhei-a bem, parecia que a conhecia.
mais grave, antes de ir ao hospital. Examinei Seria d. Mariana?
o doente e entrei no escritório para fazer - Boa-tarde
anotações na ficha, sentei na minha poltrona - respondi.
preferida e pus-me a recordar. Lembrei de - A senhora não é d. Mariana, a esposa
Rosa que dizia-me sempre: “Dr. Maurício, o do sr. Artur? 111 Deus lhe pague! Forma
senhor escuta muito Deus lhe pague. Deus de expressar gratidão, significa ser grato
lhe deve muito, aqui Ele tem conta enorme, e entender que no momento não se pode
que deixam para Ele pagar...” Ríamos. “Rosa, retribuir o beneficio recebido. E rogativa ao Pai
amiga Rosa” para que beneficie por nós o nosso benfeitor.
- dizia -, “não devemos deixar nossos É pedir a reação da boa ação. Esta frase,
agradecimentos ou débitos ao Pai, não rogativa, com sinceridade, beneficia o benfeitor
necessitamos deixar com fluidos benéficos. O Deus lhe pague que
Maurício ouviu durante toda esta encarnação
Reparando Erros veio-lhe a mente no seu desencarne e amigos
37 e beneficiados vieram dar-lhe boas-vindas,
ajudando o seu desligamento e levando-o até
para Ele pagar, podemos retribuir o a colônia, num lindo e comovente desencarne.
bem recebido a outros irmãos, sempre temos
oportunidades de ser úteis. Estas pessoas 38
são humildes e simples, ao dizerem Deus Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
lhe pague, pedem ao Pai bênçãos a nós. E Antônio Carlos
sua misericórdia não nos tem faltado, sempre
conseguimos manter esta casa. Eu sou feliz! - Sim. O senhor lembra de mim? Que
O bem que fazemos, a nós fazemos. Observe surpresa agradável! Mas morreu em meus
Rosa, que cuidamos dos necessitados e temos braços há anos! Certamente, o câncer me fez
saúde, harmonia e paz. O Pai deixa que seus padecer muito e o doutor tão bondosamente
filhos ajudem uns aos outros. É a criatura
ajudando a outra em Seu Nome.” Rosa e Página 18
Pedro haviam desencarnado há tempo, senti Reparando Erros
saudades deles. Uma dor forte no peito fez Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
que eu tonteasse. Estava tendo um ataque de
angina. Levei a mão ao peito e não consegui me tratou. Como o senhor se sente?
fazer mais nada. A dor foi suavizando e vi Morri ou sonho?O Seu corpo morreu, dr.
muitas pessoas se aproximarem de mim, um Maurício, seu espírito vive. Então morri
bem-estar invadiu-me. Comecei a distinguir as mesmo! Sinto-me tão bem! Alegro-me. Ao
pessoas, eram Rosa, Pedro, antigos clientes, ficar a sós novamente, pensei nos últimos
17
acontecimentos, na morte, na religião. Fui ex-pacientes olhavam esperançosos para
católico, ia a igreja raramente, tinha pouco Antônio, sentiram que seria ele a continuar
tempo, nos horários das missas estava sempre meu trabalho. Meu filho adotivo acompanhava
nos hospitais cuidando dos doentes. Orava o enterro triste, enxugava as lágrimas que
todos os dias ao acordar, voltava o pensamento teimavam a rolar pelo seu rosto.
ao Pai e a prece saía espontânea, de coração. - Isto foi há três dias
Ao atender um enfermo grave, conversava - explicou-me d. Mariana.
com Jesus, pedindo ajuda. Ao deitar, a noite, - Ficou adormecido para não ser
estava tão cansado que dizia: “Jesus, que incomodado pelas tristezas de parentes e
meu trabalho seja a minha prece. Receba-a amigos. Aos poucos, tudo volta ao normal.
com minha pequenez. Orienta-me, ajuda-me Novamente vi pela tela Antônio cuidando
para que possa sempre fazer realmente o que do meu Sanatório, vi Maria das Graças
for melhor. Amém!” Às vezes, a prece era tão triste, abatida, aguardando esperançosa seu
rápida que Maria das Graças brincava comigo. desencarne, para nos reencontrarmos. A tela
“Maurício, parece que só orou o Amém.” foi desligada, percebi que sua transmissão era
“Amém, querida, não quer dizer assim seja? os pensamentos de d. Mariana.
Não é um ato de resignação? Só o Amém de - Obrigado
coração, com o cumprimento da vontade do - falei, sorrindo -, foi gentil de sua parte.
Pai, é uma longa prece.” Agora estava ali, No outro dia, comecei a receber visitas de
sentindo-me bem, corpo morto, espírito vivo. amigos e parentes que me desejavam boas-
“Que vai ser de mim?” vindas, trazendo-me agrados e alegrias. Um
- temi um pouco. mês após, estava a andar pelo hospital e
- Dr. Maurício redondezas, cansado de descansar, querendo
- disse Mariana, que regressara sem que saber de tudo e ver as belezas da colônia. “Oh,
percebesse e sentara ao lado do meu leito. Deus! Bendito o trabalho, o estudo, descansar
- Preocupado? bom filho é aquele que eternamente seria enfadonho demais, almejo
faz a vontade do Pai, não aquele que O bajula o trabalho.” D. Mariana apresentou-me Lucas.
com preces sem senti-las. A mais bela prece Ao olhar o recém-chegado, pareceu-me
é amar a todos, e o senhor a fez, amenizando conhecido e não esperou que indagasse.
dores de irmãos. Acontecimentos agradáveis - Fui seu guia, protetor, quando estava
o esperam. Almejamos que se recupere logo e encarnado, amigo a ajudá-lo na sua tarefa.
passe a nos ajudar aqui. Enfermos é que não
faltam. Que?! Aqui existem enfermos? Página 19
- Maldades, imprudência, egoísmo, todos Reparando Erros
os vícios e defeitos adoecem o espírito que Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
transmite ao corpo as doenças
- Ah! Então era você o Jesus a me
Reparando Erros cochichar tantas vezes!
39 - Como vê, não era Jesus, e sim eu,
em Seu nome. Sou um espírito como você,
que conhece. Se encarnados cultivaram ansioso por ajudar, trabalhamos juntos e se
a maledicência, voltam ao Plano Espiritual quiser, passaremos a trabalhar aqui.
adoentados, necessitando de socorro.
- Como estão meus familiares? Sentem 40
a minha ausência? Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
- Quer vê-los? Com minha afirmação d. Antônio Carlos
Mariana ligou uma tela que, desconhecendo
a televisão, achei fenomenal, olhei encantado. - Claro que quero! Estou ansioso para
Lá estavam meus familiares, filhos, netos, em ver como agem os médicos aqui no Plano
volta de uma urna com meu corpo, a chorarem Espiritual. Amigos, passei a trabalhar com
comovidos. Maria das Graças sofria muito, Lucas que me ensinou muito. Excursionei pelo
amava-me realmente. Em segundos, apareceu mundo espiritual encantado com tudo. Pela
o enterro, muitas pessoas, gente humilde com primeira vez, senti que pertencia a uma colônia
flores orando com sinceridade. Muito dos meus e que era digno de viver nela para continuar
18
meu progresso, meu trabalho e estudo. Que Terra, mas fui bendito entre irmãos, lembrado
felicidade, que sensação agradável é sentir com carinho, com preces sinceras que me
que pertencemos por afinidade a um local emocionavam e me faziam sentir feliz. Por
maravilhoso, sentindo-se morador e não muito tempo, a lembrança de um atencioso
hóspede. Conversava muito com Lucas, médico era comentada e exemplificada na
não posso deixar de lembrar de um dos cidade onde morei. O que interessa realmente
seus ensinamentos: “Maurício, aqueles que a um espírito que passa pela Terra um período
sempre falam a verdade desenvolvem o poder encarnado é regressar a espiritualidade com
de materializar suas palavras. O que eles suas boas obras. Maria das Graças estava
ordenam com todo o coração vem a se realizar adoentada, sentindo que ia desencarnar fiquei
para seu bem ou para o bem de outros.” Logo, ao seu lado. Seu corpo morreu e ela ficou nele,
Lucas deixou-me: não quis sair, largar seu corpo. Não sabendo
- Agora, Maurício, está apto a ajudar com que fazer, pedi ajuda. Amigos vieram ajudar-
sabedoria, sabe distinguir as coisas importantes me, foi desligada e a retiramos do corpo morto.
das não importantes, o útil do inútil, sabe ajudar Saiu como ébria, confusa e sofrida, não me viu,
com conhecimento, para fazer, é necessário só tinha em mente cenas ignoradas por mim.
saber. Quem ajuda sem conhecimento pode Dois espíritos de ex-escravos cercaram-na,
às vezes prejudicar. Devo orientar outro amigo. perseguindo-acom fúria. Ela os via, chorava
Até logo. Não tive palavras para agradecer desesperada fugindo deles. Os três seguiram
tão fiel companheiro. Lembrei do Deus lhe para a fazenda, palco de
pague, preferi fazer com amor o que ele me
ensinou. Que melhor pagamento será que o Página 20
de fazer aos outros o que nosso benemérito Reparando Erros
nos ensinou? Num abraço, nos despedimos. Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Voltei ao meu Sanatório e passei a ajudar
doentes encarnados e desencarnados, ficando muitas infelicidades. Com tristeza vi a
muito com Antônio que amorosamente me outra face de minha esposa. Ela fora exigente
aceitara. Feliz, vi que não havia mais cansaço, na sua administração, fizera os escravos
passávamos as vinte e quatro horas ajudando trabalharem muito com pouca alimentação para
a tantos que ali vinham em busca de alívio que a fazenda desse mais lucros e castigos
para seus males. As obras do novo Sanatório eram freqüentes. Amargurado, seguia-os em
iam devagar, um político deu uma grande preces, um dia, os negros viram-me.
verba para terminá-lo com a condição de que - Dr. Maurício, vai embora, o negócio não
o hospital tivesse o seu nome. Assim, não é com o senhor.
deram meu nome como fora combinado e nem - Por que tanto ódio?
a direção a Antônio. Um médico indicado pelo - indaguei.
político veio da capital para dirigi-lo. Minha - Por que não perdoam como os outros?
família ficou indignada e não foi a inauguração. Que ela lhes fez?
Maria das Graças quis impedir Antônio de - A mim, deixou morrer a míngua, num
trabalhar lá. Meu filho castigo de dias sem comer.
- A mim, mandou quebrar minha perna
Reparando Erros para não fugir mais, tive infecção por falta de
41 cuidados, desencarnei.

adotivo estava para atender o pedido 42


da mãe. Cheguei perto dele, de encontro ao Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
seu coração, fazendo-o arrepiar-se, e em Antônio Carlos
sua mente pedi: “Antônio, meu filho, o que
importa é fazer de doentes pessoas sãs, Não agüentei, na frente dos dois chorei
de tristes, felizes. Que valerão honras? Ao alto. Como podia, minha doce esposa, doar
partir deste mundo que levamos? Vá filho, vá para que muitos fossem beneficiados a custa
curar doentes.” Fiquei feliz quando aceitou. de sofrimentos de outros. E eu não saber! Os
Foi trabalhar no Sanatório e o velho casarão dois se comoveram.
foi demolido... Honras não me couberam na - Dr. Maurício, por favor, sabemos como
19
o senhor é bom, não deve chorar por esta nos sem que a justiça tomasse conhecimento.
megera. Minha esposa, sem saber que fazer com
- Não posso. Ela é minha esposa, foi com os órfãos, levouos para casa e sem que eu
seu dinheiro que sustentei o hospital, depois soubesse também, fez grandes diferenças
o Sanatório. entre eles. Ver minha companheira naquele
- Não queremos ver o senhor sofrer estado me doía, fechada em seu remorso,
assim. Não é justo! Pelo senhor perdoamos. não me via, queria ajudá-la e não conseguia.
Fica contente? Choramos abraçados. Falei Lembrei de Tereza que bondosamente visitara-
a eles da necessidade de perdoar, os dois me na colônia, agradecendo-me pelo que
emocionados rogaram perdão a Deus e fizera a seus filhos. Tereza há muito tempo
perdoaram, sendo recolhidos a uma casa de perdoara, espírito bom, trabalhador, veio ao
socorro. Mas o espírito culpado é seu principal meu auxílio assim que solicitei sua ajuda. Fez-
carrasco. Maria das Graças vagava pela se visível a Maria das Graças que chorou alto
fazenda com lembranças tristes, perturbada e ao vê-la.
confusa. Em sua mente uma cena se repetia... - Sinhá Maria das Graças perdoe a si
O pai de Antônio era capataz da fazenda, mesma, eu já a perdoei. A ex-senhora de
casou-se com uma escrava, Tereza, uma escravos não conseguiu dizer nada, Tereza
bonita mulata. Maria das Graças prometeu abriu os braços, ela refugiou-se em seu peito,
dar-lhe sua alforria, porém, foi adiando. O chorando muito. Levamo-la para a colônia,
administrador da fazenda, homem rude e onde aos poucos foi recuperando, sempre aos
grosseiro, interessou-se por ela e começou cuidados e
a importuná-la. Tereza reclamou a minha
esposa que ficou indiferente. Maria das Graças Página 21
sabia que ele maltratava escravos, mas, Reparando Erros
como fazia a fazenda dar lucros, concordava Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
com seus métodos. Quando eu ia a fazenda,
eram os escravos vigiados e ameaçados dedicação de Tereza. Quando Maria das
para que não me dissessem nada, e como eu Graças estava bem, fui vê-la. Ao ver-me ao seu
nem desconfiava e não tinha interesse pela lado escondeu o rosto com as mãos e chorou.
fazenda, não soube. O capataz, pai de Antônio, - Perdão Maurício, perdão. Sempre me
teve de fazer uma viagem, ausentando-se chamou de anjo e era um demônio.
por um mês, indo entregar uma boiada. O - Não, um demônio não sustenta hospitais.
administrador, aproveitando sua ausência, Para mim, você será sempre um anjo.
assediou mais Tereza. Esta o recusou com - Sabe o que fiz?
energia, foi castigada como uma escrava, com - Sei e fui culpado. Esqueci que era um
trabalhos rudes, sem comida e pouca água. chefe de família e que tinha obrigações com
Tereza estava grávida e teve um aborto, vindo nossa casa, com você.
a desencarnar. Ao chegar de viagem, o esposo, - Não tente justificar-me. Você não me
sabendo de tudo, foi encontrar o administrador, enganou, casou comigo deixando claro suas
este, temendo-o, atirou antes que dissesse idéias, sabia de seus sonhos e trabalho. Eu
algo. O pai de Antônio desencarnou na hora. que fui ambiciosa, viveríamos muito bem sem
Maria das Graças escondeu tudo, todos na precisar explorar ninguém. Sustentei hospitais,
fazenda foram proibidos de falar sobre o mas foi para agradar você, alegro-me que este
assunto, despediu o administrador e deu o meu gesto tenha servido para o bem de muitos.
caso como Confessava ao padre estes acontecimentos,
ele dizia não ser pecado, que negros não
Reparando Erros tinham almas, grande foi minha desilusão.
43 Todos nós somos irmãos e o remorso me dói

acidente. Naquele tempo a palavra de 44


pessoas importantes era lei, ninguém se Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
interessava em desvendar crimes envolvendo Antônio Carlos
escravos, que eram na maioria tratados como
animais. Os donos matavam-nos, castigavam- muito. Rezava muito, mas não fiz a
20
vontade do Pai, enquanto você com seus um templo, onde orávamos e ofertávamos
Améns o fez. Sofri com ela, aprendi que a sacrifícios. Era uma construção simples
omissão é erro, por mais que seja tarefa de pedra, mas orgulho para nós todos.
nobre não devemos esquecer os deveres Havia muitas festas que eram marcadas
sagrados com aqueles que nos cercam, a pelas estações do ano e luas. As oferendas
família. Maria das Graças estudou, trabalhou eram frutos, alimentos em geral, peças de
na colônia, preparou-se para encarnar e artesanato e, às vezes, animais. Porém, se a
Tereza, a bondosa amiga, recebeu-a por filha. aldeia fosse atingida por alguma calamidade,
Embora pobre, tendo no trabalho humilde sua como secas, enchentes, pestes, então eram
sobrevivência, e resignada, tem na fé espírita a feitos sacrifícios humanos para apaziguar os
luz do seu caminho. Por anos segui ajudando deuses infernais. Este sacrifício consistia na
Antônio, orientando filhos e netos, vi com morte de uma pessoa jovem, entre dez e vinte
tristeza Jonas desencarnar entre maldições anos, sendo solteira.
e vagar por anos pelo Umbral, hoje está
encarnado como deficiente físico. Mas nem Página 22
todas as minhas encarnações foram voltadas Reparando Erros
ao bem. Muitos erros e sofrimentos até que Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
como Maurício pude repará-los. 4 Despertando
Recordamos pouco da infância espiritual. Não podia ser idosa. Contavam que
O despertar é lento, vamos aos poucos durante uma enchente, ao ser ofertado
aprendendo pelo livre-arbítrio a escolher os um homem idoso, a enchente aumentou,
caminhos. A curiosidade, o interesse nos faz concluíram que os deuses não queriam idosos,
aprender muito, como também o egoísmo, mas, sim, jovens. Mas as calamidades eram
o amor-próprio nos faz querer, ter. E vamos poucas pelos verdejantes vales e só se havia
acumulando com as encarnações toda sorte visto, até então, apenas um sacrifício, que teve
de conhecimentos bons e maus nos traçando a voluntário. Estando com idade de casar, meu
personalidade. Em todas as épocas e lugares, pai acertou meu casamento com os pais de
grupos humanos se reúnem e uma moral os Asca para dali seis luas cheias. Conhecia Asca
governa. Porém, latente em nós estão os desde criança e fiquei muito contente, porque
princípios do bem, embora as facilidades nos ela era meiga e muito bonita. Foi quando
envolvam em erros, deixando-nos marcas. as chuvas esperadas não vieram e a seca
Minhas primeiras encarnações foram tranqüilas começou a castigar as lavouras e pastagens.
e simples, seguia aprendendo até que... ao ser Meu trabalho era levar as ovelhas para as
defrontado com um obstáculo, reagi. Porque pastagens. Gostava muito de meu encargo,
se nada nos aborrecer é fácil amar e obedecer, estava sempre a correr pelas campinas a
mas se algo nos aborrecer, vir de encontro aos descobrir lugares e plantas. Com isto, conhecia
nossos interesses, teremos a prova se de fato bem toda a redondeza e entristecia-me ao ver a
amamos e somos resignados ou aparentamos falta de chuva deixando a paisagem triste, sem
ser. Tudo deixou de ser simples para mim, numa seu colorido habitual. “Todos na praça! Todos
encarnação que fui Astorie, jovem robusto de na praça! Vai ser marcado o grande sacrifício
uma pequena e singela aldeia. A população pedindo chuvas aos deuses!” Um alvoroço se
desta localidade vivia em paz e com amizade fez na aldeia, reunindo todos os seus habitantes
com todos os vizinhos, cultivávamos certas na frente do templo. Um dos anciães pediu que
plantas, tínhamos rebanhos, completando se apresentasse um voluntário. Desta vez
nossa alimentação com a pesca e a caça. ninguém se apresentou, ia ser tirada a sorte.
Nossa aldeia era governada por anciães e Aquele costume era encarado por mim e por
tínhamos na religião toda nossa orientação e todos com naturalidade, ninguém ia contra
normas. Adorávamos muitos deuses, numa ou achava cruel. Contava-se pela aldeia que,
há muito tempo, um pai revoltado por ter seu
46 filho único escolhido, tentou libertá-lo e, como
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / castigo por desobedecer a preferência dos
Antônio Carlos deuses, foi amarrado numa árvore ao lado
de um grande formigueiro, tendo uma morte
construção no centro da aldeia estava horrível. Se se apresentasse um voluntário
21
dentro do regulamento, os anciães tinham-no aldeia sem problemas. Tomamos o caminho
como escolhido senão, faziam o
Página 23
Reparando Erros Reparando Erros
47 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
48
sorteio. O sorteio começou. Os jovens Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
tinham os olhos vendados e tiravam de um Antônio Carlos
pote de barro um pauzinho, que eram todos
iguais, sendo um marcado de branco. Fui o da gruta, logo escureceu e não consegui
terceiro a tirar, meu coração disparou, não achá-la. Cansados de andar, deitamos
queria morrer, queria casar, ter filhos, gostava embaixo de uma grande árvore, planejando o
da vida e de Asca. Tinha, como todos os futuro trocando juras de amor.
jovens, mil sonhos. “Não sou eu!” - Asca, encontraremos a gruta logo
- suspirei aliviado, sorri contente. Logo que amanheça e lá estaremos seguros.
chegou a vez de Asca, tive um pressentimento Confiantes, adormecemos. Acordei com os
ruim e estremeci, fora ela a pegar o pauzinho gritos de Asca, pulei rápido, levantando e me
marcado. “Não pode ser!” vi cercado pelos homens de minha aldeia.
- repetia baixinho. “Não Asca, tão bela, O pai e o irmão de Asca seguravam-na, ela
minha noiva!” O sacrifício seria ao anoitecer, esperneava pedindo-me ajuda. Reagi lutando
os preparativos começaram em seguida, tudo com meu cajado, a única arma que possuía.
deveria estar em ordem, haveria danças, outros Meu cajado era um pedaço de pau roliço,
oferecimentos, após os anciães levariam a medindo aproximadamente uns dois metros
vítima até o altar onde seria morta com uma de comprimento. Lutei desesperado, meu
faca sagrada. Asca seguiu com as anciãs esforço foi em vão, eram muitos contra mim e
para ser preparada, foi triste, com a cabeça desencarnei pelas pauladas que recebi, meu
baixa. Todos retornaram aos seus afazeres e corpo foi deixado ali, partiram com Asca que
ninguém prestou atenção em mim, segui-os, foi : sacrificada logo que anoiteceu. Revoltado,
estava revoltado com tudo e com os deuses por ali fiquei, a vagar pelos lugares que outrora
que me roubavam a noiva. Pensei rápido num me eram tão queridos. Acreditávamos que
meio de salvar Asca, há tempo descobrira uma ao morrer a alma ia ter no Vale dos Mortos,
gruta entre as pedras na encosta da montanha, como não tive cerimônia fúnebre, acreditei
lugar de difícil acesso, não comentei com que não o acharia. E não o achei, não por
ninguém, fazendo do lugar só meu. “vou levá-la não ter sido sepultado, mas sim pela minha
para lá. Ninguém descobrirá, evito assim que revolta. Cansado, resolvi procurar o Vale,
ela morra tão jovem e tão bela” achei-o e fui socorrido. Encontrei Asca e
- disse baixinho, sondando a cabana para nos tornamos amigos. Ali fui aconselhado a
onde a levaram. Vendo que só três mulheres esquecer a revolta e o rancor que tinha pelos
estavam com ela, pedi humildemente: sacrifícios humanos. Prometi. Voltaria na
- Poderia despedir-me de minha noiva só carne, habitando agora no país vizinho, onde
por um instante? Achando natural meu pedido, não havia sacrifícios humanos.
duas mulheres se afastaram, ficando uma na - Poderia ensiná-los a não cometer mais
porta. Abraçamo-nos emocionados. estes atos cruéis! -exclamei.
- Astorie, é a última vez que o vejo. Os - Astorie
deuses foram cruéis escolhendo-me. - exclamou-me um protetor -, você não
- Venha comigo está preparado para tal evento, outro o fará
- disse baixinho -, fujamos. Sei de um em tempo certo. Vá, encarne e procure viver
local seguro para nos escondermos. Asca era no bem entre este povo pacato, e esqueça sua
fiel as crenças, mas a vontade de viver era antiga aldeia, crenças e costumes. Lembre-se
mais forte, amava-me e também queria ser que violência não extermina violência. Procure
feliz, consentiu com a cabeça. Fingindo sair, meditar no que lhe foi ensinado. Poderá pela
dei com força o meu cajado na cabeça da paixão, despreparado para a tarefa, fazer mais
guarda que caiu sem sequer gemer, saímos mal que bem a este povo simples. Abaixei
rápido. Com cautela, conseguimos sair da a cabeça, procurei memorizar tudo que ali
22
aprendera. Reencarnei no país vizinho, região interessantes.
mais rica e com mais conhecimentos, fui o - Deixe, Kark, os vizinhos em paz. Há
sexto filho do rei, um príncipe forte e anos vivemos sem guerras, são pessoas boas,
comerciamos com eles. Que nos importa sua
Reparando Erros crença? Matam entre eles, são selvagens.
49 - Destruirei somente seus deuses e
altares, matarei os anciães, farei mudar a
robusto, tive o nome de Kark. Adorávamos crença.
muitos ídolos como deuses, fazíamos pequenas
oferendas e o sacrifício humano era proibido 50
e imoral. Desde pequeno, o povoado do Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Vale, região vizinha, intrigava-me, gostava Antônio Carlos
de escutar histórias que contavam sobre eles
e me arrepiava quando eram mencionados HI
os sacrifícios humanos. Ao chegar a idade - Prometa não sacrificar jovens e crianças.
adulta, desejei conhecer o País dos Sacrifícios, - Prometo. Assim, comandando muitos
como eu chamava o povo vizinho, pedi ao soldados, marchei contra o inofensivo povo,
meu pai que me deixasse visitá-lo. Recebida não escutando as vozes dos bons orientadores
a permissão, parti com uma pequena escolta desencarnados, para deixá-los em paz, ali
com presentes e agrados. Receberam-me estava a guerrear com meu ex-povo, parentes
bem, com festas, percebi como eram simples e amigos. Não reagiram, de surpresa entrei
e pacíficos, não tinham nem armas como as em suas cidades, destruindo seus deuses e
nossas. Tentei agradá-los ensinando-lhes a altares, muitos morreram tentando defender
fazer objetos usados por nós, desconhecidos o que lhes era caro. Achando que havia
por eles. Falei dos nossos deuses e como era destruído o bastante, regressei ao meu país,
errado sacrifícios humanos. Agradeceram e não podendo evitar que meus soldados
deram-me muitos presentes, porém, deixaram praticassem roubos e abusos. A façanha foi
claro que não mudariam de crença e que, comentada pelo meu país e fui considerado
para o bem de todos, cada um deveria herói. Não fiquei alegre, mas triste. Senti um
cultuar sua crença. Voltei aborrecido, não vazio grande, passei a ter crises de choro,
me entusiasmava com nada, só pensava no os gritos das vítimas ameaçavam meu sono,
povo vizinho. Fui aconselhado por meu pai deixando-me nervoso. Ainda mais que tudo
a esquecêlos, tentei. Orava muito aos meus fora inútil, soube que minha invasão fora
deuses, nestes momentos era instruído a considerada castigo. E, para apaziguar seus
deixá-los em paz, mas logo era acometido deuses, várias pessoas foram sacrificadas e
por enorme vontade de acabar com os cruéis todas como voluntárias. Morriam pelos seus
sacrifícios. Acabar com sacrifícios humanos deuses e crença. Resolvi deixar de pensar
passou a obsediar-me. neles e passei o resto de minha existência entre
- Meu filho, que tem? Está doente? prazeres e ociosidade. Numa briga, atacado
- Nada, nada... Meu pai preocupava-se de traição, desencarnei e fui perseguido por
comigo, tentava agradar-me. Lutava muito bem meus inimigos e pelos muitos que matei ou
e participava de torneios, meu pai orgulhava-se foram mortos sob minha ordem, pelos que
de minhas vitórias. Numa das festas principais, se sentiram violados nas suas preciosas
crenças. “Maldito! Mil vezes maldito!” Que
Página 24 horror é escutar isto. Por anos fui perseguido,
Reparando Erros escondi-me num dos buracos no Vale da
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt Morte, ou Umbral. Cansado, procurei recordar
as orientações que tive antes de encarnar,
fui o vencedor e meu pai mandou que lembrei dos bondosos irmãos que tentaram
escolhesse meu prêmio. instruir-me e desejei ardentemente estar com
- Quero permissão para invadir o povo eles, fui socorrido. Reconheci meu erro e,
do Vale e acabar com seus cultos cruéis que para me livrar da dor, disse que não queria
ofendem nossos deuses. Meu pai tentou mais saber de maldades. As oportunidades
mudar meu pedido, oferecendo-me prêmios nos são dadas e tive várias encarnações para
23
despertar em mim os melhores sentimentos. e vagabundos. Os servos velhos foram
Voltei num corpo feminino. Mas... ai de mim, enxotados de minha casa, como também os
as facilidades fizeram-me colocar o egoísmo que tinham crianças. Tive uma existência longa
em primeiro lugar. Sendo mãe, não consegui e nada fiz de útil, desencarnei com grandes
amar meus filhos mais do que meu egoísmo. sofrimentos e fui perseguido novamente pelos
Nem o sentimento maternal despertou-me para inimigos que fiz. Como é triste a existência de
o bem. Gostava dos filhos, educava-os com quem faz inimigos! Por anos tive-os na minha
meus erros e para servir-me. Voltava sempre frente acusando-me: “Mau! Foi sua culpa meu
me desculpando, sempre colocando a culpa filho ter desencarnado!” “Desencarnamos
das minhas falhas como mendigos ao sermos expulsos do
seu castelo!” “Desencarnei de fome após
Reparando Erros servi-lo tantos anos, ingrato!” Chorava de
51 humilhação e dor, por anos vaguei pelo meu
castelo acompanhado de minhas vítimas. Aos
nas circunstâncias e em outras pessoas poucos as pessoas que prejudiquei foram me
como se pudéssemos nos livrar de nossos abandonando e fiquei só. Cansado, implorei
erros e responsabilidades, temos o nosso perdão e fui socorrido.
livrearbítrio, fazemos o que queremos mas
são nossas as ações que fazemos e a 52
Espiritualidade não aceita desculpas, não Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
adianta culpar os outros para nossa defesa. Antônio Carlos
- É a pobreza
- disse. “Não quero mais riquezas. Ouro é
- Por séculos tenho sido pobre, com tentação muito forte. Quis ser rico, fui, não
fome, tendo falta do necessário, tendo que lutar usei os valores materiais para fazer o bem.
para sobreviver me fez egoísta. É o medo da Para me beneficiar, errei muito, sofri. Quero
miséria! Nada tive, como dar? ser pobre!” Novamente tentaram instruir-
- Acha então, espírito, que nada teve para me. Sempre recebemos lições, conselhos,
dar? E a caridade moral? Dar não é somente assimilamos, aprendemos se realmente
distribuir materialmente. Como te queixas, queremos. Como erros, causas materiais,
volta então em riqueza. Terás para dar. Mas, finitas, não podem produzir efeitos infinitos, não
lembro-o, se não dispor dos bens materiais há castigos eternos, recebi nova oportunidade.
para ajudar a outros, Reencarnei, voltando pobre, rejeitado e feio.
Meu espírito estava tão saturado de maus
Página 25 sentimentos que necessitei de sofrimento
Reparando Erros para purificá-lo. Comecei a trabalhar menino,
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt na minha mocidade, fiquei leproso, tendo
que mendigar para sobreviver. Desencarnei
voltarás em piores condições. aos vinte e dois anos. Fui socorrido e a lepra
- Sinto-me preparado, saberei distribuir. despertou-me a vontade de curar, ajudar os
Quantas vezes, desencarnados, prometemos que sofrem, trabalhei anos no espaço para
e quando encarnados as facilidades, os vícios, aprender a curar. “Como faltam pessoas que
nos fazem esquecer. A riqueza nas mãos do curam!”
egoísta é como o veneno, maltrata a muitos e - exclamava sempre. Desejando encarnar
corrói o perispírito. Fiz com a riqueza material e trabalhar curando doenças, fui atendido e
tudo o que meu espírito aspirava, freqüentei voltei numa família de posses para estudar.
a sociedade, festas, caçadas, casei com Esforcei-me muito e jovem ainda estava
uma mulher nobre tão ambiciosa quanto formado, nos primeiros anos após formado,
eu, tive filhos que foram criados por babás. dediquei-me com vontade a carreira escolhida.
Tive muitas amantes, participei de intrigas e Interessei-me por uma moça muito bonita,
tive amizades só por interesse. Fui exigente nobre, de boa família, no começo pensei ser
como patrão, meus servos foram maltratados correspondido, porém, ela se interessou por
desumanamente. Não apiedei-me de ninguém, outro, um nobre conselheiro do rei com quem
odiei os pobres, que para mim eram sujos casou. Odiei meu rival e por muitas vezes
24
trocamos insultos. Mas acabei casando com na presença do Pai e se o que vamos fazer
uma moça muito rica. Nesta época meus não o envergonharia. Logo esqueci das
pais morreram e, de posse do patrimônio de promessas que fiz antes de reencarnar e dos
minha família e do de minha esposa, outros exemplos do meu pai nesta encarnação. O
interesses me envolveram, deixei a medicina espírito não regride, quando posto a prova
para segundo plano. Cuidava somente dos demonstra se assimilou o aprendizado,
familiares e amigos, negando-me a atender venceu a si mesmo, libertou-se de seus
desconhecidos e os pobres que me eram vícios. Impossibilitado de provar, não pode
detestáveis e sujos. Do mendigo que fui, ter certeza que realmente venceu. Egoísta,
nada ficou. Quando a lição não é aprendida logo as ambições governaram-me, almejando
é facilmente esquecida. Acabamos sendo riquezas, queria atender somente clientes
vizinhos, meu rival de amor e eu, passamos a ricos que me remuneravam bem. Mas Mark,
nos tolerar sem maior amizade. Anos passaram meu irmão, pensava como eu e começamos
e o gosto pelas facilidades, o gozo do dinheiro a brigar pela clientela rica. A cidade em que
anulou qualquer tentativa que os bons espíritos morávamos era de porte médio e não havia
fizeram para chamar-me à responsabilidade. lugar para nós dois e como Mark era mais
Tive três filhas e um filho que se enamorou de inteligente que eu estava tomando dianteira.
uma das filhas do vizinho rival. Eu não quis dar Mudei para a cidade vizinha. Casei com uma
consentimento, eles então jovem rica, estabeleci-me nesta cidade, sendo
respeitado e logo dobrei minha fortuna. Meus
Página 26 clientes eram somente pessoas de posses que
Reparando Erros me pagavam bem, evitava atender pobres e
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt quando o fazia nunca deixava de cobrar, sem
Reparando Erros me importar se tinham ou não dificuldades para
53 pagar. Mark também

fugiram e voltaram casados. Acabei 54


por aceitá-los e os meus vizinhos também. Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Passamos, cordialmente e socialmente, a nos Antônio Carlos
ver. Ele, como eu, era médico e não exercia
a medicina por achá-la muito rudimentar. prosperou, não havendo mais por que
Desencarnei velho, voltei a vida espiritual disputar, voltamos a ser amigos. Visitávamo-
em grandes sofrimentos, encontrei o sogro nos freqüentemente, trocávamos idéias sobre
do meu filho, juntos padecemos, mas nos nosso trabalho e Mark dizia-me sempre: “O que
tornamos amigos, sendo ambos socorridos falta na medicina, Jayks, são pesquisas. Se
na mesma época. Lamentamos nossos erros, estudássemos mais, descobriríamos formas de
prometemos voltar ao corpo carnal e exercer curas espantosas. Pesquisas e estudos! Para
de fato a medicina, dedicar carinho a arte de fazer é necessário saber e para saber é preciso
curar. Encarnamos na mesma família como pesquisar, descobrir. Como seríamos famosos
irmãos, sendo filhos de um bondoso e leal e riquíssimos se descobríssemos novas
médico. Fui então Jayks e ele, meu irmão, formas de curar, de evitar a morte, seríamos
Mark. Meninos acompanhávamos nosso pai eternos...” Não contente com o que possuía,
em seu trabalho honroso e dedicado. Para querendo sempre mais, a idéia tentava-me,
orgulho de nosso pai, estudamos medicina, depois meu sonho era ser famoso, mais que
mas nosso bondoso genitor desencarnou o rei, ter nome na história, ser respeitado e
logo que nos formamos. Esta é a minha mais bajulado. Acabei convencido que Mark estava
triste recordação, somente pela bondade do certo, eu mais que ninguém sabia o tanto que
Pai, que nos dá novas oportunidades, outras ele era inteligente, necessitávamos pesquisar.
encarnações, pelas quais queimamos pela dor - Não podemos, Mark, fazer estas
maldades e erros, consigo dizelo sem abalar- pesquisas em qualquer local, teria de ser longe
me. Maldades deixam marcas profundas que de nossas casas e, como o segredo e a alma
só cicatrizam com o tempo, com sofrimento, do negócio, devemos manter sigilo.
trabalho e amor. Em tudo que fazemos de - É isto mesmo! Muitos são capazes de
bom ou de mau devemos pensar que estamos tentar impedirnos com inveja. A riqueza e a
25
fama atraem invejosos. Mark logo encontrou tornarmos famosos, poderemos sanar dores
um lugar ideal, era uma casa grande, velha, de muitos ricos.” E as pesquisas continuavam,
que após uns reparos nos serviu com perfeição. quebrávamos ossos para endireitá-los,
Ficava no campo, isolada, escondida num vale, operávamos olhos, ouvidos, trocávamos
não tendo vizinhos. Estava situada entre as órgãos, abríamos o tórax para ver funcionar
duas cidades, facilitando nossas idas e vindas. os órgãos. Mas o tempo passava e nossas
Mark contratou cinco servos de confiança, logo pesquisas não davam certo, tentávamos
nosso laboratório estava pronto para nossos de muitos modos, nada dava resultado. As
estudos e pesquisas. Começamos com o cobaias, antes de operá-las era ministrado
trabalho, estudávamos corpos de um anestésico forte e muitas morriam sem
recuperar a consciência. Muitos ficaram tão
Página 27 mutilados que os envenenávamos por não
Reparando Erros servir mais. Sem conseguir saber do porque de
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt nada dar certo, comecei a me aborrecer. Um
dia ao saber que já havíamos matado sessenta
mortos desenterrados do Campo Santo, e cinco pessoas, assustei-me e disse a Mark
por Jartir, o nosso fiel criado. Estudávamos que desistia.
órgãos, conferíamos nervos, ossos, etc, - É por frouxos como você que a ciência
principalmente aos que se referiam a visão não progride. Não estamos longe, tentemos
e a audição. “Não é tão difícil, não pode ser mais um pouco.
impossível” - Como não estamos longe, Mark? Nada
- falava Mark entusiasmado. “Nós dois temos de concreto. Se quiser continue, para
faremos fortunas, espere para ver, quando mim, chega! E chegou mesmo. Voltei para
nós dois fizermos mudos falarem e cegos casa, não retornei mais ao laboratório não tive
enxergarem, seremos reconhecidos como mais vontade de clinicar, isolei-me de todos e
gênios.” Dois anos se passaram. “É necessário fui sentindo-me cada vez mais cansado e triste.
conhecer os órgãos e ver como funcionam em Poucas vezes vi Mark e não conversamos
pessoas vivas, só assim os entenderemos mais. Obsedado por minhas vítimas, comecei
melhor. Precisamos fazer trocas, transplantes a ter atitudes estranhas, a ter medo do escuro,
em seres vivos. Sei que isto é possível, acredite de ficar
em mim Jayks, é só descobrir, sinto que não é
difícil.” Reppparando Erros 55 Mark empolgava- 56
se cada dia mais com nossos estudos e Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
pesquisas, falava com tanta convicção que Antônio Carlos
me deixei convencer. Passávamos dias
nesta casa, trabalhávamos a noite e tudo sozinho, passei a ver vultos e a sentir
fazíamos para permanecer incógnitos. Estava arrepios de frio. Piorava a cada dia que
convencido de que descobriríamos pelo menos passava, tendo crises, passei a agredir as
umas dez formas de curas, passamos a tentar pessoas, ameaçá-las de morte. Minha família
em seres vivos. Tivemos que adquirir cobaias achou melhor prender-me no quarto. Quando
e muitas artimanhas fizemos para obtê-las. melhorava das crises, chorava de agonia
Nossos criados, comandados por Jartir, e lamentava. “Preso neste quarto como
aprisionavam mendigos, andarilhos, por vezes, um animal! Eu que queria ser um homem
famílias inteiras até com crianças. Muitas importante, fazer curas milagrosas!” Meus
pessoas foram raptadas para usarmos em familiares visitavam-me pouco porque, estando
nossos estudos. O governador da cidade onde melhor, os enchia com meus lamentos, se em
Mark residia era muito seu amigo e nos enviava crise, agredia-os tentando matá-los. Assim,
os condenados e acobertava as possíveis fiquei três anos, desencarnei fraco e muito
denúncias de desaparecimentos. Às vezes triste. Não abandonei o corpo, fiquei com medo
tinha dó das cobaias, mas justificava: “É para de desligar-me
o bem da Ciência! Nada se faz sem sacrifício
de alguém. São pobres coitados, deveriam Página 28
sentir-se honrados em morrer pela ciência. Reparando Erros
Quando obtivermos resultados, quando nos Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
26
- Que quer amigo? Necessita de algo?
dele, fazendo da carcaça morta meu Sua voz era como melodia, não consegui falar,
escudo, com medo das vítimas que me chorei alto, ele me abraçou. Fui levado a um
rodeavam, querendo vingança. Senti-me posto de socorro, sentime bem, sem dores
apodrecer, os vermes a devorar-me. Saí após tantos anos em sofrimento, senti-me
enlouquecido do corpo, sendo perseguido reconfortado. Encontrei Mark que também
pelos que haviam sido minhas cobaias. Por fora socorrido, tínhamos pago caro pelos
aqueles que não quiseram perdoar-me. Muitos nossos sonhos ambiciosos, havia odiado
perdoaram-me, principalmente as crianças ele, mas ali entendi que não me obrigara, fiz
que seguiram felizes o caminho do bem. Não porque quis, não podia continuar pondo a
perdoar é unir-se ao agressor, sofrendo junto. culpa nele, reconheci meus erros. Estávamos
Quem não perdoa não descansa, não cessa em iguais condições, de necessitados, não
de sofrer, só tem um pensamento: castigar o conversávamos, evitávamo-nos. Tanto orgulho
agressor, fazendo-o sofrer. Como se não teria a tivemos que nos julgávamos melhores que
reação de suas ações. Não perdoando, esquece os outros. Senti muito remorso, parecia uma
o bem que poderia fazer a si mesmo, pára no chaga a queimar-me, quis sofrer na carne,
caminho, não progride. Quem não perdoa, quis reencarnar para esquecer meus erros,
não pode ser socorrido pelos bons e nem pedi a bênção da encarnação. 5 Sofrimento A
ficar em bons lugares. Fui jogado num buraco culpa transformada em remorso consumia-me.
e lá fiquei por anos, atormentado, sofrendo Não deveria ter agido levianamente fazendo
muito. Encontrei Mark e logo reuniram-se a experiência sem conhecimento, não deveria
nós os cinco servos. Odiávamo-nos, cada um ter agido assim com seres humanos.
desculpava a si próprio e culpava o outro. Eu - Por favor, quero esquecer
achava que a culpa de estar sofrendo daquele - pedi à direção da casa socorrista onde
modo era de Mark que me convencera a fazer estava.
o que fiz. É sempre mais fácil culpar a outros - Só a bênção de um novo corpo dará a
dos nossos erros que reconhecer os grandes você o esquecimento que almeja
errados que somos. Tornamo-nos inimigos - esclareceu-me o orientador.
ferozes, insultando-nos e nos agredindo - Por piedade, quero esquecer, quero
constantemente. Sofremos anos, o que nos encarnar e sofrer. Nada é pior que a dor do
pareceu séculos. Uma falange de espíritos remorso, qualquer dor é preferível. Anseio por
maus, ociosos, libertou-nos e passamos ver-me livre dessas lembranças, não quero
a seguilos, fazendo arruaças e pequenas recordar mais os males que fiz.
maldades. Como Mark e eu estávamos - Irmão, terá esta bênção, a todos Deus
sempre brigando, fomos separados em grupos dá esta oportunidade. Encarnado, você
diferentes. esquecerá, porém, sofrerá. Cada um sofre do
modo que necessita e não necessariamente
Reparando Erros pelos mesmos erros. Você anseia por resgatar
57 suas culpas, está pronto?

Duzentos e dez anos depois que Página 29


desencarnara, comecei a enjoar daquela vida Reparando Erros
sem objetivo, não queria fazer mal a ninguém, Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
cansado, senti necessidade de mudar. Quem
faz maldades vai tornando-se vazio, triste, e - Para esquecer a tudo me submeterei.
o remorso começa a fazer ninho. Percebi o - Você quer esquecer, tantos o querem,
quanto tinha sido injusto com as pessoas que muitos como você preferem sofrer encarnados.
me serviram de cobaias. “Meu Deus, eram Porém, no corpo, indagam o porque deste
pessoas como eu, como pude fazer tudo esquecimento e muitos não crêem na
aquilo.” Fui isolando-me do bando, sentindo- reencarnação por nada recordar de suas
me muito amargurado. Um dia passou perto de outras existências.
mim um socorrista com ar tranqüilo e bondoso. - Instrutor
Segui-o, sem ter coragem de dirigir-lhe a - indaguei -, não é pela bondade de
palavra. Ele percebeu e se aproximou de mim. Deus que esquecemos? Como poderei viver
27
encarnado recordando tudo que fiz? que forneciam o leite que era repartido por
- A Obra Divina é perfeita. O esquecimento todos, e plantavam algumas
de outras existências é para que progridamos,
você enlouqueceria seu 59 cérebro físico ao 60
recordar seus erros, estas lembranças só Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
não o incomodarão após ter-se equilibrado Antônio Carlos
com as Leis Divinas. Tantos encarnados
não conseguiriam amar familiares, antigos verduras e cereais. Os que se sentiam
inimigos, outros não aceitariam a existência melhor cuidavam dos mais adoentados.
simples, recordando riquezas e poder do Ao lado das cabanas estava o cemitério,
passado. Você pede o esquecimento como lugar onde todos sabiam ser seu futuro.
fim dos seus sofrimentos, mas encarnado Todos os dias, dois a três doentes iam até
sofrerá de outras formas, sentirá como a estrada e lá ficavam a esmolar de longe.
intuição que este sofrimento não lhe é injusto, A tarde, traziam o que tinham recebido, mas
todos sentem, mas nem todos aceitam e sempre eram escassas as ajudas. O fato é
muitos se revoltam. Cada encarnação é uma que ali passávamos fome e frio, vendo os
oportunidade de recomeçar. Esquecerá, companheiros apodrecerem, suas carnes a
encarnará e recomeçará. Encarnei pobre, filho cair e a morrer. E vendo a doença ir marcando
de servos de um castelão, desde pequeno fui nosso próprio corpo em grande sofrimento.
obrigado a trabalhar pelo meu sustento e por Muitos revoltavam-se, outros mais resignados
qualquer motivo era castigado. Trabalhava acalmavam os exaltados, havendo muitas
muito, não me revoltava, mas era fraco e brigas e trocas de insultos. A saudade dos
adoentado. Conhecia Maria desde pequena, meus familiares castigava-me muito, passava
era filha de servos como eu, na adolescência horas a pensar neles, imaginando como
namoramos e casamos, e tivemos dois filhos. estariam. Nunca mais soubera deles e nem
Quando apresentei os primeiros sinais de eles de mim. Um leproso morria para o mundo
lepra, tremi de medo na frente dos castelões ao entrar no Vale. Conheci, logo após minha
que decidiriam meu destino. chegada, jovem como eu, Lázaro, que era
- Um servo leproso, que perigo! Que muito bom, paciente, cuidava com carinho dos
horror! Fora da minha propriedade! Deveria que se achavam em estado grave. Tornamo-
matá-lo! nos amigos, com ele aprendi muito, passei a
- Deixe-o, não suje as mãos, meu esposo, ajudá-lo a cuidar dos mais enfermos. Lázaro
entregue-o as autoridades. era cristão, quase todos os dias reunia-nos e
- Chamarei os soldados, irá embora. contava com sua voz
Despedi-me dos meus familiares de longe,
deixando minha jovem esposa a chorar com os Página 30
dois filhos no colo. Parti chorando para nunca Reparando Erros
mais, encarnado, vê-los. Um soldado levou- Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
me ao Vale dos Leprosos, viajamos dois dias,
seguia-o como autômato, ao chegar perto, o harmoniosa as parábolas dos
soldado disse-me: Evangelhos. Tinha muita fé e era muito
- Agora deve ir sozinho, é só seguir este resignado. Havia sido pastor de cabras em
caminho. Adeus. Não respondi, não tinha sua pequena aldeia, amava muito seus pais
vontade de falar. Olhei o local, era bonito, de quem sentia muita saudade. No Vale,
rodeado de montanhas, logo cheguei ao Vale continuou a cuidar do rebanho, que era
dos Leprosos. Acolheram-me com frieza. “Mais também meu trabalho, e ajudava também na
um! Outro!” limpeza das cabanas. Preferíamos, nós dois,
- exclamaram. Era mais um para acomodar trabalhar a ir esmolar. Nunca saí do Vale.
pelas grutas e cabanas. Fiquei numa cabana Lázaro nunca reclamava de sua doença, nunca
pobre, tendo somente uma cama, um tablado se queixava das dores. Gostava de escutá-lo,
de madeira com um colchão de palha. Poucos de conversar com ele, absorvendo tudo que
ali trabalhavam, a doença, o isolamento não ele me ensinava. “José”
davam ânimo. Só os mais fortes trabalhavam - assim ele me chamava -, “sofrimento
cuidando de um pequeno rebanho de cabras é limpeza para nossa alma. Quem muito
28
sofre, muito pecou. Podendo ser também o - Como você está bonito!
sofrimento, a dor que nos leva a progredir, a ir - exclamei, vendo-o luminoso.
ao encontro dos ensinos de Jesus e vivê-los. O - Amigo, voltei feliz. Sinto-me quites
sofrimento, as dificuldades são as resistências comigo mesmo, após ter passado pelos
que encontramos e nos fazem despertar para sofrimentos que conhece.Resgatei os meus
o bem. Sou grato a minha doença, Deus é erros pela dor, pelo amor.
bondade, um dia entenderemos o motivo de
estarmos leprosos. Acho, José, que nunca 62
amei tanto a Deus como agora, nunca tentei Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
tanto exemplificar em Jesus como nestes anos Antônio Carlos
que passei aqui no Vale.”
- Sofremos colhendo o que plantamos?
Reparando Erros - Sim. Não é justo ao que se suja ter
61 que se limpar? E você resgatou seus erros?
Pensando nisto, quis saber o porque dos
Ali, muitos revoltados blasfemavam e meus sofrimentos e me foi permitido recordar
quando ouvíamos tais coisas Lázaro pedia: pedaços do meu passado. Chorei muito não
“Oremos, José, ele não sabe o que diz. Este tinha resgatado tudo, sentia-me em falta, quis
é bem mais infeliz, por não saber sofrer como voltar a carne e continuar minha colheita, não
Jesus nos ensinou. Sofrimento com revolta queria ter a dor do remorso.
não purifica a alma.” Gostava dele como irmão - Quero resgatar, tenho que sofrer. Quero
e a doença foi nos marcando. Vi cair meus voltar a carne...
dedos, orelhas, deformar o nariz, feridas pelo - pedi, chorando.
corpo. Foi bem triste. Sentia ódio raiva de - Irmão
alguém que não sabia quem era, este alguém - um benfeitor disse, instruindo-me
era culpado, sentia que tinha um culpado por sofrimento é um resgate, um pagamento
sofrer daquele modo. Oito anos passei no Vale. egoísta, que fará bem só a você. Poderá voltar
Por ironia, um lugar tão lindo e tão triste, que e fazer o bem a outros.
me serviu de moradia. Minha doença chegara - Não. Isto é para quem se sente forte.
ao estágio final, não conseguia sair do leito e Necessito sofrer para achar o caminho.
Lázaro cuidava de mim com carinho.
- Lázaro, logo você estará como eu. Página 31
Quem cuidará de você? Reparando Erros
- Confiemos. Se merecer ter alguém ao Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.tx
meu lado, terei. Por que nos preocuparmos
com o futuro? O sofrimento do presente me Poderei errar mais e tenho medo de
basta. Desencarnei aos trinta anos. Naquela errar. Necessito pagar minha dívida, ninguém
manhã, sentia-me melhor, logo após, senti me cobra, só eu mesmo, para ter sossego.
frio, rígido, diferente e sem dores. Meu corpo - A escolha é sua, respeitamos seu livre-
morreu e não tinha sido desligado. “José, arbítrio. Que se faça como deseja. Encarnei
está liberto meu amigo!” Era a voz de Lázaro numa pequena aldeia, filho de mãe solteira.
que comovido orava por mim. Como a prece Éramos muito pobres, morávamos numa
sincera é bálsamo. Como é importante ter casinha perto da estrada dos arrabaldes,
alguém a orar com fé e sinceridade a um tendo poucos vizinhos, tão pobres quanto
recém-desencarnado. Sentia-me leve, o frio nós. Minha mãe percebeu que eu era cego,
passou, flutuei pela humilde cabana, não quando era bebê, com dificuldade, levou-me
entendia o que ocorria, deitei ao lado do a um médico na cidade vizinha que cobrou
meu corpo, que ia ser removido e enterrado. toda sua economia e dele ouviu: “Não há jeito,
Encantei-me com o alívio que senti e adormeci. seu filho é cego e nada a medicina poderá
Acordei bem disposto num posto de socorro, fazer por ele.” Ser cego de nascença é muito
onde soube que desencarnara. Dias depois, estranho. Consegue-se perceber os objetos
pude abraçar Lázaro que voltara feliz. e entendê-los com as mãos, distinguindo os
- José, não fiquei no leito, fui liberto antes sons. Acaba-se vivendo, fazendo para si um
do estágio final. Tive um infarto. mundo a parte, um mundo escuro. Minha
29
mãe era muito trabalhadeira, era com seu sem se mexer, não fala mais. Morreu!
trabalho honesto que vivíamos. “João, meu - Vão enterrá-la como o gato?
filho, mamãe vai entregar roupa na cidade, fica - Sim, João, é necessário, com todos
quieto aqui.” Quase não saía, para mim todos é assim. Como sofri! Para os que não
os lugares eram iguais, não gostava muito entendem o que seja a morte física, para os
de estar com outras pessoas. Os meninos que não encaram a desencarnação como uma
da vizinhança zombavam de mim e não me mudança de plano, sente-se, ao perder o ente
deixavam brincar com eles e dos adultos querido, como se lhe tirasse um pedaço. Para
escutava muitos comentários. “É o João, o mim minha mãe era tudo, meus olhos,
ceguinho! Coitado!
64
Reparando Erros Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
63 Antônio Carlos

Sentia-me como um animal raro ao ser meu sustento, minha proteção. Amava-a
observado. Em nossa pequena casa nada muito, mas egoisticamente pensava agoniado:
me faltava, ali andava sozinho e sabia onde “Que será de mim? Como viverei?” Fui
estava tudo. Lá fora, não. O mundo me era consolado pelos vizinhos que ficaram comigo
desconhecido e eu o temia. Mamãe mimava- no velório e acompanharam o enterro, escutei
me, poupando-me tudo que lhe era possível. muitos comentários:
A comida era servida na mesa. Não deixava
fazer nada que poderia ser perigoso. “Não Página 32
chegue perto do fogão, João, pode queimar- Reparando Erros
se.” Gostava de varrer e o fazia sempre, em Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
nossa casa e a sua volta, também conseguia
pegar água no poço e trazer para casa. Mamãe “Que será dele? Somos pobres para
buscava lenha no mato para fazer nossa acolhê-lo.” “Terá que esmolar para comer.
comida, às vezes acompanhava-a, ela não Como mãe faz falta!” Pedir esmolas não queria,
gostava, e nem eu. Arranhava as pernas e achava preferível morrer de fome. Após o
acabava atrasando-a porque, além de carregar enterro, fiquei sozinho em casa, senti o peso
os gravetos, ainda tinha de guiar-me pelo difícil enorme da solidão. Naquela noite, uma vizinha
caminho. Mamãe nunca reclamava, era boa e trouxe-me um prato de sopa, deixando claro
todos gostavam dela. que seria somente aquele dia. No outro dia,
- Mãe, os outros meninos tem pai e mãe, comi o que tinha em casa, meu corpo sadio
por que eu só tenho a senhora? e adolescente sentia fome. “Só me resta
- perguntei-lhe um dia. cozinhar, farei minha própria comida. Ainda
- Somos só nós dois, um pelo outro. tenho feijão.” Tentei acender o fogão, notei que
Não temos mais família, fiquei órfã pequena não tinha lenha. Enchendo-me de coragem,
e sozinha. Você tem pai como os outros resolvi ir buscá-la no campo. Com muita
meninos, mas não sei dele. Um dia, ele dificuldade fui andando, apalpando, consegui
passou pela aldeia, enamorei-me, era bonito, pegar alguns paus. Achando que era suficiente
mas foi embora e nem ficou sabendo de os que apanhara, resolvi voltar. Andei um bom
você. Completara dezesseis anos, um dia ao pedaço. “Já deveria ter chegado, não estou
acordar tentei escutar o que minha mãe fazia escutando vozes!” Escorreguei e rolei por uma
como todos os dias. Estava tudo tão quieto encosta, consegui me segurar numa árvore
que estranhei e gritei por ela. Ninguém me pequena. Ali fiquei quieto, sem me mexer, não
respondeu, senti um aperto no coração, um me atrevendo a subir com medo de cair mais.
estranho pressentimento, levantei e fui até o “Meu Deus!”
seu leito. Mamãe estava deitada, fria e quieta. - exclamei. “Onde estou? Será que
Passei a mão pelo seu rosto, seus lábios este buraco é fundo?” Pus-me a gritar
estavam fechados. Corri e chamei a vizinha. desesperadamente, clamando por socorro até
- João, sua mãe está morta! que ouvi:
- Morta? Que é estar morta? - Calma! Calma! vou salvar você. Fique
- É como o gatinho do Jairo, fica assim quieto, converse calmamente e não grite mais.
30
Não tenha medo. Como se chama? Fiquei minhas mãos e fui passando-o onde doía.
mais calmo, fui respondendo as indagações Senti-me aliviado, agradeci e fiquei deitado
quando percebi que um homem forte chegara ouvindo os pássaros que cantavam alegres
perto de mim. na tarde que morria. Cansado, adormeci. No
- Machucou-se? outro dia, acordei e escutei barulho pela casa.
- Não, só me arranhei um pouco, nem dói. - João, você já acordou? Venha alimentar-
- Como caiu filho? se. Daniel veio até mim, segurou minha mão e
- disse meu salvador, passando a mão guiou-me até a mesa ajudando-me a sentar,
na minha cabeça. colocou em minha frente meu
- Quantos anos você tem?
- Dezesseis, sou cego, senhor. 66
- Ah! Bem... Vamos subir, seja como Deus Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
quiser. Antônio Carlos

Reparando Erros desjejum. Tomei o chá achando-o


65 delicioso, levantei a xícara para ser novamente
servido. Mas Daniel não notou.
Amarrou-me pela cintura com uma corda
e mandou que a segurasse. Página 33
- Subiremos devagar, não há perigo. Reparando Erros
Segurei com força a corda e fomos subindo Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
até o alto.
- Agora está seguro, João. Mas como - Sirva-me mais chá, por favor. Daniel
você veio parar aqui? esbarrou na xícara, derrubando-a. Escutei
- Vim pegar lenha. Não tenho costume de apalpar para catá-la.
fazer isto nem de andar sozinho. Minha mãe, - Que tem? Está estranho! Não viu a
meu guia, morreu há três dias, deixando-me xícara? Por que faz como eu?
sozinho. Moro na cidade, acho que terei que - Porque sou como você, cego. Sou cego!
me virar e aprender a viver só. Mas não sei - Cego?! Como faz tudo sozinho?
como. Vai ser difícil. Minha vizinhança é tão - Só aprender e ter vontade. Você não
pobre quanto eu e não quero esmolar. Tinha quer aprender?
em casa um pouco de feijão e resolvi cozinhá- - Quero! Gostaria muito.
lo. Não tendo lenha para acender o fogão, - Por que não passa um tempo aqui
achei que poderia pegar lenha na redondeza comigo. Ensiná-loei. Será como eu. Agradeci,
e vim. Acabei caindo. Comecei a chorar. talvez depois de aprender poderia fazer
- Não chore, nada de grave lhe aconteceu, alguma coisa para ganhar dinheiro sem
errou a direção e distanciou-se da cidade. Moro precisar esmolar. Após almoçarmos, descemos
perto daqui, não quer ir à minha casa? É só a montanha, amarrados com a corda, seguia
subir mais um pouco. Moro lá na montanha, Daniel, fomos a minha casa. Apanhamos
vivo sozinho. Chamo-me Daniel. Vamos ser objetos que nos poderiam ser úteis e deixei
amigos? o resto para pagar o aluguel atrasado. Ao
- Obrigado, Daniel. Aceito seu convite, entregar a chave da casa ao dono, senti muita
lá em casa ninguém me espera... Daniel tristeza, naquela casinha havia sido feliz com
puxou-me pela corda, guiando-me, percebi minha mãe, tentei ficar esperançoso, poderia
que subimos. ser como Daniel. Voltamos à montanha. Com
- Pronto, chegamos. vou lhe dar água muita paciência, Daniel foi me ensinando a me
fresquinha. Senti pelo cheiro, pelo frescor que guiar pelo vento, a ouvir os sons e distingui-los,
o lugar era lindo, tudo calmo. Daniel me serviu a cuidar dos animais, da horta, a ir à cidade.
pão, queijo e frutas, que comi com grande Passei a amar a montanha, onde andava
apetite. sozinho, sendo auto-suficiente. O tempo
- Venha, deite-se e descanse. Vamos foi passando e fui ficando, tinha medo de ir
curar seus ferimentos. Passe você com embora, de enfrentar o desconhecido, de ter
este pano um remédio de ervas nos seus de esmolar. Queria trabalho, não esmolas, mas
ferimentos. Colocou um pano umedecido em tão poucos entendem isto. Daniel era como
31
pai para mim, sempre muito respeitoso, nossa que não entendia, lugares estranhos, sentia-
amizade, nosso convívio foi puro, dentro da me rodeado por seres que não conseguia
boa moral e respeito. Era inteligente e paciente, distinguir, ora via minha mãe ao meu lado.
ajudando-me sempre. Um dia contou-me sua - Estranho, Daniel
história. Foi raptado, passou a morar com um - comentei -, quando me sinto pior, às
casal, que veio à montanha para se esconder. vezes enxergo. Nunca
Eles acabaram indo embora e deixaram-no ali.
Chorei com dó dele. Era agradecido a Daniel, Página 34
tinha só ele por amigo, mas não conseguia Reparando Erros
gostar dele. Às vezes, revoltado, descontava Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
nele minhas mágoas, ofendendo-o. Não
conseguia entender-me, mas achava que ele via minha mãe, durante as crises,
era o culpado por sofrer assim. tenhoa visto. Será que sonho?
- João, sonho muito, nos meus sonhos
Reparando Erros vejo a montanha, nossa horta, tudo. Acho que
67 o corpo é cego, mas a alma ou o espírito não
é. Penso que ao dormir a alma sai a passear
Passando a raiva, sentia-me e vê o que o corpo defeituoso não vê.
envergonhado. Pensava: “Como ele seria
culpado se era cego como eu? Sofreu tanto 68
e ainda sofria e estava ajudando-me tanto”. Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Mas, intimamente, achava: “Ele é culpado! É Antônio Carlos
culpado!” Apesar de meu azedume e ofensas,
nunca me mandou embora, quando revidava, - Como seria bom ver! Gostaria tanto!
brigávamos. Minha mãe ensinou-me a orar, Acha que, quando morrer, enxergarei?
contava-me sempre a história de Jesus, - Acredito! Daniel estava certo,
repetia a Daniel e ensinei-o a orar. Nunca desencarnei nos braços dele, passei por uma
conseguia fazer o que Daniel fazia, por mais dormência e acordei nos braços de minha
que me esforçasse não conseguia igualar-me mãe, enxergando. Que maravilha! Às vezes,
a ele, Daniel nem parecia cego. Ele era mais necessitamos ser privados de um corpo
velho que eu e mais forte, sempre estava me perfeito para dar valor na Criação Divina. O
amparando. Estava com quarenta e dois anos, passado é laço forte, nossas ações estão
comecei a sentir-me fraco, a tossir e ter febre, em nós, não se pode fugir, logo quis saber
contraí tuberculose. Daniel cuidou de mim do porquê de ter sido cego, recordei parte do
com paciência, então comecei a respeitá-lo meu passado.
procurando não ofendêlo e lutando com meus - Mamãe
pensamentos de achá-lo culpado. Tossia cada - comentei -, Daniel e Mark são o mesmo
vez mais e tinha muitas dores, passava o espírito, fui injusto com ele.
tempo todo deitado, pensava muito, orava com - Muitas vezes sofrem juntos os que
fé, perguntava sempre a Daniel. erraram juntos.
- Daniel, por que será que nascemos - Quero voltar a Terra mamãe, quero
cegos? Por que nossas dificuldades são encarnar. Como Jesus nos ensinou é lá o lugar
tantas? de choros e ranger de dentes. Não mereço
- Acho que para tudo há explicações. Eu desfrutar desta paz.
não sei, mas deve ter quem saiba. Acredito em - João, não acha que sofreu o bastante?
Deus e deve haver motivos para sermos assim. - Não levarei imperfeições para meu
- Eu sempre ouvi dizer que Deus faz tudo corpo. Terei o corpo perfeito, quero aprender
perfeito. Será que errou em nós? a ser útil para estar bem comigo mesmo.
- Tenho pensado, acho que não foi - João, um defeito físico é um freio aos
Deus que nos criou assim, fomos nós que nossos impulsos ruins. Sente-se preparado
por algum motivo merecemos a cegueira. Há para voltar sem este freio?
tantos mistérios.... Sofri muito, meu corpo foi - Quero encarnar! Atendido meu pedido,
morrendo aos poucos. Às vezes, a febre era deixei recado a Daniel para que viesse ter
tão alta que delirava vendo acontecimentos comigo, ser meu filho para caminharmos
32
juntos. Encarnei. O sul da França, lindíssimo casa e o temia. Depois, até Pierre abandonou-
lugar, uma cidade pacata, foi meu lar, desta me, senti enorme cansaço, comecei a pensar
vez em que chamei Michel. Meus pais eram mais em Deus e passei a orar. Um dia, roguei
pobres e a família bem numerosa. Menino misericórdia e percebi que meu corpo havia
ainda tive que trabalhar para ajudar em casa, morrido. A bondade de Deus é infinita e fui
empreguei-me num pequeno armazém. socorrido por bondosos amigos e encaminhado
Era inteligente prestativo e trabalhador. Na ao posto de socorro e foi com grande alegria
mocidade já conseguira ajuntar um pouco que vi Pierre. O socorro acontece dependendo
de dinheiro e passei a ser sócio do negócio do modo que se viveu encarnado. Cego ou
e, com vinte e três anos, era dono. Casei leproso, o sofrimento levou-me a orar e não a
com dezoito anos e meu maior sonho era me entregar a Deus. Se tivesse me entregado,
ser pai e o fui aos dezenove anos. Tive um não iria errar mais. Nesta encarnação não
forte menino a quem dei o nome de Pierre. mereci ser socorrido. O passado está dentro
Tive muitos filhos, mas Pierre sempre foi meu de nós, logo recordei-o e lembrei das palavras
preferido, gostávamos das mesmas coisas, do espírito que fora minha mãe quando
nos entendíamos em tudo, ele era inteligente João. “Sem freio, filho, estará pronto para
e trabalhador. Logo na mocidade, Pierre reencarnar?” Não estava, e senti muita tristeza.
descobriu que era impotente, isto me fez Minha vontade era uma só, voltar a encarnar.
sentir mais amor por ele. Trabalhava comigo Muitos não entendem do porque de muitos
no armazém que prosperava. peparando quererem voltar a carne, encarnar, quando o
Erros 69 Erramos muito, mas não fomos mundo espiritual é tão lindo, a existência mais
preguiçosos. Espírito ativo, erra, resgata, suave. Esquecem que aqui no Plano
pode até errar novamente se não aprender a
lição, mas procura o caminho. Ociosos param 70
no caminho, é bem mais triste. Fui bom pai, Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
esposo, muito trabalhador e egoísta. Não tive Antônio Carlos
religião, por mais que minha esposa insistisse
nunca ia à Igreja, embora acreditasse em Espiritual se pode sofrer muito quando
Deus, não gostava de orar. Meu espírito não se é socorrido. Socorrido pode-se sofrer
tinha ânsia de ser útil e confundi, pus-me a com remorso e querer o esquecimento
trabalhar materialmente. Fui um comerciante como bálsamo, ou reparar as faltas, quitar
honesto, embora pensasse sempre em mim e dívidas. Outros, não tendo estes problemas,
nos meus, não fiz caridade, dizia a todos que encarnam para ajudar a outros e para
me pediam que havia sido pobre, trabalhei e encontrar resistências, dificuldades e achar
que fizessem o mesmo. Meu lazer era ir ao soluções que os façam progredir. Eu cobrava
campo contemplar a paisagem. Passava horas de mim a reparação de minhas faltas, ou
a olhar o céu, as árvores e as flores. “Como a mesmo a necessidade de provar se de fato
natureza é bela!” aprendera a lição. Aguardei ansioso nova
- comentava sempre. “Como é bonito oportunidade. Entendi que quando se sofre
tudo o que Deus fez! Como é bom enxergar!” encarnado para quitar dívidas, purificar nosso
Sem aviso, a morte do corpo me fez abandonar carma, mesmo sofrendo com resignação não
tudo que julgava ser meu, mostrando-me quer dizer que se tivermos oportunidades não
que somos usufrutuários e não proprietários. voltaremos a errar. Também que cada um tem
Perturbei-me sem conseguir entender o que sua estrada, seu modo de agir, e pelo livre-
se passava, vaguei anos pelo meu lar e pelo arbítrio faz o que quer. Comigo aconteceu
armazém. Senti enorme tristeza ao ver meu assim, outros irmãos mais maduros, mais
Pierre adoecer, vi seu desencarne e chorei voltados ao bem aprendem muito com o
com minha esposa. Pensei que sofrimento. Não regredi, só que não aprendi.
Lição aprendida jamais é esquecida. Queimei
Página 35 meu carma negativo com o sofrimento, tantos
Reparando Erros podem queimá-lo pelo amor puro. Tendo
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt novas oportunidades, não cometi os erros do
passado, mas não caminhei, ainda cultuava
só ele estava morto, comecei a vêlo em o egoísmo. Desejos materiais formam uma
33
corrente que liga o espírito as encarnações, e teve boa educação. Nossa amizade era
como desejava ser bom médico, necessitava sincera e queríamos ficar juntos.
encarnar. Quis exercer a medicina novamente, - Venha comigo Gert
Pierre e eu estudamos, preparamo-nos - disse-me -, trabalharemos juntos.
esperando a oportunidade de regressar ao - Fica você, não falo o idioma de lá, tudo
corpo carnal. 6 Caminhando Reencarnamos me será difícil.
irmãos, fui o mais velho e recebi o nome de - Não posso, mamãe enlouqueceria sem
Gilbert, Gert, logo veio Huts, éramos amigos mim, escreve-me todos os dias pedindo para
inseparáveis, muito unidos. Nossos pais que volte. Não entendia como uma mãe amava
brigavam muito, crescemos com insegurança tanto um filho e pelo outro era indiferente. Huts
em meio a agressões. Como é triste para um regressou. Comecei a trabalhar e dediquei-me
espírito num corpo infantil ver aqueles que ele bastante, ajudei meu pai, madrasta e meus
ama, dos quais espera proteção e educação, irmãos. Resolvi constituir família e casei.
brigarem odiando-se. Consolávamo-nos, Minha esposa era de uma família respeitada,
estávamos sempre juntos e nunca brigávamos. mudei socialmente, passei a ser importante.
Minha mãe tinha um carinho especial por Huts, A medicina sempre foi e é uma profissão
largando-me em segundo plano. Um dia, meus rendosa, comecei a enriquecer. Estudioso,
pais resolveram se separar. Decidiram que eu bom profissional, era tido como bom médico,
ficaria com meu pai e Huts com minha mãe. novamente esqueci que pobre adoece e não
Com grande tristeza nos separamos, fiquei com gostava de atendê-los. Enfim, fui médico dos
meu pai na França e vi Huts partir com minha ricos, dos que podiam pagar meus honorários.
mãe para a Hungria onde moravam meus avós Novamente Huts visitou-me com a esposa,
maternos. Sinceramente não senti a ausência tão rica, elegante como ele. A distância, com
de minha mãe, que para mim sempre fora outros modos de viver, em outro país, não o fez
indiferente, senti muito a falta de Huts, amigo diferente, continuamos amigos. Pensávamos
e irmão. Meu pai casou-se novamente logo igual, ser importante, rico, mas amávamos
após a partida de minha mãe. Estava com doze a medicina. Desta vez, não demoraram,
anos na época, gostei de minha madrasta que partiram e continuamos a nos corresponder e
era meiga, boa e combinava muito com meu a trocar idéias. Fui pai de cinco filhos lindos e
pai. Tiveram três filhos. Embora a vida não sadios, dos quais me orgulhava muito. Huts,
fosse fácil, transcorreu tranqüila e simples. por circunstância infeliz, veio a desencarnar
Correspondia-me com Huts, sentia muito sua precocemente, isto deixou-me muito triste e
falta, minha mãe não se preocupou logo após meu caçula, com dois anos e cinco
meses, desapareceu.
Página 36 - Dr. Gert, Leonard sumiu, a patroa
Reparando Erros mandou lhe chamar
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt - disse uma criada, apavorada. Ao escutar
isto, tive um pressentimento ruim.
comigo e nunca me escreveu, nunca - Meu filho sumiu! Meu filho! Todos,
mais nos vimos. Já na adolescência quis familiares, amigos, autoridades, procuraram-no
estudar medicina, que era meu grande sonho. não o encontraram. Os soldados vasculharam
Com sacrifícios, meu pai pagou meus estudos toda a região, houve procura por todo o país e
e não soubemos mais dele.

72 Reparando Erros
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / 73
Antônio Carlos
Meu Deus! Como é triste perder um filho
formei-me com distinção. Huts também nesta circunstância e ficar na ansiedade, na
estudou e se formou em medicina na mesma agonia de achá-lo vivo ou mesmo morto. Anos
época que eu. Quando formado, veio ver-me passaram, nunca tivemos notícias dele, sua
na França, onde passou uns meses conosco feição não me saía da mente. Sonhava sempre
e aproveitamos para trocar idéias. Meus avós com ele, Leonard era lindo, louro, olhos azuis
maternos eram ricos, Huts vestia-se bem e vivia a sorrir. Às vezes, despertava com sua
34
vozinha chamando-me como sempre fazia
quando voltava para casa. “Pai, meu pai!” Novamente tive o ensejo de encarnar,
- Conforme-se Gert achei que merecia nascer em uma família pobre
- dizia minha esposa -, acabará e aprender a dar valor a todas as pessoas,
enlouquecendo. Acho que mataram nosso independente de suas posses financeiras.
filho. Sabia que pobre não conseguiria estudar, não
- Sinto-o vivo. Não sei por que Janet, poderia formar-me para médico desta vez.
sinto-me culpado. Não sei explicar, mas parece Desperdicei uma oportunidade, poderia ter sido
que já raptei crianças, não sei quando ou por bom e não fui. Quis saber de Huts, o irmão que
que e agora sofro o que já fiz outras pessoas amei tanto, soube que ele fora Marc, Daniel,
sofrerem. amigo de erros e sofrimentos, ansiei por estar
- Gert, atenda-me, não pense assim, perto dele. Encontreio encarnado no Brasil,
ficará doente. Amargurado, triste, envelheci exercendo medicina sem ser formado, ou
precocemente, tendo no meu trabalho o melhor, amenizava dores com seus remédios
bálsamo para esquecer e enriquecer. Meus de ervas e benzimentos. Morava só, solteiro e
filhos casaram, e vieram os netos, fiquei viúvo não querendo constituir família. Encarnei entre
e sozinho, comecei a pensar, refletir sobre seus vizinhos. Porque sabia que, tão afins,
minha vida e entendi que fracassara. “Talvez iríamos nos encontrar. O Brasil, terra nova, se
devesse ter agido de outro modo. Trabalhei formava sem tantos preconceitos no meio de
muito, enriqueci e de que me serviu o dinheiro? tantas raças. Foi no interior, onde as fazendas
Nem meu filho pude achar. E se ele for um dos prosperavam com o trabalho dos negros,
pobres que me nego a atender?” que encarnei. Filho de colonos, família de
numerosa prole. Éramos pobres, mas felizes,
Página 37 apesar de trabalhar muito, levávamos uma
Reparando Erros vida despreocupada. Chamava-me Alfredo.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt Por toda a redondeza ouviam-se histórias
fantásticas de assombrações, de feiticeiros,
Assim pensando, tentei atender mais etc. O morro da redondeza era o alvo dos
os pobres que nem mais me procuravam. Mas principais assuntos, onde vivia um senhor
não houve tempo, desencarnei. Como é triste branco que fazia curas como doutor, benzia,
deixar para fazer o bem no futuro e na carne, tirava mau-olhado, dava remédios. Apesar
o futuro nos é incerto, nem sempre o temos. O de bom, tinha o apelido de Feiticeiro, porque
bem deve ser feito no presente. Amargurei em diziam que ele também podia com o próprio
remorsos, dentro de mim, repetia sem parar: demônio. Quando estava com oito anos, minha
“Os pobres adoecem, os pobres sofrem...” mãe levou-me ao morro, à casa do Feiticeiro.
Chorava muito e bondosamente Janet, minha Fui com tanto medo, tremia só em pensar em
esposa, vinha conversar comigo elucidando- ver o demônio, pensava que iria ver um bruxo
me. Vaguei por anos, com sinceridade me feio e horrível. Sabia que não era mau, atendia
arrependi e fui socorrido. Pude então saber de a todos e não cobrava de ninguém. Todos
Leonard, meu filho que já estava velho e era pela redondeza lhe deviam favores ou uma
muito feliz. Ele foi roubado por uns salteadores cura. Estava tendo muitas dores de barriga
que o encontraram sozinho perto de nossa e, na opinião de minha mãe, estava magro.
casa, quando na sua peraltice havia fugido. Meu coração bateu disparado quando entrei
Foi vendido a um casal sem filhos que o criou na casa dele e vi um senhor bondoso a sorrir.
e educou-o muito bem, embora tenha ele sido - O senhor não é feio!
pobre e simples. Lembrei de meu passado, vi - exclamei, observando-o. O feiticeiro
que colhi o que plantei, participei de raptos sem era magro, alto, moreno claro, barba bem
me preocupar com os familiares de minhas feita e muito limpo. Senti paz ao fitá-lo, fiquei
vítimas, nesta encarnação sofri a ausência olhando-o e esqueci de tudo. Examinou-me,
de um filho. fiquei quieto, tímido, escutei ele falar que um
dia voltaria para ajudá-lo e ficaria com ele.
74 Mamãe ficou contente e, com os remédios
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / para vermes, voltamos para casa. Voltei triste
Antônio Carlos e cismado.
35
aprendendo a benzer. Estava com dezessete
Reparando Erros anos. Joaquim, era assim que
75
76
- Mamãe, por que ele se chama Feiticeiro? Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Por que vive sozinho? Antônio Carlos
- Ele mora só porque não casou, acho
que é feliz assim. Ele não se chama Feiticeiro, :$) se chamava o Feiticeiro, construiu
é apelido. Ele entende de tudo, é sabido! Dias mais um cômodo em sua casa que passou a
depois, estava livre das dores de barriga, mas ser meu quarto. Feiticeiro foi um pai para mim,
não esqueci do Feiticeiro, quando olhava ensinou-me tudo que sabia, aprendi a ler e a
o morro sentia saudades. Logo comecei a escrever, a usar as ervas como remédio, a
trabalhar na lavoura, queria estudar como os usar minha intuição para lidar com pessoas
filhos do senhor da obsedadas e mesmo a não ter medo dos
espíritos.
Página 38 - Espíritos são pessoas como nós. Só que
Reparando Erros não têm o corpo físico, não devemos temê-
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt los, mas ajudá-los se necessitados, se bons,
devemos ser amigos
fazenda. Sonhava em aprender a ler e - esclareceu-me.
escrever. Pedia sempre aos meus pais: - Morre o corpo, Alfredo, a alma, o espírito
- Quero estudar! Deixem-me estudar! continua a viver. E podem viver de muitas
- Isto é para ricos, pobres trabalham formas, uns vagam pelo antigo lar, outros,
- respondia minha mãe. O tempo passou, querendo vingança, outros ficam perto dos
estava mocinho quando, um dia, meu pai teve que amam, nestes casos, não é bom. Só
falta de ar e dores no peito, corri e fui chamar os espíritos bons auxiliam com sabedoria.
o Feiticeiro. Ele sorriu ao me ver, contei aflito Muitos dos doentes que aqui vem tem por
o que acontecia e ele rápido pegou a sacola companhia desencarnados não esclarecidos
onde carregava suas ervas e remédios e que necessitam de orientação e de ir para
descemos o morro, chegando logo em casa. lugares que lhes são próprios no mundo
Ele examinou meu pai, deu-lhe um chá que espiritual, assim deve aprender a orientá-los,
o tranqüilizou e o fez dormir, deixando-nos poderá ajudar tanto o encarnado, vivo no
aliviados. Feiticeiro chamou minha mãe na corpo, como o desencarnado, vivo em espírito.
sala e disse calmo: No começo tinha medo, mas aos poucos
- D. Abadia, seu marido está mal, sinto passei a gostar do assunto, entendendo, não
em não poder curá-lo. Sua vida está nas tive mais medo. Feiticeiro repetia para mim
mãos de Deus. De fato, meu pai desencarnou sempre este ensinamento:
naquela noite. Interesseime por aquele homem - Alfredo, faça o bem a todos, como
simples, instruído, com quem simpatizei sem gostaria que fizessem a você. Mas toda
entender bem o porquê. Comecei a visitá-lo, caridade deve ser acompanhada da boa moral.
primeiramente para agradecer, depois para Tudo que fazemos são atos externos e pouco
conversar, era muito agradável ouvilo. Um dia, valerão se não tivermos o procedimento reto.
contei que meu sonho era ler e escrever e senti Atos bons nos tornam bons se procedermos
uma enorme alegria ao escutar: sem erros. Os anos passaram, Feiticeiro
- Ensino você! Aprenderá fácil! Passei a envelheceu e como seu ajudante ganhei o
ir mais vezes em sua casa, tanto me interessei apelido de Curandeiro. Joaquim não saía
pela leitura como por seu trabalho. Atendia a mais de casa, era eu que descia o morro para
todos que o procuravam, cuidava da horta e atender os que não podiam subir. Um dia,
dos animais. Sabia ler os pensamentos alheios acordei e, como Feiticeiro não levantava, fui
e mesmo assim era caridoso com todos. ao seu quarto e encontrei-o morto. Todos na
Aprendia rápido e observava com atenção redondeza sentiram seu desencarne, vieram
tudo que ele fazia. Um dia, convidou-me trazer flores, orar por ele, enterrei-o entre as
para ir morar com ele, não hesitei em aceitar. flores do nosso pequeno jardim. “Aqui viveu,
Minha mãe ficou contente por ter um filho aqui seu corpo voltará a natureza!” Senti muito,
36
mas foi com grande alegria que tempos depois amava e que Joaquim construiu destruído.
senti sua presença ao meu lado, orientando- Abaixei a cabeça e pensei rápido, se fosse
me e confortando-me. Continuei seu trabalho. expulso para onde iria? E todas as pessoas
Era como ele, querido e tido como médico que me amavam e confiavam nos meus
entre os pobres e escravos. conhecimentos rudimentares para ajudá-las?
Casar não estava no meu programa mas e a
Página 39 mocinha enganada e grávida que seria dela
Reparando Erros se não aceitasse? Casando, poderia ajudá-la.
A imagem do Feiticeiro veio a minha mente,
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt ele tinha razão, não tinha escolha. Com voz
Reparando Erros firme, respondi:
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78
Estava com trinta e oito anos e os astros Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
anunciavam uma mudança em minha vida. Um Antônio Carlos
dia, logo de manhãzinha, vi Feiticeiro que me
disse: “Alfredo, aceite o que vierem lhe propor.”
Inquietei-me tentando adivinhar o que seria. - Aceito!
À tarde, recebi a visita do dono das terras do - Isto!
morro. Este senhor, quando era pequeno, foi - suspirou o fazendeiro aliviado.
curado de uma mordida de cobra venenosa - Não se arrependerá, o casamento será
pelo Feiticeiro. Cumprimentou-me e sentou-se para daqui a três dias, no sábado à tarde. Você
na cadeira que ofereci e foi direto ao assunto deve estar cedo na casa-grande. O padre vem
para meu alívio. fazer batizados e aproveitaremos a ocasião
- Curandeiro, tenho uma filha de dezesseis e faremos o casamento de vocês. Mandarei
anos que gosto muito, é a minha predileta. meu empregado de confiança trazer roupas
Ela está grávida e o safado sumiu. Abaixou a apropriadas para você e mantimentos. Não
cabeça e não conseguiu esconder as lágrimas quero que falte nada a minha filha. Sei que
que teimavam em rolar pelo rosto, suspirou e para você é um negócio que não teve escolha,
continuou: mas ela é uma menina, tão frágil, cuidará bem
- Pensei em mandá-la para um convento, dela não é?
mas a coitadinha chora desesperada e não quer - Não faço mal a ninguém. Apertou-me
ir, lá terá que dar o filho e ficará presa. Minha a mão, observei que estava abatido e triste.
filhinha presa, não, isto também não quero. - Até sábado! Saiu e fiquei a pensar:
Ora tenho dó dela, ora tenho raiva e gostaria “Casado! Avisado três dias antes”. Arrumei do
de matá-la, o fato é que me envergonhará. melhor modo possível a casa, limpando tudo.
Como deixá-la ter o filho solteira? Pensei em No outro dia, me trouxeram roupas e alimentos.
achar um marido para ela e lembrei de você As roupas me serviram bem, deveria ter sido
que é boa pessoa e solteiro. Assim, não a de algum dos meus futuros cunhados. Dentro
mandarei para longe nem estará tão perto de um casaco encontrei uma boa quantia de
que não possamos esconder o fato. Afinal, o dinheiro. “Pareço comprado!”
filho dela é meu neto! Vim, Curandeiro, propor - disse, triste. “Alfredo, não se sinta
este negócio, case-se com ela. Minha filha virá assim”
morar aqui, onde mandarei construir uma boa - disse Feiticeiro. “A mocinha necessita
casa e darei a você estas terras. Então, que de auxílio, use o dinheiro para ajudá-la. É dela,
me responde? de seu pai.” No sábado, arrumei-me do melhor
- Poderei pensar e... modo que pude, fiquei elegante, desci o morro
- Não há tempo. Se não aceitar, também logo após o desjejum, rumo a casa-grande.
não aceitarei mais você aqui, mandarei - Está muito bem! Seja bem-vindo!
meus homens expulsá-lo de minhas terras e - disse meu sogro, cumprimentando-me.
destruirei tudo. As pessoas da fazenda comentavam sobre o
- Tudo? nosso casamento. Uns diziam que há tempo
- Sim, porei fogo. Que responde? namorávamos escondidos e que éramos
Entristeci só em pensar em ver tudo que tanto apaixonados e como fomos descobertos o
37
sinhozinho com ela, logo ela estava alegre e passamos a
conversar, trocando idéias. Como meu sogro
Página 40 prometeu, logo ao lado de minha casinha uma
Reparando Erros bonita casa estava pronta.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt - Não é bonita, Curandeiro?
- disse ela, entusiasmada.
nos fez casar. Outros diziam que a sinhá - Sim, é bonita. Este quarto é meu, este
Júlia amava-me desde que a curei de uma maior é seu, aqui ficará melhor com o bebe.
dor de cabeça. Sorria diante dos comentários Atenderei as pessoas na casinha, no meu
e não respondia as indagações. O fato era antigo lar, será como um hospital.
que não conhecia minha futura esposa e - Alfredo, você é tão inteligente, tão bom!
não sabia nem como era. Conheci-a quando Como poderia imaginá-lo instruído, sabe ler e
entrou na sala vestida de noiva nos braços do escrever tão bem. E pensar que temi encontrar
pai. Juliana, assim se chamava, tratada por um bruto. Quando mudamos, meus sogros
todos por Júlia, estava nervosa com a cabeça vieram visitar-nos, ao ver a filha bem e feliz,
baixa. Era miúda, morena, de olhos grandes ficaram contentes. Estávamos proibidos de ir
que estavam assustados. Fiquei com dó dela, a casa-grande até que a criança nascesse e
parecia uma criança com muito medo, obrigada estivesse maiorzinha. A
a aceitar um esposo que conheceria no altar.
80
Reparando Erros Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Antônio Carlos
O casamento foi rápido, logo após
o padre fez os batizados e em seguida ordem era que escondêssemos a criança
houve uma grande festa. Na casa-grande, e só dizer que nasceu quando fizéssemos nove
os convidados, alegres, davam vivas aos meses de casados. Júlia fazia o serviço da
noivos. Procurei ser gentil com todos os casa juntamente com uma negrinha sua antiga
convidados, e meu sogro suspirava tranqüilo, ama, escrava da fazenda que o pai mandara
não o estava envergonhando. No terreiro, para que ajudasse. Quando subia alguém no
os negros e colonos festejavam com grande morro procurando-me, ela se escondia. Um
alegria e danças os batizados e o casamento dia contou-me sua história.
da sinhazinha com seu dr. Curandeiro. Antes - Conheci Alberto logo que chegou a
que a noite chegasse, meu sogro achou cidade perto da fazenda, era um empregado
conveniente partirmos e uma charrete nos do império que viera para estudar a construção
levou ao morro. Ao meu lado júlia estava de uma estrada. Era bonito, elegante e amei-o
calada, triste e distraída. Ao chegar, ajudei-a logo que o vi, ou pensei amá-lo, porque não o
a descer e a charrete e seu condutor voltaram amo mais, tenho, sim, raiva dele. Escreveu-me
para a fazenda, deixando-nos sozinhos. cartas, bilhetes e começamos a nos encontrar
- Júlia, você é uma criança. Tenho idade escondido, a noite, perto do lago. Prometeu
para ser seu pai, é isto que serei a você, seu casar comigo. Mas foi embora, nem despediu-
pai. Não tenha medo, aqui estará protegida. se, deixou-me uma carta dizendo que partia e
Fomos, menina, obrigados a casar, você para que era casado. Chorei tanto que meu pai quis
esconder o fruto do seu amor e eu para não saber o que acontecia comigo. Um dia no meu
ter que ir embora daqui, deste lugar que amo. quarto, enquanto conversávamos, desmaiei e
Casamos perante Deus, mas não somos Negrinha contou-lhe que estava vomitando e
esposos por nossa vontade e não seremos. tinha enjôos. Quando recobrei os
Não vou exigir direitos de marido. vou ajudá-
la, aqui terá seu filho, cuidarei de vocês dois. Página 41
Não fique assustada. Sorri tentando ser gentil. Reparando Erros
Júlia ensaiou um sorriso suspirando aliviada, Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
mas estava desconfiada. Deixei-a a vontade,
cedi meu quarto, acomodei-me na sala. A sentidos, ele lia a carta que Alberto
desconfiança foi acabando ao ter a certeza mandara-me de despedida. Acabei contando-
que não a enganara. Era bondoso e gentil lhe tudo. Pensei que ia matar-me, falou em
38
mandar-me para um convento e teria de dar trabalhadores, casaram, fomos sempre felizes,
meu filho. “Mate-me!” vivemos em paz. Júlia cuidando de tudo e
- gritei chorando. “Não me separarei do eu dos meus doentes, fazendo remédios,
meu filho, ele não tem culpa!” Meu pai é bom benzendo, curando... Até duas horas antes de
demais, olhou-me com pena. “Nem convento, desencarnar atendi meus doentes, foi quando
nem dar a criança. Casarei você. Isto, casarei me senti cansado com dores no peito. Júlia
você!” Saiu e voltou com tudo planejado. “Júlia, me fez deitar, me deu chá e senti sono, então
você casará no sábado, vamos aproveitar que ela fechou a janela do quarto e saiu para que
o padre vem a fazenda fazer os batizados. Sua descansasse. Senti que o ar me faltava, tentei
mãe reformará o vestido de noiva com que sua gritar, chamar alguém, não consegui, tudo
irmã casou.” “Com quem?” rodava, parecia que minha cabeça partia ao
- perguntei aflita. Naquele momento tudo meio, pensei que desmaiava. Desencarnei,
era preferível a me desfazer do meu filho. “Com Joaquim e amigos desligaram-me do corpo,
o Curandeiro do morro. Não é má pessoa” levando-me a um posto de socorro. Senti como
- disse, saindo. Ansiosa, agoniada, era querido pelas muitas preces que recebi
esperei pelo sábado. Ao ver você no altar, que me confortaram. Entendi que desencarnei,
achei que foi Santa Rita que me ajudou. logo me refiz, adaptando-me e encantei-me
Graças a Deus, estou bem, logo meu filho com a vida Espiritual. Meu espírito ansiava por
nascerá neste lugar tranqüilo e bonito, e ficará aprender, por saber. O meu passado já não
comigo. Fui eu quem fiz o seu parto. Foi um incomodava mais, sabia que não
parto difícil, em que Júlia sofreu muito, mas foi
enorme a alegria ao pegar um lindo 82
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Reparando Erros Antônio Carlos
81
se muda o que já aconteceu, mas o
menino, forte e sadio. Cuidei dela como futuro depende do nosso presente, cabia
cuidava dos meus clientes e escondemos somente a mim construí-lo. Sempre intrigou-
a criança por mais de dois meses. Quando me, como Maurício, o amor devotado de
anunciamos o nascimento do menino, Maria das Graças por mim, reconheci que ela
começaram as visitas e meu sogro deu uma era Júlia, a antiga companheira, que, como
festa no seu batizado. Fui conquistando a prometera, muito me
família de minha esposa que passou a achar
que não fora um mau casamento para Júlia. Página 42
Sabia agradá-la, tinha conversa amigável e Reparando Erros
tornei-me amigo de todos. O tempo passou e Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
a amizade transformou-se em amor no coração
da jovem Júlia. Passamos a viver realmente ajudou. Como Júlia recebeu meus
como esposos, não a amei, mas queria-a muito benefícios, como Maria das Graças pôde
bem. Ela não interferia no meu trabalho e eu retribuir o bem que lhe fiz. Quis encarnar e ser
deixava que cuidasse de tudo, da casa, dos médico, sentia-me apto a exercer com justiça
trabalhos da terra. Tivemos mais três filhos, e sabedoria esta profissão que diariamente
nunca fiz diferença entre eles e nunca ninguém age sobre as pessoas, fazendo-as mais felizes
mais soube do ocorrido. Júlia foi feliz e me ou infelizes. Os profissionais da medicina não
dizia sempre: “Alfredo, amo você e sou-lhe devem trabalhar somente pela remuneração
muito grata. Você me fez feliz! Como teria sido financeira. E é justo que por ela tenham seu
infeliz se fosse trancada num convento, longe sustento honesto, mas devem pensar também
destas terras que tanto amo. Sem liberdade, que o cliente é seu irmão, seu semelhante, e
sem filhos, morreria de tristeza. Você aceitou- atendê-lo bem, sendo rico ou pobre, preto ou
me com filho de outro, não me julgou, não branco. Joaquim e eu fomos estudar, logo que
me condenou e me ajudou. Sou grata a você. terminei o curso que fiz no Plano Espiritual
Um dia, se Deus quiser, terei oportunidade quis voltar a carne, Joaquim não, queria ficar
de ajudá-lo e saberei recompensá-lo.” Os mais tempo. Ansiava por exercer a medicina
filhos cresceram, estudaram, foram bons e encarnado, reparar erros usando da mesma
39
medicina que por irresponsabilidade tanto mal novatos, recém desencarnados, acostumados
fiz. Necessitava caminhar, tornar-me um ser a ver nos genitores pessoas mais
útil, um auxiliar, em vez de permanecer sempre
precisando de auxílio. Joaquim prometera 84
reencarnar perto de mim. Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
- Achou-me Alfredo, como Feiticeiro em Antônio Carlos
terras novas, me achará novamente até como
simples escravo ou um colono. idosas, mas nem sempre é assim no
- Não serei médium, não será difícil? Plano Espiritual. Maurício é hoje o irmão
- Intuição todos tem, ama-se pelo querido, companheiro de ideal e de trabalho,
espírito. Despedimo-nos com grande carinho. às vezes, por hábito, chamo-o de pai.
Voltei como Maurício. Hoje, minha família é - Seu relato seria uma complementação
a humanidade, trabalho para servila, vejo a do que nos foi narrado. Dr. Antônio não quer
Divindade, Deus presente em todos, amo-os contar-nos sua história?
como irmãos. É esta minha simples história: - Não cansou, amigo?
um filho perdido que encontrou o caminho. - indagou-me Maurício a rir.
Sou feliz... - Já não basta uma? É de fato um
colecionador de histórias.
- Oh! Histórias interessantes não cansam.
Gostaria de ouvir você, Antônio. Se é que tem
SEGUNDA PARTE coragem de recordar.
- Seria bom realmente recordar só os
bons momentos, os que fomos vítimas e não
carrascos. Coragem para fazer temos, admitir
O exilado Silêncio, parecia que tudo e os erros, nem sempre. Mas, meu caro amigo
todos aquietaram naquele recanto do jardim, Antônio Carlos, sou corajoso!
com o encantamento da narrativa de Maurício, - Vai contá-la?!
o médico querido, o ruivo alegre, deixando-nos - indaguei, contente.
com sua história um conteúdo enorme para - Bem, já que é corajoso para ouvi-la...
meditar. Emocionado, olhei o firmamento, Existem muitos mundos habitados, tudo é
as estrelas reluziam, lembrei de uma das
parábolas do Mestre: “No Céu há festa e júbilo Página 43
quando uma ovelha perdida retorna”. Ao nosso Reparando Erros
lado, há muito, sentara conosco e escutara a Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
história verídica de Maurício, Antônio, médico
estudioso, trabalhador incansável do centro de Deus, o criador Infinito e Absoluto,
espírita, o laboratorista, servidor da Colônia temos o Universo todo como lar. Allan Kardec
São Sebastião. esclareceu-nos das muitas variedades de
- Parece, dr. Antônio, que está envolvido habitações e que são muitas as casas do Pai
na história que prazerosamente ouvimos por este espaço infinito. Tinha por moradia um
- disse. planeta que, mudando de plano, passando
- Não terá sido você o Mark? Daniel? Ou ao da regeneração, não foi possível continuar
mesmo Antônio, o filho adotivo? Amigos de tendo-o por lar. Ocioso, não acompanhando
erros e acertos? Antônio é alto, magro, moreno o progresso, desfrutando sem colaborar,
de cabelos grisalhos, de aspecto bondoso e atrapalhando meus irmãos, fui expulso,
inteligente, estava trajando seu uniforme de juntamente com outros irmãos afins. Viemos
faculdade, é uma pessoa que gostamos de para a Terra, este planeta de provas, por
contemplar. Olhou-me sorrindo, mostrando os vibrarmos igualmente, com a bênção de um
dentes perfeitos. recomeço. Aqui na Terra, lembrava vagamente
- Então adivinha! deste planeta, sentia uma sensação que havia
- Já o vi chamar Maurício de pai... Que perdido o paraíso das facilidades e tinha agora
por aqui é viável, na Terra seria impossível, é que enfrentar o purgatório onde tudo era e
muito mais velho que ele. ainda é difícil e trabalhoso. Lá, ficaram doces
- Isto já foi motivo de riso para muitos amizades que não dei valor. Na Terra aprendi a
40
amar as criaturas e a Deus. Amo este planeta volúvel e incentivava vários pretendentes. Um,
escola, onde os erros e os sofrimentos me porém, mais apaixonado, muito a assediava,
fizeram descobrir o amor, ser reconhecido e era um jovem médico muito bonito. Por algum
grato. Como exilado, aos poucos fui fazendo tempo, ela deu atenção a nós dois, isto me
desta Terra abençoada meu lar, que por fez desejá-la mais e acabei vencendo e nos
escolha é minha Pátria. Nas duas primeiras casamos. O castelo que ganhei ficava perto da
encarnações, tive vida simples, marcada pela moradia deste rival e passamos a ser vizinhos.
insatisfação e saudade. Almejava o que perdi, Logo, cansei da minha encantadora esposa,
as facilidades que usufruía, vivia atormentado achando-a muito ignorante e voltei a minha
sem conseguir entrosar-me com as outras vida de prazeres e acumulando riquezas com
pessoas, julgando-as ignorantes e sem negócios. Tive uma família numerosa e não
objetivos. Não me esforcei para cheguei a amá-la. Mas fiquei tremendamente

Reparando Erros 86
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
aprender a viver com eles. A insatisfação Antônio Carlos
deixava-me ocioso, sonhando e imaginando
acontecimentos que meu espírito conhecia. irritado quando uma de minhas filhas
Sempre é triste desfrutar sem participar, fugiu com o filho do meu exrrival vizinho.
usufruir sem trabalhar e aprender. Chega- Voltaram casados e, como ele os aceitou,
se um dia, perde-se o direito de desfrutar aceitei-os também. Passamos então a conviver
destes conhecimentos, que nos negamos a sem problemas. Velho,
conhecer. Desencarnei nestas duas primeiras
encarnações jovem, negando-me a ficar no Página 44
corpo que para mim era grosseiro e cheio Reparando Erros
de necessidades. Grupos de instrutores Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
bondosamente me orientavam, mas minha
vontade era fraca para aceitar a Terra, que adoeci não podendo mais levantar-
por bênção me foi agraciada. Na terceira me do leito. Revoltei-me com a morte, não
vez que encarnei, pude estudar e escolhi a acreditava em nada, nem em Deus. Para mim,
medicina que me pareceu ser a carreira mais a morte era uma violência cruel e as doenças
importante aos terráqueos. Logo que me eram ou poderiam ser curadas por alguém
formei, o país em que vivia entrou em guerra, mais inteligente. “Doenças”
a luta interessou-me e elaborei um plano de - dizia com revolta -, “nada mais são que
ataque que mostrei a um amigo da família, pequenos desarranjos. Poderia curá-las se
o qual era um dos comandantes do rei. Meu fosse mais jovem.” Desencarnei revoltado e
plano era simples, organizei-o com facilidade, sofri muito. A pior forma de egoísmo é guardar
era inteligente e tudo para mim era fácil. O para si conhecimentos que poderiam servir
comandante levou meu plano ao conhecimento a outros. Poderia, tinha tudo para construir
do rei e fui chamado a presença dele, para algo de bom com os conhecimentos que a
quem expliquei tudo. medicina da época me proporcionou, mas
- Parece interessante, perfeito, se der nem tentei. Encontrei no Umbral, sofrendo
certo, não se arrependerá como eu e pelos mesmos motivos, meu ex-
- exclamou o soberano. Deu certo, a vitória rival, meu vizinho, e nos tornamos amigos
foi nossa, fui presenteado com um castelo e de infortúnios. Fomos socorridos juntos,
passei a ser um dos conselheiros do rei. envergonhados, prometemos voltar a carne
Continuava insatisfeito, não me interessei pela e sermos úteis, estudar novamente medicina
medicina. Achava que os estudos ofereciam e com ela construir, fazer o bem. Voltamos
pouca compreensão e escassos resultados. como irmãos, filhos de um dedicado médico
Procurei nos prazeres físicos algo que pudesse que a vida toda usou seus conhecimentos para
interessar-me. Conheci uma moça lindíssima ajudar, atender a todos que o procuravam.
que era cortejada por inúmeros cavalheiros. Desde pequeno interessei-me pelo seu
Pela primeira vez interessei-me por outra trabalho, acompanhando-o nas suas visitas.
pessoa, tudo fiz para conquistá-la, ela era Éramos só os dois filhos e nossas brincadeiras
41
eram sempre de médico. Chamava-me nesta fazer pesquisas e descobrir curas fantásticas.
existência Mark e meu irmão, Jayks. Éramos A ambição me dominava, só pensava como
amigos e tínhamos os mesmos interesses. seria louvado, respeitado, rico e famoso,
Com sacrifício de nosso pai, estudamos. nem sequer pensava no bem que poderia
Para mim, era tudo fácil e aprendia rápido, fazer a muitas pessoas. Egoísta, só pensava
ajudando sempre Jayks. Ainda estudávamos nos meus interesses. “Todas as pessoas se
quando minha mãe faleceu, formamo-nos sem curvariam aos meus pés, oferecendo dádivas
empecilhos e logo após meu pai desencarnou, para receber curas. Eu me vingaria de muitos
ficando só nós dois. Os exemplos bondosos de orgulhosos, escolheria os que desejaria curar.”
nosso pai logo foram esquecidos. Queríamos
ser ricos e respeitados, atender pessoas Página 45
pobres não dava lucro e eu não deixava de Reparando Erros
cobrar meus préstimos a ninguém, alguns Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
pobres me pagavam com alimentos, animais,
etc. Fazia isto para que me procurassem Pensando só em glórias a idéia foi me
o menos possível e fui selecionando meus dominando e achei que estava desperdiçando
pacientes. Do mesmo jeito pensava Jayks e minha inteligência e que estava na hora de
começamos a brigar. tentar, de partir para as pesquisas. Tendo
- Esta cidade é pequena para nós dois. que ter um ajudante, pois não podia fazer
Vá embora daqui, senão acabo com você tudo sozinho, convenci Jayks a ajudar-me.
- disse, enfurecido. Nesta época nos visitávamos com freqüência.
Contava a ele meus sonhos e ele, como
Reparando Erros todo ambicioso, me escutava com os olhos
87 brilhando, foi fácil fazê-lo participar dos meus
planos. Pensava em procurar um local para
Jayks mudou para uma cidade vizinha nos servir de laboratório, quando um senhor
onde se casou e teve seus ricos clientes. Não falido me ofereceu sua moradia, situada num
tendo concorrente, passei a clinicar para os local isolado, num vale, entre as cidades que
ricos e comecei a enriquecer, aumentando a morávamos.
fortuna com um vantajoso casamento. Tive
muitos filhos, tornei-me um médico respeitado 88
e rico. Não tendo motivos para brigar, meu Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
irmão e eu fizemos as pazes. Eu estava Antônio Carlos
insatisfeito, achava os conhecimentos da
medicina da época escassos e sonhava em Era de construção velha, mas
aumentá-los. Almejava ser famoso, entrar segura e serviria para estudar sem sermos
na história, queria inventar, descobrir curas. incomodados. Tinha um servo, que salvei de
“Como seria famoso se pudesse fazer um uma moléstia grave, que era muito fiel de total
paralítico andar, um cego ver!” confiança. Chamava Jartir, era forte, sombrio
- dizia sempre a sonhar. Minha esposa e de natureza má. Minha esposa e filhos não
era uma pessoa boa e muito religiosa, e gostavam dele e ficaram aliviados quando o
tentava aconselhar-me: levei para este sítio. Reformei a casa toda,
- Meu marido, você não é Jesus Cristo deixei-a parecendo uma fortaleza, bem segura
para tais eventos, isto é impossível, você já é e livre de intrusos. Para melhor nos servir,
bom médico. Jartir contratou duas mulheres e dois homens
- Não sou um bom médico, mas poderia para morarem e trabalhar ali. Eram pessoas
ser. Sei que estes inventos não são impossíveis, suspeitas, foragidas, sem escrúpulos que nos
basta descobrir como fazê-los. Meu espírito serviriam bem nas tarefas que realizaríamos.
lembrava-se vagamente das proezas da Jayks, quando viu tudo pronto, entusiasmou-
medicina do meu ex-lar, do planeta distante, se. Eu sabia lidar com ele, sempre seguia
onde fui exilado, e onde a evolução chegou a minhas opiniões. Começamos nossos estudos
tal ponto de não ter mais deficientes físicos e pesquisando cadáveres trazidos do cemitério
as doenças serem raras. Achei que poderia da redondeza. Mas os cadáveres começavam a
fazer muitas curas, bastaria experimentar se decompor e isto tornava difícil as pesquisas.
42
O governador da cidade em que morava Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
exercia a mesma função dos dias de hoje de
prefeito, só que com mais poderes e era meu para ver o coração pulsando, os
amigo e cliente. Pedi a ele os cadáveres dos órgãos funcionando. Tudo deslumbrava-
executados, que me eram entregues logo após me, interessando-me cada vez mais pelos
a execução. Obcecado por estas pesquisas, estudos. Tentamos trocar órgãos, de uma
nunca tinha material suficiente, retalhava os pessoa para outra e não dava certo, tentei
cadáveres, todos os órgãos e ossos. extrair pedaços de órgãos, também não deu.
- Estudar cadáveres é uma coisa, seres Cada derrota aumentava em mim a vontade
vivos é outra. Como saberemos se dará certo? de continuar para acertar. “Deve ser assim,
- perguntou Jayks. talvez deste jeito!” Os prisioneiros não me
- Experimentaremos em vivos. bastavam, ordenei que os servos trouxessem
- Como? Não podemos fazer isto! Se mais pessoas. Eles iam pelas redondezas,
não der certo? Depois, onde acharemos pegavam andarilhos, mendigos até mesmo
voluntários? enganando pessoas com promessas de
- Não seja tolo. Acha que poderíamos sair emprego ou comprando alguns membros de
por aí-e pedir voluntários? Acharemos pessoas famílias necessitadas. Não era difícil alguns
disponíveis. Podemos pegar os condenados, pais venderem seus filhos, ou os filhos
não irão morrer? Que importa se é de uma venderem seus pais velhos. Os meus servos
forma ou de outra? por sua vez conseguiam famílias inteiras
- Boa idéia, aqui serão bem tratados. até com crianças, que não eram poupadas.
- Claro, e não sentirão dores. Depois, Acreditava que conseguiria, imaginava que
meu caro Jayks, por que não daria certo? seria fácil e falava incentivando Jayks: “Falta
Pela ciência poderemos sacrificar pessoas. pouco, temos que conseguir!” Nosso objetivo
Ninguém fez algo de útil sem antes estudar maior era fazer os cegos enxergarem, surdos
muito e pesquisar. Vítimas, isto é o de ouvirem, mas nada conseguíamos e muitas
menos. Pense nas glórias, na fortuna, no que pessoas foram danificadas. Muitas de nossas
poderemos fazer. No futuro, falarão de nós vítimas morriam durante as pesquisas na mesa
como benfeitores. operatória. Outros ficavam completamente
inutilizados, matava-os com veneno fortíssimo.
Reparando Erros Muitos mutilados eram presos nos porões
89 sendo tratados pelos servos e muitos voltavam
as pesquisas.
Os olhos de meu irmão brilharam de - Nada dá certo!
ambição, sabia convencê-lo, era só atiçar o - Jayks desanimava.
orgulho para animá-lo e ele fazia o que eu
queria. Meu amigo governador passou a dar- 90
me os condenados sob a minha palavra de que Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
não os deixaria fugir e de matá-los logo após os Antônio Carlos
estudos. Expliquei vagamente o que estávamos
fazendo, ele considerava-me um sábio e - Talvez porque não cuidamos de doentes
entusiasmou-se com meus planos. Ambicioso, realmente. Dará certo, sinto que estamos perto
ansiava por ver sua cidade ser alvo de fama, de descobrir curas fenomenais. Pedi a Jartir
onde todos prosperariam principalmente ele, que me trouxesse pessoas cegas, surdas e
pelas romarias. Almejando muitas vantagens, mudas. Assim, ora raptados, ora comprados
facilitou muito para mim e além de condenados ou enganados pensando vir para um asilo,
passou a me mandar presos que não tinham obtive muitos deficientes. Pesquisamos,
família por ali. Entusiasmei-me com as novas tentando trocar órgãos doentes pelos sãos.
pesquisas em seres vivos tudo era diferente e Nenhum sucesso. Dedicava-me muito aos
me pareceu maravilhoso. Aplicava neles, nas estudos e não conseguia fazer nada dar certo.
cobaias, anestésico forte e abria-os Estava me afastando cada vez mais de minha
família, ficando muito tempo naquela casa,
Página 46 no laboratório, fui perdendo os meus ricos
Reparando Erros pacientes, gastando muito e ansiava cada
43
vez mais por um resultado positivo. Jayks naquela casa, cuidado com o que fala. Meus
acabou por desistir, deixando-me sozinho. filhos e minha esposa não gostaram da volta
Tudo ficou mais difícil sem a ajuda dele. Visitei de Jartir, exigiram que eu o despedisse.
os porões, lugar que Jayks desconhecia. Dei-lhe muito dinheiro e mandei-o embora.
Vi minhas cobaias, a maioria se arrastava Jartir partiu chorando, chamando-me de
pelo chão, quase todos cegos e surdos, ingrato e injusto. Ninguém abertamente
gemiam enlouquecidos, pareciam bichos, comentou os acontecimentos da Casa do
sujos e maltrapilhos. Senti-me cansado, o Vale. Naquele tempo era comum pessoas
peso dos anos fazia sua marca, amargurado, desaparecerem. Depois, pegamos os pobres,
decepcionado, resolvi fechar o laboratórios. os que dificilmente conseguiam reclamar e
Chamei Jartir. ser ouvidos. O governador me foi de muita
- Jartir, meu amigo e fiel servo, a sorte foi utilidade, soube despistar os indícios e dar por
ingrata comigo. Quem mais do que eu merecia encerrado os casos que foram parar em suas
obter resultados depois de tantos estudos, mãos. Ficaram somente vagas impressões de
depois que me sacrifiquei tanto. Larguei o mistérios, de inexplicáveis desaparecimentos.
conforto do meu lar, passei noites sem dormir. Mas nunca ninguém suspeitou de dois médicos
A ciência me é ingrata! vou parar com os ricos e respeitados. Jayks morreu e senti-me
estudos. Você deve dar a todos do porão uma muito só, não encontrava sossego e nem
dose forte de veneno. Quero-os todos mortos prazer em nada, ficava a pensar: “Onde errei?
e enterrados lá mesmo. Quanto a vocês, Por que não acertei? Que faltou? Tudo que fiz,
servos fiéis, podem ficar na casa, receberão foi achando certo. Será que precisava mutilar
todos os meses seus ordenados. Mas devem tantas pessoas?” Como se sentiram muitas
ficar calados, aquele que ousar comentar o pessoas orgulhosas, recordando erros do
que se passou aqui morrerá. Nem esperei passado? Não é fácil recordar e nos ver em
para ver minhas ordens cumpridas, voltei condições de carrasco. Tantos erros fiz, quantos
para minha casa e nunca mais, encarnado, sofrimentos espalhei. Lembranças machucam,
voltei aquela casa, ao meu laboratório, que só mesmo para mim que me sinto quites com
me dera desilusão. Tentei retornar as antigas estes erros. Hoje, sou um trabalhador da
atividades, mas estava muito desanimado, Seara do Pai e indago: “Não é por misericórdia
descontente e desgostoso. Minha família que sirvo?” Tentando esquecer, procurei na
achava que escondia alguma amante naquela bebida um bálsamo para minhas torturas,
casa, respeitavam-me sem ter por mim mínimo não me conformava com meu fracasso. Não
afeto. Oito meses após, Jartir veio contar-me cliniquei mais, passei a maltratar todos que
que os dois servos brigaram e um matou me cercavam afastando-me ainda mais dos
o outro. E um fogo, que não se sabe como familiares. Comecei a ter feridas que foram se
começou, destruiu a casa, restando dela só alastrando por todo o corpo. Não sabia o que
destroços. tinha nem como suavizar as dores que eram
fortíssimas, queimando-me como fogo. Com
Página 47 medo de contágio, minha família prendeu-me
Reparando Erros no porão de minha casa. Fiquei cego, sozinho
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt na escuridão, sentia-me rodeado por seres que
me odiavam Desencarnei.
- Patrão
- disse-me, assustado -, o demônio 92
fez moradia lá. Ficou assombrando a casa, Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
escutávamos gemidos, bater Antônio Carlos

Reparando Erros Quis refugiar-me no corpo com


medo, mas fui arrancado dele por criaturas
portas. Tenho medo daquele lugar. O horríveis que me olhavam com ódio e rancor.
fogo foi obra deles, dos demônios. As duas Levaram-me para os destroços do meu antigo
servas partiram assustadas, eu voltei. laboratório, onde estavam meus cinco servos
- Ficará comigo Jartir, mas não se e fomos torturados pelos espíritos sedentos de
esqueça que ninguém sabe o que ocorreu vinganças. Eram espíritos de minhas vítimas,
44
estavam horríveis, monstruosos, estavam escutei comovido as palavras bondosas
como haviam desencarnado, torturavam-me que me chamaram razão e resolvi mudar a
com prazer, não me dando tréguas. Depois de forma de viver. Fui encaminhado a um posto
muito tempo, que para mim pareceu séculos, de socorro, onde bondosamente tentaram
fomos levados para um abismo no Umbral recuperar meu perispírito que parecia um
e deixados lá como prisioneiros. Encontrei monstro pelas torturas sofridas e pelas minhas
Jayks que também ficou preso, ele me odiava maldades. Encontrei Jayks, depois de muito
e me culpava de tudo. Todos os dias, aqueles tempo separados. Senti dó dele e lhe pedi
espíritos horríveis visitavam-nos humilhando- perdão com sinceridade. Senti que ele estava
nos e torturando-nos. Estavam assim porque tão triste e cansado quanto eu.
se negaram a nos perdoar preferindo sofrer, - Mark, erramos juntos, você não é o
e fazer-nos sofrer, recusando-se a um estágio único culpado. É certo que me tentou, segui-o
tranqüilo no Plano Espiritual, para vingar. porque quis, a ambição cegou-me. Somos os
Trocávamos ofensas Jayks e eu o tempo todo. dois culpados! Que Deus nos perdoe, porque
Nós, os sete prisioneiros naquela gruta escura eu o perdôo, mas não perdôo a mim mesmo.
e suja, além de sofrer, odiávamos tantos Sou culpado! Senti muita tristeza, ali, naquele
nossos carrascos como uns aos outros. lugar de paz, era um estranho e passei a ter
- Você, Mark, é culpado de tudo. Você remorso. Mas meu remorso era por ter causado
nos levou a isto dizia Jayks. sofrimentos ou feito sofrer, meu irmão e meus
- Cadê a glória que me prometeu? servos, esquecendo das minhas vítimas,
- Não deu certo das pessoas que nos serviram de cobaias.
- tentava defender-me. Lembrava delas como carrascos que nos
- Poderia ter dado, não tivemos sorte. torturaram. Ali fiquei pouco tempo, inquieto,
Não pode me culpar, não obriguei ninguém a triste, sem participar de nada, esperando não
fazer nada, eram livres para fazê-lo. Vocês que sei o quê.
foram, e são ambiciosos... - Irmão Mark, um orientador lhe chama.
Com ansiedade fui ao local indicado, reconheci
Página 48 o orientador, era um dos instrutores do grupo
Reparando Erros dos exilados.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt - Você está com o perispírito deformado,
não conseguiram neste local de socorro
Somos, de fato, sempre tentados, harmonizá-lo, necessita se equilibrar com as
porém, somos livres para escolher. Mas culpar Leis Divinas, necessita colher o que plantou,
os outros é fácil, reconhecer nossos erros é não por castigo, mas como efeito da causa
sempre mais difícil. Foram anos, muitos anos que você mesmo fez! Espírito rebelde! Não
de sofrimento e aos poucos nossas vítimas, soube aproveitar o que lhe estava sendo dado
agora carrascos, foram escasseando. Um dia, neste educandário terreno. Abusou de irmãos
uma grande falange de maus espíritos nos em crescimento. Causou dores, muitas dores,
libertou e ficamos com eles. Como Jayks e eu despertou ódio em muitos onde deveria por
brigávamos o tempo todo, fomos separados. sua inteligência despertar gratidão e bons
Adaptei-me rápido aos novos amigos e logo sentimentos. Grande é sua culpa! Por sua
pude mostrar a eles minha inteligência. O ambição fez irmãos odiarem, despertando
bando era animado, andava vagando ora pelos neles o desejo de vingança. Como são
umbrais, ora entre os encarnados, fazendo culpados os que ensinam odiar! Irresponsável,
pequenas maldades e grandes farras. Até que usou de corpos abençoados, vestimentas do
um dia fomos cercados por espíritos bons que espírito, para suas pesquisas, tentou para sua
nos aconselharam a mudar de vida. Senti-me ambição fazer algo que não sabia. Abusou
tocado, sentia cansaço, lembrei do período de muitas coisas, ó exilado! Voltará a carne
antes de encarnar e ser o terrível dr. Mark. e sofrerá como fez a outros, seus irmãos,
Aproximei-me deles e sofrerem. Estremeci... Encarnaram-me.
Resgatando Quando socorrido, os mentores
Reparando Erros tentaram harmonizar meu perispírito, tarefa
93 difícil, porque não ajudei. Tinha rancores pelas
minhas vítimas que foram algozes para mim.
45
Meu aspecto era deformado, porém estava - Firmino, nós vamos sair, fica na cama
completamente lúcido. Concordei com o quieto e durma.
instrutor do grupo quando me disse: - Ora, mulher
- A solução para você, meu irmão, é - dizia Berto -, como o menino irá
encarnar. Só a carne para harmonizá-lo, tem entendê-la?
muito que aprender. Passei as deformidades - Sei que me entende, é inteligente,
perispirituais para meu corpo físico. Voltei num aprende tudo que lhe ensino, é obediente. Não
corpo deformado, filho de uma moça solteira é meu querido?
que nunca conseguiu amar o filho defeituoso. - acariciava-me, beijando-me e isso
Tinha só um pedacinho dos braços, viera me deixava feliz. Não me importava de ficar
sem as mãos que tantas maldades fizeram. sozinho, o ruim destas saídas era que quando
As pernas eram pequenas dificultando meu voltavam estavam cansados e dormiam o dia
equilíbrio. Cego, tinha os olhos todo e eu tinha que ficar quieto até acordarem,
ficando com sede e fome. Embriagavam-
Página 49 se sempre, às vezes cantavam, era lindo
Reparando Erros escutar, riam alegres. Mas, outras vezes,
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt brigavam e descontavam em mim. Sentia as
pancadas, encolhia-me todo e chorava, logo se
grandes e parados dando-me um arrependiam e me agradavam. Assim foi minha
aspecto horripilante. Minha cabeça era maior vida até os nove anos. Um dia, escutei gritos de
que o normal e era mudo, porém, escutava pessoas estranhas, ruídos que desconhecia,
perfeitamente. Era inteligente, entendia o que fui me esconder no meu cantinho. Temi ao
se passava comigo e ao meu redor. Da minha escutar uma voz forte e alta.
mãe, não me recordo, certamente fui um peso - Estão presos filhos do diabo! Velhos
enorme a ela, que me abandonou e um casal feiticeiros! Moram só vocês dois aqui? Há mais
de velhos me criou. Diziam que me acharam alguém com vocês? Escutei passos de muitas
na estrada quando tinha uns dois anos. Amava pessoas entrando pela casa e derrubando
o casal, os meus pais adotivos, Frida e Berto. objetos.
Ela alimentava-me colocando comida na minha - Ah! Que coisa feia! É o demônio em
boca e dando-me banho de vez em quando. pessoa
Dificilmente sentia ou ouvia mais alguém em - disse alguém ao me achar.
nossa casa. Às vezes, escutava vozes e tinha - Incrível! Que é isto!?
medo, ia esconder-me no meu - É só uma criança, um menino enjeitado
que acolhemos
Reparando Erros - escutei Berto explicando.
95
96
cantinho, na minha cama. Isto porque Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
escutava exclamações de espanto. “Este Antônio Carlos
menino é mais feio que o demo!” “Que menino
horrível, coitado!” Frida e Berto não me criança? Só pode ser o demônio! Vamos
achavam feio, pelo menos nunca disseram. levá-lo também, os juizes saberão o que fazer
Naquela casa era protegido, conseguindo com isto. Não tem braços? Como amarrá-lo?
locomover-me por conhecer tudo, ali não - Passe a corda em seu pescoço, assim
passava frio, quando o vento forte soprava não fugirá. Comecei a chorar assustado. Meu
furioso. Minha cama era simples, um colchão choro era estranho, não saía nenhum som da
no chão, meu lugar predileto, onde passava minha boca, só uns ruídos parecendo ganidos.
horas a escutar todos os ruídos e a pensar Arrastado por uma pessoa, colocaram-me
como seria lá fora. Frida passeava comigo numa carroça no meio dos dois velhos, isto
perto da casa, que ficava perto de uma grande me acalmou, parei de chorar. Percebi que os
floresta. Meus pais adotivos saíam pouco, era dois estavam amarrados.
Berto que fazia as compras, porém os dois se - Fogo! Fogo em tudo! Escutei o barulho
ausentavam em certas noites só voltando de do fogo estalando e senti a fumaça, Acabaram
madrugada. Frida recomendava-me: com tudo Berto, queimaram nossa casa Frida
46
choramingou. cantinho a escutar meus pais. Não tinha
- Isto é o começo mais forças para chorar e esforçava-me para
- Berto disse, triste. Frida amparou-me entender o que acontecia. Naquela agonia,
com seu corpo evitando que caísse durante o via pelo espírito, fazendo-me confundir mais
trajeto. A carroça parou, fui pego e separado ainda, muitas pessoas, vultos estranhos a
deles, ficando sozinho num lugar abafado com me maldizer. Pude me ver também com outra
cheiro desagradável que me repugnou, senti forma, a cortá-los e torturá-los. Algumas das
fome e sede. Tentava escutar as vozes dos minhas vítimas me acompanharam nesta
meus pais encarnação, alegraram-se com meu sofrimento
e tentavam fazer com que recordasse o
Página 50 passado. Horas se passaram, novamente me
Reparando Erros pegaram e arrastaram, senti o ar frio da manhã,
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt percebi que estava ao ar livre. Colocaram-me
numa carroça e ouvi Frida.
adotivos na esperança de entender o - Firmino, coitado de você! Que lhe
que acontecia. Mas só escutava lamentos e fizeram? Como está machucado! Tudo isto só
gemidos. Estava numa cela de prisão, onde porque estava conosco. Meu menino, vamos a
fiquei horas. De repente, ouvi a porta abrir um lugar horrível, a inquisição condenou-nos.
rangendo, pegaram-me e conduziram-me Mas você é inocente, não é filho do demônio, é
a outro local que pelo cheiro senti que era de Deus! Peça a Ele, a Deus, piedade, pense
limpo. Percebi que estava rodeado por várias forte, não esqueça, peça ajuda a Deus, seu
pessoas, esperançoso, pensei que acabaria Pai. Então não era filho do demônio como
aquela agonia. Porém, ouvi... diziam, embora não entendendo, senti que
- Veja, sr. Monsenhor, o que encontramos ser filho do demônio era ruim. Se tinha um
com eles. Disseram-nos que o pegaram para pai, como ele ia salvar-me se nem o pai Berto
criar. Algo tão horrível assim não é pessoa conseguiu. Mas prestei atenção, disposto a
humana, só pode ser o demônio. Senti-me obedecer.
sendo observado, escutei risos. - Deixa o menino Frida, logo tudo acabará
- Será que é humano ou bicho? - escutei Berto. A carroça parou, ouvi
- Filho de feiticeiros só pode ser o diabo. barulho de muitas pessoas, uns gemendo,
- Vamos ver se sente dor, torturem-no. outros gritando. “Morram bruxos! Filhos de
- Não, por favor! Satã!” Pegaram-me e amarraram-me num
- Frida gritou. tronco. “Fogo! Fogo!” O barulho do fogo
- Ele é um simples menino inocente. É apavorou-me, senti-o nos meus pés, senti calor,
filho de criação! novamente meu espírito viu os meus inimigos
- Cale-se, velha maldita! Escutei uma acusando-me: “Merece isto maldito! Sofre o
forte bofetada e Frida calou-se, mas escuteia que nos fez sofrer!” Senti o fogo a queimar
chorar. Deitaram-me numa mesa fria e senti minhas pernas, lembrei das recomendações
dores. Não conseguia entender o porque e de Frida e pedi: “Deus, se é meu Pai, salva-me!
chorava somente, escutando risos Livrame destas dores, ajuda-me!”

Reparando Erros 98
97 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
comentários maldosos. Desmaiei muitas Antônio Carlos
vezes sendo acordado com água fria em meu
rosto. Arrancaram meus dentes, unhas dos O fogo queimava meu peito, a fumaça
pés, queimaram meu corpo e bateram-me sufocava-me, fazendo-me sentir dores
fazendo sangrar muito. terríveis. De repente, senti-me arrancado dali
e acabaram minhas dores, não senti mais o
- Já chega, senão morre por aqui. Levem- fogo, senti que voava e adormeci. Acordei num
no. Novamente arrastaram-me, deixando-me leito gostoso, fresco e cheiroso, ouvindo uma
naquele lugar abafado, com muitas dores, voz amável.
fraco, com fome e sede. Desmaiei muitas - Quer água? Tomei a água oferecida, me
vezes, desejava acordar em casa, no meu senti muito bem. ‘’
47
- Já é hora de falar e ver. Vamos tentar não me haviam mudado muito. Queria
Firmino? Esforcei-me, recebendo ajuda e somente ser servido, não pensando em ser
querendo muito, comecei a enxergar, a falar útil e não vibrando para merecer uma vida
e ter de novo os meus braços. Estava sendo tranqüila de uma colônia espiritual. Recordei
socorrido numa colônia, num hospital infantil, pedaços da minha existência como Mark,
onde achei tudo maravilhoso. Sentindo-me amargurei no remorso. Compreendi como a
muito bem, pensei em desfrutar da vida visão é importante para todos e fui perdendo-a.
tranqüila que o Educandário oferecia-me. - Firmino
Lembrei dos meus pais adotivos e quis saber - esclareceu-me bondosamente o
deles. orientador -, ninguém lhe cobra nada a não ser
você mesmo, o sofrimento que teve e que terá
Página 51 não é por regra, cada um tem o aprendizado
Reparando Erros pela dor, que necessita. Sofrerá como muitos
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt outros irmãos encarnados que não cometeram
erros iguais aos seus. Querendo voltar a carne,
- Onde estão Frida e Berto? encarnei. Chamava-me Daniel, era o quinto
Desencarnaram comigo, não os vejo! Uma filho de um casal de lavradores. Era um garoto
bondosa orientadora esclareceu-me: muito bonito, cabelos louros cacheados, olhos
- Seus pais adotivos eram feiticeiros, verdes e grandes, mas parados, sem vida.
doaram suas almas às trevas e para os umbrais Encarnei cego, era mimado por todos os meus
foram. Doaram seus espíritos, algo que não familiares. Era esperto, inteligente, aprendia
lhes pertence, a irmãos trevosos. Houve tudo que me ensinavam, andava normalmente
uma troca, estas entidades serviram seus pela casa e a sua volta. Gostava muito de
pais enquanto estes estavam encarnados, andar pelos arredores da casa, escutando os
agora que desencarnaram, devem servi-las. bichinhos, os pássaros, tentando imaginar o
É impossível você vê-los, seus caminhos são formato dos objetos e como seriam as cores,
diferentes. Firmino, eles o criaram pensando interessava-me por tudo que me cercava.
em sacrificá-lo a estes espíritos, esperavam Quando estava com cinco anos, num destes
a ocasião propícia. Mas gostavam de você e passeios, sozinho, entardecia, estava distraído
foram adiando. brincando sentado na relva, senti que uma
- Será que iam mesmo sacrificar-me? pessoa me pegava, amordaçava e amarrava
- Talvez. Guarde as boas lembranças colocando-me num saco, isso me deixou muito
deles e ore por eles, são filhos de Deus como assustado. Fui jogado e, pelo barulho, percebi
nós, embora tenham renegado este fato. Um que era uma carroça, escutei respirações
dia, arrependidos, entenderão a verdade e abafadas, entendia que não estava sozinho.
voltarão ao Pai. Andamos muito, ou melhor, senti a carroça se
- E os espíritos que vi quando era meu locomover, acabei dormindo. Quando a carroça
corpo queimado, os que me odiavam? parou, tiraramme do saco, soltaram minhas
- Saciaram a sede de vingança. Quando mãos, tirando-me a mordaça, colocaram-me
se arrependeram e o perdoaram foram em pé ao lado da carroça. As outras crianças
socorridos, seguiram o caminho deles. choravam, percebi que eram três adultos e três
Sofreram e continuaram sofrendo por terem se crianças tão pequenas como eu, sendo uma
negado a perdoar, esquecendo que todos nós delas uma menina.
somos carentes do perdão. O tempo passou. - Parem de chorar! Aqui tem água e pão,
comam e bebam. Percebi pelo ar fresco que
Reparando Erros era de madrugada, colocaram nas minhas
99 mãos uma caneca com água e o pão. Estava
com
- Firmino
- disse o orientador do grupo -, em outra 100
existência praticou muitas maldades, não Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
poderá ficar aqui por mais tempo, deve voltar Antônio Carlos
a encarnar. Entristeci, porém entendi que
aqueles poucos anos num corpo deformado muita sede e fome, tomei a água e
48
comecei a comer a fatia de pão. As outras - Menino! Menino, acorda! Como se
crianças choramingavam, mas, como eu, chama?
comiam o pão. - Daniel.
- Não chorem! Parem com isto! Aqui
ninguém os escutará. Logo vocês terão novos Reparando Erros
pais. 101

Página 52 - Nome bonito. Eu sou Igette. Mas,


Reparando Erros você só me chamará de mãe. Entendeu? Só
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt de mãe. Se não obedecer, surrarei você de
chicote. Já foi surrado de chicote? Neguei com
- Papai! Mamãe! a cabeça, nunca ninguém me surrara, sentia
- disse baixinho, não queria novos pais, muito medo.
comecei a chorar. - Ora, Daniel, não fique triste. Serei boa
- Já chega! Vamos embora, subam! mãe para você. Aqui tem doces. Gosta de
Tentei fazer o que os outros faziam, mas não doces? Fica com todos. Não pense mais na
consegui, foi aí que perceberam o meu defeito sua outra mãe, eles não gostavam de você.
físico. Foram seus pais que o venderam a estes dois
- Este menino é cego! Seus olhos homens. Acho que não queriam mais você,
são parados. Vocês que o raptaram não mas eu quero! Escutei sem falar nada. Com
perceberam isto? Que faremos dele? Ninguém as mãos cheias de doces, fui comendo-os.
vai querer comprá-lo Não conseguia entender, não sabia distinguir
- um dos homens falou zangado. a verdade da mentira, mas sentia que meus
- Podemos matá-lo e esconder o corpo pais me queriam e que não me venderiam.
- o outro respondeu. Não sabia o que fazer, sem enxergar nada não
- É arriscado demais, se descobrem... conseguia locomover-me e estava com muito
Escutava tudo apavorado sem conseguir medo, fiquei passivo e Igette agradou-me
entender direito o que diziam. A mulher falou: contando histórias, me deu banho e vestiu-me
- Mortes não! Deixe-o comigo, cuidarei com roupas cheirosas.
dele. Vamos nos separar logo, partirei para - Como está bonito! Daniel, vamos
a França e levarei o menino cego. Escutei as viajar numa carruagem muito importante.
risadas dos homens. Não esqueça, meu bem, de chamar-me como
- Igette, você vai é esmolar com o menino ensinei, só de mãe. Darei a você muitos
cego. Entre xingos e risadas, fui jogado na doces. Segui de mãos dadas com Igette,
carroça. Ficamos juntinhos, assustados, percebi que logo chegamos a uma cidade
sempre estava um a chorar, a chamar pelos e fui acomodado numa carruagem. Igette
pais. A menina não falava nada, chorava o estava muito carinhosa comigo e comentava
tempo todo. Paramos várias vezes, nestas com outras pessoas. “Sou uma pobre viúva
paradas nos davam água e pão. Quando a com um filho cego! Como sofro!” A viagem
noite chegou, paramos e logo ouvi barulho demorou, paramos em muitos lugares, era bem
de outra carroça e, pela conversa que ouvi, tratado por todos. Na ilusão de criança, não
chegaram os que vieram comprar as crianças, me dei conta do que se passava realmente,
escutei as transações. Com tudo acertado, foi estava gostando do passeio e dos agrados,
dada a ordem: mas também sentia muito medo de Igette que
- Todos descem, menos o cego. Os dois estava sempre me ameaçando: “Continue
meninos desceram e a menina agarrou-se a bonzinho, se desobedecer surrarei você.”
mim, não querendo ir. Falava pouco e chamava-a só de mãe.
- Anda menina, desça! Senti que ela foi Quando chegamos ao nosso destino, numa
agarrada a força e ouvi os tapas que deram pequena cidade, Igette alugou uma casa. Ela
nela, foi embora chorando e gemendo. Fiquei não era de trabalhar, logo tudo estava sujo e
sozinho, escutei a outra carroça partir e os desarrumado. O dinheiro acabou, então ela
três a repartir o dinheiro. O cansaço me fez
adormecer. Acordei com a voz da mulher, senti Página 53
o Sol, estava alto. Reparando Erros
49
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt vigiar-me poderia ir. Mas não seria fácil, não
sabia meu nome completo, lembrava-me de
ensinou-me a esmolar. Aprendi tudo três nomes dos meus irmãos e não sabia onde
rápido, passei a esmolar com ela, depois moravam. Sabia que não era na França, pois
sozinho. As lembranças dos meus pais e aprendera falar francês ao chegar com Igette.
irmãos foram escasseando e, se comentava Talvez morassem na Inglaterra, mas onde? E
algo sobre eles, Igette ameaçava-me aos como ir? Acabei por desistir. Sozinho pus-me
gritos, chegando às vezes a bater-me e nunca a cuidar de tudo, tranqüilamente continuei a
me disse algo sobre eles. trocar os meus produtos pelo que me faltava
com este bondoso comerciante. Os anos foram
102 passando.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Antônio Carlos Reparando Erros
103
Dois anos se passaram, eu esmolando
e sustentando Igette. Então ela arrumou um Num dia, ao voltar da cidade, ouvi ao
amante, Will. Ele gostava de beber e estava longe um chamado de socorro, seguindo o
sempre embriagado. Um dia, meteu-se numa som da voz fui para lá. Os gritos vinham de
briga e tivemos que fugir e nos esconder. um barranco não muito fundo, mas perigoso
Ele conhecia bem as montanhas e nos levou pelas pedras que os circundavam. Por muitas
para lá, onde tinha uma casinha abandonada vezes, andara por ali com Will.
e passamos a habitá-la. O lugar era de difícil - Calma! Calma!
acesso, ninguém passava por lá. Will, animado - disse, tentando fazer com que parasse
por ter escapado, reformou a casa e pôsse a de gritar e conversasse para saber onde
trabalhar cercando-a e fez uma horta, roubaram estava. “Meu Deus!” pensei. “Que faço? Não
galinhas e umas ovelhas e começaram uma posso deixá-lo aí e ir pedir socorro, poderá
pequena criação. Quando Will não bebia, era cair e morrer. Devo tentar salvá-lo.” Estava
trabalhador, tratava-me bem. Ensinou-me a com uma corda que usava para amarrar as
andar pelas redondezas, a lidar com animais, a ovelhas, amarrei-a em uma forte árvore e fui
cuidar da horta. Sentia-me muito bem ali, mas descendo, orientado pela voz de João. Na volta
o perigo passou e Igette e Will começaram a pensei “ele orientará e subiremos mais fácil”.
ir a cidade e a beber novamente, a brigar e a Com alívio cheguei a ele.
me agredir batendo-me às vezes. Já estava - Machucou-se?
mocinho e exigiam muito de mim, passei a - Não, só arranhei um pouco. Pelo menos
servi-los, trabalhando muito, mas só o fato de não estava ferido, isto facilitaria.
não esmolar mais me fazia suportar tudo. Will - Como caiu? Quantos anos tem?
ensinou-me a ir a cidade orientando-me pelo - Dezesseis, senhor. Sou cego! “Meu
vento, a sentir o tempo. Acompanhava-os às Deus!”
vezes nas suas idas a cidade e a todos falava - pensei. “Um cego guiando outro. Que
com orgulho: “Este moço é cego! É nosso filho faço? Ficar aqui não resolverá
e põe debaixo do braço qualquer um de vocês.
É esperto e faz tudo sozinho.” Mas, estas Página 54
idas a cidade acabavam sempre em grandes Reparando Erros
bebedeiras e numa delas, quando chegaram Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
em casa, me bateram tanto que fiquei todo
ensangüentado. Pensei em fugir, mas logo nada. É melhor subir.” Amarrei a corda
cedo saíram novamente para ir a cidade e não em sua cintura.
regressaram. Os dias passaram e resolvi ir a - Segure aqui. Fui subindo devagar, com
cidade para ver o que aconteceu. uma mão apalpava, com a outra segurava a
- Seus pais foram embora com os ciganos corda e puxava o outro, conseguimos subir.
- disse o comerciante. Fiquei feliz, agora Logo iria anoitecer, convidei-o para ir a minha
a casa era só minha. Muitas vezes pensei em casa e ele aceitou. Em casa dei a ele água
ir a procura dos meus pais verdadeiros, e da fresca e alimentos. João me contou a história.
minha família, agora não tendo ninguém para “Coitado”
50
era útil. Deus atendeu-me, as preces sinceras
- pensei -, “é tão triste perder a mãe, é tão sempre são ouvidas, não desencarnei sozinho
só quanto eu.” Convidei-o para ficar comigo e e fui enterrado. Perturbei-me com a morte
ensinar-lhe a vencer as dificuldades e a fazer de meu corpo, demorei dias para entender
sozinho o que era necessário. Mesmo sem o que havia acontecido. Socorrido, espíritos
querer, Igette e Will ensinaram-me muito. bondosos explicaram-me que desencarnara
Sua mãe querendo poupá-lo não deixou que e me levaram para um posto de socorro. Lá
ficasse auto-suficiente. Tornamo-nos amigos, encontrei meus pais, foram eles dois dos meus
sentia-me responsável por ele e que deveria antigos servos no laboratório. Reconciliamo-
ajudá-lo. E assim o fiz, ensinei-lhe tudo o nos, entendemos o porque de termos sofrido,
que sabia, mas João tinha um gênio difícil, mas especifico que nem todos que sofrem
exigindo muito de mim. Nossa vida foi simples, ou sofreram como nós podem ter feito o que
trabalhando na horta, cuidando das criações e fizemos. Cada sofrimento é um aprendizado e
trocando nossos produtos, assim se passaram as causas podem ter sido diferentes. Meus pais
os anos... João ficou doente, preocupei-me sofreram a dor da separação de um filho e eu
com ele, comprei remédios na cidade, dei-lhe sofri a ausência dos pais, privado da visão, que
chás, mas foi piorando. Tossia muito e irresponsavelmente fiz a tantos irmãos cegos.
Ao lembrar o passado, entristeci-me, entendi
104 o porque de João ter voltado a carne. Quando
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / nos sentimos endividados,
Antônio Carlos
Reparando Erros
tinha febre que por vezes o levava a 105
delírios dizendo nomes estranhos, chamando-
me de Mark, falando de vítimas e torturas. ninguém nos cobra, nós mesmos sentimos
Piorando, chegou a vomitar sangue e não a vontade e a necessidade de equilibrar-nos
saiu mais do leito, numa crise desencarnou com a Lei Divina para ter a paz. Procurei ser útil
em meus braços. Senti muita falta de meu no posto de socorro e meditar nas lições que
amigo; enterrei-o ao lado de um canteiro de ouvia, quis reencarnar perto de João, deste
flores perto de casa, flores que o João cuidara espírito de convívio entre erros e sofrimentos
com tanto carinho. Enrolei-o num lençol e e, quando chegou a oportunidade, encarnei.
com profunda tristeza joguei terra em cima.
Por cinco anos vivi sozinho, cansado e velho, Página 55
fazia tudo vagarosamente e sem entusiasmo. Reparando Erros
O reumatismo castigava-me e andava com Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
dificuldades. Conversava só quando ia a
cidade. Comecei a pensar na morte. “Morrerei Fui Pierre, primeiro filho de Michel e nos
sozinho, não terei ninguém para enterrar-me.” amamos muito, reconciliamo-nos de verdade.
João havia me ensinado a orar. Passei a orar Tive uma vida simples naquela pequena
com fé e a pedir a Deus que não me deixasse cidade, gostava de trabalhar, fazia qualquer
morrer sozinho e ficar sem ser enterrado, não serviço contente, desde pequeno ajudei meu
queria enfeiar meu lar com a decomposição pai no armazém. Como meu pai, não tive
do meu cadáver. Para mim aquele lugar na religião, era retraído, quieto, não gostava de
montanha era lindo, amava-o. Agradecia a pessoas preguiçosas. Logo na mocidade,
Deus por ouvir, compreendia cada barulho, descobri que era impotente, sofri muito com
gostava de escutar os pássaros, a chuva, os isto, vi todos meus irmãos casarem e ter
animais, o vento e o balançar das folhas nas filhos. Fiquei solteiro, dedicando-me muito
árvores. Mas foi na porta do estabelecimento ao trabalho. Sempre morei com meus pais e
do comerciante com quem por tantos anos senti muito quando desencarnaram. Estava
permutei mercadorias que caí desencarnado com cinqüenta anos quando fiquei doente e
por um infarto. Bondosamente, ele arrumou os médicos não conseguiram descobrir o que
para que fosse sepultado no cemitério, ficando tinha, era uma doença rara nos rins, inchei
com minhas mercadorias para as despesas, muito, parecia que ia estourar, sofri muito por
como também foi em minha casa e pegou o que dois anos. Desencarnei e fiquei perturbado
51
continuando em casa, pensando estar no de presente uma viagem a França. Como fiquei
corpo carnal. Se não aproveitei a existência contente em rever Gert, que, como eu, estudou
para fazer obras úteis ou aprender, também medicina e acabava
não havia feito o mal e sofri com resignação.
Um dia, sentado na varanda e sentindo-me Reparando Erros
muito triste, vi aproximando-se de mim uns 107
senhores muito simpáticos que me convidaram
para um tratamento num hospital. Aceitei de se formar. Ao vê-lo senti uma pontinha
contente e parti com os socorristas para de inveja, vivia bem com meu pai, era livre
um hospital em um posto de socorro onde para fazer o que quisesse. Conversamos,
vim a saber que desencarnara. Orei pelo trocamos idéias, visitei escolas e hospitais.
meu pai e quando ele também foi socorrido Minha mãe insistia na minha volta, embora
nos abraçamos comovidos. Quantas vezes gostando da liberdade que desfrutava, voltei
desencarnamos? Inúmeras. E nem os nossos temendo que adoecesse. Meu avô, já velho,
próprios desencarnes são iguais. O socorro é a começou a me passar as responsabilidades
primeira colheita das nossas boas obras. Muitas das suas propriedades, o que ocupava muito
vezes é pelo sofrimento que nos ligamos ao do meu tempo e impedia que me dedicasse
bem e somos socorridos. Não importa se numa como queria ao meu trabalho de médico. Casei
encarnação fomos socorridos de imediato e com uma moça que minha mãe achou que me
em outras não. O socorro depende de nós convinha, rica e muito educada.
mesmos e, enquanto não ficarmos firmes
no aprendizado recebido, estas variações Página 56
acontecem. Michel e eu combinamos ser Reparando Erros
médicos novamente, nos preparamos e cheios Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
de esperanças reencarnamos. Aprendendo a
dar valor Encarnei na França, chamava-me Viajamos, minha esposa e eu, para a
Huts, tendo por irmão mais velho Gert, amigo França, onde revi Gert que também se casou.
e companheiro, pois nossos pais brigavam Não me demorei desta vez, mas fiquei todo o
muito. Nossa mãe tinha uma preferência por tempo possível conversando com Gert, nos
mim, que não conseguia entender, ficava entendíamos em tudo. Meus avós morreram e
chateado por ver Gert desprezado. Após tantas tive que passar a administrar as propriedades
brigas, nossos pais resolveram se separar. que agora pertenciam a minha mãe e mais o
- Fico com Huts, ele é o caçula, necessita patrimônio de minha esposa. Levando uma
mais da mãe, fico com ele! vida social agitada, entre festas e viagens, a
- ela gritou para meu pai. Fomos medicina, que tanto gostava, ficou em último
separados sem sequer opinar, parti com ela plano, se atendia alguém era entre nossos
para a Hungria, onde moravam meus avós amigos e familiares. Acabei por seguir os
maternos. Estranhei o país, os costumes, e conselhos de minha mãe:
chorava a falta de meu irmão, queria estar - Deve deixar a medicina para os que
com ele, não me importava em ficar com meu necessitam ganhar a vida, você não precisa, é
pai ou com minha mãe. Meus avós eram ricos, rico. Não deve clinicar, não é bom ter contato
moravam numa bela e grande casa e ficamos com pessoas doentes ou pobres sujos e
morando com eles. Escrevia sempre a Gert, ignorantes. Minha mãe morava comigo, nunca
adorava receber notícias dele. Por ele, soube deixou de controlarme, de facilitar tudo para
do casamento do meu pai e dos meus meios- mim, de resolver todos os meus problemas.
irmãos. Ao contrário do meu pai, minha mãe Vivi fora da realidade, mimado, tendo tudo
não mais casou, dedicando sua vida somente facilmente, nem percebi que minha esposa
a mim. “Huts, você é lindo! É tudo para mim, sofria e que era minha mãe que mandava
é tudo que tenho!” em tudo até nos meus filhos. Tinha três
- dizia-me sempre. Autoritária, controlava- filhos, estava com trinta e oito anos. Para
me e resolvia tudo por mim. Quando optei comemorar os sessenta anos de minha mãe
para estudar, ela não gostou, mas medicina resolvemos viajar para a França. Muitos dos
era minha paixão e acabei por convencê-la. nossos amigos acompanharam-nos. Gostava
Formei-me com facilidade e meu avô deu-me de viajar, ia contente com a idéia de rever
52
Gert e conhecer meus sobrinhos. A viagem Por muitas vezes quis ausentar-me, sabia
transcorreu calma, sem problemas, até que que desencarnara mas, se saía de perto dela,
fomos assaltados. Pegos de surpresa, quando ela se desesperava e atraía-me novamente.
havíamos parado para descansar a beira de Minha esposa quis voltar ao lar paterno e foi
um riacho. Sob ameaças, ficamos quietos amaldiçoada, minha mãe queria que todos
e pegaram nossas jóias, dinheiro e roupas. sofressem como ela. Mas minha esposa era
Já iam embora, quando um dos assaltantes jovem e pretendia fazer o que
pegou minha filhinha de três anos.
- Vamos levá-la como refém, quando Página 57
estivermos a salvo a soltaremos na estrada. Reparando Erros
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
108
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / me prometera e ela tinha medo de minha
Antônio Carlos mãe. Voltou a casa dos pais e logo casou
novamente, refazendo sua vida.
Apreensivo avancei sobre ele, tentando
impedir que a levasse. Ele a soltou, ela correu Reparando Erros
para minha esposa e lutamos corpo a corpo. 109
Covardemente um outro bandido feriu-me nas
costas. Fugiram rápido, deixando-nos muito Minha mãe não se conformava com meu
assustados. Eu era o único médico ali, sentia desencarne e passou a agir como se eu ainda
que perdia muito sangue. Com dificuldade fui estivesse encarnado. A fazer o que gostava,
falando o que deveriam fazer comigo. Lutei a conversar comigo, deixando-me muito
para não morrer, sabia que não agüentaria perturbado e fiquei como que amarrado ao seu
muito tempo. Revi meu passado como num lado. Um espírito pode obsedar um encarnado
filme, todos os fatos importantes passaram por várias razões, por vingança, por não
na minha mente, minha infância, alguns compreender seu estado de desencarnado, até
acontecimentos que nem mais recordava. por paixão. Mas, amando de forma excessiva
Também me vi retalhando pessoas. “Que fiz e errada, não compreendendo as leis tão
na minha vida? Meu Deus o que fiz?” simples e naturais de uma desencarnação,
- indaguei. “Por que não me dediquei pode o encarnado segurar ao seu lado o ente
a medicina que tanto amei?” Chamei minha querido desencarnado. Quantos pais aflitos,
esposa, aproveitando que minha mãe num inconsoláveis, pensando que a morte os
ataque de desespero desmaiara. separou para sempre, ou que o ente querido
- Prometa educar nossos filhos, não acabou, sofrem em desespero prejudicando
mimá-los como fui mimado. Tranqüilizei-me quase sempre aquele que ama. Minha mãe
com seu sim, minha mãe voltou do desmaio e fez isto comigo, segurou-me ao seu lado. Muito
gritava desesperada. sofri, ora pensava que enlouquecera ou mesmo
- Por que Huts impediu que a levassem? julgava-me encarnado. Minha mãe adoeceu,
Tudo podia acontecer, menos com ele! Viva, chamava-me sem parar. “Huts, ajude-me! Dói
meu filho! Não morra! Haviam ido buscar a perna, o braço. Cure-me filho!” Desesperado
socorro, enfraquecia e sabia que era inútil, tentava ajudá-la sem conseguir, até mesmo
sentia que ia morrer. Pensei, agoniado, que agravando seu estado com meu desespero e
se me tivesse dedicado a medicina não teria perturbação. Estávamos ambos doentes. Em
tempo para tantas futilidades, não teria viajado. agonia, desencarnou, vi seu corpo morrer,
Arrependido de não ter aproveitado para seu enterro, entendi e tive a confirmação que
trabalhar, ser útil. Desencarnei triste e muito também desencarnara. Logo que mamãe
amargurado. Minha mãe não se conformou acordou do sono que teve ao desencarnar,
com minha morte, desejou vingar-me, ofereceu voltou ao lar e continuou como encarnada,
recompensas pela captura dos bandidos. a sofrer e a chamar-me. Estava cansado,
Mamãe chorava lamentando, chamando-me chorava muito, comecei a orar, arrependido
inconformada, e atraído pelos seus lamentos da vida vazia que tive.
fiquei vagando ao seu lado. Ela segurava-me, - Meu Deus
confuso, ora chorava, ora tinha piedade mim. - exclamei -, a morte não deve ser só
53
isto. Deve existir um lugar aonde vão todos Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
que morrem. Onde está o Céu ou o inferno?
Por que fico aqui? Acuda-me Jesus! Quero juntos! Nasci e passei a infância numa
descansar, ter paz. Perdoa-me! Estava sendo pequena aldeia em Portugal. Recebi o nome de
sincero, clamei por misericórdia e fui socorrido, Joaquim. Não era um menino igual aos outros,
separado de minha mãe, que tempos depois era sincero, espontâneo, criava confusões
também foi socorrida. Vim a saber que minha na família com adivinhações e por ler os
mãe fora Igette que querendo reatar comigo pensamentos das outras pessoas.
amou-me em exagero, prejudicando-me. - Você vai cair da cadeira!
Ficamos juntos, entendemos nossos erros. Se - exclamava.
tivesse sido uma pessoa que praticara o bem, - Ufa! Você é culpado! Mãe, o Joaquim
boa, ela não teria conseguido fazer o que fez. disse que eu ia cair e caí! Tudo o que falava
Passamos este período de sofrimento acontecia, não que fosse o culpado, sentia
que ia acontecer e acontecia, principalmente
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / com meus irmãos. Minha mãe preocupava-se
Antônio Carlos comigo, levou-me ao médico que disse após
me examinar:
por vibrar egoisticamente. Igette
reencarnou na família, sendo neta da nora Reparando Erros
que tanto atormentou. Hoje Igette está bem, 111
é feliz. Pensei muito neste período que
passei desencarnado. Tive medo de voltar - Seu filho é sadio, nada tem de anormal.
com posses porque sabia que meu amor pela É só imaginação e coincidência. Foi aos cinco
medicina me levaria a estudar novamente. anos que levei minha primeira surra, ao dizer a
Com medo de errar, pedi para encarnar pobre. minha tia que seu esposo tinha outra mulher.
Porque só não erramos mais quando realmente Não entendi por que mamãe me surrou, não
aprendemos a lição. Um espírito tem muitos compreendia o que se passava comigo. Ela
motivos para desejar ardentemente encarnar. ensinava-me a não mentir e eu dissera a
Quando ama a vida encarnada mais que a verdade. Fui tachado pelos familiares, para
espiritual. Quando o ego pessoal é atraído à desgosto de minha mãe, de desequilibrado,
vida física como o ímã ao ferro. Para esquecer doente mental. Mas na escola, aprendia
o passado e se ver livre do remorso. Poucos rápido, sendo o melhor da classe, gostava
querem encarnar para aprender e progredir. de estudar e aprender. Só dois anos fiquei
Eu ansiava encarnar porque não me achava na escola, sabia ler e escrever corretamente,
digno de viver desencarnado, desfrutando a meus pais me tiraram para trabalhar no campo
liberdade e as belezas de um posto de socorro e também porque as reclamações eram
ou colônia. Querendo encarnar e provar a mim muitas. Sabia o que pensavam os outros,
mesmo que vencera meus vícios, desejando desmentia os colegas e professores, tudo
regressar vitorioso, pedi ardentemente a que falava acontecia. Para mim, era normal,
oportunidade de reencarnar. Pensei no Brasil, falava sem dificuldade, mas não era para os
uma terra nova que começava a se colonizar outros. Estava sempre sendo surrado, ou pelos
e tão necessitada de espíritos trabalhadores. meus pais ou irmãos mais velhos. Comecei
Conheci, na colônia, Xing, um chinês que a ser temido, diziam que era possuído pelo
quando encarnado fora médico, errara e queria demônio, ora diziam que eram espíritos maus
muito acertar. Prometeu ajudar-me. que se aproximavam de mim. Sem entender,
- Ajudarei você do lado de cá. sofria a incompreensão dos meus. Um dia,
Trabalharemos juntos. Você me verá, ao dizer que uma vizinha mentia, minha mãe
escutará, será médium, um sensitivo, sofrerá trancou-me no porão de minha casa, onde
incompreensão por isto. passei dois dias sem comer e no escuro. Tinha
- vou me acostumar, não reclamarei, isto quase dez anos. Chorei, senti muito medo,
me dará confiança. Trabalharemos não sabia como agir, foi então que vi uma luz
linda que clareou o ambiente, enchendo-me de
Página 58 coragem e alegria. Vi um homem, um chinês,
Reparando Erros que me disse: “Joaquim, não tenha medo,
54
somos amigos. Estamos todos vivos, os que cabana vazia, vim a saber que desencarnara
morrem, vivem em espírito e você que tem como vivera, só e calmamente. Estava com
corpo físico vive em estado encarnado. Sou um dezenove anos e em Portugal falava-se
espírito, seu amigo e vim ajudá-lo. Não é tão muito da América, da Colônia do Brasil. Senti
ruim assim o que sente e vê, você é diferente vontade de partir, de viver nas terras novas
das outras pessoas, poderá ajudar a muitos do Brasil e Xing incentivou-me. “Joaquim, no
necessitados.” “Só que eles não entendem Brasil, iniciará vida nova. Lá não existe tantos
isto. Estou de castigo e não fiz mal algum.” preconceitos de suas faculdades e poderá
“Não se revolte, entenda-os. Para evitar auxiliar outras pessoas.” Pensei bem, resolvi
castigos, não diga a ninguém o que sente e partir e comuniquei aos meus.
vê, guarde só para si. Só fale se o indagarem.
Entendeu?” “Você passou pela porta fechada?” - Parto para o Brasil, vou morar lá.
“Sim, espíritos atravessam a matéria.” - Sozinho?
- Sim, com Deus.
112
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / Reparando Erros
Antônio Carlos 113

“É mesmo meu amigo?” “Sou seu amigo Minha mãe foi a única a sentir, os outros
e sempre que quiser conversar comigo estarei suspiravam aliviados, era uma preocupação a
ao seu lado. Mas não diga a ninguém, não menos. Tinham medo de mim, do que poderia
entenderão e dirão que mente. Chamo-me dizer deles e me diziam sempre: “Sorte sua é
Xing.” “Se nada dizer não me castigarão. Gosto que a inquisição não mata mais, senão ia para
de você!” “vou ajudá-lo, farei você dormir, a fogueira.” Pela primeira vez, entusiasmei-me
assim o tempo passará rápido.” Dormi quase com algo, todos ajudaram-me com o dinheiro
o tempo todo e quando mamãe me tirou de lá necessário só para ir. Arrumei meus pertences
falei com firmeza. e contente despedi-me deles. Minha mãe
- Mamãe não vou falar mais do que vejo. chorou, abraçando-me:
- Deus o ouça! Assim fiz, tornei-me tímido - Joaquim, juízo, não fale a ninguém das
e solitário, afastando-me das pessoas. Não falei suas esquisitices. Prometa-me.
mais nada do que via ou sentia, conversava - Pode ficar descansada, terei cuidado
somente com Xing e as escondidas, aprendi a e não falarei nada. Achei lindo o navio e me
dialogar com ele mentalmente. Trabalhava com encantei com a imensidão do mar. Foi uma
meu pai na lavoura, não saía de casa, meus viagem desconfortável, cansativa, mas sem
familiares tratavam-me com desprezo. Um dia, problemas. Todos os imigrantes buscavam uma
ao dar um passeio na floresta, encontrei um nova vida nas terras brasileiras, estávamos
senhor idoso e conversamos bastante. Contei esperançosos e cheios de sonhos. Sentia
a ele meu problema. Xing sempre perto de mim. Conversávamos,
- Joaquim, o que sente, vê, não lhe trocando idéias, mas tendo o cuidado de
deve fazer feliz, este fato não é raro como nada comentar com os outros passageiros
julga, muitas pessoas são como você. Possui para não ter problemas, como mamãe dizia.
dons que se usados com sabedoria poderão Chegamos, muito se falava das belezas do
fazer muito bem, tanto a você como a outras Brasil e vi contente que não era exagero.
pessoas. Ajudarei você a entender Desembarquei em Santos e procurei um lugar
para ficar. Acomodei-me em uma estalagem
Página 59 simples, perto das docas, e foi onde arranjei
Reparando Erros emprego. Espantei-me com a escravidão, não
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt me conformava ao ver os negros cativos sendo
obrigados a trabalhar para os brancos. “Tudo
suas faculdades. Com simplicidade este isto é passageiro”
senhor foi explicando o que ocorria comigo, - dizia-me Xing. “Estamos de passagem
era médium. Passamos a nos encontrar na Terra, uns vão, outros vem. Seja bom com
sempre e ele me ensinou a benzer, a usar eles, a cor da pele não difere os espíritos.”
ervas como remédios. Um dia encontrei sua Gostei do meu trabalho, contava sacos,
55
peças a serem exportadas. Ganhava pouco, Deus nos fez livres, é um desrespeito muito
mas estava dando para viver modestamente. grande escravizar a outros. No caminho, cuidei
Escrevi logo para minha mãe contando tudo de um escravo que tinha uma ferida na perna
e dizendo que estava gostando da nova terra. e fiz o parto de uma mocinha com muito êxito.
As cartas levavam meses para chegar ao Como Xing dissera, acharam normal e fui
destinatário, iam de navio. No porto, os negros bemvindo entre eles e, logo que chegamos,
trabalhavam como estivadores, trabalhando espalharam a notícia pela : fazenda. “Joaquim
muito, alimentando-se mal e eram muito benze e cura com ervas.” Gostei do lugar,
castigados. Não podia ver um surrado que a fazenda era grande com muitas árvores,
me revoltava, esforçava-me para não agredir plantações de café e muito gado. Meu trabalho
fisicamente os feitores. Mas, irava-me e consistia em guardar como vigia a casa-
desejava-lhes mal. Comecei a notar que isso grande. Não gostei mas era o que um branco
os deixava doentes e que também estava arrumaria numa fazenda. Amei o lugar, era
ficando. sossegado, bem arrumado e seu dono uma
pessoa boa. Gostava de conversar com os
114 negros e me fiz amigo deles. Escutava suas
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / histórias, quase sempre tristes e com eles
Antônio Carlos aprendi suas crenças. Entre eles, destacavam-
se Mãe Jovina e Pai Tarcílio, velhos negros
Joaquim” vindo da África que conheciam muito do
- esclareceu-me Xing -, “ao desejar bem
ou mal a alguém, fica em nós uma parte do Reparando Erros
que desejamos. Pensamentos emitidos são 115
fluidos que tanto podem nos ajudar ou prei
judicar. Você tem força mental. Ao desejar-lhes sobrenatural que denominavam feitiçaria.
mal, prejudica-os e também a você. Todos nós Gostei muito deles e ensinaram-me a usar a
devemos ter cuidado com o que pensamos. força mental para o mal e para o bem. Mas
Veja todos como irmãos, os escravos como o mal não me atraía, sentia que já sofrerá
espíritos que colhem e os feitores como os que muito por este caminho e dediquei-me só ao
plantam. Embora estes cumpram ordens. Mas bem. Gostava de atender a todos, curando-
quem abusa dos mais fracos um dia sofrerá os como sabia, passei a ser para eles como
por este ato.” “Acho que devo mudar, isto não um médico. Pela minha amizade com os dois
está me fazendo bem.” Pensei em locomover- velhos feiticeiros e pelas minhas benzeções,
me para o interior, quando recebi uma carta do acabei sendo chamado e conhecido com o
meu irmão informando que minha mãe faleceu apelido de Feiticeiro. Não cobrava nada. Além
após minha partida. Escrevi-lhes pela última do mais, meus clientes eram mais pobres
vez, dizendo do que eu, mas os colonos estavam sempre
me presenteando com alimentos, roupas,
Página 60 objetos simples. Eles me respeitavam e me
Reparando Erros eram gratos. O emprego incomodava-me e
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt também impedia de atender a qualquer hora.
Na fazenda havia um morro, lugar muito bonito
para não se preocuparem comigo e que com uma nascente d’agua. Pedi ao senhor
não ia escrever mais. Quem se preocupava da fazenda para residir lá, ele permitiu e
comigo era minha mãe. Com sua morte, construí uma pequena casa na qual fui morar.
acabara o vínculo familiar. Pelas docas O caminho era fácil e todos da redondeza iam
sabia-se de muitas coisas, as fazendas no lá com facilidade. Plantei árvores frutíferas,
interior estavam necessitando de pessoas cultivei uma horta e muitas ervas, criava
para trabalhar além dos negros. Foi assim também os animais que me doavam. Passei a
que, contratado, parti com uma turma que levar uma vida simples, só saía do morro para
viera comprar escravos. Os escravos não atender alguém que não podia ir até lá. Atendia
eram maltratados, mas iam tristes, infelizes, todos que me procuravam e também cuidava
saudosos, pouco falavam e nunca sorriam. de animais doentes. Não havia médicos pela
Como é triste ver irmãos subjugando irmãos. redondeza e o facultativo mais próximo ficava
56
a quilômetros de distância, na cidade. Ali vivi descer o morro, Alfredo cada vez mais fazia
solitário, mas era muito feliz. o meu trabalho e logo ganhou o apelido de
- Feiticeiro! O patrão o chama. Uma cobra Curandeiro. Desencarnei dormindo para
picou o sinhozinho! Era o capataz da fazenda acordar em espírito nos braços de Xing e outros
me chamando. Peguei minhas ervas e fomos amigos agradecidos. Chorei de felicidade, logo
para a casa-grande. Com a ajuda de Xing, compreendi que desencarnara. Como é bom
salvei o mocinho. sentir-se bendito, ver-se cercado por pessoas
- Graças a Deus, está bom agradecidas, querendo retribuir os benefícios.
- disse contente o senhor da fazenda. É na hora do desencarne, da morte do corpo,
- Quero recompensá-lo, Feiticeiro, é bom que recebemos a primeira colheita. Como
e útil a nós todos, salvou meu filho, poderá ficar Mark, fui maldito, o desespero acompanhou-
para sempre no morro e vou lhe dar alguns me juntamente com minhas ações. Agora,
presentes. Presenteou-me com alimentos e como Joaquim espalhei o bem e as obras
móveis, o excesso dei para meus doentes. novamente me acompanharam dando-me
Este fazendeiro era bom, não maltratava os alegrias e enorme bem-estar. Agradeci a Xing.
escravos e realmente nunca me incomodou. - Meu amigo lhe sou grato. Muito ajudou-
Um dia, trouxeram-me um garoto de oito anos me.
para que examinasse. Chamava-se Alfredo. - Joaquim, trabalhamos juntos, somos
Ao vê-lo, reconheci nele um espírito querido companheiros. Agora, voltarei a carne,
e senti muita emoção. reencarnarei na China. Volto com o firme
propósito de acertar. Quem faz, para si faz. O
116 bem que fiz com você fortaleceu-me.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / - Xing, não poderei ajudá-lo. Quero
Antônio Carlos continuar aqui, no Brasil. Quero ajudar Alfredo,
sabe que uma grande amizade nos une, a ele
Você é meu conhecido. Somos amigos! devo orientar.
Gosto de você, virá um dia trabalhar comigo.
Alfredo era sadio, estava somente com Reparando Erros
vermes, sarou logo, via-o raramente mas 117 i
estava sempre perguntando por ele. Os anos
passaram. Moço, Alfredo procurou-me. Seu - Compreendo. É aqui o seu lugar. Não
pai estava adoentado, estava se entristeça por não acompanhar-me, quem
ajuda é ajudado. Nada deve ser feito esperando
Página 61 recompensas. Ajudei a você ajudando a mim
Reparando Erros mesmo. Quem faz aprende e conhecimentos
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt adquiridos são nosso patrimônio que a traça
não rói, o tempo não envelhece. Despedimo-
muito mal. Não pudemos fazer nada, nos, Xing partiu contente com grande confiança
logo à noite desencarnou. Alfredo interessou- nele, e, de fato, voltou vitorioso, exerceu
se pelo que fazia e passou a visitar-me, passei a medicina com sabedoria, foi médico de
a ensinar-lhe o que sabia. Aprendia rápido, todos, ricos e pobres, atendia doentes e não
era inteligente e tinha enorme vontade de pessoas com distintivos de classe. Fiquei com
aprender. Alfredo, trabalhamos juntos, curando pessoas
- Venha morar comigo, Alfredo, aqui com ervas, ele doutrinava os espíritos que
aprenderá e me ajudará. Façamos um outro acompanhavam os encarnados e eu levava-os
cômodo que lhe servirá de quarto. Alfredo veio, para um posto de socorro. Anos se passaram,
combinávamos muito e passei a ser um pai a Alfredo desencarnou e pude desligá-lo e
ele. Ensinei-lhe tudo que sabia, dei-lhe meus orientá-lo.
livros e apontamentos e passou a atender - Vamos estudar agora, Joaquim, saber
comigo as pessoas. para ser útil. Quero ser médico novamente.
- vou deixar você em meu lugar. Um dia Alfredo estava entusiasmado, fomos a uma
irei embora para o mundo espiritual, você ficará colônia e estudamos medicina. Ele preparou-
aqui, ajudando estas pessoas simples e boas. se contente para reencarnar.
Já estava velho e cansado, não agüentava - Volta você, Alfredo, quero ficar mais um
57
pouco aqui. resta a dor para queimar o carma negativo.
- Tem medo do passado? Porque todos nós teremos que purificar nosso
- Nossos erros pertencem ao passado, não perispírito do carma negativo. Purificamos pelo
podemos mudar o passado. Devemos pensar amor ou pela dor. Somente, meu caro espírito,
o que estamos fazendo agora porque é o que lembro-o de que este amor é o sentimento
determinará nosso futuro, os acontecimentos puro e não o deturpado pela maioria dos
da nossa próxima encarnação. Não tenho homens. Vá, trabalhe, repare erros, qualquer
medo do passado, quero construir no bem trabalho no bem lévanos ao progresso. Boa
meu futuro. sorte! Abraçou-me sorrindo. Voltei confiante.
- Sinto-me forte, tenho vontade de provar Reencarnei e recebi o nome de Antônio. De
a mim mesmo que desta vez voltarei vitorioso. meus pais verdadeiros pouco recordava,
Volta ao meu lado, continuaremos juntos. moravam numa fazenda grande, só ficaram
- Não mereço ter uma família. Despedimo- na minha mente as feições de minha mãe
nos, Alfredo voltou para aquela região que Tereza, a mulata bonita. Meu pai fora capataz
vivemos. Agora era filho de um fazendeiro e na fazenda e minha mãe escrava, morreram
poderia estudar. Foi Maurício, ia sempre visitá- praticamente juntos. Órfãos, eu com quatro
lo, não era médium, não me via, mas sentia anos e minha irmã Francisca com dois anos,
os fluidos de carinho, um bem-estar agradável fomos levados para a cidade pela sinhá, a
quando estava perto dele. Estudou, formou-se proprietária da fazenda. Meu coração batia
e começou a clinicar. Casou e pensei então forte. Assustados, Francisca e eu, de mãos
em retornar. dadas, entramos na enorme casa, onde
- Um dia temos que provar a nós mesmos correndo vieram nos ver as três crianças
que de fato aprendemos, que dominamos da casa. Olhava tudo com interesse, era a
nossos maus instintos primeira vez que vinha a cidade e via uma casa
- disse a meu instrutor. tão grande, assustei-me quando ouvi:
- Quero ser órfão, lutar pela vida, aprender - Está decidido, morarão conosco e serão
nossos filhos!
Página 62 - disse a sinhá Maria das Graças.
Reparando Erros - Deverão chamar-me de mãe e ao dr.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt Maurício de pai, deverão ter por nós respeito
a 118 e obediência. Até se acostumarem, dormirão
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / juntos com Ana. Esta é Ana mostrou uma
Antônio Carlos senhora negra -, a babá de vocês, cuidará
de tudo, qualquer coisa que quiserem digam
dar valor na família, esta instituição a ela. A sinhá nos levou a um bonito quarto
tão linda. Reencarnarei entre os colonos da com três camas e saiu deixando-nos com Ana.
fazenda da esposa de Maurício, confio que Francisca, assustada, pôs-se a chorar.
ele me ajudará. Recebi as últimas orientações - Quero minha mãe! Quero ir para minha
dele e indaguei-o: casa!
- Será que já quitei todos os meus - Não chore, pequenina
erros? Não deve se preocupar com isso, - Ana consolou-a.
aquele que conhece a verdade, que ama, - Seu pai morreu em um acidente e sua
recebe a oportunidade de reparar seus erros mãe também morreu. Foram para o
pelo trabalho edificante. Sempre temos
oportunidades de reparar os erros pelo amor, 120
pelo trabalho, de conhecer a verdade e de Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
nos libertarmos do carma. A médiuns na Terra, Antônio Carlos
cuja mediunidade é uma oportunidade que
tanto pode ser para reparar erros como para Céu e de lá os protegerão. Sua casa
progredir espiritualmente E tantos julgam agora é aqui, gostará, terá objetos lindos,
que estão fazendo o bem somente a outros, roupas novas, brinquedos, eu os protegerei,
esquecendo o bem enorme que fazem a si cuidarei de vocês.
mesmos. Entretanto, como aconteceu a você - Por que mamãe foi só com o papai? Por
e tantos outros, desprezando a oportunidade, que não me levou junto?
58
- quis saber Francisca. Segurei as motivos em Francisca, avançava nele e
lágrimas, também queria minha mãe, sentia sempre lhe batia, embora sendo mais novo,
que deveria ser como um homenzinho, como era mais forte. Então, Maria das Graças
dizia meu pai, e não chorar. Olhei para Ana interferia. Para ela, Jonas sempre tinha razão
e esperei a resposta, porém a bondosa e era eu a ir para o castigo, diante do seu olhar
negra não soube responder a indagação de cínico. Ana, às vezes, tentava nos defender,
Francisca. mas era sempre mandada a calar a boca.
- Não quer doce de coco? Tem também Margarida era chata, fez sempre de Francisca
doce de leite e de abóbora. Não quer? Venham, sua empregada, era chorona e tudo tinha que
vamos para a copa e poderão comer o que ser como ela queria. José Hermídio era bom,
quiserem. Doce quase sempre é um santo amigo e também estava sempre brigando com
esquecimento as dores de crianças. Logo nos Jonas. Tivemos bons professores, adorava
acostumamos com a nova vida, ganhamos estudar e meu maior e melhor passeio era ir
brinquedos, roupas, nada de material nos ao hospital ver meu pai trabalhar. Meu sonho
faltava. Era Ana quem cuidava de nós. Logo, era ser médico e quis estudar medicina, Jonas
Francisca passou a dormir no quarto junto também. José Hermídio amava a fazenda
com Margarida e eu com José Hermídio de e mocinho foi trabalhar no campo. Maurício
quem me tornei muito amigo. De meus pais alegrou-se por ver dois filhos querendo ser
verdadeiros só soube que meu pai morreu de médicos. Jonas, estando um ano na frente
acidente e minha mãe por doença. Minha nova nos estudos, foi o primeiro a ir a capital para
mãe não gostava de falar sobre o assunto e estudar. Aquele ano foi de tranqüilidade para
como éramos mim, sem o Jonas por perto. Francisca estava
noiva de um bom rapaz, Margarida também
Página 63 namorava, casaram juntas numa bonita
Reparando Erros festa. Fiquei feliz por Francisca, pois Mario,
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt seu esposo, era bom, fazendeiro, de boa
família e a amava muito, foram felizes. José
pequenos as recordações ficaram Hermídio casou-se também e foi morar na
vagas. Adulto, quis saber deles e não consegui fazenda, passando a administrá-la. Chegou a
saber nada. Maria das Graças havia ordenado minha vez de ir a capital estudar. Meu pai nos
a todos para que não nos dissessem a acompanhou. Emocionei-me ao ver a cidade
verdade. Depois, grato aos meus pais adotivos, grande e fiquei encantado com o local em que
relembrava dos verdadeiros só nas preces. ia estudar. Maurício deixou-nos instalados,
Meu novo pai, Maurício, logo que o vi, amei-o. Jonas e eu dividiríamos o mesmo quarto,
Admirava-o e queria ser como ele, médico e numa boa pensão. Para mim, estudar era
bom. Mas ele trabalhava muito e pouco nos maravilhoso e o fazia com carinho e interesse.
via. Maria das Graças dava-nos de tudo, Jonas divertia-se muito, sempre as voltas com
igualmente para todos, mas carinho era mulheres, más companhias e brigas. Meu pai
somente para os seus três filhos, vivia com eles mandava-nos mesadas iguais, mas Jonas
no colo, abraçando-os. Nossa mãe foi Ana, ela ficava com a minha parte. “Você não necessita,
que nos deu carinho e amor, sempre estava Antônio, está sempre aqui fechado estudando.
a nos acalentar e mimar. Jonas, o filho mais Já tem muito, meus pais pagam-lhe o estudo,
velho, era cínico, mau e briguento, mandava a pensão. Bastardo estudando medicina é raro
em tudo e todos e gostava de humilhar-nos. de se ver. Eu, como filho legítimo, devo ter
“Aqui estão de caridade, o filho verdadeiro mais. Fico com sua parte, sei como gastar!”
sou eu, obedeçam-me!” Francisca era meiga, Desde pequeno, ouvia Jonas me chamar
bondosa, nunca discutia, fazia tudo para evitar assim, bastardo. Evitava sair com ele, até
brigas. Procurando ser como ela, ouvia sem mesmo ficar perto dele, mas ali, desfrutando
nada responder muitos desaforos e ofensas. o mesmo quarto, não foi fácil. Não reagia,
Mas, quando ele batia sem procurava não
122
Reparando Erros Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
121 Antônio Carlos

59
ligar e se me ofendia não demonstrava, com cabelos longos, castanhos claros, olhos
tudo fiz para não brigar com ele. Jonas dava verdes grandes,
sempre um jeito de tirar notas suficientes para
ser aprovado. Muitas vezes, fiz pesquisas, Reparando Erros
trabalhos, organizei cadernos para ele, era 123
como seu empregado, cuidava de tudo dele,
das roupas, do quarto. Formou-se e regressou quando sorria, duas fundas covinhas
a nossa cidade, aquele ano foi de sossego para formavam em seu rosto, trabalhava na
mim, tive dinheiro suficiente para meus Farmácia da praça. Começamos a namorar,
ia sempre que era possível buscála após
Página 64 seu trabalho e a levava para casa. Seus
Reparando Erros pais gostavam de mim, eram pessoas boas,
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt simples e educadas. Comecei a interessar-me
realmente por ela, acabei por amá-la. Ao saber,
gastos e gostos. Formei-me e, como minha mãe teve ataques nervosos.
na formatura de Jonas, Maurício, Maria das
Graças, Francisca, Mario, Margarida e o - Antônio, termina já com esta moça!
esposo vieram para as festas. Emocionado, Uma sujeitinha qualquer! Tantas jovens de boa
fui o melhor aluno da turma, acabei chorando família interessadas em você, e namorando
ao receber o diploma. De volta a nossa cidade, uma moça simples, sem estudos, sem nome.
encantei-me com o hospital novo. Jonas já se O clima em casa não era dos melhores, meu
indispusera com o pai, e orgulhoso começava a pai foi chamado a interferir, conversamos e ele
selecionar seus clientes. Passei a trabalhar no deu sua permissão. Esperava que minha mãe
hospital, ajudando meu pai com seus pobres e aceitasse Inês para marcar nosso casamento.
interessei-me pelo Sanatório e seus doentes. Passei a ficar mais tempo no hospital e no
Vi o tanto que meu pai era dedicado, bom Sanatório, evitando os comentários de minha
médico e amoroso com os doentes. Veio a mãe. Já fazia onze meses que namorávamos.
tona nossa sincera amizade. Combinávamos Naquela tarde, ao ir apanhá-la na farmácia, não
muito, tínhamos o mesmo gosto, interesse, a encontrei e seu patrão veio ao meu encontro
aprendemos muito um com o outro. Ele me com sorriso cínico e entregou-me um bilhete.
ensinou o que os anos de experiência lhe Agradeci e saí, procurei um banco no jardim
ensinaram e eu aprendera como novidades mais afastado, sentei para ler. Inês tinha pouco
e descobertas recentes. Gostava mesmo estudo, sua letra era ruim, mas dava para
era de obstetrícia. Ajudar crianças a vir ao entender perfeitamente sua despedida. Meu
mundo, realizava-me. Nesta época, quase caro Antônio Parto com o meu verdadeiro amor.
todos os partos eram feitos pelas parteiras em Não tenha raiva de mim. Não amo você, mas
suas próprias casas. Médico era para casos sim a ele. Adeus, Inês Li e reli muitas vezes,
graves e era para estes que eu era chamado depois rasguei e atirei os pedacinhos longe. As
a fazer e ajudava com bom ânimo, fazendo palavras do bilhete dançavam na minha mente,
as senhoras procurar-me mais, querendo- tonteando-me. Decepcionado, humilhado sofri
me ao seu lado nestes momentos em que se o seu abandono. Ali fiquei alguns minutos que
tornavam mães. Comecei a ganhar dinheiro, me pareceram horas. “Uma decepção amorosa
embora atendesse de bom grado a todas não deveria abater médicos” pensei. “Acho que
as mulheres, ricas ou pobres. Em casa com está na hora de voltar ao hospital.” Procurei
nossos pais estávamos somente Jonas e distrair-me conversando com os doentes e
eu, e era lá que nos encontrávamos, pouco demorei bastante no hospital, regressando em
falávamos, assim não discutíamos mais. Jonas casa tarde da noite.
continuava namorador, farrista, deixando meus
pais adotivos preocupados e eles pensavam Página 65
em nos ver casados. Nesta época, conheci Reparando Erros
Inês, moça de família pobre, seu pai era Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
empregado em uma carpintaria, tinha dois
irmãos carpinteiros também, já casados. Inês 124
era bonita, de estatura pequena, graciosa, Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
60
Antônio Carlos 125

“Logo vão descobrir e tomara que seu amor terminara e que viu que ela
mamãe não diga que me avisou” não era para ele. Pediu perdão aos pais e
- falei baixinho. Ao ver luzes em casa, prometeu não dar mais desgostos. Em casa,
conversas na sala, estranhei e rumei para lá, houve muitas discussões. Maurício queria que
este fato não era comum, em casa, deveria Jonas casasse com Inês, ele não queria e nem
ter acontecido algo, preocupei-me. Minha mãe mamãe, que se apavorava só de pensar em
chorava e papai tentava acalmála. Aproximei- casar o filho com ela.
me pensando em ajudá-los. - Casar com esta oferecida, sem moral,
- Antônio, meu querido! Sabe o que Jonas que foge, nunca! Jonas voltou para casa.
fez? Não conversávamos, evitava encontrar com
- indagou minha mãe. Com minha ele, estava magoado, mas não tinha raiva
negativa com a cabeça, continuou: Fugiu com dele. Senti dó de Inês, sua aventura acabara
sua namorada! Senti o chão rodar, então era mal, soube que voltou para a casa da mãe.
Jonas o amado de Inês, o belo Jonas, louro de Aproveitando que Jonas estava obediente,
olhos verdes, meu irmão! Sentei numa cadeira mamãe achou melhor casá-lo e logo. Escolhida
e mamãe continuou: uma moça de família importante, Jonas ficou
- Peralta! Cínico! Não vou perdoá-lo! noivo e marcaram o casamento para breve.
Deserdo-o, não aceito-o mais em casa. Que “O casamento trará responsabilidades. Jonas
tem naquela menina? Primeiro você, agora será bom marido”
Jonas. Mas se ele casar com ela não quero - dizia Maria das Graças. Não vi Inês, mas,
vê-lo mais, nem morto! Nada disse, não me sempre um e outro comentavam o assunto e
atrevi. Tomei o chá que bondosamente meu fiquei sabendo que ela e a mãe para sobreviver
pai me serviu, depois fui para meu quarto. estavam fazendo doces para vender. Sem o
Pensei em procurá-los e dizer a eles desaforos, salário do esposo, o dinheiro era pouco, tendo
mas meditei e entendi que era melhor não que mudar até de casa para uma bem mais
fazer nada. “Talvez Jonas a ame realmente, simples e Inês estava grávida. Com uma bonita
e no bilhete Inês afirma o amar. Meu irmão festa, Jonas casou e meus pais esperavam
sabe conquistar as mulheres com seu modo que realmente se tomasse responsável. Fiquei
agradável, seu jeito cínico. O fato mesmo é somente eu em casa e solteiro, embora os
que não sou amado e devo esquecer” sobrinhos, já muitos, estavam sempre em
- balbuciei baixinho. Acabei dormindo e casa em grande algazarra. Um dia, ao sair do
levantei mais tarde no dia seguinte, disposto hospital, encontrei d. Efigênia, a mãe de Inês,
a não tocar mais neste assunto. Minha mãe que veio
sentiu muito realmente, acabou acamada uma
semana, após, o pai de Inês veio a falecer Página 66
de um ataque do coração, certamente pelo Reparando Erros
desgosto com o procedimento da filha. Para Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
esquecer, passei a trabalhar mais. Jonas não
mandara notícias, mas Maurício veio a saber aflita ao meu encontro.
que estavam na capital, na grande São Paulo. - Dr. Antônio, por favor! Inês está mal, o
Meu pai tudo fazia para agradar nenê que não nasce, a parteira não sabe mais
- me, parecia pedir desculpas pelo o que fazer. Ela não quer vir ao hospital. Por
procedimento do filho. Minha mãe também ficou favor, filho, não se negue a vê-la. Temo que
mais amável, tentando fazer que namorasse morra. Hesitei, já fazia nove meses que fugira,
uma de suas escolhidas para nora. Não tinha nove meses que não a via. Relutei, pensei em
vontade e nem interesse por ninguém. O pedir ao meu pai, mas d. Efigênia implorava,
tempo passava lentamente, depois de dois seus olhos lacrimosos olhavam-me pedindo
meses, apareceu Jonas em casa, ar humilde compaixão, confiava em mim, não consegui
e arrependido. Explicou que abandonou Inês, negar e acompanhei-a. A casa delas, afastada
que do centro, numa vila, era de dois cômodos,
tudo muito pobre, mas limpo. Quando vi Inês,
Reparando Erros senti doer por dentro, senti meu coração bater
61
forte, estava num leito pequeno, pálida, com Reparando Erros
olheiras, percebi logo que se encontrava fraca, 127
desnutrida e que sofria muito. Ao me ver,
ensaiou um sorriso. cochichos, agüentei firme, era o
abandonado que aceitava a ex-namorada
126 com filho do outro. O tempo passou e as
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / fofocas também. Combinávamos muito e os
Antônio Carlos filhos foram nascendo, Tereza, José Maurício
e Ana. Para mim, os quatro eram meus, amava
- Antônio ajuda-me! É como seu pai, Juvenal como os outros e ele continuava
bom... Triste fiquei em vê-la naquele estado, parecidíssimo com meu pai, nunca fiz diferença
percebi que não a esquecera, amava-a muito e ele me amou muito, eram todos iguais para
e fui examiná-la, iria fazer tudo para ajudá- mim. Raríssimas vezes conversei com Jonas
la. Seu parto não foi fácil, mas sem maiores e ele nunca quis saber do filho. Nossa caçula
problemas, nasceu um garoto miúdo e fraco. estava com um ano quando notei que Inês
- Vai chamar-se Juvenal, como meu pai. estava diferente. “Talvez”
Agradeceram-me. Inês, agora mais refeita, - pensei queira casar. Meu pai deve ter
olhou-me sorrindo. razão, temos filhos, devo casar, mas, não sei...”
- Obrigada, Antônio, é um santo. Desculpe- Ana estava com dezessete meses, quando d.
me por incomodá-lo, mas só pensava em você, Efigênia mandou chamar-me no hospital. Vim
sabia que me ajudaria. Vi que nem enxoval a aflito, prevendo um acontecimento ruim.
criança tinha e deveria faltar até alimentos para - Antônio, Inês desapareceu. Já procurei-a
elas. Ao sair dei dinheiro a d. Efigênia, que não por toda parte
queria aceitar. - disse minha sogra aflita ao ver-me.
- É para meu sobrinho. Aceite, d. Efigênia,
compre roupas para ele e alimentos para Inês. Página 67
- Mas é muito! Por Deus, como o senhor é Reparando Erros
bom! A lembrança de Inês sofrida acompanhou- Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
me, querendo vê-los voltei a visitá-los. Sendo
bem recebido, passei a ir sempre vê-los, - Sumiu?! Como? Conte-me tudo d.
ajudando-as nas despesas. Fui padrinho Efigênia, não esconda nada.
com d. Efigênia de Juvenal que estava forte - Ao chamá-la para o almoço, não a
e muito bonito, parecendo muito com o meu encontrei. Sumiu e com ela as malas e suas
pai. O garoto era ruivo, lábios grandes, sorriso melhores roupas. D. Manuela, nossa vizinha,
aberto, olhos verdes e gostava muito de mim disse que...
e eu dele. Voltei a namorar Inês. Pensei bem, - Vamos diga! Que d. Manuela viu?
como pensei. Inês já havia me abandonado - Que partiu, que tomou uma carruagem
uma vez. Parecia mudada, sofreu muito e dizia na esquina. Que um homem a esperava e que
amar-me, era mãe carinhosa e cuidadosa. Não parecia ser o dr. Jonas. Minha sogra começou
era fácil, fui atingido moralmente com sua fuga, a chorar, as crianças vieram correndo. Senti
mas amava-a e resolvi esquecer tudo e fazer como se o mundo desabasse sobre a minha
o que meu coração queria, ficar com ela. Falei cabeça.
com meu pai, este escutoume pacientemente. - Papai, é verdade que mamãe foi
- É isto que quer filho? Case com ela! embora? É Fiquei como anestesiado, o afeto
- Casar não! vou morar com ela, se der paternal chamou-me à razão. Acalmei meus
certo, no futuro, caso. Meu pai falou com filhos e voltei ao trabalho. Dois dias depois, d.
mamãe que, como esperava, fez escândalo, Efigênia achou um bilhete de Inês.
gritou e ameaçou. Saí de casa triste, mas - Deve ter caído no chão, achei quando
resolvido. Por anos não voltei a casa deles, fui limpar o quarto. Abri o bilhete e li:
mas mamãe acabou por perdoar-me, mas
nunca aceitou Inês. Comprei uma boa casa 128
e fomos os quatro morar nela, d. Efigênia, Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Juvenal, Inês e eu. Os olhares zombeteiros, os Antônio Carlos

62
Mamãe Parto com Jonas. Cuide do - Sei disto. Inês ao partir, deixou um
Antônio e das crianças para mim. Abençoe- bilhete contando este pormenor.
me, Inês Novamente as palavras do bilhete - Você sabia
dançavam diante dos meus olhos. - assustou-se meu pai
- D. Efigênia, Inês foi embora com Jonas! - e não disse nada!
Mas vi-o ainda hoje no hospital! - Não queria chateá-los. Não se preocupe,
- Pobre filha! Acho, Antônio, que ele a mamãe, não vou me tornar assassino, eles
levou como amante, não abandonou a esposa. não merecem tanto. No conceito da maioria,
Tentei acalmar-me, pensei até em procurar deveria matá-los para ter honra. Porém, honra
Jonas, tive vontade de matá-lo. Não, assassino para mim é outra coisa. Honra é respeitar a
não! Tinha ânsia de sarar pessoas e não todos, é ser honesto e trabalhador. Não vou
matá-las. Tinha filhos para criar e ele também. desgraçar mais ainda a vida de meus filhos e
Levara Inês como amante, ela também tinha nem vou deixar os filhos
sido minha. Embora fosse tida e tratada como
esposa. Entre Jonas e eu existiam meus pais Página 68
adotivos que eram dele, os verdadeiros. “Não! Reparando Erros
Não devo falar com ele, ela fugiu porque quis. Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Sou pai e sei o que é criar filhos. Maria das
Graças e Maurício criaram-me, devo ser grato de Jonas sem pai. Ele é um canalha,
a eles, se estudei, devo a eles. O melhor que mas Inês é pior. Não farei nada, não poderia
faço é fingir que nada sei. Depois, lembrei de dar aos senhores um desgosto, sou-lhes grato
um texto que lera tempos atrás: Não devemos por terem me criado e não vou matar um de
usar do poder da palavra para fazer o mal, seus filhos. Mas como souberam disto?
para o desentendimento. O poder vibratório - Obrigada, Antônio
da linguagem, poderá ser sabiamente usado - disse mamãe.
para liberar nossa vida das dificuldades’.” - Foi Letícia quem contou para nós. Ela
Falei com d. Efigênia e queimamos o bilhete. descobriu Jonas com Inês na casa de campo,
Os comentários foram muitos, embora meus aquela casa que comprou recentemente.
filhos fossem pequenos eles os escutavam. Jonas voltou com Letícia para casa e ela
D. Efigênia e eu os consolávamos dizendo o perdoou. Só nós é que sabemos e tudo
que Inês partira e que deveriam esquecê-la devemos fazer para abafar o escândalo.
e que eles ficariam sempre comigo e com a Fizemos silêncio, pensei em Inês, criatura
avó. Novamente agüentei os risos irônicos, os imprudente, novamente construiu a casa sobre
cochiches e os olhares zombeteiros. Procurei a areia. Mas, não queria pensar nela. Desta
ser firme e fingir que não os notara para vez, saiu da minha vida para sempre.
continuar a trabalhar. Meu pai se preocupou - Quero que saiba, Antônio
comigo, mas não queria tocar no assunto, - disse meu pai -, que condenamos o
não queria que soubesse da verdade, não proceder de Jonas. Briguei com ele e não
queria que sofresse. Dias passaram. Estava quero mais vê-lo. Você não sofre sozinho. Um
no hospital e fui chamado para ir na homem honesto, de consciência tranqüila e
honrado sofre sem se manchar, aquele que
Reparando Erros erra, sofrerá mais. Se sofre pela traição da
129 companheira, sofro pela traição de um filho.
Abraçou-me, choramos juntos. Prometi a
casa de meus pais com urgência. mim mesmo que seriam as últimas lágrimas
Temendo que um dos dois estivesse doente, por Inês. Aliviada, minha mãe adotiva, pela
fui correndo. Meus pais estavam na sala e primeira vez, me abraçou e me beijou.
mamãe, ao me ver, disse chorando:
- Antônio, meu filho, não mate seu irmão! 130
Maria das Graças olhava-me ansiosa, enfrentei Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
seu olhar, ela tinha razão, Inês não era digna. Antônio Carlos
Ela continuou a falar com voz baixa.
- Jonas fugiu com Inês, ou melhor, - Abençôo filho, será feliz! Mais aliviado
levou-a de sua casa. fui para casa, sentia-me forte para enfrentar a
63
situação. Com coragem, agüentei os maldosos a roupa do corpo, não deixei ninguém
fofoqueiros não lhes dando atenção, falavam
de tudo e todos, de mim, de Jonas, de Inês, Página 69
foram comentários por meses. Mas, com o Reparando Erros
tempo, tudo passa. Assunto velho perdeu Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
interesse por outros novos. As crianças já não
perguntavam mais da mãe. Resolvi continuar vê-la. Perdoa-me, não consegui enxotá-
na mesma casa com elas e d. Efigênia que la.
passou a ser mãe e avó delas. D. Efigênia era - Bem... Está bem, não chore.
boníssima, trabalhadeira, paciente, meus filhos - Vai vê-la? Vai ajudá-la? vou. Vamos
amavam-na e eu também a amava como se vê-la.
fosse minha mãe. Ela era muito grata a mim,
nunca lhe deixava faltar nada, como ajudava 132
também seus outros filhos, os irmãos de Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Inês, mesmo depois de sua fuga, que eram Antônio Carlos
pessoas boas e gratas. Tudo foi voltando ao
normal, ficava todo meu tempo disponível com Atravessamos a casa, saímos no quintal.
meus filhos que cresciam fortes e bonitos. Meu coração disparou, as lembranças vieram
Maurício ia sempre vê-los e, após a fuga de como um filme na minha mente, senti raiva
Inês, minha mãe também passou a vê-los e a pelas muitas humilhações e sofrimentos que
pedir que os levassem em sua casa. Mas eles Inês me causou. Acompanhei minha sogra que
não gostavam muito, preferindo sempre estar abriu a porta do nosso cômodo de despejo
com a avó Efigênia. Encontrava raramente no quintal e defrontei-me com uma Inês
com Jonas, que parecia fugir de mim, quando desconhecida, prostrada no leito. Nada tinha
nos encontrávamos, cumprimentávamo-nos mais de bonita, magérrima, pálida, ofegante,
friamente. Amava cada vez mais meu trabalho, respirava com dificuldades, não percebeu
embora meu sonho era, fazer pesquisas, nossa presença.
trabalhar com outros estudiosos, descobrindo - A senhora tem razão, d. Efigênia,
curas para muitas doenças. Vencendo a mim Inês não está bem. Busque minha maleta
mesmo Quatro anos passaram, raramente e a caixa de remédios. D. Efigênia saiu
lembrava de Inês. Até que um dia, ao voltar rápido e examinei-a, não precisei de muito
para casa ao anoitecer, d. Efigênia esperava- para constatar que a tuberculose em estado
me no portão. Ao vê-la, percebi que estava avançado lhe tiraria a vida física em pouco
aflita e foi logo me dizendo: tempo. A tuberculose era fatal nesta época e
- Antônio... Soube que Inês está mal, todos temiam seu contágio. Dei-lhe remédios
doente, abandonada, uma morta-viva de fazer para suavizar as dores e para abaixar a febre.
pena. Piedade, Antônio, reconheço os erros Inês falava baixinho, dizia delirando meu nome,
de minha filha, mas ela é mãe de seus filhos. chamava a mãe e os filhos. D. Efigênia ficou
Você não pode ajudá-la? olhando-me nervosa, torcendo o avental com
- Mãe dos meus filhos é a senhora. D. as mãos tremulas, implorando compaixão para
Efigênia, a senhora é livre, nunca a impedi de a filha com seus olhos assustados e tristes.
ajudar Inês, ajude-a como quiser, não precisa Minha sogra tinha razão, não podia deixá-la
nem me dizer. Mas me deixa fora disso, morrer abandonada.
para mim Inês morreu no dia que fugiu. D. - D. Efigênia, Inês está mal. Tem
Efigênia olhou-me triste e começou a chorar, tuberculose em estado adiantado, não sei
enxugando as lágrimas no avental. Comovi- como conseguiu chegar aqui. Não podemos
me, não gostava de ver ninguém sofrendo. ficar com ela aqui em casa, o contágio, as
- Por favor, d. Efigênia, não chore. Será crianças. Levarei-a para o hospital da cidade
que é tão grave? A senhora sabe onde ela vizinha, lá eles tem um bom isolamento.
está? Pagarei todas as despesas, sua filha não
- No quarto do quintal morrerá abandonada.
- respondeu aflita, mostrando com a - Obrigada, meu filho.
cabeça e continuou apressada: - Ajude-me, vamos acomodá-la na
- Chegou aqui ardendo em febre, só com carruagem, deitaremo-la no banco. Partirei
64
logo após me alimentar. Ao sair, queime esta Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
cama e colchão. Ninguém deve saber que
Inês esteve aqui, o falatório recomeçaria e alimentei rancores. Nossos filhos são
prejudicaria as crianças. Não estava disposto felizes.
a ser criticado novamente, ajudando quem - Acredito, tendo você por pai e mamãe
tanto me atraiçoara. Não é fácil ser alvo de para cuidar deles, só podem ser felizes.
zombaria e preferia que tudo ficasse em Antônio, perdoa-me! Por favor não me negue
segredo. A distância entre as duas cidades seu perdão. Hesitei em procurá-los, mas sem
não era grande, fui devagar. Inês delirava dinheiro, sem lar, sem abrigo, passando fome,
falando nossos nomes, pedindo a minha frio e doente, só pensava em vocês. Voltei para
ajuda. Apiedei-me, mas não a amava mais. No lhes dar trabalho.
hospital, ajudei a medicá-la e a acomodá-la, - Há muito tempo a perdoei! Olhando
depois voltei para casa. Cheguei quando já Inês moribunda, entendi que a perdoara de
amanhecia, tomei um banho coração, nenhuma mágoa tinha dela, nem
dela, nem de Jonas. Inês chorou e narrou sua
Reparando Erros história com dificuldades.
133 - Antônio, você é bom, sempre o amei.
Descobri tarde demais... Sou culpada, muito
e fui trabalhar. Meu pai, que me conhecia culpada, porém, Jonas foi mais. Assediou-me
bem, notou que estava diferente e acabei por para depois abandonar-me. Quando ele me
lhe contar sobre Inês. deixou na primeira vez, foi por meu filho que
- Filho, orgulho-me de você! Nesta vida é trazia no ventre que tive forças para continuar
preferível mil vezes perdoar que fazer algo que vivendo. Senti ódio quando ele casou.
nos levará a pedir perdão. Faça tudo por esta
moça e que Deus a ajude, deve estar sofrendo 134
muito. Duas semanas depois, d. Efigênia e Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
eu fomos visitá-la, deixando as crianças com Antônio Carlos
a empregada, que disse a elas que íamos
visitar uma tia adoentada. Aparentemente, Mamãe ajudou-me e veio Juvenal,
Inês parecia melhor. Não estava febril e os depois você, estava feliz... Novamente Jonas
medicamentos e a boa alimentação deram-lhe voltou a perturbar-me, começou mandando
uma aparência melhor. Sorriu ao nos ver. bilhetes, cartas apaixonadas, presentes,
- Mamãe! Antônio! Que alegria em vê-los! procurei resistir, mas... a paixão dominou-me.
Sabia que só vocês me ajudariam, embora não Jonas reconquistou-me dizendo ser infeliz com
mereça. Como estão as crianças? D. Efigênia a esposa e que me amava. Encontramo-nos e
falou demoradamente sobre eles, Inês ouviu planejamos fugir e fui com ele para sua casa
encantada. de campo. Inês parou ofegante, sua mãe deu-
- Poderei vê-los? lhe água. Enxugou as faces pálidas e magras,
- indagou, olhando para mim. ia continuar.
- Não creio, Inês. Sofremos muito quando - Chega Inês, não necessitamos saber de
você partiu. Dissemos a eles que você viajou. mais nada. Não estamos aqui para condená-la,
Os comentários maldosos foram muitos, compreendemos
perturbando-as. Agora tudo voltou ao normal, - disse-lhe.
elas esqueceram. Se voltarem a vê-la, sofrerão - Por favor, não se neguem a me ouvir.
novamente. Piedade, me escutem. Necessito dizer tudo.
- Entendo, você tem razão. Já causei Sentamos próximo a ela e a escutamos
muito sofrimento. Por favor, diga a elas, emocionados.
quando eu morrer, que parti deste mundo - Vivi como rainha por pouco tempo.
pensando nelas e que as amei demais. Dirá? Até que Letícia nos surpreendeu juntos. Vi,
- Sim, direi que você os amava. Nunca, pasmada, o canalha por quem troquei meu lar
Inês, falei mal de você a eles, nunca e filhos, defender-se acusando-me. Aos gritos,
disse que era eu a importuná-lo e a persegui-
Página 70 lo, que eu não era nada para ele, que amava
Reparando Erros Letícia e me tocou de sua casa, como se faz a
65
um cachorro que importuna. Peguei algumas falecera. Somente eu fui vê-la, d.
roupas e parti chorando, vim para esta cidade, Efigênia preferiu não ir. Foi um enterro simples,
depois daqui para outra mais distante. Queria somente o coveiro e eu. Em casa, reuni as
distância de todos e de tudo que conhecia. crianças e dei a notícia de modo simples.
Comecei a perceber meu erro... Meu dinheiro
era pouco, acabou logo, não era fácil achar - Hoje, vim a saber que Inês, a mãe de
emprego, tentei... Acabei prostituindo-me... vocês, morreu. Oremos por ela, que amava
Sofri muito... O remorso doía, dói, a vergonha... a todos nós. Oramos, ninguém perguntou
A saudade de vocês... Há dois anos, tive um nada ou quis saber mais detalhes. Além de d.
filho sem pai, dei-o para uma família criá-lo. Efigênia, só Maurício soube do que ocorreu.
Fiquei doente, enxotaram-me do meretrício, Paguei todo o tratamento, o enterro, mas e o
abandonada não quis morrer sem o perdão filho que ela teve? Preocupei-me, era irmão
de vocês... de meus filhos, neto de d. Efigênia. Resolvi
- Oh, filha! Não se afobe assim, te procurá-lo, se não estivesse bem trá-lo-ia
perdoamos. Inês estava ofegante pelo esforço, e criaria como meu. Com licença de seis
mas tranqüila. Falar tudo fez bem a ela, sua dias, afastei-me do trabalho, viajei para a
mãe beijou-a na testa e eu lhe estendi a mão. cidade citada por Inês. Não foi difícil saber
- Antônio, o remorso me corrói mais que dele. Procurei informações no meretrício e,
a doença. Obrigada por ter me perdoado. encontrei Antônio, assim se chamava seu filho,
- É mais fácil perdoar que pedir perdão feliz, adotado por uma boa família sem filhos.
- disse, lembrando as palavras de Voltei e tranqüilizei minha sogra e guardamos
Maurício. o segredo. Veio trabalhar conosco, no hospital,
- Obrigada, que Deus os ilumine e um médico recém formado, Lauro, que era
abençoe. A visita já tinha sido longa, despedimo- bom e caridoso, e se interessou pelo trabalho
nos e voltamos para casa, pensativos e do meu pai e passou a nos ajudar, a clinicar
entristecidos. Inês muito errou, pagou caro os pobres com dedicação. Estava clinicando
pelo seu erro, senti muita dó dela. quando me deram a notícia da morte de
Reparando Erros Maurício.
135
136
- Antônio Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
- disse d. Efigênia -, gosto de você mais do Antônio Carlos
que de meus filhos. Nunca devi tanta gratidão
a uma pessoa, como a você. Obrigada. Você é - Dr. Antônio, seu pai faleceu. Morreu de
realmente como seu pai! Ser comparado com repente! Foi para mim uma grande perda, de
meu pai sempre me encheu de orgulho. um pai, amigo, companheiro e irmão. Chorei,
- Não me agradeça, se sou bom a sabia que me faria muita falta. A cidade enlutou,
senhora é mais. Não me deve nada, eu sim os pobres choravam. No enterro, senti que sua
que lhe devo. Que seria de mim e das crianças obra me pertencia. Lauro ficou com a nossa
sem a senhora? parte, de Maurício e a minha, no hospital, eu
- Sou avó delas e as amo. continuei como obstetra e substitui meu pai
- Esqueçamos este assunto. Nenhum no Sanatório. O Sanatório continuou como
nem outro deve nada. Companheiros seguem sempre, procurei com dedicação e carinho
juntos ajudando-se mutuamente, somos atender a todos como meu pai sempre fez. Um
amigos. Visitamo-la por mais duas vezes. Inês surto de febre tifo assustou a cidade. Muitos
piorava, sorria ao nos ver, falando pouco, mas doentes apareceram exigindo cuidados e
estava tranqüila e resignada. Quarenta e cinco muito trabalho. Com medo do contágio alguns
dias após ter sido internada vieram nos dar a médicos fugiram, tiraram férias, viajaram.
notícia que Lauro e eu nos desdobrávamos para atender
nossos clientes pobres e desnutridos que
Página 71 foram os mais atingidos. Trabalhei a noite toda,
Reparando Erros não descansava há dezesseis horas, quando
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt senti arrepios e dores pelo corpo, notei que
estava febril. Lauro observou-me.
66
para um passeio. Era muito mais jovem
- Antônio, contraiu a doença, deite-se já que eu e tudo fez para agradar-me. Depois
e descanse. Não tinha forças para contradizê- de saírmos algumas vezes, começamos a
lo, dormi logo ao deitarme. Senti-me envolto namorar. Levei-a em casa e tudo fez para
por uma nuvem branca e vi meu pai a me conquistar meus filhos, mas estes a olharam
medicar. Dias lutei com a doença que foi me desconfiados. Juvenal disse:
abandonando. Logo, me senti curado. Lauro - Papai, se casar, deixa-nos com a vovó.
disse-me, sorrindo: - Não tenho intenção de separá-los.
- Salve, Antônio! Você está curado, reagiu Minha sogra não disse nada, mas senti-a
como ninguém a medicação, agora só mais um apreensiva, temendo que a separasse dos
pouco de descanso em casa. netos. Achei uma solução que contentou a
- E o sanatório? Meus doentes? todos. Comprei a casa ao lado da nossa e
- Os doentes daqui, dei conta, só Deus montei-a satisfazendo o gosto de Cleonice. Ia
sabe como! Não tive tempo de ir ao Sanatório, casar, morar nela, deixando as crianças com d.
mas os empregados vêm saber de você e Efigênia. Ficaríamos perto e separados, todos
trazem notícias, tudo bem por lá. Antônio, aprovaram a idéia. Não amava Cleonice, porém
nos seus delírios de febre, falava com o dr. me parecia ser a noiva ideal, doce, carinhosa,
Maurício, parecia que o nosso benfeitor estava concordava com tudo, dizia que me amava.
por aqui cuidando de você. Se isto é possível, Prometeu não interferir na vida dos meus
deve a ele sua melhora rápida. filhos. Numa cerimônia simples, casamos.
- Acho que, quem foi bom aqui, deve Senti-me feliz, pensando ter recomeçado
continuar do outro lado. A ele, então, meu minha vida. Mas logo Cleonice começou a
obrigado e a você também, meu estimado dr. mudar, passou a exigir, ora queria um móvel,
Lauro. Depois de desencarnado, vim a saber ora roupas e jóias. Depois de dois meses de
que Maurício cuidou de mim com carinho e casados, ela ficou grávida piorando a situação,
dedicação. Voltei para casa. Dois dias depois, esqueceu a promessa que me fez e começou a
sentindo-me bem, fui ao Sanatório e realmente implicar com d. Efigênia e com as crianças. Era
estava tudo bem por lá. Soube que minha chegar em casa para as queixas começarem.
mãe pediu a Jonas para ficar no meu lugar, - Antônio, seus filhos não são as belezas
enquanto estive doente, ele se negou. que pensa, são mal-educados, hoje eles riram
de mim, eles me odeiam. Tudo por culpa da
Reparando Erros bruxa da d. Efigênia, vive como rainha e ela
137 não é nada sua! Até empregada ela tem!
Precisa dar melhor educação a estas crianças.
Depois de uma semana de descanso, Por que sustenta Juvenal? Que ele é seu? 138
voltei ao trabalho. Da febre tifo, ficaram só VeraLúcia Marinzeck de Carvalho / Antônio
Carlos Basta! Cleonice, você prometeu não
Página 72 interferir na vida dos meus familiares. Juvenal
Reparando Erros é meu filho, amo-o como os outros. Não fale
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt mais assim, não gosto.
- Você não liga para mim! Sou sua
lembranças e os meus cabelos que esposa, mãe de seu filho legítimo.
grisalharam. Era um solteirão cobiçado, os - Os outros são meus filhos! O fato é
cabelos grisalhos me deram muito charme que Cleonice escondeu bem como realmente
e financeiramente estava bem, embora não era, mostrava agora, depois de casada, seu
fosse rico. Minha mãe dizia sempre que gênio agressivo e interesseiro. Acabou o meu
deveria casar, dar uma boa mãe aos meus sossego, as crianças não reclamavam e nem
filhos, que estava muito sozinho, etc. Não iam a minha casa, elas estavam preocupadas
me entusiasmava muito com a idéia, embora e tristes. A mãe de Cleonice e meus novos
achasse que ela tinha razão e aos poucos cunhados começaram a freqüentar minha
fui pensando no assunto. Conheci Cleonice casa, tomando refeições, exigindo presentes
no hospital, era enfermeira, bonita, simples, e dinheiro. Sempre ajudei os irmãos de
educada, risonha e parecia gostar muito de Inês, o que fazia espontaneamente. Eram
crianças. Ficou encantada quando a convidei pobres, trabalhadores, nunca pediram nada,
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gostava deles e ajudava-os com prazer. Não obstetra? Não consegui salvar Cleonice nem
simpatizava com os novos parentes que, sem meu filho.
cerimônia, pediam coisas e, se não dava, - Não conseguimos, amigo, lutamos
Cleonice fazia-se de vítima e escutava o juntos.
mesmo falatório. Triste, arrependido de ter - Por que não a examinei antes de casar?
casado, contornava a situação para não ter um - Parecia-nos tão saudável! Não ia
maior desentendimento. No segundo mês de adivinhar, depois não é agradável examinar
gravidez, examinei Cleonice e constatei que candidatas a esposa. Ânimo amigo, lembre-se
ela sofria de uma lesão grave no coração o que nós também morreremos. Após o enterro,
que se agravaria com a gravidez e se tivesse voltei triste para casa, tranquei-me no quarto
o filho estaria arriscando a sua vida. Reuni os e pus-me a pensar. Não amei Cleonice, nosso
médicos do hospital e eles confirmaram meu casamento foi um erro, mas sentia sua morte
diagnóstico. Uns aconselhavam-me a recorrer e da criança. “Por que, meu Deus, morrer
ao aborto. Era e sou contra o aborto, segui por tão pouco? Será que não se consegue,
o conselho de Lauro, que deixasse que ela por estudos, meios de curar tantas doenças?
escolhesse. Chamei seus pais em minha casa Como gostaria de estudar, pesquisar, ajudar e
e com Cleonice expliquei-lhes tudo. descobrir meios de combatê-las e vencê-las.
- Posso pensar, Antônio? Doenças, vírus, fazem parte da natureza e é
- Claro, meu bem, pense e nesta semana nela que devem estar os meios de combatê-
me dê a resposta. Três dias depois, Cleonice las. Como seria bom se pudesse estudar!” Por
me disse: dois dias fiquei em casa, desanimado, achando
- Quero ter este filho! Sou jovem, dezoito que nada mais valia a pena.
anos, não correrei riscos, acredito - D. Efigênia, acho que sou um inútil. Que
adianta lutar com os poucos conhecimentos
Página 73 que tenho? Penso em não clinicar mais, vou
Reparando Erros mudar de profissão.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt - Filho, não desanime. Deus é maior que
tudo e Ele sabe o porque de tantas doenças
que tudo dará certo. Passou a ser mais incuráveis. Não deve sentir-se culpado, tem
exigente, tudo fazia para não contrariála. Achei curado e ajudado tantas pessoas. A tarde
que seria melhor mudar e separar ela das recebi a visita de minha mãe. Olhou-me séria.
crianças. Comprei uma bela e grande casa, - Antônio, por que abandonou o Sanatório.
recém-construída que custou todas as minhas Seu sofrimento não abafa o sofrimento que tem
economias. Cleonice ficou felicíssima e pensei lá. Para que se formou? Certamente não foi
em mudar rápido. Estava no sexto mês de para acovardar-se diante de um caso perdido.
gravidez e íamos mudar em Sua esposa morreu, mas não a faremos agora
de santa. Era uma
Reparando Erros
139 140
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
três dias. Contratei empregados e a mãe Antônio Carlos
de minha esposa estava encarregada de dirigir
tudo, porque recomendara repouso absoluto a peste! Proibida de sair, que fazia? Andava
Cleonice. Estava no Sanatório e fui chamado por aí o dia todo, comprando, comprando...
com urgência ao hospital, onde Cleonice foi Sabia que deveria fazer repouso e não o
levada ao sentir-se mal numa confeitaria. fez. Escutei de sua própria mãe, no enterro,
Lauro e outros médicos lutavam para salvá-la. que não havia acreditado na gravidade do
Entrara em trabalho de parto com contrações problema, acharam que queria que abortasse
fortes, o coração fraco, falhando muito. Foi para abandoná-la, ou que fizesse repouso
uma luta desigual, horas depois morreram ela para que ficasse dentro de casa. Como vê,
e a criança. não tem culpa.
- Que nos serve a Medicina? - Eu pensei que aceitara os riscos por
- queixei-me a Lauro. amor ao filho!
- Que valeu minha habilidade como - Ora, logo vê que não sabe escolher
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esposa. Se pensar em casar novamente, - Viva!
fale comigo, que escolherei uma boa pessoa. - Tudo voltará a ser como antes!
Depois, coitada da d. Efigênia, sofreu muito - Que felicidade! Meus filhos vibravam
com as ofensas dela, vivia gritando com as felizes e eu também, minha família era eles
crianças. Eu vi! Antônio, eu quero, exijo, não queria outra. A promessa foi de coração,
que vá imediatamente ao Sanatório! Sua casamento, nunca mais. Tudo ficou em paz no
presença é indispensável, os enfermeiros não meu lar, meus filhos cresciam fortes, sadios
sabem que fazer com os novos pacientes que e obedientes. D. Efigênia era como minha
deram entrada ontem. Filho, você acha que mãe, comida quentinha a qualquer hora que
seu pai está aprovando sua conduta? Está chegasse em casa, roupa limpa, tudo como
abandonando o Sanatório que ele tanto amou. gostava, cuidava de tudo em casa desde as
Troca de roupa, eu o acompanho até lá. Saiu despesas. Dava dinheiro para ela que cuidava
do quarto e escutei-a conversando na sala de tudo e com muita capacidade e carinho.
com as crianças. Depois da morte de meu Também tinha em mim um filho reconhecido,
pai, minha mãe começou a freqüentar minha éramos grandes amigos. Saía pouco, era do
casa e adorava Juvenal que já era mocinho e trabalho para casa. Às vezes, ia as festas
muito parecido com Maurício. Ora! Coitada da familiares ou a igreja. Casar realmente
d. Efigênia, nunca não me passou mais pela mente, amores,
só passageiros, nada sério, sem qualquer
Página74 compromisso. O Sanatório novo ficou pronto,
Reparando Erros após anos de construção. Não recebeu o nome
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt do meu pai como haviam prometido, mas sim
de um político que doou verbas para terminá-
reclamou. Doentes novos! Quem lo, toda a família sentiu. Também o cargo
serão? Coitados!” Troquei de roupa rápido, de diretor foi dado a um médico da capital
despedi-me com um adeusinho das crianças nomeado por este político. Minha mãe ficou
e acompanhei minha mãe. O Sanatório ficava revoltada, eu, triste. Fizemos a mudança, os
perto de minha casa, caminhamos em silêncio, doentes foram conduzidos para o prédio novo
lado a lado. Ao chegarmos, ela pegou minha que ficou uma beleza, espaçoso e confortável.
mão. Fui convidado a trabalhar lá com um bom
- Desculpe-me, entendo o que sente. ordenado.
Você é excelente médico, muito já fez e pode - Não vá, meu filho, tudo isto é uma
fazer! Não posso ver o Sanatório abandonado. ofensa a nós
Maurício amava-o tanto! Só posso contar com - disse Maria das Graças. Sorri e nada
você. respondi, preferi pensar: “Para que nos servem
- Mamãe, o que a senhora disse chamou- posições? Que importa ser importante ao
me à realidade. Também amo tudo isto e não mundo? Todos morrem e, do outro lado, que
vou abandonar. Sei pouco, mas neste pouco nos valerá tudo isto?” Amava os doentes e
quero ser útil. Volto para meus doentes. A obra conosco estavam doentes de anos de convívio.
do papai, enquanto viver, terá continuação. Alguns deles choravam amedrontados, não
- Obrigada meu filho. Animado, voltei querendo sair daquela casa querida, onde por
ao trabalho. O casamento não me trouxe anos foi um bálsamo há tantos infelizes.
felicidades. Os parentes de Cleonice levaram - Dr. Antônio! Dr. Antônio!
tudo de nossa casa e queriam ainda a casa - era Sebastiana, uma débil mental, há
nova. Com franqueza, disse que não três anos conosco, abandonada pela família,
que me
Reparando Erros
141 142
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
receberiam mais nada de mim, que não Antônio Carlos
voltassem mais a minha casa. E passei a evitá-
los. Voltei a morar com meus filhos. Quero puxara pelo braço.
comunicar a vocês e prometer que nunca mais - O senhor vem? Irá conosco? Se não for,
casarei. fico também. Fico com o doutor onde o senhor
69
ficar. O senhor vem? 143
- vou minha filha, vou sim. Achei a
resposta no olhar temeroso de Sebastiana e Jenifer, por que não me chama de tio?
aceitei o emprego oferecido. Foi demolido o Dá-me tanto prazer. Porque você não o é.
casarão e cercado. Depois da morte de Maria - Seu pai que proibiu?
das Graças, meus irmãos herdeiros venderam - Não, ele nem sabe que venho aqui.
e foi erguida uma grande loja. O diretor do E por que vem? Aqui não é lugar para uma
Sanatório nem mudou para nossa cidade, mocinha. Jenifer sentou-se, cruzou as pernas
vinha duas vezes por mês e cuidava da parte e olhou-me provocante. Antônio, será que terei
burocrática e os doentes ficavam sob minha de ser mais clara? Será que não entende?
responsabilidade. Os doentes Venho aqui por que estou interessada em você.
Amo-o! Deixei o corpo cair na cadeira. Minha
Página 75 sogra tinha razão. Espantado, fiquei olhando-a
Reparando Erros e ela continuou:
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
- Não sou bonita? Você não me acha
aumentavam e o trabalho também. Uma interessante? Você é viúvo e eu sou solteira,
tarde, uma turma de jovens foi visitar um amigo nada impede de nos amarmos. Podemos
no Sanatório e Jenifer, a filha mais velha de casar e...
Jonas, estava junto. Jonas tinha três filhas e - Está louca?! Você é minha sobrinha!
um filho, continuava libertino, farrista, ligando Tem a idade do meu filho mais velho.
pouco para a profissão. Jenifer era quase da - Não estou louca! Não sou sua sobrinha!
idade do meu Juvenal, olhava tudo, encantada. Você é filho adotivo da minha avó, não é
A garotada, que pela primeira vez via um irmão do meu pai, não é meu tio. E, depois,
Sanatório, interessava-se por tudo, mostrei a sei que Juvenal não é seu filho e, sim meu
eles todas as repartições, informando o que irmão. Gosto de homens maduros, são mais
indagavam. interessantes. Você é lindo com estes cabelos
- Tio Antônio, fale-nos do vovô, lembro grisalhos, tão gentil e educado. “Meu Deus”
tanto dele pediu Jenifer. - pensei aflito -, “que faço?” Esforcei-me
- Dr. Maurício foi o melhor médico para acreditar no que ouvi. Se quisesse me
que conheci, fundador do primeiro hospital, vingar de Jonas, ali estava uma oportunidade.
primeiro Sanatório da região. Amava os seus Vingar? Não era capaz, vendo Jenifer,
doentes e curava-os com sabedoria. A turma uma garota, querendo passar por mulher
despediu-se alegre. Depois deste dia, Jenifer fatal, com rosto pintado, puxando a saia ao
passou a ir ao Sanatório e conversar comigo, sentar, sorrindo provocante, olhando-me com
passou a ir em minha casa, ora queria saber insistência, tive dó. Jonas sofreria com seus
de um assunto, ora do amigo, ora do vovô. filhos o que fez Maurício sofrer. E foi a ele
Quando percebi, ela estava chamando-me que pedi ajuda. Meu pai, que faço com esta
de Antônio, você, as visitas ficaram mais menina? Ajuda-me, afinal ela é sua neta!
freqüentes. D. Efigênia alertou-me: Levantei, olhei-a sério e disse:
- Cuidado, Antônio! Esta menina vai - Jenifer, minha querida sobrinha, gosto
lhe trazer problemas. Vem aqui somente de você como filha do meu irmão, neta de meu
quando você está e olha-o de uma maneira, pai. Para mim é e será sempre minha sobrinha.
parece apaixonada. Deus me perdoe se Nunca gostarei de você de outra forma. Não é
estou enganada. Jenifer nem parece ser sua nem o meu tipo, é feia, sardenta, baixa e chata.
sobrinha. Fiquei preocupado e resolvi prestar Desista de conquistar-me, isto me aborrece.
atenção e resolver o problema, não queria Você não me interessa e se insistir agirei como
mal-entendimento com a família, muito menos um bom tio que sou, tirarei a cinta e lhe darei
com Jonas e nem envolvimento com garotas. uma boa surra. Pirralha idiota! Vá amar alguém
Naquela tarde, encontrei-a na minha sala no de sua idade. Menina imbecil!
Sanatório. Cumprimentou-me chamando-me
de Antônio. 144
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Reparando Erros Antônio Carlos
70
Não sei como tive coragem de dizer tudo Reparando Erros
isto. Comecei a falar e foi saindo, detestava 145
ofender alguém. Mas era preferível cortar o
mal pela raiz e evitar que - Antônio, Júlia passa mal, ajude-a por
favor.
Página 76 - vou vê-la, Letícia, tudo que sei, tudo
Reparando Erros que puder, farei para ajudá-la. Acalme-se.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt Por duas horas, lutei contra a morte, usei toda
minha experiência e mentalmente dirigia-me a
Jenifer sofresse mais tarde. Não quis, Maurício: “Ajude-nos meu pai!” Comigo ficaram
por educação, lhe dar esperanças. Jenifer ficou dois médicos que já sem esperanças faziam o
vermelha, depois branca, segurou as lágrimas que lhes mandava. A criança estava sentada,
e gritou: havia hemorragia e fomos vencendo. A criança
- Agora sim é meu tio, irmão do meu pai! nasceu viva, uma forte e bonita menina e a
Eu que pensei que fosse diferente! Idiota é hemorragia foi cessando Júlia não corria mais
você, seu velho! Saiu batendo a porta, suspirei perigo. Dr. Antônio, o senhor venceu!
aliviado. Proibi a entrada dela no Sanatório e - disse a enfermeira.
pedi ajuda a d. Efigênia que com seu jeitinho - Tudo é por Deus, filha, o esforço foi de
não a deixava esperar-me mais. Jenifer todos. Saí da sala cansado, Jonas e Letícia
insistiu, por três vezes cercou-me na rua e esperavam no corredor. Tudo bem, Letícia,
passei a fugir dela, chegando mesmo a correr Júlia e a criança estão salvas.
para não ter que ouvi-la. “Antônio, este amor - Obrigada, se não fosse você... Obrigada
passa logo, é coisa da idade” por ter nos atendido.
- dizia d. Efigênia. “Calma, é só fugir dela - Sempre atendo a todos que me chamam.
que acabará desistindo.” Recebi um bilhete de Se fosse uma coitada sem família faria o
minha mãe convidando-me a ir vêla para uma mesmo. Alegro-me por ter ajudado Júlia, para
conversa particular. “Jenifer já a envenenou.” mim todos os necessitados da medicina são
Fui. Mamãe levou-me ao salão de visitas e iguais. Jonas estendeu-me a mão.
conversamos a sós. - Obrigado, Antônio. O caso era
- Antônio, conte-me o que ocorreu entre desesperador. Pensei que perderíamos
você e Jenifer. Suspirei triste, como sempre ela Júlia. E excelente obstetra. Dei-lhe a mão,
ficaria a favor dos filhos verdadeiros e agora retirando-a rápido.
dos netos. Com calma, sem omitir nada, contei. - Não me agradeça, Jonas, não fiz nada
E fiquei surpreso. por você. Não me agradeça somente por
- Acredito em você. Agiu certo. Antônio, educação. Seja realmente grato, pois aquele
percebi tarde demais a educação errada que que é grato segue o exemplo do seu benfeitor.
dei a meus filhos, principalmente Jonas, que Não perca mais tempo, você tem tudo para ser
agora educa os seus filhos como foi educado. melhor obstetra que eu e sempre encontramos
Jenifer me contou a história diferente, percebi no nosso caminho a quem beneficiar. Tive
nos seus olhos o despeito, entendi que tinha vontade de lhe falar mais, porém, achando
sido desprezada. Resolverei este assunto, que não adiantaria, saí com um simples
Jenifer não mais o importunará. Não sei a cumprimento.
conversa que tiveram mas, para meu alívio,
Jenifer parou de procurar-me e fiz de tudo Página 77
para não mais encontrá-la. A segunda filha de Reparando Erros
Jonas, Julia casou-se e esperava um bebê. Em Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
trabalho de parto, Jonas constatou que seria
complicado e a filha sofria muito. Reuniu seus Aquele dia foi especial para mim, fiquei
amigos médicos e citaram meu nome. felicíssimo. Tive ocasião de me vingar de Jonas
- Jonas, só o dr. Antônio pode ajudá-la. e não o fiz. Tendo oportunidade de lhe fazer
Mandou chamar-me no Sanatório e fui rápido. um bem, fiz com carinho. Paguei com o bem,
Letícia, nervosa, esperava-me na porta do a quem muito mal me fez. Senti no íntimo que
hospital. venci uma prova. E tinha certeza que até a ele
71
salvaria se necessitasse. Depois disto, Jonas era detestado. Dizem que o amor sincero é
fazia questão de cumprimentar-me, respondia sentimento reconhecido, sentido por plantas,
cortês, evitando longas conversas, ganhei um animais, crianças e loucos. Acredito. Maurício
amigo senti que me respeitava. A felicidade e eu nunca tivemos medo deles, amávamo-los
no bem Minha mãe desencarnou, isto fez e nenhum deles nos causaram danos. Fomos
com que me separasse mais de meus irmãos. por eles queridos e amados, acalmávamolos
Vivia para meus doentes e filhos. Foram com simples conversas, com olhares e
maravilhosos meus filhos, nunca me deram agrados. Neste período foi internado um
aborrecimentos, nenhum quiseram cursar doente, Dito, um crioulo com dois metros de
uma faculdade, mas foram trabalhadores e altura, forte e violento. Dr. Tadeu maltratouo
honestos. Juvenal interessou-se por madeiras, com seus métodos desumanos como fazia
de empregado, com minha ajuda, passou a a todos os desobedientes e perigosos. Eu
ser dono de uma indústria de móveis. José conversava muito com ele, alimentava-o em
Maurício comprou um pequeno armazém e seus castigos, um dia ele me disse:
transformou-se em grande atacadista. Todos - Este médico louro é um demônio.
casaram muito bem e os netos encheram Demônio se deve matar para livrar das
nossa casa. Minha caçula morava ao lado, maldades. O senhor é bom, dr. Antônio. Mas
d. Efigênia e eu ficamos sozinhos na velha e demônio tem que matar... Dito aquietou-se,
simples casa, da qual gostávamos tanto. O tomou-se obediente. Sabia que sua doença era
diretor do Sanatório passou o cargo a outro incurável, as melhoras eram aparentes. Mas
médico, seu amigo. Jovem e ambicioso, dr. não era esta a opinião do dr. Tadeu.
Tadeu, assumiu suas funções, mudou-se para - Dr. Antônio, o senhor tem que se
nossa cidade. A pretexto de modernizar o modernizar. Deve acreditar que meus métodos
Sanatório, adotou normas cruéis e desumanas, dão resultados, são eficientes. Dito está
como castigar os enfermos por desobediência. curado. Poderá ir para casa, Não adiantou
Muitas discussões tivemos, ele exigia que suas nada meus argumentos, queria me provar que
ordens fossem cumpridas e eu não queria que estava certo e que havia curado Dito. Despedi-
maltratassem os doentes. Só não me mandou me de Dito com um abraço, aconselhei que
embora porque era muito querido por muitas tivesse juízo e que fosse bonzinho com todos.
pessoas importantes da cidade, me deviam Riu para mim com seu jeito ingênuo, roguei a
favores. Nesta ocasião pensei seriamente em Deus por ele,
largar de trabalhar no Sanatório e voltar para
o hospital. Mas, compadecia-me dos doentes. Página 78
Que seriam deles se os abandonasse? Quem Reparando Erros
lhes daria alimentos em seus castigos de Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
dois dias sem alimentos? Quem os tiraria das
camisas de força? para que na sua liberdade não fizesse
mal a ninguém. Dr. Tadeu tinha uma bonita
Reparando Erros 147 fazenda na região, estava muito rico. Duas
semanas depois que Dito saiu do Sanatório,
“Fica, Antônio” foi o
- dizia d. Efigênia -, “se não está sendo
agradável a você, fica por eles, pelos seus 148
doentes.” Meditei e orei, senti dentro de mim a Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
resposta: “Faça o bem pelo amor ao bem, não Antônio Carlos
espere recompensas e nem tenha esperança
de recebê-las, nem mesmo o reconhecimento Diretor com sua família passar o final de
do que fez. Auxilia e não queira ver até que semana na sua linda fazenda. Saiu sozinho a
ponto tenha ajudado nem que lhes mostrem cavalo para ver as plantações, como demorou,
gratidão. Agora é o momento de mostrar sua foram atrás e o encontraram no chão com Dito
força, confiança e seu amor aos doentes, sentado em cima. Tinha atocaiado o dr. Tadeu,
deve ficar. Fiquei. Dr. Tadeu parecia às vezes amarrado com tanta força que lhe quebrou
temer-me, nunca conseguiu encarar-me nos vários ossos e com um canivete foi retalhando
olhos. Por dois anos ficou no Sanatório, onde seu corpo. Dr. Tadeu desencarnou tendo o seu
72
sangue esgotado. Foi preciso várias pessoas embrulhos quando esta saía às compras.
para tirá-lo de cima do dr. Tadeu. Foi laçado, Muitas vezes, chegava em casa e lá estavam
amarrado e levado novamente ao Sanatório. a minha espera tutelados de minha sogra
Senti profundamente o que aconteceu com para que os consultassem e até mesmo para
o dr. Tadeu. Dito foi colocado numa cela receber remédios que comprava. Meus filhos
especial como perigoso. Cuidei dele, não preocupavam-se conosco, diziam sempre que
deixei ninguém maltratá-lo. Tinha suas crises deveríamos morar em casa melhor, com mais
e ficava furioso. Acalmava-o com conversas, conforto, etc. Mas éramos felizes vivendo
doces e remédios. Ele gostava muito de mim, assim. Um dia, cheguei em casa e José
sempre repetia sorrindo: “Dr. Antônio é bom! Maurício reclamava com a avó.
Gosto do dr. Antônio!” Um dia, ele me disse: - José Maurício, por que fala assim com
- Não matei o médico louro. Não fui eu! sua avó?
Só lhe tirei o demônio do corpo. Apliquei nele - indaguei.
o remédio que dizia que faria comigo. Foi só - Papai, vovó dá muito dinheiro aos
isto! Ele falava que o remédio era bom, como pobres. Sabe quanto ela dá por mês a uma
estava doente, com o demônio, tinha que fazer viúva? Falou a quantia e esperou minha reação.
ele sarar. Não matei ele, não é mesmo? D. Efigênia abaixou os olhos. Calmamente fui
- Não, Dito, você é bom moço! até nossa caixinha. Em cima da cômoda,
- Dito bom sim! Sarei o médico louro, desde os tempos de Inês, ficava uma caixinha
agora não judia mais de ninguém trabalhada de madeira em que colocávamos
- riu alto. Acreditei nele, de fato, comprovei, dinheiro para as despesas. Peguei a
após meu desencarne, que Dito realmente
pensava assim. Com a morte do dr. Tadeu, Página 79
ofereceram-me a diretoria, as pessoas do Reparando Erros
Conselho rogaram para que aceitasse. Pensei Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
por uns dias e não aceitei, teria que cuidar
da parte burocrática e já me achava velho quantia citada e dei a ele, olhou-me
e cansado. “Fico cuidando dos doentes, se assustado.
arranjaram dois diretores, que arranjem mais - Aqui está o dinheiro. Neste mês, a viúva
um.” Mas, enquanto não arranjaram, fiquei não receberá nada, dou a você. Usará melhor,
cuidando de tudo. Com mais de setenta anos, certamente. A senhora viúva que se arranje,
comecei a pensar na morte do corpo. irá de porta em porta para alimentar os filhos.
- D. Efigênia, acho que está na hora de Certamente este dinheiro não lhe tirará o sono,
doar tudo que tenho aos meus filhos, não é os dias de fome e frio não lhe chegarão aos
muito, mas é deles. O que a senhora acha? ouvidos.
- Filho, faça o que achar melhor. Reparti - Papai, por favor, não falei por isto! Nada
tudo entre eles, deixei em meu nome somente reclamo para mim. Pensava somente nos
a casa que morávamos e passei a trabalhar senhores. Esta casa está velha, necessita de
só no Sanatório, reforma, vivem sem conforto. Meus irmãos e
eu moramos em casas melhores.
Reparando Erros - José Maurício, entenda, sua avó e eu
149 somos felizes assim. Vive-se bem onde há paz.
Esta casa para nós é um palácio. Para que
deixando até mesmo de fazer partos. No modificá-la se gostamos dela assim? Mil vezes
hospital havia bons médicos e eu não fazia
falta. Recebia meu ordenado e dava todinho 150
nas mãos da d. Efigênia que fazia a despesa Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
de casa, comprava-me roupas, enfim tudo Antônio Carlos
que necessitávamos. Minha sogra ajudava
várias famílias carentes. Uma senhora ficou nós aqui nesta casa velha e você em
viúva com seis filhos pequenos e ia todos os casas novas e bonitas. Amo-os e vê-los bem
meses receber uma boa quantia. Às vezes ela é minha tarefa cumprida.
trabalhava em casa, ora seu filho mais velho - Desculpem-me, tome o dinheiro da
fazia as compras para d. Efigênia ou carregava viúva, prometo não mais reclamar. Meu lar é
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dos senhores, se a casa cair, não ficarão sem que fazia, faço, realizo com boa vontade, como
teto. Eu também os amo! Não existe no mundo sendo para Deus e não para os homens. No
pessoas melhores que os senhores. Nos Sanatório chamavam-nos carinhosamente de
abraçou, chorando. Resolveram nos deixar viver Médico Velho e Médico Novo. José Luiz foi aos
conforme queríamos e nenhum deles implicou poucos fazendo todo meu trabalho. Ia todos os
mais conosco. O novo diretor tomou posse. dias ao Sanatório, conversava
Resolveu reformar, modernizar o Sanatório.
Organizou festas, arrecadou verbas. Os Página 80
doentes ficaram sob minha responsabilidade. Reparando Erros
Sabia que boa parte do dinheiro arrecadado Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
ia para seus bolsos. Mas o dr. Marcílio era
benevolente, ampliou o Sanatório, deu conforto com os doentes, andava por todo o
aos doentes. Os internos recebiam excelente lado, sem rapidez, meu andar estava lento.
alimentação, recreações, foram contratados Graças a Deus, o raciocínio era o mesmo.
mais empregados e enfermeiros. Tudo que Fiz oitenta e sete anos. Na véspera, filhos,
eu lhe pedia, ele dava um jeito de adquirir. O netos e bisnetos fizeram uma bela festa para
Sanatório ficou como sempre sonhara. Uma comemorar. Fui deitar mais tarde do que o de
vez, dei a entender a ele que sabia que ficava costume e não dormi bem, levantei mais tarde
com parte do dinheiro. e, como sempre, fui ao Sanatório. Dr. José Luiz
- Isto são comissões, dr. Antônio. esperava-me.
Atualmente, todos trabalham assim. Não está - Bom-dia. Estava preocupado com o
faltando nada no Sanatório, está? atraso, mas, pelo visto, dormiu demais. Como
- Não, não falta nada. Resolvi não está o senhor, dr. Antônio?
interferir mais, já que não interferia no meu - Bem, filho. Sinto-me só um pouco
trabalho, ele que ficasse com suas comissões, cansado, vou descansar ou melhor vou ler um
a mim bastava que meus doentes fossem pouco. Tudo bem? Os doentes?
bem tratados. Pensava muito no que me - Tudo bem, se necessitar de mim,
cabia fazer, vigiava os meus atos. Estava é só chamar. Entrei na sala de recepção,
velho para arrumar encrenca e o Sanatório tranqüila naquela hora do dia, deitei no sofá,
nunca esteve tão do meu gosto. Procurava peguei uma revista e comecei a folheá-
fazer o que me cabia sempre do melhor modo la. Meu coração estava fraco, tomava os
possível, fixava meu pensamento naquilo remédios direitinho, mas sabia que a idade
que estava fazendo para que fosse feito estava avançada. Pus-me a ler, mas, como
com perfeição. O Sanatório era um modelo, sempre, ultimamente ao ler por mais tempo,
verdadeiro hospital de caridade. Mas estava acabava dormindo. Pensei que dormira, mas
cansado, meu coração inspirava cuidados e desencarnei, meu coração simplesmente
medicamentos, sabia que o ritmo de trabalho parou de bater. Não senti nada, não vi nada,
deveria diminuir. Assim, veio ter conosco o dr. acordei bem disposto. “Onde estou?! Aqui
José Luiz, médico recém-formado. Gostei dele, não é o Sanatório! Que roupas são estas?”
era bom, caridoso, inteligente e trabalhador. Estava com uma roupa de dormir confortável
Conversamos muito, trocando idéias, dr. José e bonita, num leito limpíssimo, levantei e olhei
Luiz era espírita. tudo. “Isto é um quarto! Estou em um hospital,
- Dr. Antônio, a doença está na alma, estas roupas devem ser deles. Que quarto
no espírito, devemos cuidar das duas partes: grande e bonito! Devo ter me sentido mal e o
corpo e espírito. Não gostava muito de falar dr. Luiz me conduziu a um hospital. Uma janela
de religiões, todas para mim ajudavam a ir até grande estava do lado esquerdo da cama,
o Pai. Sempre fora católico, não destes de ir abria e encantei-me. A vista dava para um
bem cuidado e belíssimo jardim, onde várias
Reparando Erros pessoas passeavam conversando animadas.
151 “ Ao desencarnarmos somos levados para
onde fizemos por merecer. Hospitais no Plano
muito a Igreja, mas orava sempre e fui Espiritual tem enormes enfermarias onde é
sempre grato. Acreditava e acredito que são atendida a maioria desencarnada. Antônio
nossos atos bons que nos levam a Deus e tudo fez por merecer ser atendido em uma de suas
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alas, onde recuperam sem se achar doentes. - Saulus, seu amigo.
- Quero agradecê-lo, dr. Saulus, e pedir
152 um favor. Não gosto de ter regalias mas, minha
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / sogra, mais velha que eu, noventa e um anos,
Antônio Carlos imagine, certamente quererá me ver, gostaria
que permitisse. Amamo-nos um ao outro como
Falei sozinho: “Não conheço este mãe e filho.
hospital. Onde será? Não, vizinhança não é, - Perfeitamente.
conheço todos. Que desperdício internar-me - Obrigado. Que tipo de tratamento me
aqui! Isto só pode ser idéia do Médico Novo, aplicou? Sinto-me bem e a melhora foi rápida.
preocupa-se tanto comigo! Quero ver se uma - Curioso, dr. Antônio?
maquina ou tratamento será capaz de fazer - É que tenho muitos doentes, seria
meu coração trabalhar como novo. Isto aqui maravilhoso aplicar neles também. Sempre
deve ser caro! Só José Luiz para pensar gostei de inovações, amo as pesquisas. Não
em gastar dinheiro com um velho como eu.” tive tempo para fazê-las, mas, nunca deixei
Sentei na cama, achando tudo muito bonito e de interessar-me por elas. Este tratamento é
contei as batidas do meu coração. “Normal! fantástico! Queria, se possível, aprender. :
Puxa!” As batidas estavam fortes e ritmadas, - Claro, será um prazer. Terá tempo para
continuei meu monólogo. “Ora! Não é que o isto, muito tempo.
dr. José Luiz pode ter razão! Estou muito bem! - Dr. Saulus, não afirme com convicção,
Estou disposto! Levantei, será que podia? É já tenho oitenta e sete anos.
melhor chamar alguém.” Toquei a campainha - Agora, tenho que ir. Até logo!
que estava na cabeceira da cama e aguardei - falou, sorrindo. Minutos depois, o
por instantes, logo um enfermeiro simpático e enfermeiro anunciou uma visita.
sorridente entrou no quarto. - D. Efigênia!!! Abracei-a. Como está a
senhora? Quem a trouxe?
- Precisa de algo, senhor? - Estou bem, muito bem. Eles me
- Não, obrigado, tudo bem. Queria ver trouxeram, o pessoal que trabalha aqui.
o médico que me atendeu. Por favor, diga- Bonito este lugar, hem? Como está meu filho?
lhe que, quando puder, venha ver-me. Estou Quando disseram que você estava dormindo
ansioso para conhecê-lo e agradecê-lo. Deve no Sanatório, não acreditei, fiquei brava e
ser excelente médico. nervosa. Queria você e comecei a chorar,
- Sim, senhor. os meninos não sabiam o que fazer para
- Posso levantar-me? me agradar. Desconfiei logo, você nunca se
- Sim, esteja a vontade. Saiu, logo me ausentou sem avisar. Orei tanto e pedi a Jesus
trouxeram um caldo que tomei sem fome, para que pudesse vê-lo e aqui estou. Graças
achando diferente com gosto de ervas. “Deve a Deus, vejo-o bem. vou ficar aqui com você.
ser dieta!” Lembrei da minha sogra. “Se não - D. Efigênia, aqui é um hospital, não
deixarem que me veja, fará um escândalo. sei se poderá ficar comigo. Quem trouxe a
Pedirei ao médico este favor.” senhora?
- Bom-dia! Era o médico, simpático e - Eles, já disse. D. Efigênia, às vezes,
sorridente, apertou minha mão, gostei dele se confundia. Deveria ter sido um dos meus
que continuou a falar. netos. Conversamos sobre a beleza do jardim,
- Como está, dr. Antônio? Queria falar das pessoas agradáveis que trabalhavam no
comigo? Está gostando daqui? hospital.
- Estou muito bem, obrigado. Com quem - Parece que eles não tem problemas,
estou tendo a honra de falar? estão sempre sorrindo
- disse. Um enfermeiro veio buscá-la.
Página 81 - Até logo, meu filho, vou ficar no quarto
Reparando Erros ao lado.
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt
Reparando Erros 154
153 Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
Antônio Carlos
75
quarto, sentava, levantava e lembrei que o dr.
Perguntei baixinho ao enfermeiro se era José Luiz e eu comentamos há tempo uma
verdade. tese que loucura
- Sim, d. Efigênia está no quarto ao
lado. Fiquei confuso e preocupado. Estaria d. Reparando Erros
Efigênia doente também? Parecia tão bem. 155
Chamei pelo enfermeiro e veio, sorridente, o
dr. Saulus. podia ser contagiante. Ri muito, mas
- Dr. Antônio, o senhor gostou da visita? agora não tinha a menor graça. “Será que
- Sim, muito. Não a esperava tão cedo. convivi tanto com doentes que pensam que
Quem trouxe d. Efigênia até aqui? E por que enlouqueci?” Devagar abri a porta. “Não está
a deixaram? Estou preocupado, este hospital trancada!”
deve ser caro, não tenho dinheiro, vivemos do - exclamei. O corredor não tinha ninguém,
meu ordenado. Não quero que meus filhos, já pareceu-me grande demais e estava muito
velhos, assumam as despesas. Por favor, onde limpo. Abri a porta ao lado que igualmente
fica este hospital? Conheço a redondeza e... estava destrancada. O quarto estava vazio.
- Dinheiro não deve ser preocupação. Em cima da mesinha estava uma foto de minha
Tudo é grátis. sogra com os netos, que me deu a certeza
- Ufa! Até os atendidos em quartos como que ali se hospedava, pois d. Efigênia não se
este? Mesmo? Ainda bem! Mas onde fica? separava desta foto, levando-a aonde ia. Voltei
Nunca ouvi falar de um hospital assim. ao corredor. “Pelo menos não estou prisioneiro
- É o Hospital Fraternidade, fica na no quarto!” Observei que todos os quartos
Colônia do Amor Divino. estavam com suas portas abertas. Passei pelo
- Quê!? Nunca ouvi nada parecido. Em corredor e fui ter em um hall grande. Todos
que cidade? que passavam por mim cumprimentavam-me
- No Plano Espiritual. Dr. Antônio deixe as sorridentes, respondia desconfiado. “Deve ser
perguntas para mais tarde. Está aqui alguém difícil fugir deste Sanatório. Confiam muito para
que há tempo não o vê, aguarda ansioso para deixar tudo aberto.”
abraçá-lo. Abriu a porta e Maurício entrou - Bom-dia! Como está?
sorrindo, estendendo as mãos. - Bom-dia!
- Valei-me meu Deus! Olhei-o assustado - resmunguei e pensei: “Será este louco?
e tremi de medo. Maurício, vendo minha Não me parece...” Cheguei ao pátio sem
reação, saiu e Saulus veio até a mim, pôs suas dificuldades e passei ao jardim. Encantei-me
mãos sobre minha cabeça e me adormeceu com o lugar, árvores maravilhosas, flores
com passes. Quando acordei, sentei rápido na perfumadas, o céu muito azul, ar suave e
cama e lembrei de tudo: “Meu Deus!” agradável. Distrai-me e trombei num senhor.
- pensei. “Não estou em um hospital, Desculpei-me apressado, pensando que fosse
estou em um Sanatório. Onde será que fica ralhar comigo. Mas ele me olhou sorrindo.
este Sanatório? Parece bem dirigido, limpo - Encantado com tantas belezas? É novo
e organizado. Não ouvi um grito ou gemido. aqui? Quando chegou?
Trataram-me bem e sinto-me ótimo. Estranho! - Sou novo, sim. Aqui é bonito de fato.
Aquele Saulus não é médico, é louco. Diga-me, senhor, está internado aqui? Que
tem?
Página 82 - Graças a Deus estou internado aqui.
Reparando Erros Tinha, senhor. Tive uma angina que me
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt desencarnou. Estou quase bom. Já na
segunda-feira começarei a trabalhar
Quem sabe fugiu e passa por médico. - Estou com pressa, até logo. (2) A
Hospital no espaço! Imagina! Nada há no fotografia foi plasmada em beneficio ou agrado
espaço, só atmosfera. Meu Deus, e aquele a d. Efigênia. Pode-se plasmar cópias perfeitas
outro, como parece com meu pai! Que de qualquer objeto material aqui no Plano
loucura! Será que pensam que enlouqueci e Espiritual. Para isto, é só saber, D. Efigênia
internaram-me num Hospício? Por que então tinha muito carinho por esta foto e guardava
não me deixaram no meu?” Andava pelo sempre consigo. Aceitou e entendeu a
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desencarnação mais fácil e rápido que Antônio. normal. É melhor conversarmos depois, vamos
achar um modo de ir embora. Nota do Autor:
156 O perispírito é copia idêntica do corpo material
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / ou vice-versa. Principalmente os recém-
Antônio Carlos desencarnados sentem forte a impressão
da matéria, como dores, sensações e, como
Andei mais rápido que consegui. Outro Antônio, o coração, órgão que lhe preocupava
louco! Parecia tão bem! Fui andando pelo por achar enfraquecido.
jardim procurando minha sogra; temendo
não encontrá-la. “Se vou embora, não posso Reparando Erros
deixá-la aqui. Será que consigo sair daqui?” 157
Suspirei aliviado quando a vi sentada num
banco conversando com duas senhoras. Fui - Antônio, não me faz passar vergonha!
ao seu encontro e falei aflito: Entende logo. Você morreu, seu corpo morreu,
- D. Efigênia, Graças a Deus a encontro! agora vive em espírito. Não sabe que é eterno?
Bom-dia senhoras! Poderiam me dar - Somos eternos. Mas, a morte não é
licença, preciso conversarem particular com assim. Deve-se morrer, ver Deus, ser julgado...
minha sogra. As duas simpáticas senhoras - Filho, a morte do corpo é algo natural,
responderam meu cumprimento, levantaram sem estas complicações. Você morreu e,
e saíram, levantei d. Efigênia do banco e quatro dias depois, desencarnei de um infarto.
cochichei ao ouvido. Faz sete dias que dorme. Já é tempo de você
- D. Efigênia, precisamos fugir rápido entender! Olhe ali! O dr. Maurício, seu pai,
daqui! Estamos num local perigoso, num pessoa amabilíssima, conversamos muito.
Sanatório onde doentes ficam soltos. Trataram- Antônio não me fale que está com medo dele!
me bem até agora e a senhora? - Estou! Meu Deus, piedade! Se estou
- Muito bem, sinto-me ótima. sendo castigado, livra-me deste castigo. vou
- Isto é que mais me estranha. Vamos! tentar ser melhor! Não sou mau, livra-me de
- Onde? Já sabe como sair? passar por louco, depois de velho. Será que
- Não sei, mas descubro. A senhora isto tudo são delírios? Meu Deus, sempre
sabe como sair? Não!! Vem comigo, darei um fui amigo dos doentes, cuidei bem deles. Se
jeito. Imagine que eles pensam que estão no não fui melhor, perdoa-me. Falava depressa,
espaço, que estão mortos! É uma loucura total! implorava com os olhos fixos no maravilhoso
- Calma, meu filho! Calma, Antônio! céu da colônia.
Ninguém é louco. É verdade! Você e eu - Antônio, pare de choramingar! Pare já!
morremos. Você, tão ativo, estudado, Dr. Maurício!
não entendeu ainda? Aqui eles falam que - gritou, acenando a mão.
desencarnaram, - Veja seu filho Antônio aqui! Venha
abraçá-lo! Fiquei parado sentindo o coração
Página 83 bater forte e as pernas a tremer, pensei: “Se
Reparando Erros não morri, morro agora!” Maurício veio devagar,
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt sorrindo. Observei meu pai, o amigo de tantas
existências, de erros e acertos. Rápido como
é a mesma coisa. num filme, vi meu corpo adormecido no sofá
- D. Efigênia, a senhora também?! Morri? do Sanatório. Vi o dr. José Luiz entrar na sala
Mas como? Não senti, não vi! e me examinar, me vi frio, sem vida, vi meu
- E precisava? Morreu e pronto. Antônio, amigo e colega chorar dizendo: “Dr. Antônio
pense, que fazia você lá no Sanatório? desencarnou, tivemos grande perda. Alegrias
- Eu?... Não estava me sentindo bem, no Plano Espiritual para um justo!” Vi meus
meu coração estava fraco e sei que poderia filhos, netos, bisnetos, amigos, ex-clientes
parar a qualquer instante. Tinha dores no peito, chorando em volta do meu corpo. Vi meu
nas pernas, resolvi descansar e dormi, acho. enterro com inúmeras pessoas e muitas flores.
- Não se sentia bem e agora como se Maurício estava em minha frente.
sente? - Não quero assustá-lo meu filho. É um
- Muito bem, sem dores e com o coração prazer tê-lo aqui conosco. Lágrimas correram
77
pelas minhas faces, refugiei-me em seus
amorosos braços. Abraçamo-nos saudosos e tinha o perispírito todo machucado. Estendeu
felizes. Epílogo a mão esquerda, menos ferida, implorando
- Nestas minhas encarnações Antônio com o olhar, disse:
finalizou -, onde errei, sofri e aprendi, não - Ai, ai, morro de dores, ajudem-me!
há regressão, a lição quando aprendida é - Calma filha, calma! Eleve o seu
vivificada nos nossos atos, se não aprendemos, pensamento a Jesus, imagine Ele a curá-la.
a possibilidade de errarmos novamente é Os dois caridosos facultativos acalmaram-na,
grande. Remocei. Com a aparência de velho, já sonolenta repetia:
tinha a sensação de cansaço e lerdeza, - Ajudem-me, ajudem-me... Até que
impressão somente, o espírito é ágil e não tem adormeceu e começaram a recompor seu
idade. Lendo os Evangelhos, refleti muito no perispírito. Saí da enfermaria e parei no
que Jesus disse: “E conhecereis a verdade, salão. Já era hora de ir embora, afazeres
e a verdade vos libertará. Sentia-me quites aguardavam-me em outro local. Pensei em
com meus erros, necessitava conhecer, saber agradecer os amigos que pacientemente
para progredir. A situação embaraçosa pela atenderam-me, horas agradáveis passei a
que passei nesta última existência, quando escutá-los nas suas narrativas de erros e
desencarnei, foi por não saber, não entender. sofrimentos, acertos e alegrias. Mas estavam
Vim aprender a ser útil neste centro espírita, trabalhando, exerciam o dom de apaziguar
realizando meu sonho em ter conhecimentos. dores do modo mais puro, por amor. Maurício e
Sei que muito posso fazer pela Ciência, é só Antônio amam a Medicina como tantos outros,
me esforçar, estudar, pesquisar, respeitando mas, é uma profissão rendosa, comercializar
a tudo e a todos. com dores e ter lucro no nosso mundo. É justo
ter no trabalho sua remuneração, mas que
Página 84 não haja abusos e nem discriminações entre
Reparando Erros doentes. Porque somos o que construímos
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt e são nossos os frutos que plantamos, que
podem ser doces e agradáveis ou azedos e
Maurício interveio sorrindo. amargos. O salão silencioso naquela hora
- Muitas oportunidades tivemos e temos ressoava ainda a voz forte, agradável e sincera
com as encarnações, mas, é necessário querer do orador encarnado. Lembrei dos pedaços
progredir, agora, neste instante, não devemos mais bonitos da palestra da sessão anterior:
deixar para fazer no futuro. É necessário parar, “Nós aqui estamos reunidos em nome de Deus,
pensar e assimilar que aprendemos e passar tantos atos fazemos em seu nome, vestimos
a vivê-las. Porque aqui, neste centro espírita, os nus, enchemos estômagos, atos fáceis
na Doutrina Espírita, temos aprendido muito, de fazer, dignos e humanos, mas devemos
mas, não basta dizer que são verdadeiras também mudar interiormente. Ter cumprido
e maravilhosas estas lições. Para obtermos nosso dever de cristãos não significa amar,
êxito, é preciso fazer com exatidão o que nos precisamos realmente aprender a amar a
é ensinado. Observar o alimento num prato e Deus. Tantas vezes, ao sofrermos, podemos
dizer que é bom não satisfaz o estômago, é até pensar que não merecemos ou que
preciso comê-lo. • Evangelho de João, VIII, 32. estamos desamparados. Tantos, por fazer as
obrigações de cristãos, acham-se em crédito
Reparando Erros e tentam chantagear
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Da mesma forma não basta ler ou ouvir Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho /
os ensinamentos dos Evangelhos, é preciso Antônio Carlos
viver como Jesus nos ensinou. Meus amigos
foram chamados para um socorro em uma com atos externos a Divindade para obter
das enfermarias do posto de socorro no centro facilidades. Mas, quando amamos realmente,
espírita. Acompanhei-os. Num leito, estava todas as criaturas são objetos do nosso amor
uma senhora desencarnada por um acidente,

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e nenhuma recompensa devemos esperar. padecimentos. Bendito seja o socorro a mim
Jesus foi torturado e assassinado, será concedido, eu pobre espírito endividado e
que seus discípulos e parentes não ficaram pecador. Tudo tenho para ser agradecido,
desiludidos ou se sentiram desamparados? pois muito recebi! Agradeço, Senhor, por estar
Principalmente porque sabiam que Ele não nesta casa de socorro e de amor, por estar
somente fazia a vontade de Deus, como amava abrigado e orientado. Tenha complacência
a tudo e a todos do modo mais puro. Tudo de mim, Senhor, que fali na romagem da
tem sua razão de ser. Diante dos sofrimentos carne. Dai-me a boa vontade para aceitar
sejamos fortes e confiantes e teremos lições com sabedoria a lição da dor e do sofrimento,
que sabiamente nos alertarão para a correção para aprender a sustentar as obrigações do
e nos impulsionarão para o progresso. Se futuro. Dai-me a coragem para mudar meus
desiludidos ou nos sentindo desamparados enraizados hábitos viciados. Transfundi
paramos de fazer o que nos compete minhas mágoas e rancores em regozijes e
resistências. Ilumina-me para entender melhor
Página 85 suas leis de amor e de caridade, para elevar-
Reparando Erros me ao progresso. Acho-me apto para seus
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho.txt ensinamentos, dai-me a compreensão, a força
para sanar minhas dores e passar da condição
no bem, é dar vitória às trevas, é parar de ajudado a ajudante. Assim seja!”
a caminhada, é deixar de fazer. Quem pode
fazer o bem, seja de que forma for, e não faz, Reparando Erros
cria débitos. Que o sofrimento seja nosso 161
estímulo para melhorarmos e que possamos
semear a melhor das sementes para produzir Agora, com maior entendimento, li
melhores e doces frutos.” Grandes verdades novamente os dizeres do quadro: “Louvado
aprendemos em centros espíritas, orientados seja o Senhor pelas oportunidades de reparar
por estudiosos e pessoas conscientes do seu nossos erros.” (Amanis.) Lembrando dos
dever cristão. Não estava mais sozinho no dizeres de um amigo, que em cada boa história
salão, um trabalhador novato estava a orar, proveitosas lições tiramos, contente passei
sentado num canto. Chamou-me atenção pela ao pátio. O Sol, nosso astro-rei, começava
sua fisionomia suave e por estar concentrado lentamente a surgir no horizonte, tingindo de
na sua oração. Sem querer ser intrometido, vermelho o céu. Parti feliz.
escutei sua prece sincera: “Bendito seja o Página 86
Senhor, consolador dos meus ais e dos meus

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