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CASTELO DE AREIA

O senhor de cabelos grisalhos e olhos azuis entrou no luxuoso edifício pela entrada
principal, tornando-se rapidamente o foco de todas as atenções. As dezenas de
funcionários pararam seus afazeres e fitaram com admiração o dono da empresa de
tecidos que levava seu nome: Klaus Têxtil.
Subiu em um elevador privativo até o décimo terceiro andar, último do extenso prédio.
Quando adentrou na sua sala, deparou-se com uma mulher loira de olhos acinzentados.
Uma frieza glacial foi então desfeita diante do calor de sentimentos.
---Minha bela Isabela. Já estava com saudades.
---Mas faz apenas algumas horas que não nos vemos, meu amor. A saída de ontem a noite
foi inesquecível.
---Um minuto longe de você é uma eternidade.
Beijou o rosto angelical da fascinante mulher, sentou-se no seu birô, de frente a uma pilha
de papeis. Prestativa, ela organizou as folhas em pequenos blocos.
---A organização não é uma virtude do meu amado.
---Compenso bem esse defeito com várias qualidades. Com elas vim de baixo e construí
meu próprio império.
Caminhou até uma janela de vidro temperado e enxergou do ponto alto o cenário urbano
ao seu redor. Havia um grande fluxo de pessoas, de veículos e de recordações. Uma gota
de neblina cruzou o vidro, em sintonia com uma lágrima que rolou por sua face.
---Saudosismo? Plantou e agora está colhendo os frutos.
---Tudo valeu a pena e minha alma nunca foi nem será pequena.
Isabela se aproximou do namorado, abraçando-lhe por trás.
---Não falou mais da nossa viagem à Paris. Há algumas semanas estava mais empolgado
do que eu.
---Aconteceu como em meus negócios, os fatos às vezes nos forçam a mudar de ideia,
traçar novos planos.
---Já pensou em outro destino? Confiarei em ti e aguardarei a surpresa.
---Farei surpresa, minha bela.
A jovem que usava um vestido amarelo decotado olhou em seu celular fotos de cidades
europeias, imaginando-se em cada um dos cenários vistos. Uma chamada brilhou na tela
do aparelho junto a um nome: Beto.
Com olhos de águia, o empresário visualizou e identificou o responsável pela ligação.
---Meu sócio ligando pro seu número?
---Como se não estivesse acostumado. Sempre esquece seu celular quando sai às pressas
e o Beto recorre a mim, sabe que eu e você somos inseparáveis.
Klaus atendeu a chamada e a pauta discutida foi negócios. No final do contato, fez um
convite para um almoço em sua casa. Queria toda a família reunida e de certa forma Beto
fazia parte dela.
O encontro programado aconteceu no final daquela manhã numa mansão em bairro nobre.
Estavam reunidos em torno da mesa Klaus, Isabela e dois jovens silenciosos. O rapaz de
cabelos cacheados e de olhos esverdeados se chamava João Carlos e tinha dezesseis anos.
A moça de cabelos ruivos e de olhos cor mel se chamava Maria Luiza e tinha dezessete
anos. Tinham em comum o fato de serem filhos do multimilionário, frutos de seu primeiro
casamento. O convidado especial chegou com alguns minutos de atraso. Tratava-se de
um senhor também grisalho com sorriso tácito.
---Meu braço direito e o esquerdo também.- pronunciou o anfitrião, amistoso.
---Gosto mais quando me chama Beto. Desculpe pela pequena demora.
---Como costuma dizer papai, tempo é dinheiro, não pode ser perdido.- frisou João.
Klaus assentiu satisfeito diante do herdeiro à sua imagem e semelhança. Na filha até então
calada enxergava, porém, o contraste de seu reflexo.
Não reparou quando a namorada se ausentou por instantes trazendo duas taças com vinho.
---Branco, seu favorito. Um pra cada sócio. João e Maria ainda são menores de idade, não
devem beber.
A filha primogênita de Klaus recebeu a última colocação com um sorriso amarelo.
---A que brindamos, Beto?
---À vida e aos negócios.
Os sócios brindaram e tomaram o conteúdo alcoólico das taças em um só gole.
Breves instantes separaram o brinde do súbito desmaio do multimilionário, que desabou
na longa mesa sobre pratos e bandejas. Sócio, namorada e filhos se amontoaram sobre o
corpo desfalecido.
---O que pôs na bebida do papai, assassina? Não é a primeira vez que ele perde a
consciência assim. Deve estar envenenando ele aos poucos.
As fortes palavras atingiram em cheio a namorada de Klaus, deixando-lhe exaltada.
---Como se atreve a me acusar dessa forma, Maria? Você está envenenando seu pai contra
mim, mas não surtirá efeito, ele sabe bem quem eu sou.
Os olhos se abriram lentamente, a audição já havia capturado as últimas palavras de uma
voz de tom grave.
---Claro que sei quem é você, Bela. Não quero discussões aqui, só fiquei um pouco tonto,
tinha um tempo que não tomava bebidas alcoólicas.
---O check up médico está em dia?
---Em dia, em hora e em minuto. Fiz uma bateria de exames e minha saúde é de ferro.
A governanta serviu a refeição e os presentes puderam saborear um delicioso creme de
mariscos. A doce sobremesa foi comida em meio a um clima amargo.
Após uma conversa ligada ao mundo dos negócios com o sócio, o milionário chamou os
seus filhos para uma conversa reservada. Os jovens sentaram em cadeiras frontais ao
empresário, como se em bancos de réus.
---Julgaram e condenaram a Isabela? Não acham que o pai de vocês possa ter conquistado
uma mulher trinta anos mais jovem?
---A Maria sempre antipatizou com ela, eu sim acho que ela ama o senhor, não o seu
dinheiro.
---Muito bem, João Carlos. Não poderia ficar só para sempre depois da morte da mãe de
vocês. Hoje à noite marcarei um importante encontro com a Isabela na empresa e isso
mudará a vida de todos nós.
---Não me diga que o senhor irá pedir a mão daquela mulher em casamento. Seria o pior
dos erros, pai.
Ele passou uma das mãos nos cabelos ruivos da primogênita. Uma lembrança lhe veio à
mente: duas crianças corriam perto de uma praia deserta, de repente pararam em lados
opostos, sentaram-se e com a areia esculpiram castelos, havia uma disputa sobre quem
faria a edificação mais alta e mais bonita. Naquele momento, tinha as duas crianças
recordadas à sua frente.
A namorada foi a visita seguinte que entrou no ambiente reservado após a saída dos
irmãos.
---Terei um resto de tarde e início de noite de muitas reuniões. Às dez horas da noite
quero a minha bela no décimo terceiro andar da minha empresa. Nem pergunte o porquê,
sei que adora ser surpreendida.
---Como me conhece bem, amor. Estarei lá na hora marcada. Certamente não haverá mais
nenhum funcionário, estaremos só nós dois.
Um beijo delicado selou o encontro marcado.
Depois de várias reuniões conforme previsto e de confirmar que se encontrava sozinho
no andar, ele iniciou a preparação do cenário para receber a namorada. Havia um objeto
separado num móvel baixo junto à duas taças e a uma garrafa.
Ouviu quando a porta do elevador se abriu e o impacto de saltos altos sobre o piso de
granito, um suave perfume dominou o ar de forma sutil. Ela parou na porta do escritório
presidencial, usava um deslumbrante vestido estampado, presente dado por ele na ocasião
do seu aniversário. Teve os olhos vendados pelo namorado.
---Mal posso esperar para saber o que meu amor me preparou.
Após alguns passos, Klaus retirou a venda, que caiu. Um belo ambiente se desenhou na
visão da jovem namorada. Havia várias pétalas vermelhas espalhadas pelo piso, formando
um caminho até uma porção próxima à mesa principal.
---Tudo tão lindo, amor.
Ele preencheu as taças com vinho enquanto ela, metódica, organizava a nova pilha de
papéis sob o birô. Dois envelopes amarelados grandes se destacaram em meio às resmas.
Ela os pegou, fitando o namorado.
---A curiosidade que tanto tem não é uma virtude. Sei o que quer fazer em seguida, mas
antes tomemos uma taça do meu vinho favorito, o tinto.
Uma lembrança do mesmo dia ocupou a mente dela.
---Verdade, me confundi mais cedo quando servi o vinho branco como seu predileto.
---Percebi. Nem sempre se atenta aos detalhes, querida, eu sim.
Tomaram o vinho e o empresário entregou uma pequena caixinha vermelha nas delicadas
mãos da jovem, apontando para um dos dois envelopes.
---Quero que abra os dois ao mesmo tempo.
Os olhos dela brilhavam intensamente, já projetando o que encontrariam após a abertura.
---Meu amor, um anel de compro...
Ficou imóvel diante de uma caixa vazia e das fotografias que existiam no primeiro
envelope. Nelas ela aparecia de mãos dadas e trocando carícias com um conhecido
homem em um quarto de hotel.
---Você e meu sócio Beto, amantes. As fotos foram tiradas por um profissional que
contratei para seguir o passo dos dois noite e dia. O vazio da caixa é como deixou meu
coração quando descobri tudo. A venda sobre meus olhos também caiu.
O sorriso se converteu em uma seriedade agressiva.
---Pensou mesmo que eu me derreteria de amor por um homem como você? Olhe-se no
espelho, veja como o tempo pode ser cruel, Klaus.
Caminhou em direção à saída sendo barrada pelo empresário, que parou em sua frente lhe
entregando o segundo envelope.
---Aqui está a penúltima surpresa da noite.
---O que ainda preparou? Uma carta de despedida para mim e para o seu amigo falso?
Saio da sua vida com maior prazer. Sem dinheiro você é invisível pra mim...
Deparou-se com imagens de tomografias e ressonâncias, junto a laudos médicos.
---Como sabe o desmaio de hoje não foi o primeiro. Fiz de fato um check up e os
resultados finais foram avassaladores: tenho um tumor cerebral inoperável, estou
desenganado.
Ela recebeu a revelação com palmas secas e um sorriso aberto.
---Aproveite enquanto pode. Estou saindo da sua empresa e da sua vida agora.
Sereno e triunfante, Klaus consultou o relógio de pulso.
---Sinto dizer que não poderá sair daqui. Não terá tempo, pra você ver como o tempo pode
ser cruel.
Uma lembrança habitou sua mente: numa praia, duas crianças observavam os castelos de
areia construídos um pelo outro. Quem ganharia a competição? Num ato brusco, cada um
destruiu a obra do rival com as mãos.
Três explosões simultâneas destruíram os alicerces do edifício, que desmoronou em
questão de segundos.
OLHO POR OLHO

A porta do veículo conversível se abriu e ela desceu imponente. Longos cabelos ruivos, olhos cor mel
e ostentando um belo e inseparável colar de pérolas negras. Um guarda-costas a seguia de perto. Com
um caminhar que lembrava um desfile em passarela passou por uma calçada próximo a uma esquina.
Tropeçou em algo que a fez perder o equilíbrio.
---Mas o que é... Como pode deixar essas velharias no meu caminho?
O olhar visualizou contrariado um senhor barbudo com roupas desgastadas deitado no chão frio junto
a algumas caixas de papelão. Quando ele se levantou e estendeu a mão em atitude pedinte, a jovem
rica percebeu um detalhe marcante em seu rosto: era caolho.
---Um olho cego, o outro vê uma bela madame que me ajudará. Pode ser uma moeda ou alguma
comida. A cavalo dado não se olha os dentes.
Com uma seriedade impenetrável, pegou de sua bolsa uma moeda de cinquenta centavos e a jogou
num chapéu próximo ao mendigo.
À espreita, um homem de bigode desconfiado observava toda a cena transcorrida, traçando os futuros
passos.
Malu era uma jovem multimilionária herdeira de um imenso patrimônio e de uma imensa fortuna. A
riqueza não foi benéfica para o seu comportamento, convertendo uma bondosa adolescente em uma
petulante adulta. Passara a valorizar o material em detrimento do sentimental.
Naquela calçada estava uma das lojas de roupas espalhadas pela Capital da qual era dona. Visitava
todos os dias o local para acompanhar a organização e sobretudo os orçamentos.
Entrou no ambiente repleto de trajes finos e de clientes. Encontrou-se com uma senhora magra que
usava óculos com lentes de armação vermelhas e que era a gerente da loja.
---Esse pedinte aqui em frente vai atrapalhar o fluxo de clientes. Temos que dá um jeito de tirá-lo daí.
---Geralmente muitos se comovem com a deficiência desse senhor e lhe dão uma boa quantidade de
dinheiro.
---De mim ele terá poucos centavos. Gosto do dito cada macaco no seu galho.
---Ditos populares... O homem cego sempre diz um novo pra cada nova pessoa a quem pede esmola.
Algumas horas mais tarde quando a multimilionária passou pela calçada retornando ao seu carro ouviu
a fala de um homem maltrapilho sentado no meio-fio.
---Madame é rainha e em terra de cego quem tem um olho é rei.
Indiferente às palavras pronunciadas, partiu junto ao seu segurança rumo à uma mansão.
Nas semanas seguintes, o trajeto até a loja central se repetiu, assim como a presença constante do
mendigo observador. A jovem apática dava ao mendigo quantias decrescentes como esmolas à medida
que encontrava dia a dia o pedinte; numa proporção equivalente, diminuía a paciência dela com a
situação.
Naquela sexta-feira, a moeda jogada no chapéu velho foi de apenas um centavo. O mendigo
cantarolava uma canção romântica.
---Quem canta seus males espanta. Concorda?
---Se tivesse certeza disso, cantaria bem alto para espantar um elemento que está fazendo mal aos
meus negócios. Estou pensando em tomar providências contra esse alguém.
Virou as costas para o pedinte, seguindo rumo à loja de roupas. Um novo dito foi ouvido quase que
simultaneamente.
---Cão que ladra não morde.
Enquanto visitava e coordenava as ações no local, teve os passos acompanhados por dois homens: um
guarda-costas e um enigmático homem calvo com bigode.
Por volta de quatro da tarde, seguindo uma rotina, deixou o estabelecimento. No percurso até o
automóvel conversível quase caiu após um novo tropeço.
---Tinha uma pedra no meio do caminho...
---Parece que se esconde em mil lugares ao mesmo tempo, atrapalha em todos eles. Não tenho mais
moedas para ti.
---Um bom conselho não tem preço: tem um homem estranho te seguindo nas últimas semanas.
As últimas palavras interromperam seus passos apressados. Virou-se, curiosa.
---Outro homem estranho além de você? Quem sabe um paparazzi.
---Se eu fosse a madame tomaria cuidado. Quem avisa amigo é.
---Não sonhe grande, jamais serei amiga de alguém como você.
Com uma indiferença glacial andou de salto alto na direção do seu carro. Um homem de bigodes a
barrou, colocando um revólver colado à sua cintura. Um espanto mudo dominou a dama empresária,
manteve um grito latente.
---Tire muito discretamente o colar de pérolas e me entregue. Sem escândalos.
Malu seguiu as instruções, pondo a joia, antes ostentada em seu pescoço, nas mãos do malfeitor.
Imobilizada pelo medo, visualizou quando três outros homens morenos cercaram e renderam seu
guarda-costas. O seu algoz, por sua vez, correu e entrou num beco deserto.
Uma pessoa conhecida se levantou agilmente da calçada e seguiu o ladrão. Alguns instantes depois se
ouviu um tiro e se gerou um pequeno alvoroço.
A empresária, antes inerte, encaminhou-se até o beco pouco iluminado onde algo alheio a seus olhos
havia ocorrido. Um homem maltrapilho surgiu triunfante com uma arma numa mão e um colar de
pérolas em outra.
---Arriscou-se para recuperar minha joia?
---Nunca se separa dela, com certeza deve ser muito importante para você.
---Sim, é especial, foi de minha mãe.
Pegou o colar e surgiu um vestígio de emoção no seu olhar, logo eclipsado pela petulância habitual.
---Não vai ganhar nenhuma recompensa se é o que pretendia. Somente terá meu agradecimento.
---Não quero nada. Aquele ladrão foi embora e recuperei sua joia, isso que importa.
À essa altura, um segurança golpeado foi largado por seus agressores e correu até sua protegida.
---Está bem, senhora? Esses bandidos queriam somente o colar, devem fazer parte de alguma quadrilha
de tráfico de joias.
Malu posicionou o colar em seu pescoço e a arrogância em sua fala.
---Um mendigo fez o trabalho que correspondia a ti, será difícil manter seu emprego.
Distanciou-se e partiu, deixando no ar uma profunda indiferença.

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Num galpão abandonado, reuniam-se cinco homens. Um deles, calvo e com bigodes, analisava a
bela peça que tinha em mãos.
---Um legítimo colar de pérolas negras, maravilhoso. Tivemos que esperar um tempo, mas tudo saiu
como planejado, verdade, chefe?
Um senhor barbudo e caolho fitou o cúmplice com um sorriso triunfante.
---A pressa é inimiga da perfeição, amigo. Precisávamos desse tempo para dia a dia observar de
perto o colar: número de pérolas, tons do preto, tipo de acabamento, assim conseguimos confeccionar
uma réplica perfeita. Esconder-me por trás do disfarce de mendigo foi fundamental.
---Usou com eficiência a sua deficiência. Aquela ricaça merecia um castigo diante das humilhações
que proporcionou, da petulância, da frieza.
O chefe pegou a joia e a pôs ao alcance de sua visão prejudicada.
---Olho por olho...
O TESTAMENTO

Os aplausos cercaram a típica canção de aniversário. A comemoração ocorria como costumeiramente


numa robusta casa de campo. Em torno da mesa, havia sete pessoas incluindo o aniversariante no auge
dos seus cinquentas anos completados. Tratava-se de um renomado empresário chamado Roberto
Mota, um homem carismático de sorriso jovial. Perto dele havia um senhor de similar cabelo grisalho
cujo nome era Carlos e que era seu médico pessoal. No local estavam também o mordomo que
trabalhava há mais de uma década na casa, era um senhor tão branco como a neve, de estatura mediana,
que se chamava Benjamin. Duas primas do milionário também o aplaudiam com entusiasmo, eram
igualmente altas e magérrimas, tendo como nomes Ruth e Raquel. Mais afastados estavam um homem
moreno de olhos esverdeados, cujo nome era José e que era irmão do anfitrião e uma mulher loira de
olhos castanhos, que era a nova noiva do dono da casa, chamando-se Liz.
O sopro que apagou as dezenas de velas pequenas foi acompanhado de um pedido secreto.
---O que meu primo terá pedido? Dinheiro está descartado, já tem sobrando.
---Há muitas coisas nessa vida mais importantes que o dinheiro, Ruth. E essas coisas não sobram,
muitas vezes faltam.
Um beijo carinhoso foi dado de surpresa por uma namorada alegre.
---Meu amor filosofando. Muito bom ver você assim, cheio de vida e de saúde.
Enquanto o mordomo cortava os pedaços do bolo confeitado e os servia aos presentes, um irmão
discreto se aproximou de um médico sério.
---Como anda a saúde do meu hermano?
---Muy bien. Acho que mais meio século ainda estão por vir.
---Deus te ouça, doutor Carlos.
O pequeno diálogo foi ouvido pelas duas primas enquanto saboreavam pedaços doces. Sucederam-se
comentários amargos.
---Isso não é nada bom pra noiva caça-fortunas que certamente está de olho na herança, pelo menos é
o que penso dela, aliás, o que nós pensamos.
---Verdade, Raquel. Essa daí de flor só tem o nome.
O toque de um telefonema na sala adjacente chamou a atenção de todos os presentes. Foi o mordomo
que atendeu a chamada e passou o telefone para o patrão. Segundos depois, uma expressão feliz foi
convertida em firme seriedade.
---O que houve, meu amor?
---Um problema em uma das empresas. Terei que ir de urgência até a cidade.
---Dirigir a essa hora da noite nessa estrada perigosa? Não.
---Liz, meu amor, aqui não sigo, dou as ordens. Pegue as chaves do meu carro que estão no criado
mudo do meu quarto, Benjamin.
Sob olhares intrigados, deixou a celebração do próprio aniversário às pressas.
Cerca de uma hora depois, uma nova chamada ocorreu, dessa vez no celular do médico. Estava junto
aos demais tomando vinho na sala principal e sua taça pareceu oscilar em suas mãos trêmulas. O
telefonema acabou e as interrogações começaram.
---Por que essa cara?- indagou José.
---Ligou um conhecido amigo paramédico. Um carro caiu de um barranco e explodiu. Foram
encontrados alguns documentos e pertences da única vítima no local do acidente. Roberto está morto.
Seguiu-se uma aparente incredulidade coletiva.
O médico cuidou junto ao prestativo José da organização do velório e do enterro, que se realizaram
na manhã seguinte. Os restos mortais estiveram em caixão fechado.
No início da tarde ocorreu, no escritório da mansão de Roberto, uma reunião que contava com a
presença de todos que estavam na casa de campo. Havia somente uma pessoa a mais: um homem alto
de cabelos ralos e finos que era advogado e que trazia em mãos um importante documento.
---É necessário que proceda a leitura do testamento deixado por meu cliente.
Uma jovem loira passava delicadamente um lenço nos olhos marejados de lágrimas.
---Isso pouco importa se não tenho o meu noivo.
O advogado abriu o envelope em meio a trocas de olhares.
---´´ Eu, Roberto Mota Passos, em pleno uso e gozo de minhas faculdades mentais e livre de qualquer
sugestão, induzimento ou coação, disponho sobre meus bens da seguinte forma: As empresas das quais
sou dono e nas que atuo em sociedade como acionista devem ser administradas por meu irmão, José
Mota Passos. As fazendas, as casas de campo e do litoral e a mansão na Capital, por sua vez, devem
ficar com minha Liz Vilela. O dinheiro das minhas contas bancárias no Brasil e no exterior deve ser
dividido em cinco partes entre o meu irmão José Mota Passos, minha amada Liz Vilela, minhas prima
Ruth Passos, minha prima Raquel Passos e meu estimado amigo doutor Carlos Montenegro.´´
Um homem moreno de olhos esverdeados se levantou de onde estava sentado.
---Mesmo valor dos demais pra mim que sou irmão, sangue do sangue dele? Todos os imóveis
nas mãos de uma oportunista... Isso não é justo.
---Sou da família do falecido, aliás, Raquel e eu somos, e não queremos dividir nada com essa
caça-fortunas que nem sequer chegou a se casar com nosso primo.
---Ruth está coberta de razão, o nome da Liz deve ser apagado desse documento.
Lágrimas cessaram como se em um passe de mágica. Uma tristeza sofreu metamorfose e passou
a ser satisfação.
---As primas e o irmão terão que aceitar a última vontade do meu noivo. Lembrem-se que agora
estão na minha casa. Os incomodados que se mudem.
Benjamin entrou servindo xícaras de café aos presentes. O advogado pegou uma e tomou um gole
antes de retornar à leitura.
---Continuando: ´´Para que os herdeiros tenham acesso aos respectivos bens herdados devem
permanecer morando na minha casa na Capital durante período mínimo de seis meses. Caso contrário
terá o que seria herdado repartido entre os demais. Declaro não haver testamento anterior, de modo
que dou por encerrado esse testamento que está assinado por mim e pelas testemunhas para que tenha
efeito.´´ Documento assinado e registrado em cartório.
José gargalhou em contraste com os demais que se mantiveram sérios.
---Só pode ser uma piada de mal gosto.
---Não é. Meu amigo Roberto quis assim, eu fui uma das testemunhas. Não viverei nessa casa, abro
mão de qualquer dinheiro, porque para mim uma amizade não tem preço.
As irmãs Ruth e Raquel aplaudiram as palavras marcantes do doutor.
---Eu aceito o desafio e a quantia que meu primo me deixou. Aliás, nós aceitamos, falo por mim e
pela Ruth. Já iremos buscar as malas.
---Acho que por hoje não teremos mais surpresas desagradáveis.
A fala de José foi seguida pela entrada de um homem gordo e careca que trazia em mãos alguns
papéis, entregando um a cada presente no escritório.
---Comunico que foi aberto um inquérito para investigar a morte do senhor Roberto Mota. Há
indícios no local da explosão que indicam que não se tratou de um acidente, o carro em que ele estava
pode ter sido sabotado. Todos estão intimados a depor amanhã na delegacia.
---Meu noivo foi assassinado?
José pegou o documento das mãos do advogado inerte e o ergueu próximo do rosto da jovem mulher.
---Espantada? Aqui ficou claro que você foi a principal beneficiada da partida prematura do meu
irmão.
---Todos aqui fomos beneficiados, cunhado. Com exceção de uma pessoa.
O dedo indicador apontou para o homem branquelo que segurava uma bandeja.
---Eu não quero nenhum dinheiro ou casas. Além de um bom patrão, perdi um bom amigo.- disse o
mordomo.
Ruth pegou o testamento das mãos de José, observando trecho a trecho.
---Mais de dez anos de serviços prestados e nem um centavo furado. Não conhecia esse lado ingrato
do meu primo. Não tenho nada a ver com a morte do Roberto, aliás, não temos, falo por mim e pela
Raquel.
Os suspeitos se entreolharam, parecendo estar unidos por um fio de alta tensão.

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Durante a noite, eventos estranhos aconteceram no interior da mansão Mota. O primeiro se passou
na suíte antes pertencente ao empresário falecido e no momento ocupado por sua noiva. Ao sair do
banheiro, Liz se deparou com uma aliança dourada sobre a cama. Trêmula, pegou o objeto. Nele
estavam gravadas as letras R e L. ´´Impossível, essa aliança foi enterrada junto com o Roberto.´´ Um
vulto pareceu atravessar correndo a porta entreaberta, fazendo com que ela estremecesse.
---Será que ele voltou buscando vingança? Não fui eu que sabotei aquele carro e te matei. Você
deveria morrer só depois do casamento, depois da comunhão de bens. É você que está aí, meu amor?
Olhando da porta enxergou apenas um longo corredor vazio.
Num quarto de hóspedes, perto da suíte, um homem moreno estava dormindo e acordou com o som
de passos. Ao seu lado estava uma conhecida calculadora financeira. ´´Que brincadeira é essa? É a
calculadora do Roberto, ele quase nunca se separava dela. O que ela faz aqui?´´
Num outro quarto, duas irmãs escolhiam os vestidos que usariam no jantar quando se depararam com
uma peça de roupa conhecida em meio às delas. Tocaram-na de sobressalto.
---O terno cinza do Roberto, ele usou inclusive no noivado com a caça-fortunas. Não estava aqui há
uma hora quando pusemos nossas roupas no closet.
Trocaram um olhar de temor.
---Se ele voltou para descobrir quem o matou? Eu não seria capaz, aliás, falo por nós, nunca faríamos
mal contra nosso primo. O culpado tem que aparecer.
---Os mortos não falam nem escutam, Ruth, e o que sei é que essa herança chegou na hora certa.

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Os novos moradores estavam reunidos para a refeição noturna por volta das oito horas. Estava
também presente o médico pessoal do senhor Mota. Um silêncio gélido foi quebrado por uma noiva
desconfiada que revelou um objeto de ouro que tinha em mãos.
---Quero saber quem de vocês colocou isso no meu quarto.
---Talvez a mesma pessoa que pôs um terno do Roberto no meu quarto, aliás, nosso quarto.
---E uma calculadora dele no meu cômodo também, Ruth.
Carlos pegou a aliança e a observou com atenção.
---Estava junto ao corpo. Eu e José vimos quando preparamos o enterro.
---Isso foi o que vocês me disseram, não pude nem quis ver os restos mortais carbonizados do meu
noivo.
Benjamin, que servia algumas taças de vinho, fez um movimento em falso e derrubou o líquido
alcoólico sobre o vestido azul turquesa da herdeira principal.
---O que você fez, inútil? Sabe quantos salários seus precisaria para pagar esse vestido? Assim que
eu assumir de vez o controle dessa casa vou te colocar no olho da rua.
Humilhado, o mordomo se dirigiu até a cozinha, retornando com uma bandeja. Pratos e talheres já
estavam dispostos na longa mesa.
---O que tem para nos servir?- indagou José.
Benjamin destampou a bandeja e, gerando surpresa, o que ficou visível não era nenhuma comida do
jantar, mas sim um documento. A nova dona da mansão foi a primeira a pegar a folha e analisá-la,
tratava-se de carta-testamento assinada pelo falecido empresário.
---Isso não é possível, aqui o Roberto torna o mordomo herdeiro universal, nos deixando sem nada.
---Esse texto não tem valor. No documento oficial lido pelo advogado meu primo foi claro em dizer
que não havia testamento anterior e que somente o apresentado seria o que valeria.
Uma sombra se aproximou a passos curtos, revelando-se diante da visão de todos.
---Essa determinação foi escrita há pouquíssimo tempo, Ruth, hoje é esboço, amanhã será o
testamento legítimo.
O milionário sentou numa das cadeiras da ponta da mesa, fitando os familiares e a noiva com
seriedade.
---Ro... ber... to. Está vivo? Como é possível?
---Sim, e agora, José? Tudo foi planejado com a ajuda do meu amigo médico. Tive que gastar uma
pequena fortuna com policiais e paramédicos, mas valeu a pena.
---O caixão fechado...
---Sim, Raquel, a justificativa era ocultar um corpo totalmente carbonizado e irreconhecível. O único
peso que havia ali era o de tijolos. Por isso estive à frente da organização do velório e do enterro, José
foi só um ajudante coadjuvante.- afirmou o médico.
---A farsa foi desenvolvida em seus mínimos detalhes. Um carro foi jogado de um barranco, houve
uma explosão e a presença posterior de paramédicos da confiança do Carlos. A imprensa compareceu
em peso para noticiar minha suposta morte.
---E então veio o falso testamento?
---Meu pedido ao apagar aquela vela de aniversário foi que o plano tivesse êxito. Tudo esteve
combinado com meu advogado. Nunca foi um testamento, mas sim um testa mente. Queria testar
todos vocês, ver como agiriam diante da minha partida e da possibilidade de acesso à minha fortuna.
Estipulei um prazo de seis meses nessa casa como condição para serem herdeiros, e os novos
moradores deixaram cair as máscaras em menos de um dia. A mansão era um campo seguro que eu
pude explorar, inclusive com escutas e câmeras às escondidas. Ouvi inclusive quando minha
ambiciosa noiva desejou minha morte tão logo casássemos com comunhão de bens, verdade, Liz?
Meu ambicioso irmão já tinha pedido um levantamento detalhado da fortuna que lhe caberia e você,
minha prima Raquel, agiu sem demonstrar qualquer sentimento com minha memória, somente
externou puro interesse, aliás, as duas irmãs externaram, se fossem gêmeas não seriam tão
mediocremente parecidas.
---Eu não quis aceitar a proposta de viver na casa, não fiz questão da herança. Ninguém seguiu meu
exemplo. E, entre todos, a única pessoa que mostrou afeto pelo suposto morto foi justamente aquele
que não foi citado no falso testamento.
---E ele só soube da verdade no final da tarde quando lhe procurei e contei tudo. Eu mesmo pedi que
ele colocasse alguns objetos pessoais em cada um dos quartos. Queria checar a reação dos meus
monitorados. Ele tinha agilidade e livre acesso aos cômodos.
Olhares de ira oscilaram entre o empresário reaparecido e seu mordomo.
---Benjamin será meu único herdeiro. Os humilhados serão exaltados. Quanto a vocês, quero todos
fora da minha casa e da minha vida.- disse, enquanto pegava um documento e um isqueiro.
Um falso testamento e vários planos ambiciosos coletivos foram convertidos em cinzas.
FIEL DA BALANÇA

Uma senhora ruiva que vestia roupas coloridas e que usava muitas pulseiras colocava e embaralhava
cartas sobre uma mesa miúda. Olhos grandes e atentos acompanhavam a ação.
---Deixe de suspense, Cassandra. O que está vendo nessas suas cartas? Meu casamento está ameaçado?
A mulher de frente para a cartomante era magra, morena e de cabelos negros presos, chamava-se
Angélica e era sua vizinha.
---Vejo a sombra da traição. É como se a palavra amante saltasse do baralho.
---Não será diamante e está fazendo uma leitura equivocada? Esperava que me previsse fortuna e me
revela que meu marido me trai.
---Posso ver uma mulher de vermelho, sensual, provocativa. Já não há dúvida sobre a infidelidade do
seu marido.
A esposa séria derrubou as cartas do baralho no chão.
---Basta. Não quero mais detalhes. Se o meu esposo estiver com outra vou descobrir a verdade.
Despediu-se da vizinha com um aceno e seguiu até a casa adjacente onde morava. Tratava-se de uma
residência modesta com dois cômodos. Ali vivia sozinha com o marido Juca, que trabalhava como
taxista.
Já eram onze da noite quando um homem jovem de cabelos cacheados e olhos esverdeados entrou na
morada, dirigindo-se direto à cozinha. O jantar já estava disposto na mesa: frango à milanesa com
suco de maracujá.
---Preparou tudo do jeito que gosto.
Uma esposa dedicada serviu o recém-chegado e lhe deu um beijo carinhoso.
---O dia hoje foi movimentado e a noite também. Que bom que encontrei uma mulher amorosa e
presente.
Enquanto ouvia o marido, ela verificava se havia alguma marca em sua camisa ou cheiro de perfume
feminino.
---Ciumenta e possessiva também. Afinal, ninguém é perfeito. Se tem algum vestígio de perfume aí é
das minhas passageiras do táxi. Também não encontrará qualquer sinal de batom.
---Muito engraçado, Juca. Tenho que ficar de olho em ti. Vive na rua praticamente, só passa em casa
para as refeições e para dormir já tarde da noite. Além de trabalho só me vem três opções à mente:
mulher, bebida e jogo.
---Acerta em duas das opções que disse. Ambas inofensivas.
Angélica o encarou com expressão raivosa.
---Bebida e jogo. Mulher pra mim só existe uma e está bem na minha frente.
Ele recordou de uma cena naquela mesma noite em que estava num bar com amigos jogando baralho
e tomando cerveja, quando uma sedutora mulher de vestido decotado se sentou no seu colo.
---Não tenho tanta certeza. Estive hoje na Cassandra e ela leu as cartas...
---Aquela mulher é uma cigana de araque. Trabalho até essa hora pra te dar um mínimo de conforto,
meu anjo.
---E como em vários dias hoje está desgastado e estressado.
---Sua comida e seu suco sempre me deixam mais relaxado.
Após a refeição se dirigiram até o quarto de casal. Deitados na cama, a esposa precipitou um abraço,
que se perdeu em meio ao sono do marido.
Como um sonho, o taxista lembrou do restante da cena que antes passara entrecortada em sua mente:
no bar, afastou a mulher de vestido verde e deixou claro que a única mulher que desejava era sua
amada esposa, Angélica, seu anjo.
Uma esposa recatada soltou os cabelos, maquiou-se e abriu o guarda-roupa, retirando um vestido
vermelho, que pôs em seguida.
´´--- Posso ver uma mulher de vermelho, sensual, provocativa.´´
Antes de sair pela porta dos fundos da casa, passou na cozinha e se certificou que havia escondido em
ponto seguro o sonífero aliado que sempre colocava nos sucos servidos ao esposo.
Deixou discretamente o lar e caminhou até uma esquina escura nas adjacências, onde um carro
prateado já a esperava. Entrou no automóvel e trocou um beijo apaixonado com o condutor.
´´---Vejo a sombra da traição. É como se a palavra amante saltasse do baralho.´´
No seu casamento, sua falsidade e sua desfaçatez nunca constituíram um peso e encontravam
equilíbrio na ingenuidade e no amor do marido.
Um fato era certo e surpreendente: O verdadeiro fiel da balança era Juca.
UM BRINDE FATAL

Uma mão misteriosa acrescentou sutilmente o veneno mortal à uma taça que estava em posição central na
bandeja, mais quatro taças afastadas ocupavam as pontas do objeto de metal. O iate onde se encontrava
estava repleto de pessoas. Faltavam menos de cinco minutos para a meia noite. Um novo ano nasceria e
uma pessoa morreria simultaneamente.

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Um homem baixo de olhos profundamente escuros pegou um microfone e cantou uma música cujo tema
era o ano novo. Quando terminou foi fortemente aplaudido. Tratava-se de um conhecido deputado
chamado Valdimiro Cunha. O próprio havia convidado algumas seletas pessoas para acompanharam a
virada do ano num passeio em seu luxuoso iate.
Entre os principais presentes estava a filha do anfitrião. Uma mulher alta, de pele alva e de expressões
delicadas, cujo nome era Vitória.
---Quinze minutos para um novo ano, papai. Já pode mandar preparar os fogos de artifício.
Também estava na embarcação a esposa do político, Tereza. Uma mulher magra de cabelos chanel negros
e de sorriso extremamente branco.
---Mal posso esperar pra ver todas aquelas cores brilhando no céu.
Ao lado do anfitrião havia um homem de cabelos ralos e de porte atlético. Caminhou alguns passos e
beijou sua cônjuge.
---Vitória, meu amor, seu pai pensou em tudo, em cada detalhe.
---Papai sempre foi astuto e detalhista, Mário. O advogado dele não é muito diferente.
---Advogado e genro, cada vez estou mais presente na vida do grande deputado.
---Mamãe me contou hoje uma grande novidade, que poderá me confirmar e detalhar. Papai fez alterações
no testamento?
---Seu marido tem uma grande qualidade além da fidelidade: ética profissional.
Próxima do casal, porém alheia ao diálogo, estava uma mulher morena, alta, de traços orientais. Tinha
aplaudido fervorosamente o político em foco, do qual era assessora pessoal. Chamava-se Beatriz.
Duas crianças, um menino e uma menina, corriam entre os convidados em uma clássica brincadeira de
pega-pega. A garota de pele alva e de cabelos negros com tranças, chamava-se Letícia. O garoto de traços
semelhantes aos dela e de expressivos olhos acinzentados era seu irmão e se chamava Davi. Ambos eram
filhos do casal Mário e Vitória.
Em meio à correria, os netos do anfitrião esbarraram na dama de traços orientais, quase a derrubando.
---Cuidado, olhem bem por onde correm, crianças traquinas.
Beatriz recuperou o equilíbrio e se aproximou da senhora de chanel, vendo quando ela tomou um
comprimido.
---Remédios até essa hora, Tereza?
---Um coração doente exige esses cuidados. Mas o novo ano trará bons ventos para minha saúde. Faltam
precisamente onze minutos...- disse consultando o relógio de pulso.
---Mário e Vitória parecem estar muito felizes após a reconciliação, verdade?
---Aparentemente sim, mas as aparências enganam. Meu genro foi infiel e uma traição se perdoa, mas
nunca se esquece.
---Rumores não são totalmente confiáveis, a amante nunca apareceu e ele nunca confessou. Se bem que
sempre temos segredos inconfessáveis.
Um simpático deputado apareceu entre as mulheres e abraçou sua esposa.
---Minha assessora e minha amada paradas enquanto todos dançam e cantam? Não admito isso.
Tomou Tereza pelo braço e a levou para uma pista central onde muitos casais bailavam. Uma dança
romântica marcou alguns dos últimos minutos do ano do casal principal do festejo.
O segundo casal centro das atenções deixou o ponto dançante do iate, dirigindo-se a um local próximo a
bandejas com taças contendo bebida espumante.
---Muito próximo do brinde da virada de ano.
---Sim, e nesses minutos finais espero que me dê a resposta para a pergunta que te fiz, sobre o testamento.
Essa alteração é benéfica pra mim? Para nós?
---A resposta é a mesma da anterior. Quem tem que falar sobre a mudança é o meu sogro. A saúde dele
está tão boa que não tenho ideia de quando vai ser usado esse documento e dividida a herança.
Vitória tocou carinhosamente o rosto do marido enquanto observava os dois filhos que corriam nas
proximidades.
---Um advogado de confiança e espero que um marido fiel, pelo bem da família que construímos.
---Digo e repito que nunca te traí. Sempre existirá um alguém invejoso disposto a atrapalhar a felicidade
alheia.

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Meia noite chegou de forma majestosa, num céu sem estrelas brilhavam os fogos de artifício preparados
pelo anfitrião.
Uma pessoa pegou a bandeja com as cinco taças, sua visão mirava especialmente a localizada em posição
central. O veneno para o alvo determinado. Selecionou as pessoas certas e propôs um brinde.
---Um brinde especial de ano novo.
Entregou as primeiras três taças, pegou a quarta e direcionou a quinta, no centro da bandeja, para sua
vítima.
---Muito bem. Que brindemos então.- disse um político alegre.
Ergueram as taças e as juntando fortemente se ouviu um sonoro tim-tim. Todos saborearam então o
champagne.
Numa mente assassina surgiu algumas lembranças: vários momentos ao lado do homem que amava, o
aplaudindo em cada discurso, o admirando e amando em segredo. Sempre quis ser muito mais que uma
assessora na vida dele. Todos podem ter segredos inconfessáveis.
Havia, porém, uma barreira que a separava permanentemente, ano a ano, daquele a quem amava: Tereza.
Tinha planejado o crime meticulosamente e uma dose cavalar de digitalina seria sua aliada em seus
objetivos obscuros. Um ataque cardíaco sofrido pela senhora Cunha e desencadeado pela substância
adicionada ao espumante não surpreenderia a nenhum dos presentes, afinal, a vítima sempre tivera uma
saúde delicada e um histórico de problemas cardíacos.
Observava seu alvo esperando o surgimento dos sintomas de envenenamento. A expressão de felicidade
na face de Tereza não passou por qualquer mudança.
Uma forte pontada no tórax e um súbito mal-estar dominou o corpo da mulher de traços orientais. O
coração acelerado parecia se comprimir em seu peito. Entendeu, incrédula, o que estava lhe acontecendo.
Alguns minutos antes, depois que adicionara a dose mortal e separara uma taça em posição de centro,
sentira um impacto em suas pernas e quando alguém puxara seu vestido. Desviara a atenção para o garoto
de olhos acinzentados ansioso em retornar ao pega-pega, ajudando a criança a se levantar. Não vira quando
a travessa garota de tranças trocara a posição das taças na bandeja.
Beatriz desabou diante de todos os convidados e sua vida se apagou como os últimos fogos no céu.
Todos ficaram horrorizados com o súbito ataque cardíaco, sobretudo o deputado anfitrião que, há poucos
dias, tinha adicionado o nome de sua fiel assessora ao seu testamento.
UM REFLEXO DIFUSO

Já estava próximo do pôr do sol quando duas amigas observaram atentas os detalhes da decoração. A
mansão estava enfeitada com muitas cores para a comemoração do aniversário de vinte e cinco anos de
sua bela dona. Era uma mulher alta, de corpo olhos profundamente azuis e de longos cabelos loiros
dourados, chamando-se Patrícia. Sua amiga tinha cabelos ruivos e olhos negros, chamando-se Raissa.
---Acho que enfim está tudo pronto, amiga.
A aniversariante assentiu, satisfeita. Naquela noite, aquela casa não estaria habitada pela solidão,
dezenas de convidados já haviam confirmado presença na festa.
---Odeio morar sozinha aqui. Estou pensando em convidar a minha irmã para morar aqui.
---A recém descoberta? Confia plenamente nela?
---Confiança não se ganha somente com tempo, mas sim com ações e demonstrações. Você também
apareceu há pouco tempo na minha vida e já é minha amiga predileta. Não esqueça que eu e a Carla
também temos uma forte conexão, somos gêmeas.
A história da irmã recém-conhecida era intrigante. Patrícia sempre soube que sua família era adotiva e
desconhecia informações sobre a família biológica.
Há seis meses, estava num restaurante com um grande amigo, quando se deparou com uma garçonete
que era a sua imagem e semelhança. A similaridade era tamanha que compartilhavam até mesmo um sinal
na região das costas. No dia seguinte ao encontro entre as gêmeas, a notícia e fotografias foram
amplamente divulgadas pela imprensa.
---Desde o primeiro momento senti um elo forte com ela, algo que só se repetiu quando te conheci
pouco tempo depois.
---Carla também tinha uma família adotiva e não sabia muito sobre a origem de vocês duas.
---A mãe adotiva dela fala pouco do assunto. Acho que ela precisará de mim para encontrar pistas sobre
nossa verdadeira origem. Só o que temos são as duas partes de um pingente prateado.
As irmãs tinham desde a infância cada uma um pedaço do objeto e não sabiam o paradeiro da parte que
faltava.
Os pais adotivos de Patrícia tinham falecido há alguns anos em um acidente aéreo e nunca abordaram a
fundo o tema da adoção. Fora herdeira universal de uma fortuna milionária. Sobravam-lhe milhões,
faltava-lhe família.
Saindo do mundo dos pensamentos, checou a lista de convidados e passou algumas orientações à
governanta e a alguns garçons.
A noite havia chegado há uma hora quando uma estrela desceu da escada, aplaudida por amigos e
conhecidos. Depois de cumprimentar a muitos presentes, inclusive à Raissa, encontrou a mulher que era
como seu reflexo sem luz. Carla usava um vestido de renda simples e apenas um vestígio de maquiagem,
um contraste vivo com o traje de luxo e a face bem maquiada da anfitriã. Ambas usavam colares com uma
parte de um pingente prateado.
---Sua elegância e o capricho de sua maquiadora disfarçam até nossa semelhança.
---Aqui somos as gêmeas que reúnem todas as atenções.
Pousou para uma série de fotos abraçada à irmã.
---Há algo que deve saber, fiz uma descoberta que preciso compartilhar, a sós.
Subiram até o quarto requintado da anfitriã e se sentaram lado a lado numa cama.
---Estive no orfanato onde minha mãe indicou que me adotou, vi uns registros e confirmei que você
também esteve lá. Fomos adotadas por famílias diferentes quando tínhamos cerca de três anos. A minha
mais simples, a sua mais abastada.
---Descobriu quem nos abandonou nesse orfanato? Algum familiar?
---Ao que parece uma mulher que deixou um nome falso.
---Quero que venha morar aqui, preciso de companhia, e juntas podemos investigar e descobrir o que
esconde nosso passado.
---Preciso de um tempo para pensar, para conversar com meus pais.
---Vinte e quatro horas é o prazo.- assentiu enquanto, em frente à irmã, abriu uma caixa de joias e colocou
uma pulseira de ouro.
A noite de comemoração transcorreu ligeira, tendo as duas gêmeas em evidência.
O sol trouxe consigo novas expectativas. Patrícia saboreava um farto café da manhã quando recebeu a
visita de sua melhor amiga, que trazia em mãos um jornal.
---Notícia de capa com o retrato das irmãs, conseguiu todos os holofotes, como queria.
---Sempre consigo o que quero, amiga. Hoje terei outra prova disso quando a Carla aceitar morar aqui
comigo.
Uma governanta gorda de olhos miúdos serviu uma xícara de chá para a recém-chegada e saiu.
---Estou desconfiada que uma das empregadas roubou algumas de minhas joias. Sumiram na última
noite.
---Tem que colocar câmeras de segurança às escondidas, assim flagrará quem anda te roubando.
---Ótima ideia, Raissa. Hoje mesmo providenciarei a instalação.
---Poderia dar uma passada na casa da Carla, uma pequena pressão pode ser o empurrão que falta para
que aceite o convite para vim morar aqui.
A gêmea milionária terminou de tomar seu café, levantou-se e pegou sua bolsa que estava sobre uma
cadeira.
---Tenho que ir na empresa e aproveitarei para cuidar do assunto da vigilância secreta. Me espera por
aqui? A casa é toda sua.
Alguns minutos após a saída de Patrícia, a campainha soou repetidas vezes. Foi a inseparável amiga que
se dirigiu ao portão de entrada e liberou a entrada de uma senhora de longos cabelos brancos e de face
enrugada. Percebeu de imediato a tensão e o nervosismo da visita.
---O que deseja, senhora?
---Me chamo Lurdes, vi a fotografia no jornal, as irmãs, reconheci as partes do pingente... Preciso falar
com a dona da casa. A família que a adotou é bem conhecida, não foi difícil encontrar esse endereço.
---Por acaso sabe de algo? Alguma informação nova?
---Conheci bem a mãe das meninas, testemunhei o abandono do pai delas e ajudei durante o parto, estive
com cada uma delas entre meus braços.
---Entre, vamos esperar minha amiga voltar.
O retorno esperado só ocorreu por volta do meio dia. Um carro foi estacionado próximo a um jardim
florido e dele desceram duas mulheres semelhantes. Caminharam harmonicamente até o interior da casa.
Encontraram duas outras mulheres no interior do escritório. Emocionada, a mulher de cabelos grisalhos
fitou as irmãs e tocou as partes de pingentes que estavam nos colares delas.
---Quem é essa senhora, Raissa?
---Se chama Lurdes, chegou aqui atraída pela foto dos principais jornais. Ela tem pistas sobre a origem
de vocês duas.
Uma governanta gorda de olhos miúdos serviu quatro copos com suco de maracujá em meio aos ânimos
exaltados.
---A mãe de vocês separou as três partes do pingente depois do nascimento. Duas das partes ficaram com
vocês ainda bebês quando ela as deixou naquele orfanato.
---E a terceira ficou com a mulher que nos abandonou covardemente.- disse Patrícia.
Lurdes pegou seu copo com suco pousado sobre o birô e o reposicionou após tomar um gole.
---Fale mais dessa mulher que disse ter sido sua amiga e que largou as próprias filhas. Dificilmente Carla
e Patrícia poderão perdoá-la.
Ouvindo a fala de Raissa e a reação de concordância das gêmeas, a visitante enigmática se virou na direção
da silenciosa Carla.
---Não a julgue, a mãe de vocês, a Joana, foi vítima do abandono. Um marido desalmado sumiu em meio
à uma gravidez de risco. Naquele tempo éramos muito pobres. Preciso tanto contar como tudo aconteceu.
Há algo que vocês duas não sabem...
A senhora sentiu os primeiros espasmos musculares, passou a respirar com dificuldade. Faltaram-lhe o
oxigênio e as palavras. Desabou no piso granítico e reuniu suas últimas forças para erguer uma das mãos,
em meio a novos espasmos, os dedos indicador, médio e anelar se juntaram no ar, trêmulos. O último
suspiro de vida se esvaiu.
Após a cena horrorizante, o serviço de atendimento móvel de urgência foi chamado. Patrícia, junto à
melhor amiga e à sua gêmea, cuidou de descobrir os familiares da senhora falecida, com a ajuda de
referências encontradas na carteira da mesma.
Naquele dia, Carla já tinha resolvido morar com a irmã e, antes do encontro com a mulher enigmática,
comunicara sua decisão à milionária, quando Patrícia fora até a casa de sua família adotiva.
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A ré fitava o promotor com lágrimas no olhar.


---Está tudo muito bem demonstrado. A senhorita Carla foi filmada enquanto, durante um banho de piscina
casual com a irmã Patrícia Melo, adicionou uma substância letal ao suco da vítima enquanto a mesma
estava nadando. Ainda roubou algumas joias antes de deixar a casa. As imagens estão no auto do processo
e já foram avaliadas pelos senhores e senhoras do júri. O mesmo artifício mortal foi usado contra uma
idosa que tinha visitado a mansão dos Melo quinze dias antes, Lurdes Silva. Seu aliado nos assassinatos
foi o cianureto, um potente veneno. A ré confessa os crimes? Conte-nos os porquês.
---Protesto. O promotor está coagindo a minha cliente com base em evidências não conclusivas.
---Protesto ou pretexto pra manter sua cliente calada? As provas são irrefutáveis.
---Protesto indeferido. Que a ré responda as indagações.- disse o juiz firmemente.
Cabisbaixa, Carla estava perdida entre pensamentos.
---Nunca faria mal contra minha única irmã, meu reflexo vivo. Na data da morte dela, eu estava procurando
emprego, bem longa daquela mansão. Morávamos juntas fazia quinze dias e tínhamos desenvolvido uma
grande amizade.
---A ré apontou alguns lugares nos quais teria procurado trabalho, a maioria lanchonetes e lojas. Algumas
pessoas a reconheceram, porém não estavam seguras do horário em que a tinham visto. Fica claro que a
ação se tratou de uma tentativa frustrada de criar um álibi. Quanto a Lurdes Silva, perdeu a vida no
escritório da mansão na qual a acusada passou a morar, quando até se encontrava no local. Laudos médicos
confirmaram a presença de cianureto no organismo da primeira vítima. Uma hipótese é que a razão tenha
sido queima de arquivo, por algo que a mulher de idade revelaria sobre ela.
---Nunca tinha visto aquela senhora. Ela sabia detalhes da minha origem. Queria que me contasse tudo,
não que se calasse para sempre.
---A data da morte de sua irmã gêmea foi bem planejada. Era dia de folga dos empregados da casa, entre
eles a governanta, hoje afastada dos afazeres por vontade própria. Esteve sozinha com sua vítima. Se não
quer expor o motivo do crime, posso dizer: uma herança. Patrícia Melo era órfã, não tinha familiares
próximos a não ser uma irmã recém descoberta e uma amiga que considerava como de sua família, minha
testemunha chave nesse caso: Raissa Lima.
A testemunha surgiu diante de todos, sentou-se e realizou um juramento sobre falar com a verdade.
---Pode nos explicar o porquê a acusada ter cometido os crimes de roubo e de assassinato sem saber que
suas ações estavam sendo monitoradas?
---Minha amiga Patrícia tratou da instalação secreta das discretas câmeras, seguindo, inclusive uma
sugestão minha. Tinha ocorrido o roubo de algumas joias pessoais dela e as desconfianças recaiam sobre
os empregados. As filmagens seriam uma espécie de ratoeira.
---Como podem ver, senhores e senhoras do júri, a acusada roubou sua vítima antes e depois do crime. À
essa altura já devia saber que seria uma das herdeiras principais de uma fortuna milionária. Me responda,
senhorita Lima, sua melhor amiga se sentia ameaçada de alguma forma?
---Patrícia tinha medo da violência do mundo, haviam muitos relatos de sequestros relâmpagos, sabia que
seu dinheiro e seu patrimônio poderiam torná-la um alvo. Acho que isso a motivou a deixar um testamento
caso algo lhe acontecesse.
---Mal sabia a senhorita Melo que o risco vinha de onde menos esperava. O advogado de defesa tem
alguma pergunta a fazer à testemunha?
O advogado sinalizou negativamente, vencido. O juiz anunciou o encerramento da sessão e a reunião com
os jurados para chegarem à uma sentença.
No final do dia, uma ré abatida foi condenada a vinte anos de reclusão em regime fechado.

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Entrou na mansão deserta na companhia de planos e de expectativas. Subiu até o quarto principal no andar
superior. Pegou uma caixa de joias, retirou um colar de prata, colocou-o enquanto se olhava num grande
espelho retangular. Lembrou-se de quando tinha roubado as primeiras joias, na noite do aniversário de
Patrícia. ´´Carla havia estado no quarto, assim como os empregados da casa, criei suspeitas e ao mesmo
tempo estimulei a instalação de câmeras secretas.´´
A imagem de uma mulher de cabelos grisalhos surgiu em sua mente. ´´Lurdes Silva. Reconheci aquele
rosto logo que o reencontrei, ela claro não me reconhecei. Minha metamorfose foi bem sucedida.´´ No dia
do encontro, tivera que agir rapidamente. Não avisara Patrícia sobre a aparição da senhora objetivando
ganhar tempo. Deixara a visitante, então, no escritório, enquanto saíra discretamente para providenciar
uma substância letal. Custara caro e fora trabalhoso, mas conseguira o cianureto e retornara antes da volta
da dona da casa, que chegaria provavelmente junto à Carla, conforme a própria Raissa sugerira.
´´---Poderia dar uma passada na casa da Carla, uma pequena pressão pode ser o empurrão que falta
para que aceite o convite para vim morar aqui.´´
Pedira à governanta que servisse suco logo que a milionária chegasse, o que fora prontamente cumprido.
Adicionara o veneno no copo da visitante enigmática no momento de distração em que as atenções
estiveram centradas entre a vítima e as duas gêmeas. Simultaneamente, desviou o foco do diálogo,
direcionando para um ponto que não lhe comprometeria.
´´---Fale mais dessa mulher que disse ter sido sua amiga e que largou as próprias filhas. Dificilmente
Carla e Patrícia poderão perdoá-la.´´
Abriu o guarda-roupa e tirou de uma gaveta um pedaço escondido de um pingente prateado, encaixando-
o junto a dois outros pedaços também guardados. ´´O terceiro pedaço sempre este comigo.´´
´´---A mãe de vocês deixou separou as três partes do pingente depois do nascimento. Duas das partes
ficaram com vocês ainda bebês quando ela as deixou naquele orfanato.´´
´´---Há algo que as duas não sabem.´´
´´Reuniu suas últimas forças para erguer uma das mãos, em meio a novos espasmos, os dedos
indicador, médio e anelar se juntaram no ar, trêmulos.´´
Retornou ao ponto onde estava o espelho, lentamente retirou a bem posta peruca ruiva, as lentes de contato
negras e a pesada maquiagem da face. O reflexo que surgiu era similar ao de Patrícia e de Carla.
Há cerca de vinte e cinco anos, tinham nascido trigêmeas, não gêmeas.
Depois do nascimento das três filhas, Joana, afetada por péssimas condições financeiras, optara por deixar
duas delas em um orfanato, ficando apenas com a terceira gêmea. Raissa passara a infância mudando de
endereços e sendo submetida aos males da pobreza. Na adolescência, perdera sua mãe, vítima de uma
pneumonia, descobrindo numa revelação final os segredos ligados à sua origem. Passara a conciliar os
estudos com empregos temporários. A essa altura, passara a usar lentes de contato escuras e mudara o
corte dos cabelos; com a mudança física buscava deixar pra trás um passado doloroso.
Tudo começara a mudar quando há quase oito meses vira no jornal a foto do encontro de duas gêmeas. As
peças de sua origem se encaixaram em sua frente e precisara traçar uma estratégia para ficar com a fortuna
de Patrícia Melo, sem ter que dividi-la.
Providenciando uma peruca e nuances de maquiagem, conhecera então a milionária num encontro
proposital em um teatro, passando a ganhar sua confiança e sua amizade.
---Confiança não se ganha somente com tempo, mas sim com ações e demonstrações. Você também
apareceu há pouco tempo na minha vida e já minha amiga predileta.´´
Patrícia, como ocorrera em relação à recém-descoberta Carla, sempre sentira a nova amiga como uma
irmã.
´´---Desde o primeiro momento senti um elo forte com ela, algo que só se repetiu quando te conheci
pouco tempo depois.´´
Nos meses de amizade convencera a herdeira solitária a registrar um testamento com base na violência e
nos perigos que rondavam uma pessoa milionária. Teve então seu nome e o de Carla dividindo os papéis
de beneficiárias de uma herança. Sabia bem como apagar o nome da rival daquele documento.
Lurdes foi uma inesperada pedra que conseguira tirar do seu caminho, junto à inocente irmã, a quem
transferira a culpa por seus dois crimes.
Naquele momento, olhando-se no espelho, enxergava o reflexo que sempre sonhara. Uma mulher bela,
poderosa e rica.
PREFEITO PERFEITO

Dezenas de pessoas permaneciam atentas a um discurso em meio à praça principal da cidade de Serra
Dourada. Quem lhes falava era um homem magro, que tinha um estreito bigode concentrado no meio do
lábio. Estava em um palco bem montado e tinha atrás de si um enorme mural onde se viam fotos dele ao
lado de retratos do próprio município.
---Povo de Serra Dourada, hoje é um dia histórico para nossa cidade. Duzentos anos de existência e de
conquistas. Saibam que podem contar com o prefeito Baltazar e com a primeira dama de vocês hoje e
sempre.
Uma mulher de cabelos castanhos com franja e trajando um vestido dourado pegou o microfone das mãos
do marido e fitou os presentes com sorriso largo. Chamava-se Olívia.
---Companheiros e companheiras de Serra Dourada, em dois séculos muitas vidas se cruzaram e muitas
batalhas foram vencidas. Eu e Baltazar ajudamos com nossas administrações a escrever belas linhas na
história de nossa cidade. Se Deus e vocês, meu povo amado, permitirem, escreveremos em letras maiores
as palavras desenvolvimento e prosperidade para o futuro.
Uma onda de aplausos se espalhou entre os habitantes. Sendo sucedida pelo som de um disparo. Um
alvoroço dissipou a pequena multidão. Percebeu-se que a bala tinha atravessado o mural, atingindo um
ponto simbólico nele retratado.
---Minha cabeça? Mas isso é uma clara ameaça de morte.- expressou-se o prefeito.
Enquanto a notícia se disseminou e se converteu no assunto do dia entre os moradores de Serra Dourada,
Baltazar convocou uma reunião extraordinária no gabinete da prefeitura.
Estavam presentes na ocasião um homem alto, magricelo, de sobrancelhas grossas, que se chamava Duílio
e que era assessor do prefeito. Além dele, um jovem de cabelos negros cacheados e de pele sardenta que
se chamava Vinícius e era filho de Baltazar. Também ali havia um homem de meia idade, baixo e franzino,
que tinha como nome Coriolano e que era o vice-prefeito, estando sentado ao lado da primeira dama na
ocasião.
---Isso foi um aviso do que pode me esperar nessas semanas que antecedem a eleição.
---Antecedem a sua reeleição quer dizer, amigo Baltazar.- disse o vice-prefeito.
---Bem sabemos quem é nosso principal adversário político. Como andam os números das últimas
pesquisas internas, Duílio?
O prefeito se referia a um homem poderoso e conhecido nas redondezas, o coronel Olegário Corvo.
---Sem muita mudança, o coronel continua na liderança. Dizem que são os ventos da alternância de poder.
---Esses ventos já sopram em Serra Dourada há décadas, minha família e a daquele canalha sempre se
revezam no cargo que hoje ocupo. Esse tiro não me intimida nem um pouco e vou fazer chegar a ele essa
minha posição. Você, Duílio, meu braço direito, levará o recado.
O assessor se benzeu e sinalizou negativamente.
---E ser recebido com balas de espingarda? Ainda quero viver uns anos.
---Às vezes é tão covarde. Irei então pessoalmente. Os meus futuros sucessores políticos me
acompanharão?
Coriolano assentiu, Vinícius recuou.
---Seu futuro sucessor é o senhor vice-prefeito, a política não é minha praia, papai.
---Serra Dourada não tem praia e eu não tenho paciência com você, meu filho.
Seguiu de carro até uma fazenda distante alguns quilômetros do centro da cidade, Coriolano foi o único
que se habilitou a acompanhá-lo. Encontraram o homem procurado montado em um cavalo galopando nos
arredores de uma casa. O coronel tinha uma barba negra que combinava com os profundos olhos escuros.
---Estou um pouco ocupado agora, Baltazar, se não te convidaria pra tomar um café.
---Para colocar veneno e cumprir sua ameaça de hoje na praça? Não, obrigado.
---Ameaça...praça... Pensarei em uma terceira palavra pra rimar. Acho que esse rumor chegou por aqui.
Não sou de ameaçar, executo. Se quisesse me desfazer de você, o tiro não seria num retrato seu em um
mural. Prefiro acabar com você em mais algumas semanas, nas urnas.
---Anda mesmo confiante, verdade, coronel? Desista, nossa chapa vencerá.
---Isso veremos, Coriolano, não é o que sinto quando estou no meio do povo. Os senhores estão convidados
a sair dos meus terrenos.
Seguindo a direção apontada pelo coronel, os dois políticos se retiraram, junto com o sol, que estava
prestes a se pôr e dar lugar a uma noite fria.
Havia apenas uma estrela no céu solitário quando o candidato a vice deixou o gabinete da prefeitura
alegando ir a um jantar de família. Baltazar tentou contatar a primeira dama com seu celular, sem sucesso.
Estava observando alguns documentos dispostos na mesa quando ouviu o som de passos discretos, uma
sombra se agigantou na sua frente, assim como a visão de uma pistola. O alguém atacante usava uma
máscara com bico e penugem negros que retratava um corvo. Três disparos foram disparados. Baltazar
despencou no piso, imóvel.

***************************************************

Na pequena delegacia, encontrava-se um grande número de populares, que gritavam, ansiosos, um nome
em comum.
---Prefeito Baltazar, peço que se acalme e me explique pausadamente o que aconteceu depois que a pessoa
intrusa tentou atirar em você.
---É o que estou tentando lhe dizer e as câmeras do gabinete mostrarão. Eu fingi que tinha sido atingido,
caí no chão e vi o meliante ou a meliante escapar. Trazia a máscara de um corvo, isso é suficiente pra
saber quem representava.
Quatro recém-chegados entraram às pressas no local. Tratava-se de Coriolano, de Vinícius de Duílio e de
Olívia, que num abraço coletivo, amontoaram-se sobre o nervoso prefeito.
---O povo está comentando lá fora, papai, estão chamando a pessoa que te atacou de O Corvo e associando
ela ao seu inimigo coronel.
---Vamos resgatar a imagem das câmeras de segurança e tentar identificar quem estava por trás da máscara,
vice-prefeito.
---Muito bem, delegado. Olegário Corvo não perde por esperar.- afirmou um assessor.
Trêmulo, o prefeito se retirou por uma saída situada nos fundos da delegacia acompanhado do rotineiro
quarteto. Seguiram até uma mansão no Centro, quando lá estavam, sentaram-se próximos a um birô.
---Só não entendo porque o coronel se arriscaria tanto agindo diante de filmagens.- afirmou o vice-prefeito.
---Mandei instalar as câmeras faz pouco tempo e nem todos sabiam dessa informação. Olegário não sabia
e quis que a última coisa que eu visse na vida me lembrasse ele e seu sobrenome.
---Precisamos contratar um guarda-costas pra você, meu amor.
---Meu segurança é o povo serradouradense, querida. E caso me aconteça algo, você e nosso filho serão
meus herdeiros de fortuna e de patrimônio; Coriolano, herdeiro político.
---Baltazar Sales é imortal.- disse o fiel assessor, segurando uma das mãos do prefeito.
---Reúna uma coletiva de imprensa para amanhã na primeira hora do sol.
A ordem foi seguida ao pé da letra e, às sete horas da manhã, Baltazar se encontrava na sacada principal
do prédio da prefeitura, ovacionado pelos habitantes da pequena cidade interiorana.
---Companheiros e companheiras, conterrâneos, quero lhes dizer que esse atentado não me abateu no mais
mínimo. Que meus inimigos saibam que não preciso de brutamontes para me defender, porque quem me
defenderá será o meu povo, a minha gente.
Aplausos calorosos e flashs se complementaram. Em meio à população, espalhavam-se folhas com o
retrato falado do Corvo, feito com base no depoimento do prefeito na delegacia. A capa do jornal local
estampava a ilustração da ave negra e as seguintes pergunta: ´´Quem é o Corvo e quando atacará
novamente?´´
Durante todo o dia o prefeito realizou eventos de campanha, como adesivaços e carreatas. Encerrou a tarde
com um grande comício. Sentia-se no ar uma onda de virada eleitoral.
---Só se escuta falar mal do coronel Olegário, principal suspeito do atentado. Sua chapa está indo de vento
em polpa, papai.
---Aqui se faz aqui se paga, meu filho. Vou visitar o comitê da campanha agora à noite, sua mãe não irá
pois está com enxaqueca e meu vice teve um compromisso de última hora na cidade vizinha, vem comigo?
---Tenho uma prova de matemática, que definitivamente também não é minha praia. Por que não chama
o fiel escudeiro Duílio?
O dedo indicador do prefeito apontou para um ponto onde seu assessor estava beijando uma moça morena.
Trocou um sorriso com o filho único e partiu no seu carro rumo ao comitê central.
Parou o veículo na esquina próximo do grande prédio iluminado, desceu e, após caminhar alguns passos,
visualizou uma conhecida sombra atrás de si. Virou-se e se deparou com a mesma pessoa mascarada que
estivera em seu gabinete na noite anterior. Ela trazia um pedaço de ferro, que apertava entre as mãos.
Antes que esboçasse uma reação, ouviu quando três carros se aproximaram, cercando o ambiente. Os
ocupantes dos automóveis desceram e se posicionaram ao redor do alguém mascarado, impedindo sua
fuga. Um dos homens recém aparecidos se destacou entre os demais.
---Agora saberemos quem é O Corvo.
Uma máscara característica foi retirada.
---Coronel Olegário.
---Duílio, o fiel escudeiro, então é você o rosto por trás dos atentados.- disse o homem barbudo, ainda com
a máscara em mãos.
Os homens que acompanhavam o coronel, todos habitantes de Serra Dourada, tentaram agredir o recém-
descoberto e foram barrados por uma fala dele.
---Só segui ordens, conte pra eles, Baltazar, ou vão me linchar.
Acuado, o prefeito levou as mãos ao rosto, olhou em direção à câmera instalada na entrada do comitê.
---Como diz um velho amigo deputado meu: no jogo da política, vale tudo. Tinha que usar algum artifício
para reverter sua vantagem eleitoral, Olegário.
---Tenho o testemunho dessas pessoas, cidadãos comuns da cidade, e tenho as imagens daquela câmera,
imagens que planejava usar contra mim ao simular um novo atentado com autoria do Corvo. Baita azar,
Baltazar.
---Apelar para o emocional sempre é uma boa estratégia. Eu era a vítima perfeita, você o culpado perfeito.
---Um homem que escapou de todas as auditorias, nome limpo, contas livres de dinheiro vindo de
corrupção, parecia um modelo de perfeição a seguir. As aparências enganam. E sabe, prefeito imperfeito,
encontrei a palavra pendente que procurava para rimar.
´´---Ameaça...praça... Pensar em uma terceira palavra pra rimar.´´
Deu uma palmada triunfante no ombro do adversário.
---Trapaça.
VIDAS EM JOGO

Estavam num luxuoso carro rumo ao aeroporto, mãe, filha e um motorista, que observava os gestos de
carinho das mulheres sentadas no banco de trás pelo retrovisor. A mulher mais velha era branca, magra e
tinha olhos verdes que combinavam com o colar de esmeraldas que ostentava; seu nome era Helena Torres.
A jovem ao seu lado, igualmente magra, tinha olhos acinzentados e não utilizava nenhum adorno; seu
nome era Júlia Torres.
---Seu pai estará nos esperando em Acapulco. Vai ser uma viagem inesquecível.
---Sem dúvida, mamãe, preciso mais que nunca me distrair.
Num semáforo entre duas avenidas, o veículo foi interceptado por outro carro escuro. Quatro homens
encapuzados e armados desceram e arrancaram os três ocupantes de onde se encontravam. Um grito
estridente foi contido pela mão com luva de um dos meliantes, que tapou a boca da filha adolescente.
Colocaram-nas no automóvel negro, puseram vendas em seus rostos e o que restou foi uma profunda
escuridão.
Quando os olhos puderam enxergar novamente estavam num cenário inóspito, havia caixas de papelão e
garrafas de vidro espalhadas num piso sujo e foram mantidas amarradas em duas cadeiras.
---Onde estamos? O que querem de nós? Levem minhas joias, o dinheiro da minha carteira, mas deixem
minha filha e eu em paz.
Um dos criminosos mascarados, aparentemente o líder da quadrilha, aproximou-se da granfina. Puxou
com brutalidade a joia que ela trazia no pescoço, sinalizando negativamente para a vítima. Um de seus
cúmplices encapuzados se agachou diante de mãe e filha.
---Essas joias são muito pouco, senhora Torres. Sabemos muito bem da fortuna do seu renomado marido
juiz e esse resgate não sairá nada barato.
Um revólver foi posto na cabeça da jovem, que se encontrava trêmula, algumas fotografias foram tiradas
por um terceiro meliante envolvido.
---Me tirem desse lugar imundo.
---Só quando o dinheiro sujo de sua família estiver nas nossas mãos, mocinha. E é melhor não fazerem
barulho porque reservamos muitas mordaças para manter as duas caladas.- disse o segundo cúmplice.
---O que fizeram com meu motorista?
---Jogamos essa peça que não faz diferença no jogo para fora do carro no caminho até aqui, madame. Deve
estar ferido, mas vivo.
O líder do grupo permanecia em silêncio enquanto caminhava em ziguezague. De repente sinalizou
chamando o restante do grupo para uma sala adjacente. Mãe e filha se entreolhavam enquanto perceberam
a saída dos sequestradores.
---Não se assuste, filha, logo sairemos desse apuro.
---Estou com muito medo, mãe, são tão mal-encarados, sobretudo aquele que não falou nada.
---Estranho, somente ele não falou, o mais alto dos três. Tem um perfil mais dominante, vamos chamá-lo
de número 1.
---Um segundo era aquele que é mais baixo e gordo e que parecia saber muito sobre o papai. Número 2.
---O terceiro é o que foi mais ríspido e ordenou que mantivéssemos silêncio, o número 3. Quando vejo
bandidos assim me lembro do seu ex-namorado e de como você fez bem em terminar o namoro e afastar-
se dele.
Júlia recordou de um rosto jovial, com olhos castanhos, boca pequena e um cabelo com topete. Um dia
havia amado aquele jovem. Atualmente, após a descoberta de traições e do envolvimento dele com o
mundo das drogas, o que sentia por ele era somente uma profunda raiva e rancor.
---Guilherme é passado, mamãe.
Com olhar analítico, a jovem avaliou o ambiente novo e hostil. A visão focou em um ponto numa das
paredes laterais.
---Tem uma pequena janela ali, se conseguíssemos nos soltar das cadeiras...
Observou, como a mãe, a presença de garrafas de vidro espalhadas no local, algumas quebradas e com
cacos soltos. Num impulso, movimentou o corpo para frente e desabou junto a uma cadeira, rastejou-se
até um ponto onde havia mais pedaços de vidro reunidos e, de forma ágil, passou a utilizá-los para cortar
a corda que prendia suas mãos, conseguindo tal feito depois de quase meia hora. Discretamente, repetiu a
ação para libertar a mãe.
---Vamos tentar sair, mãe.
Júlia já tinha conseguido projetar metade de seu corpo para fora da janela lateral quando ouviu um grito
aterrorizado da senhora Torres. A mesma mão forte que a puxou de volta para o interior do local inóspito
foi a que lhe golpeou com um tapa no rosto, fazendo-lhe desabar no chão úmido.
---Mais uma travessura dessas e me obrigarão a usar minha pistola.- afirmou o meliante número 3.
---Não se atreva a tocar em um fio de cabelo da minha filha, criminoso.
Depois do atrito, as sequestradas foram novamente amarradas e passaram a ser vigiadas de perto a todo
instante, recebendo como castigo a não entrega de alimentos ou bebidas durante cerca de um dia.
Apenas depois desse período, após acatarem as novas ordens do líder, dois comparsas retiraram as cordas
e forneceram pequenas garrafas com água e pedaços de pão amanteigados para as reféns, que comeram e
beberam sedentas.
---Pelo bom comportamento das últimas vinte e quatro horas algumas pequenas regalias. Além da comida
e da bebida, uma opção para que se distraiam no tempo que ainda terão aqui.
O mascarado baixo e gordo colocou entre as mulheres um tabuleiro empoeirado junto a algumas peças.
---Xadrez? A mensagem que deixam é que pra vocês todo esse terrível sequestro não passa de um simples
jogo.
---A vida é um jogo senhora Torres.
O sequestrador selecionou alguns tipos de peças negras.
---Vejamos: o rei é o grande juiz que pagará uma boa recompensa pelas mulheres amadas. A madame
poderia ser a torre, o próprio sobrenome é bem sugestivo.
---Eu e minha filha somos duas rainhas nesse jogo.
---Você e seu comparsa menos poderoso certamente são os peões. O calado número 1, com pouse e atitude
de líder, seria o bispo.
O meliante mascarado aplaudiu a colocação da jovem.
O mais ríspido dos sequestradores entrou no local e mostrou um jornal para as reféns, na capa principal
estava a foto de uma adolescente apavorada sob a mira de um revólver.
---Já estamos chegando num acordo financeiro com o juiz. Parece que ele está regressando do México e,
com a grana do resgate em mãos, já deixarão nossa agradável companhia.
Os dois comparsas menos influentes saíram do ambiente, esquecendo a porta entreaberta. Com sentidos
apurados, mãe e filha puderam ouvir uma fala incisiva.
---Então está resolvido, tudo chegou ao fim.
A voz, diferente daquelas dos cúmplices menores, foi imediatamente reconhecida.
---Meu Deus é o Guilherme, filha, seu ex-namorado drogado. Por isso o distanciamento e o silêncio, para
não ser reconhecido. Ele está por trás do nosso sequestro.
Júlia fitava a mãe, incrédula.
---Pelo que ele disse as negociações já estão sendo fechadas e estaremos livres outra vez. Juro que vou
acabar com esse cretino quando sair daqui.
Helena percebeu que o nome do criminoso que pronunciara tinha trazido consigo lembranças
desagradáveis para a filha, pensou, pois, numa maneira de desviar o foco das tensões e atenções.
---Aceita jogar uma partida de xadrez?
Com as mentes voltadas para as jogadas estratégicas, as duas travaram uma partida de quase duas horas.
Houve a iminência de vitória da adolescente quando um rei no tabuleiro estava cercado.
---Xeque.
A disputa foi interrompida pela entrada abrupta de três mascarados apressados que após amarrar e vendar
as reféns deixaram o isolado cativeiro.
Em meio a um terreno baldio, foi feita a troca de duas maletas repletas de dólares pelas duas vidas
sequestradas e, conforme combinado com um renomado juiz, a Polícia não esteve presente no local.
Os meliantes partiram em disparada, deixando para trás um pai, uma mãe e uma filha que se encontravam
juntos num só abraço.

******************************************************
Já havia passado dois dias do fim do sequestro e era fim de tarde quando os criminosos retornaram à
humilde casa onde Helena e Júlia tinham ficado reclusas. As cédulas do dinheiro eram contadas e
recontadas pelo sequestrador mais alto.
---Cem mil dólares e joias bem valiosas a serem vendidas. A maior parte do dinheiro será sua, chefe.
Merecido por armar tudo nos mínimos detalhes.
Caminhou até o quarto do cárcere por rapto, visualizou o tabuleiro e as peças dispostas ainda conforme a
última partida interrompida.
---O dinheiro foi conseguido e a culpa transferida. O pobre Guilherme está sendo procurado e logo será
detido.
A astuta Júlia se lembrou da gravação de voz a qual instruíra os cúmplices a usarem após deixarem uma
entrada propositalmente entreaberta e, assim, garantirem que Helena tivesse a descoberta sobre a autoria
do sequestro. Tratava-se de um áudio que o ex-namorado tinha enviado frisando o fim do relacionamento
dos dois.
´´---Então está resolvido, tudo chegou ao fim.´´
O tapa planejado, que gerara um hematoma, fizera parte de um ardiloso esquema de vitimização. Fora um
mal necessário.
Analisou as peças sobre o tabuleiro e executou um último e triunfal movimento.
---Nesse jogo só existiu uma rainha. Xeque-mate.
LUA DE FEL

O sol estava num ponto alto do céu indicando o meio dia quando um luxuoso cruzeiro com centenas de
passageiros deixou o porto de Santos rumo à Montevidéu. Entre eles um apaixonado casal em lua de mel.
O marido era um homem moreno, de olhos castanhos e de porte atlético, exercendo profissão de
engenheiro, chamava-se Henrique. A esposa era loira, tinha olhos cor de mel e um corpo escultural, sendo
conhecida e reconhecida por ser dona de uma empresa de moda feminina, chamava-se Milena.
Havia também embarcado no deslumbrante navio um casal de amigos dos recém-casados, que
compartilhava a mesma profissão: a Medicina. Ela, uma senhora de meia idade, alta e gorda, atuava como
psiquiatra e seu nome era Carina. Ele, um senhor de idade semelhante à mulher, baixo e magricelo, atuava
como pediatra e seu nome era Valentim.
O quarteto ocupou duas respectivas e distantes suítes e se encontraram num dos restaurantes principais
para um almoço especial.
---Quando sugeriu que viéssemos nesse cruzeiro não imaginei que fosse tão rico em opções, amigo
Henrique. Spas, piscinas térmicas, teatro, cassino, academia. Estou fascinado.
---Verdade, Valentim. Já fiz o cruzeiro quando solteiro muitas outras vezes e cada vez gosto mais. Precisa
ver a suíte privativa onde estamos, exclusiva para casais em lua de mel. Temos tudo lá, até piscina
exclusiva. Vou ao banheiro e volto logo.
---Também irei, as duas esposas fazem companhia uma a outra enquanto isso.
Os maridos se despediram com um beijo em cada mulher e se afastaram.
---Temos uma inversão de papéis, geralmente as mulheres saem juntas para o banheiro, retocar a
maquiagem.- afirmou a médica, gargalhando.
A socialite respondeu a ação apenas com um discreto sorriso.
---O que está acontecendo, Milena? Pensei que estava plenamente feliz. Não me diga que há sinais de
recaída do problema que enfrentamos há um ano.
A psiquiatra se referia a um período turbulento em que a milionária enfrentara uma profunda depressão.
Precisando de fármacos e do apoio de amigos, de familiares e do então namorado para se reerguer.
---Estou felicíssima, amiga. Meu mal é que não consigo tirar o trabalho da cabeça. Fico preocupada com
a administração da empresa e...
Interrompeu a última frase ao ter a impressão de ver, em um ponto relativamente próximo, o marido
conversar com uma idosa e acenar em sua direção; as roupas, porém, eram totalmente distintas. De repente,
percebeu a chegada de Henrique e de Valentim, que voltaram a se sentar na mesa. Quando mirou a visão
ao ponto anterior, viu apenas uma idosa solitária.
---Não pode ser, acabo de te ver conversando com aquela senhora de idade, amor. Estava usando uma
blusa estampada e acenou pra mim.
---Está enganada, querida, odeia as blusas com estampa e nunca conversei com aquela mulher.
Uma psiquiatra acompanhava a cena, atenta.
Após saborearam uma deliciosa refeição, optaram por passear no interior da majestosa embarcação.
Enquanto Milena e Valentim entraram na porção do teatro, Carina puxou Henrique para um ponto mais
reservado.
---O que houve?
---Estou receosa com o comportamento da Milena. Está muito séria, atribuiu isso à preocupação com os
negócios da empresa de moda, e ainda teve uma espécie de alucinação há pouco.
---A psiquiatra acha que tem chances daquela doença regressar?
---É o que temo, a depressão junto a componentes psicóticos. Você que convive mais diretamente com
ela, houve mudança no jeito como vem se comportando?
---Em aspectos pontuais, noto que ela está se concentrando menos e com menor vontade para fazer o que
sempre gostou.
---Que fiquemos vigilantes então. Depressão é um mal bastante perigoso.
A recém-casada e o pediatra surgiram em frente aos cônjuges.
---Vai haver um espetáculo de dança flamenca à noite.
---Ótima ocasião para estrear aquele seu lindo vestido vermelho, querida.- afirmou o recém-casado.
---Nos vemos às oito aqui no teatro. Agora eu e Carina vamos dar uma volta e deixaremos os pombinhos
a sós para aproveitar juntos toda a tarde.
De fato, o casal em lua de mel aproveitou o restante da tarde e início da noite para passar momentos
ardentes e carinhosos.
No horário combinado, ocorreu o reencontro entre amigos. Seguindo a sugestão do esposo, Milena vestia
um belo vestido de tecido caxemira avermelhado.
---Está belíssima amiga, a mais linda das esposas, superou até a mim nesse páreo. Vamos entrar?
Assistiram a uma grande representação da dança de origens ciganas. Movimentos sinuosos em meio à
união de cores vibrantes, sobretudo o vermelho e o negro.
Ainda em meio aos aplausos de encerramento, quando as luzes substituíram a profunda escuridão, Milena
avistou um homem alto com trajes elegantes que novamente acenava em sua direção, virou-se para os
demais e, transtornada, viu o marido ao seu lado.
---Não é possível, é você de novo, Henrique, ali, acenando.
Os três outros presentes seguiram a indicação do dedo da empresária, visualizando apenas um ponto vazio
próximo à saída do teatro.
---Acalme-se, querida. Vou levar ela pra tomar uma água na suíte e nos vemos em meia hora no cassino.
Carina assentiu, abraçou a amiga e se retirou com o marido. Dirigiram-se até o badalado cenário do novo
encontro combinado, um ambiente envolto por caça-níqueis, roletas, blackjack, poker e outros jogos de
fortuna e azar.
De olho no relógio de pulso, a psiquiatra viu quando, em exatos trinta minutos, o recém-casado surgiu,
estava sozinho. Eram dez da noite.
---Não quis vim de jeito nenhum, ficou impressionada com a tal miragem com meu rosto. Melhor ir tentar
convencê-la, Carina.
A mulher alta e gorda seguiu a sugestão, retornando cerca de quinze minutos depois com expressão de
desapontamento.
---Disse que estava um pouco tonta. Se melhorasse, viria.
---Esperemos aqui. Nesse local de apostas, aposto que ela virá ao nosso encontro.
Após sua fala, Henrique cruzou o mar de gente na direção de um caça-níqueis.
---Vou desafiar ele em alguns jogos.- disse Valentim, seguindo os passos do amigo.
O sempre consultado relógio de pulso já marcava meia noite e quinze quando uma médica convocou dois
homens que tomavam taças de vinho enquanto jogavam numa roleta russa.
---Olha a hora que já é, se minha amiga estiver te esperando, deve está furiosa. Ainda mais no estado em
que você se encontra, totalmente embriagado, mal pode andar e falar. Vamos ajudá-lo a voltar, Valentim.
Com uma marcha ebriosa, o engenheiro foi levado com a ajuda dos amigos até a luxuosa e privativa suíte.
Os dois médicos entraram na frente enquanto o homem com equilíbrio oscilante se apoiou na porta de
entrada. A cama de casal estava vazia, exceto por uma resma solta deixada sobre ela.
---Milena? Amiga?
Após passos tensos, a psiquiatra e seu marido se depararam com o corpo da empresária, que boiava na
piscina. Um recém-casado viu a mesma cena em seguida, levando as mãos à cabeça em sinal de desespero.

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Já era início de manhã, quando um senhor de barba branca e de óculos retangulares caminhava em torno
da mesa onde se encontravam três pessoas atordoadas.
---Uma morte... Isso nunca ocorreu em nenhum navio que comandei na vida.
---Minha pobre amiga tirou a própria vida, ela deixou uma nota de suicídio, assinada e datada por ela
mesma, uma letra bonita e inconfundível.
O comandante pegou a folha discretamente rasurada das mãos da psiquiatra.
---Havia um copo com vestígios de champagne na beirada da piscina. Ela deve ter adicionado algo à bebida
antes de cair nas águas.- afirmou Valentim.
---Minha mulher cometeu um ato desses e eu apostando num maldito cassino, não estava lá pra salvá-la!-
exclamou o viúvo, entre lágrimas.
---Salvou ela das garras da depressão há um ano. Todos pensamos que ela tinha se recuperado totalmente.-
disse Carina.
---Um helicóptero já está a caminho e fará o translado de vocês e do corpo.- informou um comandante
frio.
Em um pranto intenso, o viúvo deixou o local e se dirigiu à suíte privativa. Em meio ao caminho, apareceu
um homem que parou em sua frente como uma muralha. Foi como se deparar com a projeção da própria
imagem diante de si.
---Como se atreve a me procurar aqui, idiota? Ninguém pode nos ver juntos.
---Precisava me assegurar que o plano deu certo. Já é um viúvo milionário?
---Milionário somente depois da repartição da herança, Milena e eu casamos com comunhão universal de
bens. Quando possível te procurarei para cuidar do seu pagamento.
O homem similar, que se chamava Pablo, fitou o engenheiro com um sorriso e se lembrou de quando há
meses vira uma foto dele ao lado da famosa socialite estampada na capa de um jornal, dizia o título: ´´ O
casamento do século.´´ Mal pôde acreditar na semelhança que o unia ao noivo retratado, era
impressionante. ´´ Todos temos um sósia nesse mundo e o meu morava na mesma cidade que eu.´´
Interessou-se em checar a estrondosa semelhança pessoalmente e, após uma investigação, chegara até o
escritório de engenharia onde Henrique trabalhava. Entrara de relance num carro ao final de um expediente
e o encontro do século ocorrera de forma discreta.
Apressou-se em chegar à suíte. Os olhos castanhos analisaram cada ponto do cenário, a começar pela
piscina e seus arredores, as lembranças, então, fluíram:
Quando retornaram do teatro, Milena estava aflita com a suposta nova alucinação que tivera. Ele lhe
entregou um copo de água após adicionar secretamente uma dose de sonífero. Conversaram e ficou
combinado que ele iria na frente até o cassino e que ela só faria o mesmo quando estivesse totalmente
reestabelecida. Como tinham jantado antes do espetáculo, ele estimou que o efeito total do sonífero
demoraria um pouco. Dirigiu-se ao cassino após esperar quase meia hora e tratou de induzir a psiquiatra
a ir chamar Milena na suíte, afinal, precisava reforçar seu álibi e ficaria claro que naquele momento a
empresária ainda estava viva. A tontura relatada por Carina no seu solitário retorno sinalizou os primeiros
sintomas provocados pelo sedativo. Entrando entre o aglomerado de pessoas, efetivou a troca de papéis
com seu sósia, que passou a ser seguido de perto pelo inseparável Valentim. Pôde então retornar
discretamente à suíte reservada e privativa para casais em lua de mel. Encontrou a esposa quase
desacordada na cama, colocou-a nos braços e a passos vagarosos a levou até a piscina. Pousou o corpo
jovial nas águas calmas quando percebeu um sono profundo, seria um sono eterno. Depois, com o crime
efetivado, tirou de sua bagagem uma resma previamente guardada: uma nota suicida escrita há exatamente
um ano por sua vítima, em uma fase de profunda depressão. Teve que alterar apenas o ano que estava
datado, daí a pequena rasura.
´´---Minha pobre amiga tirou a própria vida, ela deixou uma nota de suicídio, assinada e datada por
ela mesma, uma letra bonita e inconfundível.´´
´´O comandante pegou a folha discretamente rasurada das mãos da psiquiatra.´´
´´---Salvou ela das garras da depressão há um ano.´´
O assassino conhecia bem a vítima, já prevendo sua mudança de comportamento ao ser afastada de suas
atividades laborais.
O papel da psiquiatra no ousado plano foi fundamental, assim como o do sósia que proporcionaria a falsa
percepção sobre as alucinações de Milena. Ele teve basicamente que inventar algumas mentiras que
apontassem para um novo quadro de depressão.
´´---É o que temo, a depressão junto a componentes psicóticos. Você que convive mais diretamente
com ela, houve mudança no jeito como vem se comportando?´´
´´---Em aspectos pontuais, noto que ela está se concentrando menos e com menor vontade para fazer
o que sempre gostou.´´
Quando ocorresse a volta do cassino, precisava de um motivo para que o casal se dirigisse à suíte e
encontrasse o corpo e para o estado de mudez de seu sósia no ambiente de apostas, já que este não poderia
revelar a verdadeira voz. O simulado estado de embriaguez de Pablo serviu para solucionar ambos os
pontos. Durante o breve afastamento de Carina e de Valentim na chegada à suíte, os cúmplices puderam
então reverter a troca de papéis.
´´---Ainda mais no estado em que você se encontra, totalmente embriagado, mal pode andar e falar.
Vamos ajudá-lo a voltar, Valentim.´´
´´Os dois médicos entraram na frente enquanto o homem com equilíbrio oscilante se apoiou na porta
de entrada.´´
Em pé, na beirada da piscina, tomou uma taça de champagne, enquanto via sua imagem refletida nas águas.
Se havia crime perfeito, estava diante do reflexo de seu autor.
ARROUBO

O céu trazia uma vistosa junção de cores durante o pôr do sol, formando uma verdadeira aquarela. Aquela
obra de arte da natureza não era a única que podia ser observada pelos moradores da cidade de Boa Vista.
Há alguns meses, fora inaugurado um museu de belas artes, que recebera um acervo seleto e valioso.
---Senhoras e senhores. Entre os quadros presentes no prédio estão um Picasso e um Dalí. Duas
preciosidades.- disse um homem baixo de chapéu, que era o guia turístico de um grupo de dez pessoas e
se chamava Vitório.
---Nos leve até elas, senhor guia. Fica em qual andar?
Um homem que estava perto do grupo se posicionou entre Vitório e a senhora que havia feito a pergunta.
---Segundo andar, na área de pinturas de cunho internacional. No terceiro andar, estão os quadros de
autores nacionais. No térreo, estão dispostos variados tipos de esculturas.
Todos fitaram o falante, surpresos e curiosos, tratava-se de um senhor alto de barba ruiva.
---Sei de tudo isso porque sou arquiteto e desenhei o projeto desse museu, o conheço com a palma da mão,
vim apresentá-lo à minha tia. Bem vindos, me chamo Paolo.
Uma idosa de cabelos grisalhos próximo a ele sinalizou positivamente.
O grupo, o guia, o arquiteto e sua tia entraram no museu, passando pelos dois vigias que chegavam para
iniciar seus serviços noturnos.
Todos os olhares analisaram atentos cada detalhe dos múltiplos corredores. No primeiro andar, reluziam
esculturas de bronze, de prata e de marfim que beiravam a perfeição. Nos andares superiores puderam
admirar pinturas de renomados artistas, entre as nacionais estavam algumas de Di Cavalcanti e de Tarsila
do Amaral.
Enquanto acompanhava o grupo e interrompia algumas vezes o guia para acrescentar novas informações
sobre a estrutura do local, Paolo recebeu um telefonema. O final da chamada marcou uma nova interrupção
por meio de sua fala.
---Escutem todos, soube agora que ocorreram três incêndios provocados em setores ao norte e ao sul da
cidade. Quem pensava em ir nessas áreas, melhor esperar por enquanto aqui no museu central, estarão
mais seguros.
O som de tiros e da frenagem abrupta de carros demonstrou que a última frase não era verídica.
Cinco homens encapuzados renderam os vigias, desarmando-os e apontando revólveres. Um deles entrou
no prédio e seguiu precisamente até um reservador corredor vazio no térreo, arrombou uma porta e teve
acesso a um local onde eram controladas as câmeras e sistemas de alarme do museu. O invasor destruiu
rapidamente todo os aparatos tecnológicos e retornou ao ponto na entrada onde os quatro comparsas o
esperavam.
---Câmeras e alarmes já não são o problema, me livrei de tudo. O caminho está livre.
---Como sabe onde fica a sala secreta?- indagou um dos vigias, o de cabelo calvo e de bigode.
---Isso não te interessa, segurança de quinta categoria. A primeira pergunta nova que fizer, será a última.
Tragam os dois até os andares superiores.
Acatando as ordens, os quatro comparsas puxaram os dois vigias com violência.
Os bandidos pegaram os principais quadros do segundo andar e, no terceiro andar, encontraram o grupo
de dez pessoas guiadas, o guia Vitório, o arquiteto Paolo e sua inseparável tia. Os ânimos se exaltaram e
a idosa gritou involuntariamente, tendo a boca tapada pelo sobrinho.
---Sem ruídos intensos, pessoal, caso contrário alguém pode sair ferido.- disse o aparente líder dos
criminosos, enquanto pegava uma valiosa pintura de Portinari.
A idosa pronunciou uma fala em baixo tom.
---Estão levando a minha obra predileta, um sonho de consumo, que ousadia! Mas por que os alarmes não
dispararam? Falharam?
---Não, senhora, desativamos os alarmes assim que entramos no prédio, fomos direto à sala onde eram
controlados. Sabemos exatamente onde estão e quais são as obras que temos que levar.- disse um dos
bandidos.
---E você me disse que hoje seria um dos dias mais calmos para vim conhecer as exposições...
---O próprio dono do museu me recomendou esse dia e esse horário enquanto olhávamos as esculturas.
De fato, além desses meliantes só estamos nós, o grupo de dez e o guia, titia.
Cada um dos invasores pegou mais de um quadro no andar e durante a ação ágil empurraram umas das
senhoras do grupo de visitantes.
Num impulso, o vigia calvo se levantou e tentou ajudar a mulher a se levantar, recebendo uma coronhada
do líder do grupo. O segundo vigia se posicionou ao lado do amigo caído.
---O que fizeram? Ele só quis dar assistência.
Em menos de meia hora, todas as obras de arte que eram alvos da quadrilha foram roubadas com sucesso,
colocando-as nos veículos que estavam estacionados lado a lado no exterior do museu. Partiram em
acelerada fuga.
Um guia foi o primeiro a tentar contatar a Polícia, obtendo ao final do telefonema uma conclusão marcante.
---Os policiais estão longe daqui, todos concentrados nos focos de incêndios. A mesma quadrilha deve
estar por trás dessas chamas também, queriam dispersar e despistar a Polícia, facilitando a rota de fuga.
Esses bandidos estavam muito bem informados sobre cada ponto do museu, desativaram os alarmes logo
que chegaram e pegaram quadros que já tinham selecionado antes e que já sabiam exatamente onde
encontrar.
Num terceiro andar vazio de arte e de tranquilidade, estavam um grupo de dez turistas tensos que se
entreolhavam, um guia inerte com um celular em mãos, um arquiteto que caminhava em círculos, dois
vigias que lado a lado observavam o cenário exterior por uma janela e uma idosa que tocava com
delicadeza o espaço onde outrora esteve um Portinari.

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A pessoa responsável pela elaboração do plano era aplaudida pelos demais membros da quadrilha. Já tinha
passado dez dias desde o roubo.
---Os negócios estão se ampliando e estamos partindo para outras áreas de atuação. Ficou no museu depois
da ação e ninguém desconfiou que era um de nós. Palmas para o criador de todo o plano.
Sentou-se e observou um esboço desenhado da disposição de obras pelos andares e da sala de filmagens
em ponto reservado.
---Quem desconfiaria do pobre vigia agredido? Quando todos passam inebriados pela perspectiva de ver
as obras de arte, parece que nós na entrada somos invisíveis. As desconfianças se voltaram contra uma
pessoa renomada, conhecedora de cada milímetro do prédio.
---Claro, aquele que arquitetou cada parte.
Passara meses para avaliar cada espaço do museu e a disposição das obras, infiltrar-se como simples vigia
facilitou a tarefa. Escolhera a data do roubo depois de ouvir, durante sua ronda noturna, uma conversa
daquele que elegera como suspeito ideal para o crime.
´´---O próprio dono do museu me recomendou esse dia e esse horário enquanto olhávamos as
esculturas.´´
O conhecido perfil falante, explicativo e detalhista do arquiteto também foi aliado para colocá-lo em
evidência diante dos demais.
´´---Sei de tudo isso porque sou arquiteto e desenhei o projeto desse museu, o conheço com a palma
da mão, vim apresentá-lo à minha tia. Bem vindos, me chamo Paolo.´´
Os focos secundários de incêndio desviariam as atenções policiais e permitiriam um esquema de fuga mais
seguro.
A brilhante ideia surgira na mente do homem calvo não por partes, mas sim por inteiro, de forma
arrebatadora, num arroubo.
SERAFIM

Uma pequena rachadura se espalhava e culminava com o desabamento de parte de uma ponte. Seu corpo
caía de uma altura de dezenas de metros rumo ao impacto com as águas caudalosas de um rio. Acordou
com o som do próprio grito e do despertador. Seguindo uma rotina diária, levantou-se, lavou o rosto,
escovou os dentes, arrumou-se e desceu até a sala de refeições, onde estavam uma mulher e uma menina.
Ele era um jovem de dezesseis anos, pele alva e cabelos loiros lisos, chamado Serafim. Estava diante de
uma mulher gorda com óculos de armação vermelha, que era sua mãe e que se chamava Magali, além de
uma garota ruiva de rosto sardento, que era sua irmã Angelina.
---Meu anjo está com cara de sono outra vez, problemas de insônia, filho?
---É o mesmo pesadelo que vem me perseguindo nos últimos meses, mãe. Uma ponte e uma queda.
---É só um mal sonho, querido.
A senhora rechonchuda pegou um jornal que estava sobre a mesa e o foleou.
---De volta à realidade, soube das notícias de hoje? Foram registrados pequenos tremores de terra nos
arredores da cidade. Isso é surpreendente.
Serafim tomou um gole do café, pegou uma maçã e se dirigiu à saída.
---Não me agradam as surpresas.
Em um ônibus, seguiu até as proximidades de seu colégio. Quando desceu do transporte e se encaminhava
ao portão do local, cruzou com uma mulher alta que vestia um chamativo traje cigano. Ela parou como
um muro à sua frente, seus olhos negros pareceram fulminá-lo.
---O nome de um anjo, o encontro dos quatro elementos da natureza. Você estará lá. Posso ver, posso
sentir. Podemos tentar fugir, mas ninguém escapa do seu destino.
A cigana caminhou com velocidade e sumiu do campo visual dele como em um passe de mágica.
Ainda estava trêmulo, quando sentiu uma mão delicada tocar no seu ombro, virou-se e se deparou com
uma jovem magra, de cabelos negros com mechas azuis e que usava piercing no nariz.
---O que houve, amigo? Parece que viu um fantasma.
---Quase isso, Ester. A aula de História já começou?
---Sim, com um professor novo, o anterior não durou muito tempo no colégio.
---Quem é esse novo?
---Chamam ele de senhor Pontes, acho que por causa do sobrenome.
Já passavam pela porta de entrada quando o jovem parou aterrorizado.
---Parece que não está a fim de estudar sobre o Renascimento.
---Estou tendo pesadelos com pontes e com minha morte e você quer que eu assista uma aula de um tal
senhor Pontes que fala sobre Renascimento. Soa um pouco demais pra mim.
---Ainda com essa bobagem de sonhos ruins? Amigo, somente nós estamos matando algo, uma aula. Pense
na nossa excursão e no nosso acampamento que serão amanhã, toda a turma irá.
Apreensivo, dirigiu-se até a biblioteca que ficava em uma porção lateral do prédio. Selecionou alguns
livros e os posicionou sobre uma das mesas, sempre seguido de perto por uma inseparável amiga.
---Não está a fim de História, mas anda flertando com a Geografia, pra que o livro com mapas?
Os dedos ágeis do rapaz seguiam algumas coordenadas desenhadas na obra, identificando um percurso
oficial e alguns alternativos, evidenciados e diferenciados com um marca-texto amarelo e um verde.
---O ônibus que levará a turma até a serra da excursão e do acampamento passará por duas pontes que
estão sobre dois rios, marquei esse trajeto de amarelo. Não correrei esse risco. Nós iremos seguir uma rota
diferente, a marcada de verde.
---Parece até que está fugindo de algum criminoso.
---Haverá vida depois da morte? Estou escapando de uma terrível premonição e usarei todas as armas que
tiver.
A jovem de piercing encontrou abaixo dos livros de geografia uma obra que lhe chamou atenção.
---Esses pesadelos andam mexendo com seu juízo. Lerá agora sobre os significados dos nomes? Depois
me diz o meu?
---Não é hora para humor, Ester. Encontrei com uma cigana que falou sobre o meu nome e sobre o encontro
dos quatro elementos da natureza.
---Terra, ar, fogo e água... Um encontro entre eles e ainda uma conexão com o seu nome, Serafim. Pra
mim isso tudo só se pode nomear de uma forma: fantasia.
---Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.- disse Serafim, fazendo alusão
à Shakespeare.
Separou os livros e os colocou na mochila. Dirigiu-se à sala de aula, após a saída do professor de
sobrenome sugestivo.
O dia foi carregado com estudos e com trabalhos interdisciplinares. Quando chegou em casa era final da
tarde e, dominado pelo cansaço, encaminhou-se direto para seu quarto. O sono profundo trouxe de volta
um pesadelo superficial, à flor da pele. Agregava-se à ponte e à sensação de queda livre a fala enigmática
e fragmentada de uma cigana, cujos fragmentos pareciam não se encaixarem.
O despertar em meio à madrugada foi definitivo. Estava acordado quando a melhor amiga ligou às seis da
manhã.
---Tentei falar a noite toda contigo. Já arranjei o meio para irmos até o local do acampamento. Vamos às
oito da manhã com um primo da mamãe que está retornando para Capital. Por você abdico de ir com a
galera da turma no ônibus.
---Ótimo, vou te mandar a foto daquele mapa. Não esqueça de dizer ao primo para seguir o percurso
marcado em verde.
Ele teve apenas duas horas para arrumar uma mala e sua mochila. Despediu-se da mãe e da irmã com um
forte abraço compartilhado. Partiu num veículo junto com Ester e com um homem de pele branca como
neve, que era parente da jovem. Enquanto viajavam, passou a folear o livro sobre o significado dos nomes.
---Andei pesquisando e meu nome significa estrela, nada mais condizente, porque nasci pra brilhar.
---Ainda estou procurando o significado do meu. Se os nomes estivessem em ordem alfabética facilitaria,
são centenas.
Dezenas de quilômetros tinham se passado quando um acidente com uma carreta tombada obrigou o
motorista a mudar a rota original, marcada num papel com tons esverdeados. Distraído entre significados
nominais, Serafim não reparou na alteração de trajeto; Ester estava cochilando.
Minutos depois, os olhos dele ganharam novo brilho. Com um dedo apontado para uma das páginas da
obra, acordou a amiga.
---Encontrei o significado! E tem a ver com um dos elementos da natureza. Serafim significa ´´ aquele que
arde em fogo´´.
Recém-acordada e surpresa, Ester observava o local exato por onde passavam com o carro.
---Tinha uma ponte no meio do caminho?
Abalado, o jovem passageiro olhou pela janela lateral e confirmou a veracidade das palavras da amiga.
---Um obstáculo na estrada me fez mudar o trajeto.- disse o homem ao volante.
Ester tomou o livro das mãos do amigo.
---Já descobriu o fogo, mas como os outros elementos se encontram?
Um forte tremor de terra causou a expansão de rachaduras na porção central da ponte, que se rompeu.
Um carro vulnerável deslizou para um lado, chocando-se contra a beirada de uma parte da ponte que
pendia. Um dos ocupantes do automóvel, que não usava cinto de segurança, teve o corpo expelido com o
impacto e iniciou um voo sem volta ao ar livre. Aquele que ardia em fogo teve a vida apagada após o
impacto contra a água caudalosa de um rio.
Será fim?
EPÍLOGO

A inauguração da nova e moderna clínica médica no lugar onde ocorrera uma tragédia atraiu a atenção da
imprensa e de populares. Por trás do empreendimento estavam dois sócios majoritários, que eram um
médico e um renomado empresário.
---Roberto, teremos uma noite inesquecível pela frente.
---Sem dúvida, Carlos, uma noite de muitas surpresas. Nossa clínica representa a vida e apagará as
lembranças que pairavam esse lugar desde o desabamento da Klaus Têxtil.
---Ele era seu melhor amigo, verdade?
---Sim e vice-versa.
´´---Meu braço direito e o esquerdo também.- pronunciou o anfitrião, amistoso.´´
´´---Gosto mais quando me chama Beto. Desculpe pela pequena demora.´´
---Não tenho segredos com você, Carlos. Hoje sei que foi um erro imperdoável ter me envolvido com a
namorada do Klaus, a Isabela.
---Você sempre muito impulsivo e com predileção por certos tipos de mulheres, não à toa quase casou
com uma jovem com o mesmo perfil da Isabela.
´´---Ouvi inclusive quando minha ambiciosa noiva desejou minha morte tão logo casássemos com
comunhão de bens, verdade, Liz?´´
---Agora estou vacinado contra golpes do baú, caro doutor. Mudando de assunto, tem notícias do juiz
Torres? Convidei ele e a família e não recebi retorno.
---Não virá. Graças a filha, que fez movimentos desastrosas na bolsa de valores, o juiz se afundou em
dívidas, praticamente decretou falência. A família vive uma verdadeira maré de azar.
---Nunca simpatizei com aquela filha dele. Sempre enxerguei uma espécie de maldade nela. E se essa maré
que a afetou deve ser castigo por um mal feito.
´´Caminhou até o quarto do cárcere por rapto, visualizou o tabuleiro as peças dispostas ainda
conforme a última partida interrompida.´´
´´---O dinheiro foi conseguido e a culpa transferida. O pobre Guilherme está sendo procurado e logo
será detido.´´
´´---Nesse jogo só existiu uma rainha. Xeque-mate.´´

Enquanto tomavam o vinho favorito de Roberto, visualizaram a chegada dos primeiros convidados. Os
anfitriões cumprimentaram todos.
---Meu grande advogado Mário, não tive notícias suas desde a leitura do falso testamento.
´´Um homem alto de cabelos ralos e finos que era advogado e que trazia em mãos um importante
documento.´´
---Tenho andado bem ocupado. Se tivesse aceitado o convite do meu sogro e passado o ano novo conosco
no iate, poderíamos ter nos encontrado antes.
´´Ao lado do anfitrião havia um homem de cabelos ralos e de porte atlético. Caminhou alguns passos
e beijou sua cônjuge.´´
´´---Advogado e genro, cada vez estou mais presente na vida do grande deputado.´´
Roberto abraçou respeitosamente o político que acompanhava o advogado, estavam também presentes sua
filha Vitória e sua mulher Tereza.
---Grande Valdimiro Cunha.
O deputado se afastou temporariamente do grupo ao perceber a chegada de um amigo especial também
pertencente ao ramo da política. Recebeu um ex-prefeito com um caloroso aperto de mão.
---O dono de Serra Dourada. Como está meu amigo Baltazar? A notícia dos falsos atentados se espalhou
mesmo.
---Sim e contaminou as eleições. Agora quem ocupa minha cadeira é o cretino Olegário Corvo. Mas como
aprendi contigo: no jogo da política, vale tudo.
´´---Como diz um velho amigo deputado meu: no jogo da política, vale tudo.´´
O sogro de Mário retornou ao ponto onde o grupo maior de pessoas o aguardava, vendo quando Roberto
se afastou para receber dois importantes irmãos recém-chegados.
---João Carlos e Maria Luiza, Juca e Malu, uma satisfação ter vocês aqui, no lugar onde existiu o império
têxtil do pai de vocês.
´´O rapaz de cabelos cacheados e de olhos esverdeados se chamava João Carlos e tinha dezesseis
anos. A moça de cabelos ruivos e de olhos cor mel se chamava Maria Luiza e tinha dezessete anos.
Tinham em comum o fato de serem filhos do multimilionário, frutos de seu primeiro casamento.´´
´´Longos cabelos ruivos, olhos cor mel e ostentando um belo e inseparável colar de pérolas negras.
Um guarda-costas a seguia de perto.´´
´´Malu era uma jovem multimilionária herdeira de um imenso patrimônio e de uma imensa
fortuna.´´
´´Ali vivia sozinha com o marido Juca, que trabalhava como taxista.´´
´´Já eram onze da noite quando um homem jovem de cabelos cacheados e olhos esverdeados entrou
na morada.´´
---Soube que casou, Juca, e já não tem o mesmo padrão de vida de alguns anos atrás.
---É verdade. Minha mulher veio, deve está conhecendo o local. Perdi a herança de papai em coisas fúteis
como o jogo e hoje vivo uma vida simples como taxista. A Malu foi a responsável por perpetuar a riqueza
e o senso empresarial do papai.
---Soube que foi vítima numa tentativa de roubo de uma joia. A que ponto chegaremos com essa violência?
---De fato, Roberto. Por sorte recuperei meu colar, mas nunca esquecerei o rosto daquele bandido.
Em um dos pontos do salão, agora repleto de convidados, estava um ladrão profissional.
´´Num galpão abandonado, reuniam-se cinco homens. Um deles, calvo e com bigodes, analisava a
bela peça que tinha em mãos.´´
´´---Como sabe onde fica a sala secreta?- indagou um dos vigias, o de cabelo calvo e de bigode.´´
Um senhor branco feito neve surgiu na entrada principal junto à uma jovem de cabelos com mechas azuis
e inconfundível piercing nasal. Aproximou-se de Roberto e lhe deu um caloroso abraço.
´´No local estavam também o mordomo que trabalhava há mais de uma década na casa, era um
senhor tão branco como a neve, de estatura mediana, que se chamava Benjamin.´´
´´Partiu num veículo junto com Ester e com um homem de pele branca como neve, que era parente
da jovem.´´
---Meu mordomo, meu herdeiro, trouxe uma amiga?
---É a filha da minha prima que estava comigo no acidente na ponte. Foi um momento traumático em
todos os sentidos, mas estou certo que a Ester e eu superaremos.
---A morte de um grande amigo nunca é superada completamente.- disse Ester.
A última fala ecoou no ar por longo tempo.
Já eram quase nove da noite quando, diante de todos os presentes, o multimilionário anfitrião subiu em
um palco e ficou de frente para um microfone.
---Agradeço a presença de cada um. A inauguração dessa clínica é um brinde à vida e à justiça. Foi
pensando nisso que conto com alguns policiais além dos seguranças da entrada para deter quatro
criminosos aqui presentes.
Um pequeno alvoroço se firmou entre os convidados. O primeiro a ser conduzido ao alto do palco por um
policial foi justamente um dos seguranças do evento.
---Paulo Rocha, agiu sobre o disfarce de vigia em um museu numa cidade próxima e provavelmente
orquestrou o roubo do local, testemunhas o apontaram como líder de uma quadrilha de joias e foram
reunidas uma infinidade de provas contra ele. Em parceria com a Polícia, o contratei como segurança dessa
inauguração como uma armadilha para sua prisão.
---Não sou líder da quadrilha, idiota, há um chefe por trás de mim.
---Que certamente cairá junto contigo, em efeito dominó.
Uma mulher elegante se sobressaiu em meio aos convidados ao apontar na direção do criminoso de
bigodes.
---Reconheço esse bandido, tentou roubar esse valioso colar de pérolas que uso agora.
---A madame ficará espantada quando eu falar o valor deste seu colar e a identidade do chefe da quadrilha.
Paulo foi levado por policiais, sendo substituído no palco por dois homens de faces sérias gêmeas.
---Pablo e Henrique. Um original e um sósia que estão por trás da morte de Milena Vilar, quem é quem?
´´Em meio ao caminho apareceu um homem que parou em sua frente como uma muralha. Foi como
se deparar com a projeção da própria imagem diante de si.´´
---Eu sou apenas alguém manipulado e necessitado, que recebeu uma proposta quase milionária apenas
para representar um papel. Não recebi o combinado e fiz a denúncia.
---Não minta, cretino, foi você quem me procurou e me induziu a fazer o que fiz. Não passa de um
chantagista barato.
---A Polícia já está a par de como um falso álibi foi plantado e de como uma carta do passado rasurada
deu respaldo a uma falsa depressão suicida. Serão punidos exemplarmente.
Algemados, dois semelhantes foram levados ao passo que uma interrogação permanecia pendente. Quem
era o quarto criminoso?
Roberto fitou a plateia atenta, tinha em mãos algemas.
---Conheci os personagens e histórias que aqui apresentei quando procurei a Polícia para falar de um caso
pessoal, no qual fui coadjuvante. De início essa armadilha estava planejada apenas para uma pessoa, mas
um delegado me convenceu a ampliá-la para deter o vigia fajuto e os bandidos similares. Podem prender
o alvo principal da operação.
Uma mulher foi capturada em meio aos convidados por policiais infiltrados e conduzida à força até o
centro do palco das revelações. Teve retirada pelo anfitrião uma peruca ruiva.
---Raissa Lima. Uma das irmãs trigêmeas de minha amiga Patrícia e assassina dela.
´´Há seis meses, estava num restaurante com um grande amigo, quando se deparou com uma
garçonete que era a sua imagem e semelhança.´´
---Eu estava presente no encontro da Patrícia e da Carla, não senti nenhum sentimento ruim entre as duas,
tudo foi pura emoção. Duvidei quando soube da condenação da irmã recém-encontrada pela morte da
minha amiga. Passei a visitar a condenada e obtive informações chave sobre os fatos ligados aos dois
crimes. Procurei a governanta da Patrícia e descobri detalhes interessantes, você passou um bom tempo
na companhia da senhora Lurdes, retirou-se da casa durante cerca de uma hora, quando retornou pediu pra
funcionária servir alguma bebida quando a dona da casa regressasse. A vítima morreu tentando revelar
algo sobre a origem das irmãs e só estavam no escritório você, Patrícia e Carla. Desconfiado, passei a te
visitar com maior frequência e numa dessas visitas, quando você estava em um revelador banho de piscina,
vi um detalhe nas suas costas que foi chave, algo de cunho hereditário.
---O maldito sinal.
---O sinal que unia as gêmeas, mesma localização, mesmo tamanho, mesma cor. Lurdes foi assassinada
para não revelar a existência da terceira irmã. Eu sabia que faltava uma terceira parte de um pingente e já
imaginava desde então com quem estaria. O mistério das câmeras que teoricamente mostraram Carla
matando a irmã estava desvendado. Terminei de fechar o cerco contra você quando consegui as imagens
de uma câmera de segurança no Centro que registrou quando uma linda mulher procurou emprego em
algumas lojas, na exata hora em que outras câmeras registraram o crime que tirou a vida da Patrícia. Tire
as lentes de contato, sua imagem e seu DNA serão seus maiores inimigos.
---Meu maior inimigo é você, Roberto Mota. Aguarde a lei do retorno.
---Acredito nela, não à toa você está aqui, prestes a ser detida e sua irmã, solta.
Raissa retirou as lentes de contato escuras e metralhou o empresário com uma profunda raiva expressa em
seus olhos azuis.
Aproveitando-se do desvio de atenção instaurado com as últimas revelações, dois amantes se encontram
às escondidas num ponto deserto próximo aos banheiros. Ela usava um característico vestido vermelho.
---Do jeito que você gosta, Angélica, uma paixão escondida.- disse ele.
Um beijo supostamente secreto foi flagrado por uma esposa que se convertera na sombra do marido.
---Então é com essa vagabunda que me engana, Mário? Os rumores sempre foram verdade.
´´Deixou discretamente o lar e caminhou até uma esquina escuro nas adjacências, onde um carro
prateado já a esperava. Entrou no automóvel e trocou um beijo apaixonado com o condutor.´´
´´---Aparentemente sim, mas as aparências enganam. Meu genro foi infiel e uma traição se perdoa,
mas nunca se esquece.
´´---Rumores não são totalmente confiáveis, a amante nunca apareceu e ele nunca confessou. Se bem
que sempre temos segredos inconfessáveis.´´
´´---Um advogado de confiança e espero que um marido fiel, pelo bem da família que construímos.´´
---Vitória, meu amor.
---Mário, meu ódio. Já que estamos numa noite de revelações...
A mulher traída pegou a amante pelos cabelos e a puxou com violência. Passando em meio ao mar de
gente, foram vistas com uma onda de surpresa. Mário seguiu, aflito, os passos de ambas. Os três subiram
no palco ficando ao lado do anfitrião. A trigêmea assassina fora levada detida há pouco.
---Acabo de flagrar essa vagabunda aos beijos com meu marido e esse caso dos dois já vem de muito
tempo atrás. Apresento à alta sociedade esse belo casal de amantes.
Todos os holofotes da imprensa se voltaram para o trio em conflito, assim como o assombro dos
convidados, sobretudo de um marido que finalmente enxergava sua mulher sem máscaras: Juca.

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No final da noite, restaram no grande prédio os dois amigos que tinham sido os primeiros a chegar.
---Roberto, Roberto, sabe guardar bem as coisas. Até a mim surpreendeu com todas aquelas revelações.
Um multimilionário sorria, satisfeito, e com sensação de dever cumprido.
---Carlos, meu doutor amigo, a vida é uma caixinha de surpresas e a justiça tarda, mas não falha.

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