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LENDO LOUIS ALTHUSSER:

RESENHA DETALHADA DE IDEOLOGIA E


APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO
Por Vinicius Siqueira

Edição Colunas Tortas

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Mauá – SP
Edição do Autor
2017
LENDO LOUIS ALTHUSSER:

RESENHA DETALHADA DE IDEOLOGIA E


APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO

Copyright © by Vinicius Siqueira

Todos os direitos de comercialização e distribuição são

reservados ao autor da presente obra.


Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 4
Aparelhos Ideológicos de Estado

LENDO LOUIS ALTHUSSER:

RESENHA DETALHADA DE IDEOLOGIA E


APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO
O ensaio Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado1, de
Louis Althusser merece ser objeto de nossa preocupação
e estudo não só pelo valor que tem como início de uma
teoria do Estado marxista, mas também pela importância
que tem na obra de Michel Pêcheux, ao inserir o conceito
de ideologia levado a cabo pelo analista do discurso.

É interessante, pois, observar a maneira com que


Althusser chega ao problema da Ideologia em geral e
das ideologias particulares, assim como, sua resolução
para o problema da reprodução das relações de produção.

1
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3
ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980, p. 9.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 5
Aparelhos Ideológicos de Estado

Reprodução das condições materiais


de produção
De início, o autor relembra noções fundamentais
do marxismo. A primeira delas: uma formação social
precisa reproduzir suas condições de produção para
conseguir sobreviver, “a condição última da produção é
portanto a reprodução das condições da produção”2. A
reprodução das condições de produção pode ser resumida
em: 1) reproduzir as forças produtivas e 2) reproduzir as
relações de produção existentes.

Toda formação social releva um modo de produção


dominante. Os processos de produção deste modo de
produção dominante põem em movimento as forças
produtivas (a força de trabalho e os meios de produção) e
as relações de produção definidas por este modo de
produção (como a relação de trabalho específica do
capitalismo atual expressa na Consolidação das Leis do
Trabalho).

2
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.9.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 6
Aparelhos Ideológicos de Estado

Tem-se, como resultado, que é impossível a manutenção


de uma sociedade sem a reprodução das condições
materiais da produção, que é, por sua vez, a reprodução
dos meios de produção. Os meios de produção são as
condições materiais de produção. Essa reprodução, diz
Althusser3, não deve ser pensada como um
acontecimento interno a uma fábrica: a reprodução dos
meios de produção envolve todo o sistema capitalista, já
que o proprietário de uma fábrica não é o produtor de
suas próprias máquinas, por exemplo – e o produtor das
máquinas não é produtor de suas próprias ferramentas,
assim, quase infinitamente.

Althusser explica4 que o que distingue os meios de


produção das forças produtivas é a força de trabalho. Sua
reprodução é “assegurada dando à força de trabalho o
meio material de se reproduzir: o salário. O salário figura
na contabilidade de cada empresa, como ‘capital mão de

3
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.14.

4
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.17.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 7
Aparelhos Ideológicos de Estado

obra’ e de modo algum como condição da reprodução


material da força de trabalho”5.

O salário é apenas parte da força de trabalho gasta pelo


trabalhador e deve servir para que a força de trabalho
assalariada se reproduza: para que o trabalhador tenha
uma casa para viver, comida, água encanada, roupas e
todas as condições necessárias para que possa estar
pronto ao trabalho. Essas condições, sublinha Althusser,
são históricas, não são determinadas por um mínimo
biológico necessário, como uma condição mínima que o
corpo pede para sobreviver; “Marx sublinhava: é preciso
cerveja para os operários ingleses e vinho para os
proletários franceses”6.

A força de trabalho, por sua vez, não deve ser reproduzida


cegamente. Para que seja realmente força de trabalho, é
necessário que seja reproduzida com suas devidas

5
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.18.

6
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.19.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 8
Aparelhos Ideológicos de Estado

“competências” e, assim, dar conta de mover o sistema do


processo de produção. Isso significa que o
desenvolvimento das forças produtivas num dado
momento histórico obriga que a força de trabalho seja
diversamente qualificada e reproduzida a partir dessa
diversidade, “segundo as exigências da divisão social-
técnica do trabalho, nos seus diferentes ‘postos’ e
‘empregos'”, através do sistema escolar e outras
instituições7.

Aqui, Althusser inicia sua crítica ao sistema escolar: é lá


que cada sujeito aprende a ler, escrever, contar,
dependendo de sua trajetória, também terá
conhecimentos específicos por ser escolarizado no ensino
básico (assim, exercer funções de alguém com tal
escolarização), no ensino técnico ou universitário
(com seus aprendizados que servem às suas respectivas

7
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.19-20.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 9
Aparelhos Ideológicos de Estado

funções). O que se aprende, diz Althusser, são “saberes


práticos”8.

Para além dos saberes práticos, a escola também ensina


as regras dos bons costumes, o tipo de comportamento
que, em seu lugar na divisão do trabalho, cada sujeito
deve cumprir. O exemplo brasileiro mostra que a religião
cristã é inserida goela abaixo nos interstícios de toda
disciplina: há algumas institucionalizadas, como os
estudos sociais e a antiga educação moral e cívica,
praticada nos anos de ditadura militar. Aos futuros
operários, é ensinado “obedecer bem”, aos futuros
capitalistas, “mandar bem”.

Enunciando este facto numa linguagem mais científica,


diremos que a reprodução da força de trabalho exige
não só uma reprodução da qualificação desta, mas, ao
mesmo tempo, uma reprodução da submissão desta às
regras da ordem estabelecida, isto é, uma reprodução
da submissão desta à ideologia dominante para os
operários e uma reprodução da capacidade para
manejar bem a ideologia dominante para os agentes da

8
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.21.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 10
Aparelhos Ideológicos de Estado

exploração e da repressão, a fim de que possam


assegurar também, “pela palavra”, a dominação da
classe dominante.9

Dito isso, entende-se que a reprodução da força de


trabalho tem como pressuposto e condição de eficácia a
reprodução da qualificação da força de trabalho e
também a reprodução da sujeição à ideologia dominante.
Ambas não andam em paralelo, ou seja, “juntas porém
separadas”: é justamente através das formas de sujeição
à ideologia dominante que a reprodução da qualificação
da força de trabalho acontece.

A metáfora do edifício
Após abordar a reprodução das condições materiais de
produção e da força de trabalho, Althusser precisa explicar
como se dá a reprodução das relações de produção. Para
isso, sua jornada vai de encontro com a metáfora marxista
do edifício para representar a estrutura social. Marx
concebe dois níveis para explicá-la, sendo um deles a

9
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.21-22.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 11
Aparelhos Ideológicos de Estado

infraestrutura, que comporta a base econômica, as


relações de produção; e o outro a superestrutura, que
permite a existência de dois outros níveis, o jurídico-
político, que corresponde o Estado e o direito, e a
ideologia, que corresponde às ideologias moral, familiar,
religiosa e etc.

A metáfora do edifício tem um funcionamento perfeito


quando imaginada com a base do edifício sendo a
infraestrutura e a parte superior sendo a superestrutura.
Ela representa a “determinação em última instância do
que se passa nos ‘andares’ (da superestrutura) pelo que se
passa na base econômica”10. A superestrutura, mesmo
sendo determinada em última instância pela
infraestrutura, também tem seu próprio índice de eficácia
(ou de determinação), que é pensado na medida em que
1) há uma autonomia relativa da superestrutura em
relação à infraestrutura e 2) há uma ação de retorno da
superestrutura sobre a base. Ambos os apontamentos
revelam uma dinâmica de base e superestrutura que não

10
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.27.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 12
Aparelhos Ideológicos de Estado

deixa de considerar a determinação em última instância


da base sobre a superestrutura.

Althusser argumenta que a metáfora é boa por permitir


ver base e superestrutura sob o olhar da determinação (ou
do índice de eficácia), que coloca a base como
determinante em última instância, porém, ao mesmo
tempo, é boa ao dar oportunidade de observar a ação de
retorno da superestrutura sobre a base. Mas, para isso, é
necessário pensar a partir da reprodução o que
caracteriza a própria superestrutura, que até agora só foi
apresentada num nível descritivo.

O Estado e os aparelhos

O filósofo francês escolhe o Estado como primeiro alvo de


análise para passar do descritivo para a teoria sob o ponto
de vista da reprodução.

A tradição marxista é peremptória: o Estado é


explicitamente concebido a partir do Manifesto e
do 18 Brumário (e em todos os textos clássicos
ulteriores, sobretudo de Marx sobre a Comuna de Paris
e de Lenine sobre o Estado e a Revolução) como
aparelho repressivo. O Estado é uma ‘máquina’ de
repressão que permite às classes dominantes (no
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 13
Aparelhos Ideológicos de Estado

século XIX à classe burguesa e à ‘classe’ dos


proprietários de terras) assegurar a sua dominação
sobre a classe operária para a submeter ao processo de
extorsão da mais-valia (quer dizer, à exploração
capitalista).11

O Estado, assim, é um aparelho de Estado que se define


na luta de classes como arma da burguesia e seus aliados
contra o proletariado. Esta é sua função fundamental. Sua
existência, no que lhe concerne, dentro do aparelho de
Estado, só faz sentido “em função do poder de Estado“12.
Ou seja, a luta de classes política gira em torno da tomada
do poder de Estado. O poder de Estado não se confunde
com o aparelho de Estado, mas tomar o poder de Estado
é visar controle sobre o aparelho de Estado, apesar de ser
possível tomar o poder de Estado sem modificar o
funcionamento de parte do aparelho estatal, como Lênin
denunciou após a revolução de 1917.

11
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.31.

12
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.36.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 14
Aparelhos Ideológicos de Estado

Junto do aparelho (repressivo) de Estado, há também


os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Como podemos
distinguir os AIE do aparelho de Estado (AE)? O último
funciona através da violência, compreende “o Governo, a
Administração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, as
Prisões, etc., que constituem aquilo a que chamaremos a
partir de agora o Aparelho Repressivo de Estado.
Repressivo indica que o Aparelho de Estado em questão
‘funciona pela violência’, – pelo menos no limite (porque
a repressão, por exemplo, administrativa, pode revestir
formas não físicas)”13. Já o primeiro, os AIE, são
compostos por um certo número de realidades que se
apresentam ao observador como instituições distintas.
Althusser enumera alguns:

• O AIE religioso, que é o sistema das diferentes


igrejas;

• O AIE escolar, que compreende o sistema das


diferentes escolas públicas e particulares;

13
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.43.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 15
Aparelhos Ideológicos de Estado

• O AIE familiar;

• O AIE jurídico;

• O AIE político, que compreende o sistema político


com os diferentes partidos que o jogam;

• AIE da informação, como a imprensa, o rádio, a


televisão e etc;

• Entre diversos outros.

Os AIE não se confundem com o aparelho (repressivo) de


Estado. Primeiramente, os AIE são plurais, já o AE é único.
Depois, é possível constatar que, enquanto o aparelho
(repressivo) de Estado pertence ao domínio público, os
AIE se dispersam (em sua aparente dispersão) no domínio
privado.

Cabe agora uma observação importante de Althusser: o


fato dos AIE serem de domínio privado não implica em seu
funcionamento não ter o viés da classe dominante, que
detém o poder estatal. A separação de público e privado
como a conhecemos é feita dentro do direito burguês,
mas o Estado (burguês) escapa ao direito, na medida em
que é condição de existência do direito (burguês).
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 16
Aparelhos Ideológicos de Estado

Acima, falamos que os aparelhos repressivos de Estado


funcionam pela violência e que essa é sua característica.
Os AIE, por sua vez, funcionam pela ideologia. Esse
funcionamento não é exclusivo: um aparelho repressivo
funciona predominantemente pela violência, mas
também em menor grau, através da ideologia, como a
violência e a coerção ideológica praticada pelo aparelho
policial. Ao mesmo tempo, as escolas, aparelhos
ideológicos por excelência, funcionam através da
ideologia, mas dispõem de uma gama de métodos de
exclusão e castigo para reformar seus rebeldes.

A detenção durável do poder de estado envolve o


exercício da hegemonia sobre os AIE. Não é possível,
sendo assim, continuar detendo o poder de estado sem
controlar eficientemente os AIE. Inclusive, por não ser
unificado e centralizado numa unidade de comando, os
AIE são campos de contradições da luta de classes mais
aparentes e neles é possível ver o resultado do choque das
classes em luta.

A questão suscitada mais acima, sobre a reprodução das


relações de produção, pode ser agora explicada: ela é
assegurada majoritariamente pela superestrutura. Essa
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 17
Aparelhos Ideológicos de Estado

resposta ainda é atrasada e utiliza a metáfora descritiva


que o autor deixou de lado para desenvolver sua
interpretação a partir da reprodução. Pode-se, então,
modificar a afirmação acima para: a reprodução das
relações de produção é assegurada através do exercício da
hegemonia da classe dominante feito pelo uso do
Aparelho Repressivo de Estado e dos Aparelhos
Ideológicos de Estado.

Os Aparelhos Repressivos de Estado funcionam pela


violência para garantir, em última instância, a reprodução
das relações de exploração no Estado capitalista e,
também, para garantir as condições políticas do
funcionamento dos Aparelhos Ideológicos de Estado. Este,
por sua vez, asseguram a maior parte da reprodução das
relações de produção, protegidos pelo Aparelho
repressivo de Estado. É através da ideologia dominante
que o AE e os AIE mantêm uma certa harmonia que
garante a proteção de um pelo outro.

Segundo Althusser, na sociedade capitalista atual, o


aparelho de Estado dominante é o Aparelho Ideológico
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 18
Aparelhos Ideológicos de Estado

Escolar14. O autor diz que esta tese pode parecer


paradoxal, na medida em que a classe dominante prefere
ser vista aos olhos da sociedade (ou seja, aos olhos dela
própria e da classe dominada) como sendo fortalecida
fundamentalmente pelo aparelho político, o sistema
democrático parlamentar nascido do sufrágio universal
que coloca em luta diversos partidos.

Mas a história mostra que o capitalismo convive muito


bem com regimes diferentes do democrático
parlamentar, diz Althusser. Seus exemplos são o Império,
a Monarquia da Carta, a Monarquia parlamentar e, em
seguida, o sistema democrático presidencialista, todos na
França15.

O filósofo enumera de maneira pedagógica:

1. Todos os Aparelhos Ideológicos de Estado


competem pelo mesmo objetivo: a reprodução

14
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.60.

15
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.61.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 19
Aparelhos Ideológicos de Estado

das relações de produção, ou seja, na reprodução


das relações de exploração capitalistas.

2. Cada aparelho o faz à sua maneira. O aparelho


político assujeita os indivíduos à ideologia política
de Estado, “democrática”; já o aparelho de
informação, através de jornais, televisão, rádio e,
hoje, mídias sociais, assujeita os indivíduos com
doses de moralismo, liberalismo e, no Brasil, uma
dose extra de cordialidade, assim por diante.

3. Todos esses aparelhos servem a um mesmo


objetivo (a reprodução das relações de produção
capitalistas, ou seja, a reprodução das relações de
exploração em última instância), mas a harmonia
aparente de seus objetivos pode ser perturbada
com alguma contradição com a classe proletária,
restos das antigas classes dominantes. Os AIE,
como já dito, são locais de choque frequente.

4. Dentro desta harmonia de aparelhos ideológicos,


há um que tem papel preponderante: a escola.

A escola recolhe todas as crianças de todas as classes


sociais desde muito cedo, desde o período em que ela está
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 20
Aparelhos Ideológicos de Estado

mais vulnerável, e inculca-lhes os saberes práticos que a


ideologia dominante tem como fundamentais (como a
língua portuguesa, matemática, as ciências e as lições
morais). No Brasil, logo depois do Ensino Fundamental,
uma grande massa de crianças sai da escola e entra na
produção, são os subempregados, trabalhadores da
camada mais baixa do mercado de trabalho. Os que
seguem na jornada de estudos do aparelho escolar,
terminam o Ensino Médio e se transformam em
trabalhadores, médios, às vezes operários especializados
com cursos técnicos, às vezes trabalhadores mal-
remunerados de escritórios. Os que conseguem avançar
para o ensino superior se transformam no grupo
especializado de proletários ou os gerentes fabricados
para utilizar a voz de comando contra os operários.

Cada leva de indivíduos que deixam o caminho e


entram na produção estão recheados da ideologia que
lhes é necessária para exercer a função destinada a eles
dentro da sociedade de classes, “papel de explorado (com
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 21
Aparelhos Ideológicos de Estado

‘consciência profissional’, ‘moral’, ‘cívica’, ‘nacional’ e


apolítica altamente ‘desenvolvida’)”16.

Althusser afirma,

Ora, é através da aprendizagem de alguns saberes


práticos (savoir-faire) envolvidos na inculcação massiva
da ideologia da classe dominante, que são em grande
parte reproduzidas as relações de produção de uma
formação social capitalista, isto é, as relações de
explorados com exploradores e de exploradores com
explorados.17

E o autor diz que os mecanismos que envolvem a


reprodução das relações de produção são envolvidos pela
ideologia da escola universal, livre de qualquer tipo de
ideologia (não é de esquerda, não é de direita, não é
progressista, não é conservadora), libertadora (já que os
professores não podem desrespeitar a liberdade
intrínseca que as crianças têm, não é papel deles

16
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.65.

17
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.66-67.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 22
Aparelhos Ideológicos de Estado

influenciar qualquer tipo de opinião e decisão) e, claro,


exemplar, na medida em que as crianças se tornam boas
cidadãs na medida em que aprendem com o exemplo dos
adultos e dos conhecimentos virtuosos e libertadores que
lhes são dados.

Ideologia enquanto prática


A primeira ação de Althusser é separar dois tipos de
ideologia: a Ideologia, com I maiúsculo, e as ideologias. A
primeira, é a ideologia em geral, já a segunda é o conjunto
de ideologias particulares.

As ideologias particulares (religiosa, moral, política)


exprimem, em sua particularidade, posições de classe. A
Ideologia em geral é definida pelo contrário: não há
posição relativa, ela não pode ser definida através das
modificações, nascimentos e destruição que as ideologias
particulares tiveram ao longo da história, ela é definida a
partir de um funcionamento que está presente em todos
os momentos, a ideologia não tem história18.

18
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.72.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 23
Aparelhos Ideológicos de Estado

A ideologia em geral não tem história, mas não é pura


negatividade, como uma enganação ou um sonho. Ela não
tem história, mas este não ter história é uma positividade,
uma prescrição de seu funcionamento e estrutura,
que fazem da ideologia em geral uma realidade não
histórica, portanto, omni-histórica19. O funcionamento e
estrutura da ideologia em geral estão presentes na
história inteira, sendo a história como definida por Marx,
no Manifesto, a história da luta de classes, portanto, das
sociedades de classes. Para terminar esta observação, a
ideologia, por não ter história e ter seu funcionamento
presente em toda a história, é eterna, mas não é eterna
no sentido metafísico, mas somente no sentido de ser
trans-histórica.

Primeiro, entendemos que a ideologia é eterna, não tem


história, seu funcionamento e estrutura atravessam toda
história. Mas qual é seu funcionamento e sua estrutura?

19
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.75.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 24
Aparelhos Ideológicos de Estado

A primeira tese de Althusser é: “a ideologia representa a


relação imaginária dos indivíduos com suas condições
reais de existência”20.

Imaginária porque não corresponde à realidade: os


indivíduos vivem em ideologias, a que chamam de
“concepções de mundo”, que não correspondem à
realidade. Elas são, assim, ilusão, mas, ao mesmo tempo,
também se referem à realidade, ou seja, fazem alusão à
realidade, de maneira que basta interpretá-las para
conseguir chegar até a própria realidade que a concepção
de mundo engana. Desta forma, ideologia é ilusão e
alusão.

No fim, quando olha a si próprio, “homens se representam


sob uma forma imaginária as suas condições de existência
reais”21. Mas, por que os homens precisam deste salto
imaginário, porque não veem sua realidade como ela é?

20
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.77.

21
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.79.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 25
Aparelhos Ideológicos de Estado

A primeira resposta é mecanicista: os culpados são os


líderes, as elites, a classe dominante, a intelectualidade,
que confabula contra o povo.

A segunda resposta é a do jovem Marx: a alienação


material dos homens é a condição de sua alienação com a
realidade. As condições de existência, alienadas, são as
condições de existência com a presença do trabalho
alienado.

Ambas as interpretações partem do princípio de que os


homens, através da ideologia, representam suas
condições materiais de existência. O que Althusser corrige
neste pressuposto é o tipo de representação que a
ideologia exerce, pois, para o filósofo, os homens não
representam as condições reais de existência através da
ideologia, mas sim sua relação com as condições de
existência.

O centro da representação ideológica é preenchido com


a representação da relação dos homens com suas
condições reais de existência.

A segunda tese Althusseriana é de que a ideologia tem


uma existência material. Não é a mesma materialidade
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 26
Aparelhos Ideológicos de Estado

que uma pedra ou uma cadeira, mas a matéria se expressa


em vários sentidos, em última instância ancorados na
matéria física.

A materialidade observada na ideologia de um indivíduo


está em rituais praticados com devida frequência, em
locais específicos, com atos específicos a serem praticados
numa ordem determinada. As ideias na cabeça de um
indivíduo têm existência material garantida através das
práticas que essa ideias acarretam, por sua vez, também
definida pelo aparelho ideológico de Estado.

Portanto, a ideologia cristã não funciona somente


enquanto conjunto de ideias, mas também no
deslocamento até a igreja, no ato de se ajoelhar, no gesto
do sinal da cruz, nas frases, orações, penitências e
contrições, olhares e afastamento de pessoas de fora, até
mesmo na conversa moral e religiosa que o sujeito tem
com sua própria consciência.

Surge assim que o sujeito age enquanto é agido pelo


seguinte sistema (enunciado na sua ordem de
determinação real): ideologia existindo num aparelho
ideológico material, prescrevendo práticas materiais,
reguladas por um ritual material, às quais (práticas)
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 27
Aparelhos Ideológicos de Estado

existem nos actos materiais de um sujeito agindo em


consciência segunda a sua crença.22

Daí, após a descrição do funcionamento da ideologia


como representação da relação imaginária do indivíduo
com suas condições de existência reais e do
funcionamento material da ideologia, Althusser afirma
que só há prática através da ideologia. Ou seja, todas as
práticas são intermediadas pela ideologia, não há prática
neutra, limpa, longe da ideologia. Ao mesmo tempo, só
existe ideologia através e para sujeitos, porque o
funcionamento da ideologia depende da existência do
sujeito que irá ser meio para a ideologia se materializar em
prática.

A categoria sujeito existe em toda ideologia, ao mesmo


tempo “a categoria de sujeito só é constitutiva de toda a
ideologia, na medida em que toda a ideologia tem por
função (que a define) ‘constituir’ os indivíduos concretos

22
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.90.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 28
Aparelhos Ideológicos de Estado

em sujeitos”23. O homem, portanto, “é, por natureza, um


animal ideológico”. E essa natureza evita o
questionamento da própria possibilidade de não sermos
sujeitos. Porque é tão evidente para nós que sejamos
sujeitos? Este é o efeito ideológico elementar.

Quando reconhecemos na rua alguém do nosso


(re)conhecimento, mostramos que o reconhecemos (e
que reconhecemos que ele nos reconheceu) dizendo
“olá” e apertando-lhe a mão (prática ritual material do
reconhecimento ideológico da vida quotidiana.24

Este reconhecimento é exemplificado alegoricamente por


Althusser na prática da interpelação. A ideologia, para ele,
interpela os indivíduos concretos em sujeitos concretos,
através do próprio funcionamento da categoria de sujeito
e, assim, da evidência de que somos sujeitos provocada
pelo efeito ideológico elementar. A interpelação, no
exemplo acima, se desenrola no reconhecimento e no

23
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.94.

24
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.96-97.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 29
Aparelhos Ideológicos de Estado

ritual do “olá” e aperto de mão. O sujeito reconhecido é


reconhecido como sujeito e se entrega como sujeito ao
reconhecimento.

A ideologia, desta forma, tem como funcionamento básico


recrutar sujeitos concretos entre os indivíduos concretos.
E todos são recrutados (já que a evidência óbvia de que se
é sujeito é efeito ideológico elementar). O recrutamento
de sujeitos entre os indivíduos, ou a transformação de
indivíduos concretos em sujeitos concretos, acontece por
meio do ato de interpelação, que é representado por
Althusser através da ação banal de interpelação feita pela
polícia, “Ei! você!”.

Ao ser chamado na rua por policiais e responder o


chamado se virando para a viatura e, assim, reconhecendo
que o chamado foi feito para si, o indivíduo concreto se
converte em sujeito. O reconhecimento de si enquanto
sujeito que pode ser interpelado pela polícia é um
reconhecimento efetivo, prático, real, não é especular.

Enquanto constituinte do sujeito, a ideologia não é um


local em que se pode estar fora. Inclusive, um dos efeitos
da ideologia é denegar o caráter ideológico da ideologia,
assim, ela tenta não ser ideologia quando é acusada de ser
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 30
Aparelhos Ideológicos de Estado

ideológica, na medida em que o acusador, aquele que


aponta onde a ideologia está, parte do princípio de que
não está na ideologia (a não ser que seja marxista ou
espinozistas, vai dizer Althusser).

Isso quer dizer que “a ideologia não tem exterior (a ela),


mas ao mesmo tempo é apenas exterior (para a ciência e
para a realidade)”25.

Em resumo, a ideologia interpela os indivíduos como


sujeitos. Já sabemos que a ideologia é eterna. Isso
significa, então, que a ideologia sempre-já interpelou os
indivíduos como sujeitos. Ou seja, os indivíduos são
sempre-já sujeitos interpelados pela ideologia e são
sempre indivíduos abstratos em relação ao status de
sujeito que sempre-já são.

A interpelação acontece em nome de um Sujeito Único e


Absoluto. Um Sujeito a que os sujeitos são submetidos e,
ao mesmo tempo, veem nele sua segurança existencial de
ocuparem uma posição e de terem esse lugar como

25
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.101.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 31
Aparelhos Ideológicos de Estado

garantia do presente e do futuro, além de ser uma


explicação possível do passado. Quando o sujeito é
interpelado pela ideologia, ele vê no Sujeito a que se
submete sua própria imagem e, por sua vez, a ideologia
interpela uma infinidade de indivíduos à sua volta numa
dupla relação especular tal que submete os sujeitos ao
Sujeito.

Portanto, enumerando os pontos principais, a ideologia


assegura:

1. A interpelação dos indivíduos como sujeitos;

2. A submissão desses sujeitos ao Sujeito;

3. O reconhecimento triplo: do sujeito e o Sujeito,


entre os sujeitos, e do sujeito por ele mesmo.

4. Por fim, ela garante que tudo está sob controle: o


reconhecimento mútuo entre sujeitos, Sujeito e o
auto reconhecimento asseguram que tudo
correrá bem quando um sujeito conduzir o outro.

O interessante desta dinâmica é o resultado da


constituição do sujeito. O sujeito formado tem a
experiência de ser, ao mesmo tempo, livre, centro de
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 32
Aparelhos Ideológicos de Estado

iniciativas e responsável por seus atos, no entanto, sua


emergência envolve ser submetido a uma autoridade e
ficar desprovido de qualquer liberdade verdadeira,
tirando aquela de aceitar sua própria submissão.

Assim, a ideologia funciona neste moldes:

o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que


se submeta livremente às ordens do Sujeito, portanto,
para que aceite (livremente) a sua sujeição, portanto,
para que “realize sozinho” os gestos e os atos da sua
sujeição. Só existem sujeitos para e pela sua sujeição. É
por isso que “andam sozinhos”.26

Por trás de todo este mecanismo de constituição do


sujeito através da interpelação feita pela ideologia, o que
está em jogo é justamente a reprodução das relações de
produção, no caso de uma sociedade capitalista, a
reprodução das relações de exploração que devem ser
reproduzidas para que a formação social se mantenha, e
uma dessas relações é a percepção de que se é livre e de
que todos são livres – ainda mais, de que a liberdade é o

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ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de
Estado… p.113.
Lendo Louis Althusser: Resenha Detalhada de Ideologia e 33
Aparelhos Ideológicos de Estado

centro do sujeito interpelado pela ideologia, desta forma,


de que é impossível um sujeito sem liberdade.

FIM
Edição Colunas Tortas

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