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Gustavo Del Vecchio

Sala: T-53/ Filosofia


A Parresía em Agostinho e Nietzsche

A prática parresiástica, como bem descrito por Foucault em seu livro


“A Coragem da Verdade”, como modo de dizer a verdade sobre si e,
principalmente, sobre o plano social e seus costumes, a tradição, começa
desde os tempos de Sócrates e estende-se, porém de forma diferente, até os
dias de hoje. Essa diferença, ou a metamorfose sofrida ao longo do tempo, é
mais bem ilustrada ou, mais precisamente, materializada, em Confissões de
Agostinho e o Ecce Homo de Nietzsche. Analisar essas diferenças não só no
conteúdo parresiástico mas também na forma estilística que o último implica
será o tema deste trabalho.
Parresía. Como já dito no parágrafo anterior, essa prática é, não
fundamentalmente, mas em seu significado primário o ato de dizer a verdade
sobre si e/ou sobre o valor da tradição corrente. Foucault diz que essa
definição da parresía antiga não basta, falta algo, pois que qualquer um
poderia dizer a verdade, ou melhor, todos na pólis grega seriam
inconscientemente parresiásticos. O missing link seria o dizer a verdade e,
por dizê-la, entrar automaticamente numa zona de perigo, poder ser morto,
expulso da cidade. Aqui também seria preciso a própria consciência do
indivíduo de, ao dizer, estar entrando nessa zona de perigo, e portanto estar
ou não preparado, ou disposto, a enfrentar as consequências. Esses
receberam o nome de “cínicos”.
Sócrates, é claro, é um ótimo exemplo. Diógenes é ainda mais, com o
famoso caso em que Alexandre, ao vê-lo deitado na rua como um mendigo,
diz a Diógenes que este poderia pedir qualquer coisa que ele, Alexandre, o
daria, e Diógenes responde: pare de barrar o meu sol. Por mais inusitado que
isso seja, a parresía como dizer a verdade, até mesmo na frente de um
monarca, foi sendo moldada, principalmente com Diógenes, como modo de
rebelia, de cinismo mesmo, de “subversão da moeda”, como já diz o ditado.
Cunhou-se o termo de “cuidado de si”, dizer a verdade à todo custo como
cuidado de si, e depois o princípio de que o corpo é a única e principal
morada do homem, ou seja, começa então a renúncia e desprezo de todos os
bens materiais que não sejam naturais, como ouro, vestimentas e afins.
Delineia-se então esse modo parresiático como único modo de vida
verdadeiro.
Foucault, após descrever esses e outros exemplos, passa a falar sobre a
metamorfose sofrida da parresía com o advento da Igreja cristã e sua
mudança, quase até que se poderia dizer drástica, de significado. Porém esse
mesmo advento implicou dois novos significados, o primeiro,
cronologicamente, implica a prática da parresía como confiança em Deus,
sendo sincero consigo mesmo e com Ele para alcançar a felicidade, a
fórmula lacaniana aqui seria “minha vontade é a vontade Dele”.
A segunda, mais nova, relaciona-se com o temor e tremor à Deus,
fundada na desconfiança de si mesmo e dos outros, centrada muito mais na
ética individual do sujeito, tendo em vista os desejos carnais humanos quais
corrompem a alma, seus vícios e prazeres que afastam o ser da voz de Deus.
A parresía, é bom ressaltar, não é aqui a mera desconfiança de si e dos outos,
o temor à Ele; ela é vista agora sob um ponto de vista completamente
diferente.
A parresía, inusitadamente, é vista nesta última como algo ruim, que
negligencia o cuidado de si, já que o homem por si só não é capaz de cuidar
de si ou viver adequadamente sem a mão de Deus, o sujeito, agora sob o
olhar cristão, é essencialmente corrupto, e por isso a necessidade de pastores
e instituições monásticas, para guiar o indivíduo. Um dos maiores exemplos
é, claro, que não obstante engloba ambos os tipos parresiásticos, Confissões.
É muito simples ver aqui como a mudança do significado da parresía
adquire corpo com essas confissões, essa autobiografia, na qual Agostinho
faz questão de, quando não está em temas mais “filosóficos”, como a
memória ou a origem do mal, citar Deus em praticamente todos os
parágrafos, dedicando tudo, sua obra e sua vida à Ele, o qual é provedor de
todo o Bem e fonte de toda a felicidade. Isso pode até soar repetitivo, porque
é mesmo, mas é precisamente nessa repetição de apostos que se instala a
nova parresía, que, mesmo dizendo a mais profunda e sincera verdade ao
interlocutor, não deixa de ser também um ato de desprezo e desgosto à si
mesmo, ou desconfiança de si mesmo, como condição de possibilidade para
o campo confessional. Em outras palavras, é apenas a partir do momento em
que o sujeito pecador se assume como pecador, como culpado, que se
tornam legítimas as confissões. Afinal, os que nunca pensaram, fizeram, ou
desejaram o mal não costumam se confessar.
Talvez o trecho mais conhecido de Confissões seja a narrativa de
quando Agostinho, ainda garoto, juntou-se com outros rapazes para roubar
peras. Isso por si é bobeira, mas aos olhos do pecador que assume a posição
de confessor, não é. Tudo vale aqui, até mesmo o roubo de uma pera. Porém
o que é de certa forma surpreendente é que Agostinho não pede perdão única
e exclusivamente pelo roubo per se, mas pelo fato de que, segundo ele,
“roubei por roubar”, o maior mal aqui foi a prática da transgressão sem
nenhum fim degustativo, a prática da transgressão como fim em si mesma. E
isso se repete ao longo do livro, como sua falta de controle de gula, ou
práticas religiosas antigas como indecentes, como o seu antigo apego ao
maniqueísmo.
E Nietzsche? Nietzsche também escreveu uma autobiografia (se todas
as suas obras não forem também já uma espécie de), intitulada Ecce Homo,
no qual, exceto partes em que ele fala sobre seus livros anteriores, ele se
dispõe a falar sobre seus gostos em literatura, música, filosofia, e... comida.
Por mais que saibamos a óbvia diferença e o abismo insuperável que
separam os dois escritores, ainda assim é possível traçar paralelos na própria
escrita, e analogias entre os conteúdos.
Nietzsche é ateu, dizendo que Deus está morto, ou que nós o
matamos, ou que ele não tem mais poder simbólico nenhum capaz de salvar
a perdição em que nos encontramos, ou salvar a eterna corrupção que é o
Homem. A semelhança se encontra aqui no fato de que Nietzsche,
automaticamente depois de negar a luz transcedental, Deus, também abre
espaço para a sua parresía, seu dizer sincero, mas uma perresía que não se
contenta, não se volta para algo exterior, mas únicamente para si, mas, é
claro, sem deixar de se referir ao mundo em geral.
Parresía, com o Ecce, não vem a ser o discurso interior voltado à Deus
com o objetivo de alcançar o perdão e se redimir. Nietzsche assume uma
postura de linguagem jocosa, com jogos de palavras, bem vaidoso, e isso,
como a virada de Descartes na filosofia, simbolizaria talvez uma nova virada
na literatura autobiográfica: o Si como o que é mais importante, o sujeito
como o centro, dando espaço agora não para o cogito, mas para o
übermensch. Enquanto que em Confissões temos a tentativa excessiva de
evitar os desejos dos mais variados, como a gula, onde Agostinho diz evitar
comer após um período de fome só para ter um maior prazer, Nietzsche lista
uma série de suas comidas preferidas, simples ou não, sem nenhum tipo de
“cuidado” ao escrever perante à alguma autoridade, pelo contrário, ele aqui,
a partir dessas listas, passeios que faz em montanhas, preferências de
ambientes, preferência musical e literária, tudo isso é voltado como que para
uma melhora a ser alcançada do sujeito. Aqui, como em Agostinho, não
temos uma atitude desregrada em relação à tudo, mas sim atitudes que o
sujeito pode adotar para ter uma melhor qualidade de vida. A diferença é que
em Nietzsche já temos uma independência muito maior do sujeito para com
si próprio, podendo, sozinho, mesmo não envolvendo Deus ou qualquer tipo
de exemplo moral Superior, alcançar uma medida ética e intelectual “sobre-
humana”, algo novo, melhor, como a luz transcendental que Agostinho tenta
alcançar; a diferença é uma simples diferença formal.

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