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Como Maquiavel ainda nos ajuda a entender a política

Uma ótima tradução de O príncipe nos relembra quão raros são os políticos hábeis e
prudentes no uso do poder
RUAN DE SOUSA GABRIEL
07/10/2017 - 10h00 - Atualizado 11/10/2017 10h29

Numa carta de 10 de dezembro de 1513 a um amigo, Nicolau Maquiavel lista perguntas a


que pretende responder em seu livro O príncipe: “O que é o principado, de que espécies eles são,
como se adquirem, como se mantêm, por que se perdem”. Ao longo dos 26 capítulos de O príncipe,
Maquiavel faz referência à virtude (virtù, em latim) de imperadores romanos, reis europeus e papas
bem-sucedidos em consolidar e expandir seus domínios – nem que para isso precisassem esmagar
opositores, derramar sangue inocente ou faltar com a palavra dada. No entanto, para Maquiavel,
“virtuoso” não é o rei pérfido e cruel, mas, sim, aquele que não se dobra aos caprichos “femininos”
da fortuna, o acaso, e sabe conquistar seus favores. O príncipe virtuoso é o que mantém seu
principado. Se, para uma nova edição, um Maquiavel ressurreto procurasse exemplos de virtude nos
líderes políticos do século XXI, poderia escrever alguns parágrafos sobre a primeira-ministra
alemã Angela Merkel, que recebeu das urnas em setembro um quarto mandato e reina sobranceira
numa Europa abalada. Merkel governa desde 2005, e a vitória na última eleição a tornou a mais
longeva primeira-ministra da Alemanha.
“Os conceitos virtude e fortuna exprimem a contradição entre as capacidades de um político
e a imprevisibilidade da vida pública”, afirma o filósofo lusitano Diogo Pires Aurélio, professor
da Universidade Nova de Lisboa e autor de uma nova tradução de O príncipe (Editora 34, 272
páginas, R$ 59), considerada pelos estudiosos a melhor edição do opúsculo em português. A nova
edição, bilíngue, coloca o texto italiano lado a lado com a tradução em português. Apesar da má
fama do adjetivo “maquiavélico” – sinônimo de diabólico e ardiloso –, Maquiavel não associa a
virtude aos desvios de caráter de quem é capaz de matar e roubar em nome do poder. O virtuoso é o
prudente. Sabe o momento oportuno de agir – e de não fazer nada. “Para Maquiavel, o político
virtuoso é o que se antecipa e não deixa margem para a fortuna. O grande líder tem sucesso porque
vai ao encontro do que a situação e o tempo pedem”, diz Aurélio.

Merkel não é uma política afeita a gestos espetaculares. “Ela dá poucas entrevistas, faz
campanhas eleitorais mínimas, simula levar uma vida normal de quem vai à noite para casa cozinhar
batatas. E, ainda assim, vence eleição após eleição”, diz Aurélio. “Ao contrário de Emmanuel
Macron (o presidente da França), ela nunca precisou se apresentar como uma não política para
convencer a população da necessidade de medidas tecnocráticas, mas age como se não fosse
política.” Aprender a fingir qualidades que não se tem é um conselho de Maquiavel em O príncipe.
Se, no século XVI, os príncipes deviam ao menos parecer piedosos, íntegros e religiosos, no século
XXI é melhor que não pareçam políticos – ainda que o sejam.
Em 2013, quando Merkel ganhou seu terceiro mandato, o sociólogo alemão Ulrich
Beck cunhou a expressão “merkiavelismo”, uma combinação de Merkel e Maquiavel que descreve
como a virtuosa primeira-ministra alemã dança com a fortuna. A eleição de 2013 também serviu para
expressar a opinião dos alemães sobre como a primeira-ministra lidara com a crise econômica que
devastou aZona do Euro. A crise que colocou em risco a unidade europeia foi um exemplo perfeito
da “ocasião” (occasione, em italiano) da qual Maquiavel fala, aquela armada pela fortuna e que
permite ao príncipe exibir sua virtude.
Merkel evitou tomar uma posição de imediato e demorou a se comprometer a emprestar o
dinheiro do contribuinte alemão para os países falidos do sul do continente. Manteve todas as
possibilidades pelo máximo de tempo possível e, com discrição germânica, foi mudando de opinião
sem que ninguém percebesse. Esse modo de reagir à occasione virou verbo: “zu merkeln”
(merkelizar, diríamos em português), cujo significado tem um quê de maquiavelismo: não emitir
opinião pessoal, não decidir nem fazer nada até que seja necessário. Quando Merkel finalmente se
decidiu, impôs pacotes de austeridade aos países devedores, como a Grécia, e assumiu o papel de
uma Mutti (mamãe, como seus súditos a chamam) justa e austera para os alemães. Com esse
movimento virtuoso, conseguiu ser amada e temida: amada pelos alemães e temida pela periferia
europeia, que passou a ver nela a imagem do príncipe que espolia os reinos vizinhos para manter a
riqueza de seu principado.
Na economia, Maquiavel aconselha a austeridade ao governar. O capítulo 16 de O príncipe,
“A liberalidade e a parcimônia”, afirma que é melhor ser “mesquinho” (austero) do que “liberal”
(gastão). O príncipe que não abre os cofres do governo mostra mais sabedoria do que aquele que
distribui benesses. Quando chega o tempo de escassez (ou da crise do capitalismo global), os
súditos começam a odiar o príncipe perdulário, que passa a sufocar o povo com novos impostos e
cortes no orçamento, mas respeitam o príncipe austero, que acumulou poupança para períodos
difíceis. “No nosso tempo, não temos visto fazer grandes coisas que não aqueles que são tidos por
mesquinhos; os outros são aniquilados”, afirma Maquiavel. “Portanto, é maior sabedoria ter-se o
nome de mesquinho, que gera uma má fama sem ódio, do que, por querer o nome de liberal, ter a
necessidade de incorrer no nome de rapace, que gera uma má fama com ódio.” Merkel não teme a
fama de “mesquinha”. A crise que arrasou as economias mundiais a partir de 2008 derrubou
governos e destruiu alguns dos partidos mais tradicionais da Europa, mas mal abalou o principado da
“mamãe” alemã.
No entanto, o que se considera virtude num principado pode ser vício em outro. “Essa
relatividade da virtude é intrínseca à política”, diz Aurélio. “Experimentemos comparar Merkel e (o
presidente da Rússia, Vladimir) Putin. Ele faz uma política oposta à dela, gosta de posar como líder
forte, de torso nu, em cima de cavalos. Apesar da recente perda de prestígio da Rússia, ele trouxe de
volta aquele nacionalismo do tempo dos czares.” Quando Putin ascendeu, a população russa estava
desmoralizada. A globalização havia destruído as ilusões ainda restantes do Império Soviético.
Putin viu aí a oportunidade de convidar a fortuna para dançar um pagode russo, no ritmo do
nacionalismo. Conquistou o amor de seus súditos e o temor (justificável) de outros tantos.
Quem não se dá muito bem com a fortuna é a primeira-ministra britânica, Theresa May. A
fortuna sorriu para ela quando o referendo que votou a saída do Reino Unido da União Europeia
(UE), o Brexit, derrubou o antigo primeiro-ministro, David Cameron. Mas May não foi capaz de
responder à occasione. Assumiu com a missão de liderar as negociações da saída da UE e
convocou eleições na tentativa de aumentar seu apoio parlamentar. No entanto, protagonizou uma
campanha pouco virtuosa, perdeu espaço no Parlamento e viu o descontentamento da população
com o Brexit aumentar (na quarta-feira passada, ela teve desempenho catastrófico ao discursar na
conferência de seu partido). “May simplesmente anda atrás dos acontecimentos, sem conseguir
determinar a evolução deles”, diz Aurélio. “A não ser que no futuro ela se revele diferente, o mais
provável é que acabe submergida pelos acontecimentos.” Entre Merkel e May está Emmanuel
Macron, que, num golpe de fortuna, conquistou o principado francês. Prometeu reformar o Estado e
tornar a economia mais competitiva, mas esbarrou nas manifestações de trabalhadores, que, após
muitos anos de bem-estar social, não querem saber de mesquinharia. “Tenho observado Macron
para ver se é virtuoso ou não. A sociedade francesa é muito fragmentada, e o desafio dele é criar
uma espécie de „centro virtual‟ com que todos esses setores possam se identificar.”
O último capítulo de O príncipe tem um título que parece manifesto político: “Exortação para
encabeçar a Itália e libertá-la dos bárbaros”. Nesses últimos parágrafos, percebe-se que Maquiavel
não pretendia dar lições a tiranos, mas influenciar príncipes virtuosos a liderar o processo de
unificação italiana. À época, a Península Itálica estava retalhada em um sem-
número de principados, repúblicas e Estados papais. O que se vê na Europa contemporânea é um
pouco o contrário: o projeto de integração de nações e economias anda fraquejando. Proliferam os
movimentos nacionalistas e o clamor por líderes maquiavélicos – no sentido mais baixo da palavra. A
occasione está dada e, para enfrentá-la, líderes virtuosos são indispensáveis. “Maquiavel dá aos
líderes europeus a lição de que é necessário compreender melhor o tempo, a realidade que eles
pretendem moldar. A política é a arte de resolver problemas, não de sonhar mundos ideais”, diz
Aurélio – para quem Maquiavel, apesar de seu brutal realismo, é uma advogado da liberdade.
Fonte: https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/10/maquiavel-ainda-nos-ajuda-entender-
politica.html

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