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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Faculdade de Direito

ANTONIO CARLOS DUTRA RAMOS

ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA CRIMINAL NO


ÂMBITO DO TJRJ

Rio de Janeiro/RJ
2018
ANTONIO CARLOS DUTRA RAMOS

ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA CRIMINAL NO


ÂMBITO DO TJRJ

Trabalho apresentado à disciplina Escritório


Modelo Criminal da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
para fins de cumprimento de atividade
avaliativa.

Orientador: Prof. Dr. DIOGO MALAN

Rio de Janeiro/RJ
2018
SUMÁRIO

1 PRIMEIRA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL: APELAÇÃO CRIMINAL Nº


0029736-10.2015.8.19.0042, JULGADA EM 03/10/2017 .......................................... 3

2 SEGUNDA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL: APELAÇÃO CRIMINAL Nº


0005158-84.2014.8.19.0052, JULGADA EM 23/09/2015 ........................................ 11

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 17
3

1 PRIMEIRA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL: APELAÇÃO CRIMINAL Nº


0029736-10.2015.8.19.0042, JULGADA EM 03/10/2017

A apelação criminal em apreço foi interposta em face de sentença penal


condenatória proferida pela 1ª Vara Criminal da Comarca de Petrópolis/RJ, na qual
reputou-se o acusado como incurso nas penas do art. 33 da Lei nº 11.343/2006,
aplicado o quantum punitivo de 05 (cinco) anos de reclusão, em regime inicialmente
fechado, e pagamento de 500 (quinhentos) dias-multa, calculados à razão de 1/30 (um
trinta avos) do salário mínimo vigente.
Segundo excerto extraído da denúncia, o réu foi encontrado por policiais
militares na posse de 30,3 g de cloridrato de cocaína, dos quais 27,0 g estavam
acondicionados em 25 frascos plásticos transparentes e 3,3 g em uma embalagem
plástica com tampa, além de R$2.658,00 em espécie e R$3.927,00 em cheques. A
apreensão se deu em um quarto do Motel Charme de Itaipava, em Petrópolis/RJ, após
a transexual Gabriele acionar a polícia militar em razão de o acusado ter se recusado a
pagar-lhe o importe de R$1.000,00, devido por força de serviços sexuais a ele
prestados. Ao chegarem ao local, as autoridades policiais efetuaram a prisão em
flagrante do increpado pela suposta prática do delito de tráfico de entorpecentes,
tendo o réu alegado que as substâncias destinavam-se ao seu consumo pessoal, bem
como que o numerário encontrado derivava da venda de um veículo automotor.
Na prolação da sentença condenatória, o MM. Juiz Sentenciante fiou-se no
depoimento dos policiais militares, que asseveraram que o réu era personagem
conhecido na região pela prática do delito de tráfico de drogas, além de confirmarem
a apreensão dos itens acima descritos em seu poder. O ilustre julgador pontificou,
ademais, que a quantidade, o fracionamento e o acondicionamento das drogas
encontradas, além da alta soma em dinheiro encontrada, dividida em diversos cheques
e notas de pecúnia de valores variados, evidenciava a finalidade de mercancia na
espécie, impondo a condenação pela prática do delito tipificado do art. 33 da Lei nº
11.343/2006.
Em sua irresignação recursal, a Defesa pugnou pela desclassificação dos fatos
para a conduta de porte de drogas para uso pessoal, prevista no art. 28 da Lei nº
11.343/2006, porquanto ausente prova da comercialização dos entorpecentes
apreendidos, e, subsidiariamente, pelo reconhecimento de causa de diminuição de
pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, na fração máxima de 2/3, pela
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substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou a concessão de


sursis, pelo abrandamento do regime inicial de cumprimento de pena para o aberto e
devolução do dinheiro e dos cheques apreendidos.
Diante dos fatos acima sumarizados, a Colenda 07ª Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro conheceu e deu provimento ao recurso de
apelação, a fim de absolver o apelante da imputação concernente ao crime insculpido
no art. 33 da Lei nº 11.343/2006, com fulcro no art. 386, inciso VII, do Código de
Processo Penal, bem assim determinar a restituição dos valores e cheques
apreendidos, conforme acórdão a seguir ementado:

APELAÇÃO. TRAFICO DE DROGAS. A SENTENÇA JULGOU


PROCEDENTE A PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO PARA
CONDENAR O RÉU/APELANTE COMO INCURSO NAS SANÇÕES
DO ARTIGO 33, CAPUT DA LEI Nº 11.343/06, À PENA DE 05
(CINCO) ANOS DE RECLUSÃO, NO REGIME INICIAL FECHADO, E
PAGAMENTO DE 500 (QUINHENTOS) DIAS-MULTA. RECURSO
DEFENSIVO REQUERENDO A DESCLASSIFICAÇÃO DA
CONDUTA PARA AQUELA PREVISTA NO ART. 28 DA LEI Nº
11.343/06, AO ARGUMENTO DE QUE A DROGA APREENDIDA
DESTINAVA-SE AO CONSUMO PRÓPRIO, SUSTENTANDO A
AUSÊNCIA DE PROVA DE SUA COMERCIALIZAÇÃO, E
SUBSIDIARIAMENTE A APLICAÇÃO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO
DE PENA PREVISTA NO ART. 33, § 4º DA LEI DE DROGAS, NA
SUA FRAÇÃO MÁXIMA DE 2/3 (DOIS TERÇOS) E A
SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR
PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS OU A CONCESSÃO DE
SURSIS, O ABRANDAMENTO DO REGIME PRISIONAL PARA O
ABERTO, E A DEVOLUÇÃO DO DINHEIRO E DOS CHEQUES
APREENDIDOS. APELO QUE MERECE SER PROVIDO. COM
EFEITO, À TODA EVIDÊNCIA, A SITUAÇÃO RETRATADA NOS
AUTOS, APÓS A COLHEITA DE TODA A PROVA, ESTÁ A
INDICAR QUE A SUBSTANCIA ENTORPECENTE APREENDIDA
TINHA COMO DESTINAÇÃO O USO PRÓPRIO DO APELANTE.
COMO SE SABE, EM MATÉRIA DE DROGAS, NÃO POUCAS
VEZES A FIGURA DO USUÁRIO SE CONFUNDE COM A DO
TRAFICANTE, CONSOANTE A MELHOR DOUTRINA SOBRE O
TEMA. ORA, EM QUE PESE AS DECLARAÇÕES DOS POLICIAIS
MILITARES NO SENTIDO DE O ACUSADO SER CONHECIDO POR
TRAFICAR DROGAS, FATO É QUE NÃO FOI OBSERVADO PELOS
MESMOS NENHUM ATO DE MERCANCIA. DE TUDO QUE
CONSTOU DOS AUTOS, INFERE-SE QUE A PROVA NÃO É
SUFICIENTE A ENSEJAR A CONDENAÇÃO DO APELANTE POR
TRÁFICO DE DROGAS, ADUZINDO-SE COMO SUBSTANCIAL
QUE NENHUM OUTRO MATERIAL INDICATIVO DE MERCANCIA
(BALANÇA, ANOTAÇÕES, MATERIAL PARA ENDOLAÇÃO,
CELULAR, RÁDIO TRANSMISSOR, ETC..) FORAM
ENCONTRADOS NA POSSE DO ACUSADO. AS TESTEMUNHAS
ARROLADAS PELA ACUSAÇÃO NADA ACRESCERAM ACERCA
DO ESPECIAL FIM DE AGIR DO DELITO DE TRÁFICO DE
DROGAS. O CENÁRIO E A FORMA EM QUE FOI LOCALIZADA A
DROGA TORNA POSSÍVEL A VERSÃO EXCULPATÓRIA DO
DENUNCIADO, NÃO PODENDO SIMPLESMENTE PRESUMIR-SE
5

QUE A MESMA ERA DESTINADA À COMERCIALIZAÇÃO.


APESAR DE NÃO PODER SER CONSIDERADA PEQUENA A
QUANTIDADE DE COCAÍNA APREENDIDA, DEVE SER
OBSERVADO QUE O PADRÃO DE CONSUMO VARIA DE PESSOA
A PESSOA, SENDO CERTO QUE NO CASO CONCRETO FICOU
DEMONSTRADO QUE O ACUSADO FAZ TRATAMENTO PARA
DEPENDÊNCIA QUÍMICA, ALEM DO QUE UMA SENTENÇA
CONDENATÓRIA NÃO PODE BASEAR-SE EXCLUSIVAMENTE NA
QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA E SEU
ACONDICIONAMENTO, PARA DETERMINAR SE A HIPÓTESE É A
DE TRAFICO DE ENTORPECENTE. POR SEU TURNO, É
INDISCUTÍVEL QUE A PALAVRA DE POLICIAIS TEM TANTA
VALIA QUANTO DE QUALQUER OUTRA TESTEMUNHA, MAS É
CERTO QUE É EXIGÍVEL QUE ESTEJA EM CONSONÂNCIA COM
AS DEMAIS PROVAS COLIGIDAS, O QUE NÃO É O CASO DOS
AUTOS, ONDE OS DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS NÃO SÃO
CORROBORADOS POR NENHUMA OUTRA PROVA, SENDO
CERTO QUE OS MILICIANOS NÃO PRESENCIARAM POR PARTE
DO ACUSADO NENHUM ATO DE MERCANCIA DE DROGA,
INEXISTINDO SUPORTE PROBATÓRIO PARA QUE FICASSE
CONFIGURADO QUE SE DEDICASSE AO TRÁFICO DE
SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. EXISTINDO DUAS VERSÕES
PARA O FATO, NÃO HÁ PORQUE PREVALECER A QUE MENOS
FAVORECE O ACUSADO EM ATENÇÃO AO PRINCIPIO “IN DÚBIO
PRO REO”. EM SÍNTESE, CABERIA A ACUSAÇÃO COMPROVAR A
PRÁTICA DO ILÍCITO DE TRÁFICO DE DROGAS, SOBRETUDO
NAS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO SUB JUDICE, NA QUAL É
POSSÍVEL QUE O ACUSADO TENHA ADQUIRIDO A DROGA
PARA CONSUMO PESSOAL, O QUE JUSTIFICA, UNICAMENTE,
QUE SUA CONDUTA SE AMOLDA NA PRÁTICA DO INJUSTO
PREVISTO NO ARTIGO 28 DA LEI DE DROGAS, QUE EM TESE,
TERIA O CONDÃO DE OPERAR, A DESCLASSIFICAÇÃO DO
FEITO, IMPONDO-SE A ABSOLVIÇÃO DO APELANTE, EIS QUE A
CONDUTA DE POSSE DE DROGA PARA USO PESSOAL NÃO ESTÁ
CONTIDA NAQUELA IMPUTADA A ELE NA DENÚNCIA, CONTRA
A QUAL NÃO EXERCEU AMPLA DEFESA. PARECER DA D.
PROCURADORIA DE JUSTIÇA NO SENTIDO DE O ACUSADO SER
ABSOLVIDO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO NO SENTIDO
DE ABSOLVER O RÉU/APELANTE DA IMPUTAÇÃO DO DELITO
PREVISTO NO ARTIGO 33, CAPUT DA LEI Nº. 11.343/06, COM
FUNDAMENTO NO ARTIGO 386, INCISO VII DO CPP, BEM COMO
PARA DETERMINAR A RESTITUIÇÃO DA QUANTIA EM ESPÉCIE
E CHEQUES APREENDIDOS. (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
07ª Câmara Criminal, Apelação Criminal nº 0029736-10.2015.8.19.0042,
Relator Desembargador Siro Darlan de Oliveira, Data de Julgamento: 03
de outubro de 2017).

Irreparável o voto condutor proferido pelo eminente Desembargador Siro


Darlan de Oliveira no caso vertente. Deveras, o delito de tráfico de drogas, previsto
no art. 33 da Lei nº 11.343/2006, consubstancia o exemplo mais categórico do
punitivismo desregrado que pauta a aplicação do Direito Penal brasileiro. O
mencionado dispositivo contempla mais de 18 (dezoito) núcleos típicos, como lembra
Guilherme de Souza Nucci (2010), consubstanciando um delito de tipo misto
alternativo. Noutros dizeres, em princípio, a mera realização dolosa de qualquer das
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condutas expressas nos dezoito verbos do art. 33 poderia ensejar a incidência da


norma penal incriminadora em comento, com flagrante violação do princípio
constitucional da taxatividade.
Conforme observa Luís Carlos Valois (2016), a estrutura da criminalização do
tráfico de drogas no ordenamento jurídico brasileiro segue a guinada que se observou
na Convenção para a Repressão do Tráfico Ilícito das Drogas Nocivas, ocorrida em
Genebra, em 1936. Seguindo a pressão dos Estados Unidos da América, buscou-se
tornar o delito de tráfico de drogas o mais abstrato possível, de sorte a, na prática,
desincumbir o órgão acusatório da prova do dolo do agente, criando-se um delito de
fácil apuração e condenação. De acordo com Luciana Boiteux (2006), o legislador
penal brasileiro criou verdadeira responsabilidade penal objetiva, no que concerne à
conformação legislativa do delito de tráfico de entorpecentes lavrada no citado art. 33.
Com efeito, a distinção entre os delitos de porte de drogas para uso pessoal
(art. 28) e tráfico de entorpecentes (art. 33) é um dos temas de análises mais
controversas e incongruentes na jurisprudência brasileira, em parte pela imprópria
elasticidade dos critérios distintivos estabelecidos pelo art. 28, § 2º, da Lei nº
11.343/2006, de acordo com o qual “[...] o juiz atenderá à natureza e à quantidade da
substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
A doutrina e a jurisprudência majoritárias consideram despicienda a
comprovação do dolo de mercancia para a configuração do crime de tráfico de drogas.
Conforme essa linha de entendimento, não se exige um especial fim de agir atinente à
finalidade mercante para que se perfectibilize o tipo constante no art. 33, bastando a
realização dolosa de algum dos núcleos típicos do mencionado dispositivo e a
observância dos indeterminadíssimos critérios dispostos no art. 28, § 2º, da Lei de
Drogas. Nesse sentido, se posicionam Vicente Greco Filho (2009), Heleno Cláudio
Fragoso (1989) e Guilherme de Souza Nucci (2010), este último, no entanto,
ressalvando, de lege ferenda, que “[...] em nosso entendimento, deveria haver uma
finalidade específica para o tráfico, consistente na intenção de comercializar drogas
ilícitas”, mas reafirmando que, em sua vigência atual, “não há elemento subjetivo
específico do tipo” (NUCCI, 2010, p. 358).
O Superior Tribunal de Justiça acompanha a mesma linha de raciocínio, tendo
o Min. Félix Fischer consignado, em voto condutor proferido no Recurso Especial nº
7

1.134.610, que “[...] despiciendo para a caracterização do crime previsto no art. 12 da


Lei de Tóxicos a demonstração do especial fim de agir”, ressaltando que “[...] na nova
Lei de Tóxicos (Lei nº 11.343/06) as exigências para a tipificação do delito de tráfico
são as mesmas da Lei nº 6.368/76. Na mesma toada, o Supremo Tribunal Federal
possui entendimento sedimentado segundo o qual a comprovação do dolo de
mercancia não é exigida para a configuração do crime previsto o art. 33. Assim, no
julgamento do Habeas Corpus nº 101.827/MG, o Ministro Gilmar Mendes observou
que “no que se refere à suposta atipicidade da conduta tipificada no tráfico de drogas,
porquanto naõ comprovada a mercancia, ressalto que o Supremo Tribunal Federal já
decidiu, em casos análogos, ser prescindível.”
Causa maior espécie notar, no entanto, a existência de entendimento segundo o
qual, no tocante aos delitos de tráfico de drogas e de porte para uso, opera-se uma
inversão do ônus da prova em desfavor do acusado, atribuindo-se a este o ônus de
comprovar que a droga portada destinava-se para seu uso pessoal. Referida
teratologia, defendida por parcela do Ministério Público, foi espantosamente acolhida
em alguns julgados, como o que abaixo se reproduz, do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES.


ESPECIAL FIM DE AGIR. PRESCINDIBILIDADE.
DESCLASSIFICAÇÃO PARA USO PRÓPRIO.
IMPOSSIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça é no sentido
de que, para a configuração do crime previsto no art. 12 da Lei 6.368/76,
não se exige a presença do especial fim de agir consistente na finalidade de
comercialização da droga, sendo suficiente a prática de qualquer das
condutas estabelecidas no dispositivo.
2. De outro lado, a desclassificação do delito de tráfico de entorpecentes
para o delito descrito no art. 16 da Lei de Tóxicos somente pode ser
operada se restar demonstrado nos autos o propósito do exclusivo uso
próprio da substância, elemento subjetivo especial do tipo.
3. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 812950/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA
TURMA, julgado em 29/05/2008, DJe 25/08/2008).

Destarte, nos marcos do Estado Democrático de Direito traçado pela vigente


Constituição da República, a aplicação do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 somente pode
ser compatibilizada com as mandatórias garantias penais e processuais penais caso se
interprete o referido preceito primário como a exigir, implicitamente, para sua
configuração, a demonstração cabal, pelo órgão acusatório, do especial fim de agir
consistente no dolo de mercancia.
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Luís Greco (2003), sustentando a inconstitucionalidade do delito de tráfico de


entorpecentes, à época diante da redação do art. 12 da Lei nº 6.368/76, propugnou que
a solução provisória seria interpretar o mencionado crime no sentido de reclamar a
comprovação de que o sujeito ativo se dedica com habitualidade à prática do tráfico,
assim se posicionando:

Daí porque é preciso um segundo elemento, de índole subjetiva: o intuito


de auferir vantagem econômica. Traficante é só quem pratica, com
habitualidade e intuito de auferir vantagem econômica, as condutas
descritas no art. 12. A habitualidade, é claro, deverá ser comprovada, não
se presumindo unicamente pela realização de uma das ações. Sem este
elemento objetivo (habitualidade) e este outro subjetivo (intuito de auferir
vantagem econômica), não há como chamar alguém de traficante, donde
decorre: sua conduta não se enquadra, em absoluto, no art. 12. [...]O art.
12, da lei 6.368/76 deve ser lido como tipo de autor que é, acrescentando-
se-lhe as elementares não escritas das quais partiu o legislador ao fixar
uma pena tamanhamente grave. Isso não significa que, estando presente
este elemento não escrito, a norma nazista e sua pena terrorista serão boas
e legítimas. Na verdade, o que se conseguirá é tornar estes corpos
estranhos dentro do Estado Social de Direito algo um pouco menos
ilegítimo. E isto talvez já seja um passo no sentido de uma maior
humanização do direito penal. (GRECO, 2003, p. 43).

Feitas essas considerações, é de se notar que, no caso apreciado, o


Desembargador Siro Darlan expressamente, e de modo louvável, adotou a exigência
da comprovação do especial fim de agir para a caracterização do delito de tráfico de
entorpecentes, segundo se dessume do trecho a seguir reproduzido:

Vê-se, portanto, que as testemunhas arroladas pela acusação nada


acresceram acerca do especial fim de agir do delito de tráfico de drogas, a
não ser o aponte indiciário de haveria informações sobre o envolvimento
do apelante no comercio de drogas, sem, no entanto, qualquer prova nesse
sentido ter sido produzida. (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 07ª
Câmara Criminal, Apelação Criminal nº 0029736-10.2015.8.19.0042,
Relator Desembargador Siro Darlan de Oliveira, Data de Julgamento: 03
de outubro de 2017).

Ora, no caso apreciado, parte dos invólucros de entorpecentes encontrados já


estava rompida, tendo o acusado feito uso da droga que portava. Ademais, se
encontrava em um quarto de motel, em momento festivo com a acompanhante que
contratara. Segundo laudo juntado aos autos do processo criminal, ao qual se refere o
eminente Desembargador relator em seu voto, o acusado é comprovadamente
dependente químico. Ademais, provou exercer atividade empresarial, o que, além do
pagamento das despesas com o serviço de acompanhamento sexual e com o motel,
9

justificaria a posse de vultosa soma em dinheiro. Deste modo, havendo dúvida, por
menor que seja, em relação à prática de atividade de mercancia de entorpecentes, é
peremptório o afastamento da aplicação da figura penal típica prevista no art. 33 da
Lei nº 11.343/2006, como corretamente concluiu o Des. Siro Darlan, in verbis:

Por outro lado, o i. Magistrado sentenciante e de acordo com o raciocínio


explanado na d. sentença guerreada, faz presumir que pelo fato de acusado
ter sido detido portando valores em espécie e cheques, para dessa forma
concluir em razão disso que o apelante estava se dedicando ao vil comércio
de substancia entorpecente. Todavia, há que se observar que se há algo que
deve ser presumido, impõe-se que prevaleça a especulação mais favorável
ao agente, isto é, a posse de droga para uso pessoal, em observância ao
princípio constitucional da presunção de inocência. Apesar da
fundamentação apresentada na sentença, ou seja, a conclusaõ de que a
droga apreendida se destinava a comercialização em razão a sua
quantidade e forma de acondicionamento, e circunstâncias da prisão, por si
só, não têm o condao ̃ de evidenciar sua mercantilização, porquanto é
cediço que a mesma é costumeiramente vendida de forma fracionada, e
com indicação de sua procedência. (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
07ª Câmara Criminal, Apelação Criminal nº 0029736-10.2015.8.19.0042,
Relator Desembargador Siro Darlan de Oliveira, Data de Julgamento: 03
de outubro de 2017).

Outro ponto de relevo destacado no voto condutor proferido na apelação


criminal examinada diz respeito à força probante emprestada ao depoimento de
policiais militares. Muito embora se reconheça a carga probatória da palavra desses
agentes, exige-se que seja pujantemente confirmada por outros elementos de prova
colhidos durante a instrução criminal e submetidos ao contraditório judicial. Não pode
se admitir, como rotineiramente se observa, que o decreto condenatório pela prática
do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 seja baseado tão somente nos depoimentos de
policiais militares, desenganadamente insuficientes para elidir a presunção de
inocência titularizada pelo acusado no processo penal brasileiro.
Sobreleva observar, ainda, que, no caso em comento, ao afastar a aplicação do
mencionado art. 33, a 7ª Câmara Criminal do TJRJ houve por bem não desclassificar
a conduta para o art. 28 da Lei de Drogas, proferindo, em vez disso, acórdão
absolutório. Isso porque, seguindo fundamentação do voto do relator, a denúncia não
descreveu o elemento subjetivo referente ao “uso pessoal” exigido pelo mencionado
dispositivo, tratando-se de induvidosa mutatio libelli. Assim, não tendo o órgão
ministerial aditado a denúncia para que o acusado exercesse plenamente seu direito de
defesa, desbordando das exigências do art. 384 do Código de Processo Penal, o único
caminho seria a absolvição:
10

Nesse passo, como o fato efetivamente não foi narrado na denúncia, e


seguindo-se o processo nos limites traçados pela exordial, inclusive com
defesa prévia, produção de provas, interrogatório, alegações finais, até seu
término, não há como este Tribunal proferir julgamento, condenando o
acusado sem que sua conduta, que em tese se amoldaria aquela prevista no
art. 28 da Lei no 11.343/06, tenha sido descrito na denúncia, implica em
verdadeira mutatio libeli, sem adoção das providências processuais
pertinentes à hipótese concreta, além de violação frontal ao princípio da
correlação e, por via de consequência, ao da ampla defesa.
Dessa forma, deve o acusado ser absolvido da imputação do delito previsto
no art. 33, caput da Lei no 11.343/06, e via, de consequência, restar
prejudicada, em razão do que ora se decide, a analise das demais teses
defensivas. (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 07ª Câmara Criminal,
Apelação Criminal nº 0029736-10.2015.8.19.0042, Relator
Desembargador Siro Darlan de Oliveira, Data de Julgamento: 03 de
outubro de 2017).

Ressalte-se, no particular, a existência de dissenso pretoriano no que concerne


à desclassificação do delito de tráfico de drogas (art. 33) para o de porte para uso
pessoal (art. 28). Mesmo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, são registrados
julgados em ambos os sentidos, isto é, ora considerando tal desclassificação como
mutatio libelli (art. 384 do CPP) e ora reputando-a como emendatio libelli (art. 383 do
CPP).
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2 SEGUNDA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL: APELAÇÃO CRIMINAL Nº


0005158-84.2014.8.19.0052, JULGADA EM 23/09/2015

A apelação criminal em análise foi interposta contra sentença penal


condenatória proferida pela Vara Criminal da Comarca de Araruama/RJ, na qual
reputou-se a acusada como incursa nas penas do art. 1º, inciso II e § 4º da Lei nº
9.455/1997 (Lei de Tortura) c/c art. 71 do Código Penal, aplicado o quantum punitivo
de 07 (sete) anos, 03 (três) meses e 03 (três) dias de reclusão.
Conforme relatou o eminente Desembargador Gilmar Augusto Teixeira, o
recurso não se insurgiu contra a materialidade e autoria delitivas, as quais restaram
sobejamente comprovadas ao longo da instrução criminal. Segundo se apurou, a
acusada exercia a função de cuidadora de uma senhora cadeirante de 75 anos de
idade, a qual foi por ela submetida a intenso sofrimento físico e mental, decorrente de
ações reiteradas como erguer a vítima da cadeira de rodas puxando-a pelos cabelos,
aplicar tapas em suas pernas com golpes de extrema violência, capazes de projetar
suas pernas para o lado, despir a vítima segurando-a pelos cabelos e sacudir a idosa
violentamente puxando-lhe os cabelos. Referidos fatos foram gravados por circuito
interno de câmeras, além de comprovados por vários depoimentos testemunhais
colhidos na instrução judicial.
Deste modo, a primeira tese defensiva manejada no recurso de apelação foi a
da desclassificação do delito de tortura para o delito de maus-tratos contra idoso,
previsto no art. 99 da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), em face da suposta
ausência do elemento subjetivo do tipo penal de tortura.
Em segundo lugar, a defesa pleiteou a redução da pena-base para o mínimo
legal, o afastamento da agravante prevista no art. 61, II, “g”, do Código Penal e o
decote da majorante prevista no art. 1º, § 4º, da Lei nº 9.455/1997
Em face do exposto, a Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro decidiu nos seguintes termos:

APELAÇÃO. CRIMES DE TORTURA CIRCUNSTANCIADOS


(CONTRA PESSOA IDOSA E PORTADORA DE DEFICIÊNCIA) EM
CONTINUIDADE DELITIVA. RECURSO DA DEFESA
POSTULANDO A ABSOLVIÇÃO SOB O FUNDAMENTO DA
AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO DO CRIME DE
TORTURA E DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE MAUS
TRATOS PREVISTO NO ESTATUTO DO IDOSO (ART. 99, DA LEI Nº
10.741/03). SUBSIDIARIAMENTE, PEDE A REDUÇÃO DA PENA-
12

BASE AO MÍNIMO LEGAL, AFASTAMENTO DA AGRAVANTE


PREVISTA NO ART. 61, II, "G", DO CÓDIGO PENAL E
DIMINUIÇÃO DA FRAÇÃO APLICADA EM FUNÇÃO DA
MAJORANTE DO INCISO II, DO ART. 1º, § 4º, DA LEI Nº 9.455/97. O
recurso não coloca em discussão a materialidade e a autoria delitiva, as
quais restaram amplamente demonstradas, inclusive com imagens da ação
criminosa, conforme retratado no laudo pericial encartado nos autos, onde
é possível constatar que a apelante, exercendo a função de cuidadora,
submetia a vítima - uma senhora cadeirante, com dificuldade de
locomoção, contanto 75 anos de idade -, a intenso sofrimento físico e
mental, representado por ações reiteradas de erguer a vítima da cadeira de
rodas puxando-a pelos cabelos, aplicar tapas nas suas pernas com golpes
de extrema violência, capazes a projetar os membros para o lado, despir a
vítima segurando-a pelos cabelos, além de sacudir violentamente a cabeça
da idosa puxando os cabelos. A prova oral colhida no curso da instrução
também confirma as agressões covardes vistas nas imagens. Não prospera
a tese de ausência do elemento subjetivo do crime de tortura, com pleito
desclassificatório para o crime de maus tratos contra idoso. É que o delito
do artigo 99 do Estatuto do Idoso, tal como previsto na primeira forma
típica, trata da mera periclitação da vida e da saúde, física ou psíquica, do
idoso, com vistas a evitar que seja submetido a condições desumanas ou
degradantes, podendo ser praticado por qualquer pessoa, já que o
dispositivo não exige nenhuma condição especial por parte do sujeito
ativo. Já a Lei de Tortura se diferencia daquele dispositivo em razão do
elemento subjetivo a informar o dolo do agente, que já atinge outra
dimensão, vale dizer, alcança uma proporção de maior gravidade,
caracterizado especificamente pela submissão da vítima sob sua guarda,
mediante o emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento
físico ou mental, como medida repressiva ou preventiva. Além disso, a
figura típica prevista no inciso II da Lei de regência qualifica o sujeito
ativo com atributos específicos, exigindo que a vítima esteja sub a guarda,
poder ou autoridade. A tortura tem o especial fim de causar sofrimento por
mero prazer do mal, motivado pelos mais baixos sentimentos que movem a
alma humana, como restou retratado nestes autos. Aqui, a apelante, tendo a
vítima sob sua guarda em razão de contrato de trabalho, extrapolou os
limites de simples maus tratos ao erguer a idosa da cadeira de rodas pelos
cabelos, sacudir com raiva a cabeça da vítima agarrada aos seus cabelos e
ainda agredi-la impiedosamente com violentos tapas nas pernas, tudo isso
em ações reiteradas, durante o período em que exerceu a atividade de
cuidadora - cerca de sete anos. O que demonstrou possuir nada mais foi do
que uma vontade férrea de impor intensos sofrimentos físicos e morais à
vítima, que além de idosa, necessitava de cuidados especiais por ser
portadora de deficiência para se locomover. Como se verifica são fatos
extremamente graves, demonstradores de perversão e covardia, onde
grande dose de maldade restou explicitada para o fim de provocar intenso
sofrimento físico e mental. Dessa forma, o delito de tortura foi
corretamente reconhecido na espécie. No plano da dosimetria, a sentença
comporta reparos. A culpabilidade foi valorada de forma negativa com
base nos "vários atos de violência praticados contra a vítima" e porque o
crime foi praticado "na presença do filho da vítima, portador de transtornos
mentais". Ora, o fato de o delito ter sido praticado na presença do filho da
vítima, portador de transtorno mental, justamente por essa total
incapacidade de compreensão dos acontecimentos, em nada contribuiu
para elevar o grau de censurabilidade da conduta. Também não pode
repercutir na valoração da culpabilidade o número de "atos de violência
praticados contra a vítima", já que a reiteração criminosa foi reconhecida
como crime continuado, dimensionado na fase final da dosimetria. A
"maldade" usada como traço característico da personalidade da recorrente
também deve ser afastada, porque já é elemento próprio e constitutivo do
crime de tortura. Devem ser mantidas, contudo, as notas negativas
13

atribuídas às circunstâncias e consequências do crime, posto que valoradas


com motivação adequada, extraída do caso concreto, o que permite a
elevação da pena, na fase inicial, em 1/3. Na etapa seguinte, deve ser
afastada a agravante do art. 61, inciso II, alínea g, do CP, posto que a
violação de dever da profissão já faz parte do tipo penal do art. 1º, inciso
II, da Lei nº 9455/97, configurando bis in idem a aplicação da citada
agravante. O incremento de 1/3 aplicado pela incidência do inciso II, do
art. 1º, § 4º, da Lei nº 9.455/97, deve ser mantido, já que a vítima era
portadora de deficiência (cadeirante) e também muito idosa (75 anos), sem
nenhuma capacidade de defesa. Por fim, também fica mantido o acréscimo
mínimo de 1/6, aplicado em função da continuidade delitiva. Quanto ao
regime prisional, este deve ser mitigado. Observadas as diretrizes do art.
33, § 3º, do CP, e mesmo considerando o tempo de prisão cautelar, vê-se
que o regime semiaberto é o que possui melhor adequação à hipótese
vertente, posto ser o único capaz de refletir o condão retributivo/punitivo,
objetivos da pena, isto porque estamos diante de diversas condutas
extremamente graves praticadas contra pessoa idosa e portadora de
deficiência, por muito tempo agredida, cujo sofrimento suportando
excedeu à normalidade do tipo penal violado, conforme destacado nas
circunstâncias e consequências do crime. RECURSO CONHECIDO E
PARCIALMENTE PROVIDO, na forma do voto do relator. (Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 8ª Câmara Criminal, Apelação
Criminal nº 0005158-84.2014.8.19.0052, Rel. Des. Gilmar Augusto
Teixeira, Data de Julgamento: 23/09/2015).

Decerto, o intento de se desclassificar o delito de tortura para o de maus-tratos,


seja o previsto no Código Penal (art. 13), seja o constante do art. 99 do Estatuto do
Idoso, é a tese defensiva mais brandida em relação a tais delitos, haja vista a menor
gravidade das penas cominadas para os crimes de maus-tratos.
Conforme observa Guilherme de Souza Nucci (2010), o tipo penal previsto no
art. 1º, inciso II, da Lei nº 9.455/1997 consubstancia a figura da tortura-castigo. Em
primeiro lugar, há que se observar que sujeito ativo e sujeito passivo dessa infração
penal são qualificados, isto é, exigem atributos específicos. Assim, “somente comete
essa forma de tortura quem detiver outra pessoa sob sua guarda, poder ou autoridade”
(NUCCI, 2010, p. 1199). A pessoa objeto de guarda deve ter sido submetida pelo
agente a intenso sofrimento físico ou mental, sendo esta, ainda segundo Nucci (2010,
p. 1199), “a nota particular da tortura: a subjugação de alguém para que sofra
intensamente, na esfera física ou mental”.
De superior relevância é o elemento subjetivo do tipo específico contido no
mencionado inciso II, a saber, a finalidade de aplicar castigo pessoal ou medida de
caráter preventivo. Nucci (2010, p. 1200) esclarece a natureza do mencionado
elemento, “que não se trata de submeter alguém a uma situação de mero maltrato,
mas, sim, ir além disso, atingindo uma forma de ferir com prazer ou outro sentimento
igualmente reles para o contexto.”
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De acordo com Gabriel Habib (2016), o conflito aparente de normas do delito


de tortura com o delito de maus-tratos deve ser resolvido à luz do princípio da
especialidade. Dentre as diversas distinções que envolvem as figuras típicas aludidas,
há que se destacar o dolo do agente que, no crime de tortura, é o de causar intenso
sofrimento físico e mental à vítima e, no caso do inciso II, marcado pelo elemento
subjetivo especial destinado à aplicação de castigo físico, por mera maldade ou outro
sentimento vil.
Nessas razões, o acórdão apreciado pronunciou-se com acerto ao repelir a tese
desclassificatória, uma vez que, no caso em análise, a presença das elementares do
delito de tortura, mais específico, se mostra evidente. Com efeito, reiterados puxões
de cabelo, tapas nas pernas e golpes violentos, de modo contínuo e por vários dias,
evidenciam o propósito da acusada de impingir à idosa sob sua guarda intenso
sofrimento físico e mental como castigo, por reles maldade e vilania, a merecer a
gravosa repreensão penal. Reproduza-se, por oportuno, o seguinte trecho extraído do
voto do eminente relator:

Não prospera a tese de ausência do elemento subjetivo do crime de tortura,


com pleito desclassificatório para o crime de maus tratos contra idoso. É
que o delito do artigo 99 do Estatuto do Idoso, tal como previsto na
primeira forma típica, trata da mera periclitaçao
̃ da vida e da saúde, física
ou psíquica, do idoso, com vistas a evitar que seja submetido a condições
desumanas ou degradantes, podendo ser praticado por qualquer pessoa, já
que o dispositivo não exige nenhuma condição especial por parte do
sujeito ativo. Já a Lei de Tortura se diferencia daquele dispositivo em
razão do elemento subjetivo a informar o dolo do agente, que já atinge
outra dimensão, vale dizer, alcança uma proporção de maior gravidade,
caracterizado especificamente pela submissão da vítima sob sua guarda,
mediante o emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento
físico ou mental, como medida repressiva ou preventiva. Além disso, a
figura típica prevista no inciso II da Lei de regência qualifica o sujeito
ativo com atributos específicos, exigindo que a vítima esteja sub a guarda,
poder ou autoridade. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 8ª
Câmara Criminal, Apelação Criminal nº 0005158-84.2014.8.19.0052, Rel.
Des. Gilmar Augusto Teixeira, Data de Julgamento: 23/09/2015).

A apelação foi parcialmente provida, no entanto, para reformar a dosimetria


penal. Na primeira fase, o MM. Juiz Sentenciante considerou desfavorável ao agente a
circunstância judicial atinente à culpabilidade (art. 59 do Código Penal), sob o
argumento de que foram “vários atos de violência praticados contra a vítima” e
porque o crime foi perpetrado “na presença do filho da vítima, portador de transtornos
mentais.”
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No que concerne aos vários atos de violência, certo é que consubstanciam


elementares da figura típica de tortura, de modo que não podem ser sopesados para
fixar a pena-base acima do mínimo legal. Correto, portanto, o afastamento da
desfavorabilidade quanto a este ponto. Entretanto, a Colenda Câmara Criminal
considerou que o fato de o filho da vítima ter presenciado o ocorrido não agravaria a
pena, pois, sendo ele portador de transtornos mentais, não compreenderia o ocorrido.
Destarte, no particular, merece reparos o acórdão apreciado, pois que, do fato de se ter
transtornos mentais, não decorre automaticamente a incapacidade de se compadecer
do sofrimento alheio, tampouco de entender a gravidade do que ocorrera. Nesse
diapasão, a exasperação da pena-base com base na maior reprovabilidade da conduta
do agente se justificaria em razão do fato narrado.
O MM. Juiz Sentenciante também valorou negativamente a circunstância
judicial referente à personalidade do acusado, a qual revelaria intensa maldade.
Deveras, sendo a maldade elemento constitutivo do crime de tortura, descabe utilizá-
la com tal fito, tendo decidido corretamente o TJRJ ao afastar a valoração negativa da
circunstância judicial supramencionada.
Noutro giro, o acórdão em tela manteve a valoração negativa das
circunstâncias judiciais relativas às circunstâncias e às consequências do delito.
Quanto às primeiras, afigura-se evidente que, tendo a tortura se passado no ambiente
doméstico, onde se presumia a segurança e o conforto da vítima, trata-se de
circunstância hábil a exasperar o juízo de desvalor sobre a conduta penalmente
relevante. Contudo, diverge-se da Colenda Câmara Criminal quanto à manutenção da
valoração negativa sobre as consequências do crime. Para tanto, empregou o MM.
Juiz Sentenciante tão somente as seguintes razões, abaixo reproduzidas:

As consequências do crime foram irreversíveis e nefastas, ante a crueldade


ímpar da acusada, deixando traumas na vítima e em seus familiares
próximos, como se observa das gravações dos depoimentos.

Com efeito, não há como se vislumbrar em que tais fatos transcendem as


consequências normais do crime de tortura, do qual é elementar a causação de intenso
sofrimento físico e mental, donde, obviamente, decorrem traumas na vítima e em seus
familiares. Logo, haveria de ser afastada tal valoração negativa, em respeito à
vigência do art. 59 do Código Penal.
Na segunda fase da dosimetria penal, escorreito se mostrou o afastamento da
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circunstância agravante prevista no art. 61, inciso II, alínea “g”, do Código Penal,
concernente à violação do dever de profissão. Deveras, a violação do dever de guarda,
próprio à profissão de cuidadora, já integra o tipo penal de tortura-castigo, de sorte
que sopesá-la negativamente na apuração do quantum penal relativamente a esta fase
caracterizaria evidente bis in idem.
Quanto às causas de aumento concernentes à continuidade delitiva (art. 71 do
Código Penal), ante o protraimento da conduta no tempo, com sucessivos atos de
tortura, e à previsão do art. 1º, § 4º, inciso II, da Lei de Tortura, em face do
cometimento do crime contra idosa e portadora de deficiência, ambas se mostram
corretamente aplicadas, de modo que decidiram corretamente os eminentes
desembargadores ao manterem inalterada a sentença de primeiro grau na terceira fase
da dosimetria penal.
Finalmente, diante da redução da pena aplicada para o quantum definitivo de
04 (quatro) anos, 01 (um) mês e 23 (vinte e três) dias de reclusão, irreparável se
afigura o abrandamento do regime prisional para o semiaberto.
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REFERÊNCIAS

BOITEUX, Luciana. Controle Penal sobre as Drogas Ilícitas: O Impacto do


Proibicionismo no Sistema Penal e na Sociedade. 2006. 273f. Tese (Doutorado em
Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Especial. Vol. 2. Rio de
Janeiro, Forense, 1989.

GRECO, Luís. Tipos de autor e lei de tóxicos ou: interpretando democraticamente


uma lei autoritária. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 11, n. 43. São
Paulo: Revista dos Tribunais, abr-jun/2003.

GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de Drogas Anotada. 3. ed. São
Paulo: Editora Saraiva, 2009.

HABIB, Gabriel. Leis penais especiais. 8. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5. ed.


São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

VALOIS, Luís Carlos. O Direito Penal da Guerra às Drogas. Belo Horizonte:


D’Plácido Editora, 2016.

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