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M arcos L u iz B retas
Os fundadores das Ciências Sociais no sé nal levanta um a série de questões novas para
culo X IX tinham o crime como um a de suas o historiador. D e que maneira trabalhavam
maiores preocupações. E le era encarado co os escritores desses discursos, isto é, os escri
mo um dos sinais mais visíveis da desordem vães de polícia? Quão confiáveis são os do
social e acreditava-se que o aum ento do co cumentos por eles produzidos? Mesmo acei
nhecimento da sociedade poderia contribuir tando a hipótese de que o são, será que as
para o controle ou até mesmo a eliminação pessoas falavam a verdade perante a Justiça?
desse tipo de “patologia” social.1 O crime era Ou ainda, se esses depoimentos podem ser
apontado como um desvio do comportamento levados a sério, quão representativos da cul
normal, como o lugar do incomum no estudo tura popular seriam eles? Podem, enfim, os
das sociedades, em oposição à normalidade da arquivos criminais fornecer dados quantitati
vida dos cidadãos comuns. O que menos se es vos utilizáveis?
perava encontrar nas análises sobre o crime Tais questões permitiram abordagens mui
eram os padrões da vida cotidiana. to variadas dessas fontes. Alguns historiadores
As pesquisas recentes na área da história acreditam que as informações obtidas junto à
social inverteram esse eixo e deslocaram o Justiça criminal oferecem apenas pistas para se
crime para o centro da vida social, destacan compreender o comportamento popular, na
do a proximidade entre o cotidiano e o com medida em que elas dão voz a um estrato espe
portam ento considerado criminoso.2 Os his cífico da pobreza, isto é, àqueles que lidam
toriadores descobriram que os arquivos cri com a polícia (Holloway, 1989). Não há, entre
minais podem ser um a fonte muito interes tanto, nenhuma razão para se afirmar que os
sante para a investigação da vida cotidiana. indivíduos que aparecem nos arquivos crimi
Esquecidos por um longo tem po pela histo nais venham de um segmento especial de po
riografia tradicional, os homens livres e po bres, uma vez que todos os grupos das cama
bres da sociedade escravista ou o traba das baixas da sociedade estão expostos à pos
lhador comum do final do século X IX tive sibilidade de encontro com a polícia e, prova
ram suas atividades descritas nos arquivos velmente, sabem como apresentar seus discur
policiais ou judiciários: “a história dos domi sos para as autoridades.
nados vem à tona pela pena dos escrivães de Um a segunda corrente de historiadores
polícia” (Reis, 1986:8). acredita que os arquivos criminais mostram,
A “descoberta da voz” dos grupos dom i apenas, uma versão do comportamento das ca
nados a partir dos arquivos da Justiça crimi madas populares exibida diante dos homens
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mas de luta contra a escravidão (Lima, vezes a contragosto — a responsabilidade
1981:28-40). Embriagando-se, agredindo pelo castigo das mãos dos senhores. Com o fim
pessoas ou furtando, o escravo estaria desen do tráfico negreiro em 1850, o preço do escra
volvendo formas de sobrevivência dentro do vo aumentou e a perda de um deles passou a
regime opressor.4 Logo, deveria existir uma custar cada vez mais para seus proprietários,
elevada taxa de criminalidade escrava duran tornando desinteressante para estes a prisão de
te o período colonial, que aum entaria com a seus escravos. Sempre que possível, os se
expansão da vida urbana no século XIX, pois nhores evitavam a ação policial contra os mes
o crescimento das cidades tornaria a vigilân mos, inclusive nos casos em que eles próprios
cia sobre os escravos um a tarefa mais árdua. eram as vítimas (Chalhoub, 1990).
De fato, os registros de prisões produzidos A crise do sistema escravista permitiu aos
pela polícia* do Rio de Janeiro, entre 1810 e escravos aum entar a prática de crimes e alar
1821 e analisados por Leila Algranti, mos gou sua margem de negociação com os se
tram 5.078 detenções, na maioria de escra nhores. Isso pode ser percebido nos anos
vos (80%) e libertos. Esses registros pare 1870, como demonstram os dados de Maria
cem ter sido produzidos por patrulhas de H elena Machado que, utilizando arquivos
rua, que efetuavam prisões em flagrante, o judiciais, mostra o aum ento do núm ero de
que explica a ausência total de homicídios crimes contra a pessoa, especialmente donos
(havendo somente tentativas) e crimes se de escravos, nas fazendas paulistas de café.
xuais. A maioria das ocorrências encontradas Os registros judiciais não incluem as princi
são aquelas contra a ordem pública (32%) e pais ocorrências encontradas em arquivos
fuga de escravos (20,8%). Os dados do R eci policiais ou prisionais, isto é, “delitos” como
fe fornecidos por Huggins também apontam desordem ou estar na rua fora de hora rara
essas ocorrências como as principais causas mente chegam à Justiça. Em contraste com
de prisão de escravos. os dados de Algranti, nos registros judiciais a
O utro ponto im portante verificado por presença de escravos é pequena, menos de
Algranti é que as vítimas de crimes de escra 20% dos casos. Das 1.274 ocorrências que
vos não pertenciam às camadas altas da so restaram nos arquivos do Tribunal de Cam
ciedade, mas eram também escravos ou po pinas, referentes ao período de 1830 a 1889,
bres livres. A autora argum enta que os cri apenas 144 tratam de crimes cometidos por
mes contra a pessoa estão sub-representados escravos. Em cidades menores, como Capi-
nesses registros — o que pode ser correto — , vary, o núm ero de processos envolvendo
mas fica claro que em registros de patru- réus escravos é ainda menos expressivo (Ze-
lhamento as vítimas eram outros escravos ou nha, 1984, cap. 2).
passantes apanhados em meio às freqüentes O trabalho de M artha Huggins aborda os
brigas de rua. P ortar arm a era, tam bém , um crimes de escravos a partir de um a outra
hábito muito com um no Rio do século XIX, perspectiva. Seu principal interesse não é o
sendo o motivo de 15% dos casos de prisões. crime como forma de resistência escrava,
A principal am eaça eram os capoeiras, luta mas a criminalização dos homens livres e po
dores de rua, geralm ente escravos que, ar bres na transição do trabalho escravo para o
mados de navalha, aterrorizaram o Rio de trabalho livre. Huggins argumenta que a
Janeiro até o final do século X IX .5 ação do Estado contra o crime se originou
O controle policial sobre os escravos au da necessidade de controle sobre os traba
mentou no correr do século X IX e foi substi lhadores livres, um a função que não era exe
tuindo os senhores no papel de executores cutada — ou ao menos não era vista como
da lei. Com o desenvolvimento da polícia, as primordial — durante a escravidão. Huggins
cidades passaram a ter um sistema de vigi coletou dados nos arquivos da Casa de D e
lância estatal, permitindo que a punição de tenção do Recife, entre 1860 e 1922, e cons
escravos fosse racionalizada, tirando — às tatou que “mesmo antes da abolição as pes
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soas livres eram presas com mais freqüência nos de escravos tinham sido capazes de con
na Casa de D etenção do que os escravos. A trolá-lo sem a interferência do Estado. Os
proporção de escravos na população carce elos entre a escravidão e a criação da polícia
rária era de 18% em 1860, declinando para ainda estão para ser melhor estabelecidos,
7% em 1885" (Huggins, 1985:88). Este re mas o núm ero de prisões dc homens livres
sultado está de acordo com aqueles apresen sugere que eles foram sempre o principal
tados por M achado para São Paulo, porém problema das forças policiais — os crimes
com uma diferença sensível nos tipos de cri cometidos por escravos existiam, é claro, mas
mes: violação da ordem pública é a causa de ainda eram tratados na esfera do privado.
62% das prisões no Recife, enquanto os cri
mes contra a pessoa contam apenas 3%. 2. O Surgim ento dos Pobres Livres
A validade de se com parar as várias esta
tísticas produzidas sobre crimes de escravos A existência de um grupo significativo de
no século X IX é um a tarefa muito duvidosa, homens livres e pobres nas sociedades escra
já que temos de confrontar dados insuficien vocratas foi objeto, na década de 1960, de
tes, para regiões diversas, em vários perío um estudo clássico de Maria Silvia de Carva
dos, no esforço de produzir conclusões con lho Franco (1983). Ela apresentou as condi
fiáveis. Sustentados por evidências encontra ções de vida dos pobres livres nas regiões do
das nos trabalhos d e Algranti, Holloway e café, salientando o papel da violência em
Huggins, podem os afirm ar que as principais suas vidas. Tendo como base processos cri
minais, Franco mostrou como a violência
causas de detenção de escravos eram a viola
com punha uma dimensão do cotidiano des
ção da ordem pública e as fugas. Isso parece
sas pessoas. Os problemas levados à Justiça
ser verdadeiro para todo o século XIX, mas
tinham sua origem em conflitos dentro da
ainda é preciso verificar se o aum ento dos
própria comunidade, envolvendo, freqüente
crimes contra a pessoa, que ocorreu no final
m ente, vizinhos, parentes ou colegas de
do século em São Paulo, também se deu no trabalho. Esses fatores, que eram tradicio
resto do país.6 As grandes fazendas de café nalm ente usados nas Ciências Sociais para
de São Paulo e do Rio de Janeiro — a capi acentuar a força dos laços comunitários,7
tal do país e tam bém sua maior cidade na são essenciais também para corroborar a
época — apresentam , aparentem ente, carac em ergência da violência (Franco, 1983:25).
terísticas específicas na relação entre »se D u ran te a escravidão, a inserção dos po
nhores, escravos e o Estado. Contudo, gra bres livres na estrutura social era muito deli
ças à importância dessas regiões, a grande cada. Enquanto os escravos significavam um
maioria dos estudos tem sido ali produzidos. custo efetivo para seus donos, o em prego de
O utro ponto capital a ser sublinhado é a trabalhadores livres não importava em ne
diferença de abordagem entre os pesquisa n hum adiantamento de despesas e provou-se
dores da escravidão e os da transição do b astante útil tendo em vista a execução de
trabalho escravo para o trabalho livre. E n tarefas perigosas. A presença desse grupo,
quanto estudiosos da escravidão como Al q uer como pequenos agricultores produzin
granti e Machado acentuam o papel do Esta do p ara a subsistência, quer como vadios, foi
do no controle da mesma, outros, como n o tad a desde o século X VIII. Sua presença
Huggins e N eder (1981), atribuem o apare na região de Minas Gerais foi noticiada na
cimento do crime como um dos principais q u ela época pelas autoridades públicas que
problemas na soeiedade brasileira às neces prontam ente dem andaram medidáS mais se
sidades envolvidas na construção de um v eras para lidar com a vadiagem. As mesmas
mercado de trabalho livre a partir de 1870. autoridades também estavam cientes das
A criação de forças estatais para lidar vantagens que esses “vagabundos” poderiam
com o crime ocorre no século X IX no Brasil proporcionar, tanto para a ocupação dc no
como em todo o m undo — até então os do vos territórios, quanto para o recrutamento
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das forças militares (Souza, 1986:71-4); Auf- o surgimento de disputas mas tam bém de
derheide, 1976). formas de solidariedade entre eles. No Rio
D urante o século X IX cresceu o núm ero de Janeiro, escravos e homens livres e pobres
e a importância dos homens livres e pobres. costumavam se congregar nos grupos orga
Eles tiveram um papel influente no desen nizados de desordeiros, conhecidos como ca
volvimento da agricultura para o mercado poeiras, além de compartilharem moradias e
interno, suprindo a dem anda crescente gera locais de lazer. A despeito da existência de
da pelas bem-sucedidas fazendas de café. A leis proibindo os escravos de se engajarem
expansão das cidades, especialmente do Rio em muitas atividades urbanas, a expansão
de Janeiro, tam bém permitiu a emergência das cidades dificultou, em muito, a diferen
de novos grupos de pobres urbanos traba ciação entre eles e os pobres livres (Cha-
lhando nos serviços e comércio. lhoub, 1990). Um escravo urbano podia vi
O estudo da violência entre os homens ver na cidade, entre os homens livres, por
livres e pobres nas áreas rurais ainda está por um longo período, sem ser identificado como
ser feito. A única pesquisa produzida com tal. Além disso, a cidade também proporcio
fontes comparáveis às do livro de Franco foi nava aos escravos fugitivos um excelente es
a de Celeste Zenha, que analisou os arquivos conderijo.
judiciais de Capivary, um a pequena vila do A preocupação da elite com as patologias
século X IX perto do Rio de Janeiro. O re sociais que se desenvolveram nas sociedades
trato da vida escrava nesta área mostra a im modernas, característica do cientificismo do
portância das atividades cotidianas na produ século XIX, dirigiu sua atenção para o com
ção dos conflitos — com o foi mostrado por portam ento dos pobres livres. Aqueles po
Franco — e dos julgamentos. A Justiça era bres eram considerados como indisciplina
um expediente político que podia ser usado dos, preguiçosos, imorais e tinham de ser
por diferentes grupos, com a provável exce transformados a fim de colocar a nação no
ção dos escravos. Os indivíduos desenvol caminho do progresso. Médicos e juristas
viam estratégias para apresentar seus casos à produziram diversos livros e teses sobre os
Justiça, usando testem unhas e depoimentos problemas sociais urbanos que, por sua vez,
a fim de obter apoio dos administradores da têm atraído a atenção dos historiadores
mesma. Aqueles que podiam dem onstrar interessados em observar como os grupos
sua honra, padrões morais mais sólidos e um capitalistas emergentes fundaram seu poder
com portamento público apropriado tinham sobre os pobres urbanos (Engel, 1989; Este-
maiores chances de ser bem-sucedidos em ves, 1989).
seus processos, especialmente se estivessem Enquanto os estudos c}a década de 1970
respaldados por iguais. O s julgam entos fun privilegiavam o trabalhador organizado e a
cionavam como espaço de construção de ação repressiva do Estado (Pinheiro, 1979),
uma verdade, não necessariamente cor muitas das análises atuais estão focalizando
respondendo aos fatos, mas com a conse o controle social e a produção do desvio, for
qüência muito real de produzir um crimino madores das chamadas “classes perigosas”,
so, socialmente identificado a partir do resul como estratégias de um capitalismo em
tado do julgamento. construção. Esses trabalhos voltam-se para o
Os pobres urbanos receberam , de um estudo do controle dos grupos sociais rele
modo geral, m uito mais atenção, por parte A vantes no processo de industrialização. Seu
crise final da escravidão e o aum ento da imi interesse no crime é porque ele permite ao
gração na segunda m etade do século X IX fi pesquisador se aproximar dos problemas en
zeram do controle sobre a pobreza urbana a frentados na cidade por negros, imigrantes e
principal preocupação das elites. O cresci mulheres. As estatísticas produzidas não per
mento das cidades juntou escravos e pobres mitem, ainda, muitas conclusões8 Grupos as
livres nas atividades cotidianas, favorecendo sociados à pobreza tais como negros e imi-
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grantes parecem estar sobre-representados. mente na década de 1940 a elite intelectual
A grande maioria dos registros refere-se a começou a estudar as religiões como parte
violações da ordem pública como vadiagem, de uma tradição cultural que merecia ser
desordem ou embriaguez. O relacionamento respeitada e preservada. De acordo, ainda,
entre crimes violentos e crimes contra a pro com esse autor, também a aceitação da reli
priedade, freqüentem ente associados ao de gião e música negras foi “parte de um esfor
senvolvimento da sociedade capitalista, ainda ço maior para cooptar e controlar os negros
precisa ser melhor esclarecido. Prisões sob no Brasil”. Sua análise segue as conclusões
acusação de furto eram muito comuns, exce de Roger Bastide, que apontou um “bran
dendo aquelas por crimes violentos — mas queam ento” da religião afro-brasileira em
muitos presos sob a acusação de “gatunos São Paulo, verificável pelo aum ento do nú
conhecidos” nunca foram a julgam ento ou mero de brancos acusados de bruxaria nos
sequer foram acusados formalmente de anos 1930.10
ações específicas.9 Os registros de julgamen Um estudo recente de Yvonne Maggie
tos, ao contrário, m ostram os crimes violen (1988), sobre a repressão às religiões afro-
tos como os mais freqüentem ente levados brasileiras, torna mais difícil sustentar essa
aos tribunais. hipótese de controle branco ou cooptação da
A criminalização dos negros tem suas ori cultura negra. Com dados abrangendo de
gens na cultura da escravidão. Os donos de 1912 a 1945, Maggie também encontrou
escravos justificavam-na como um a forma brancos sobre-representados nos inquéritos
de educá-los porque eram preguiçosos, cor policiais sobre queixas de feitiçaria ou curan-
ruptos e imorais. Esse argum ento encontra deirismo. Contudo, os registros dos julga
va sustentação em teorias biológicas que mentos mostram mais negros acusados e re
afirmavam a inferioridade dos negros (Cor velam que todos os sete réus brancos foram
rêa, 1982). Mesmo aqueles envolvidos no absolvidos — de fato, apenas quatro dos 34
movimento abolicionista compartilhavam a réus julgados foram condenados.11 A Justiça
idéia da falta de preparação dos negros para parecia estar bem pouco preocupada em re
a sociedade m oderna (Azevedo, 1987; primir os cultos afro-brasileiros e as queixas
Schwarcz, 1987). D essa forma, eles eram al não eram um recurso da elite para controlar
vo privilegiado do controle policial como sus os feiticeiros pobres, mas muito mais o resul
peitos usuais de vadiagem, furto ou do novo tado de disputas entre eles, que apelavam
tipo de crime criado pelo Código Penal de para a polícia a fim de castigar os m aus feiti
1890, a capoeiragem. ceiros e impedir suas ações malignas.12
A preocupação com o com portam ento No grupo classificado como criminalizá-
dos negros e a prevalência dos valores cultu vel havia um grande número de imigrantes.
rais europeus levaram a um a campanha con Desde o fim do século X IX os imigrantes
tra as práticas culturais desse grupo. A músi europeus foram apresentados como força de
ca afro-brasileira — o samba e os batuques trabalho alternativa para substituir os escra
—, assim como a religião receberam a censu vos preguiçosos. Eles começaram a chegar
ra dos intelectuais de elite e a vigilância da nos anos 1870, vindos de Portugal, Espanha
polícia. As reuniões musicais tinham de ser e Itália, para trabalhar nas fazendas de café.
registradas nas delegacias policiais e, fre Esses imigrantes, porém, não preencheram
qüentemente, eram proibidas como redutos as expectativas de parte da elite que desejava
de criminosos (M oura, 1983). A política uma “europeização” do trabalhador brasilei
repressiva é tratada por A dam o como uma ro. D entre os trabalhadores imigrantes eles
forma de controle da cultura negra — as sei encontraram a escória da sociedade euro
tas constituíam um perigo muito maior para péia, membros das “classes perigosas” e
o statiis quo do que qualquer outro segmen '"'anarquistas atraídos pelas possibilidades da
to da cultura negra (Adamo, 1983:257). So nova nação.
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Os imigrantes tiveram um papel impor lo controle do mercado de trabalho onde
tante nos conflitos sociais do início do século trabalhadores nacionais eram substituídos
XX. Seu lugar nesses confrontos não foi por outros “m elhores”, de origem p o rtu
sempre o mesmo, m udando de acordo com a guesa.15 U m dizer expressava a visão popu
nacionalidade envolvida13 e a estrutura social lar da época: “ Q uem m ata galegos não
à qual eles se integravam. Em São Paulo e tem crime.”
Belo Horizonte os imigrantes foram conside Outro problema que mereceu a atenção
rados como um a am eaça para os costumes e dos pesquisadores foram os crimes sexuais e
a ordem pública — na virada do século eles os cometidos por mulheres. O núm ero de
representavam mais da m etade dos indiví crimes desse tipo é bem menor do que aque
duos presos pela polícia e um a preocupação les concernentes a negros ou imigrantes. O
constante para as autoridades públicas. Con Código Penal de 1890 ampliou a discrimina
flitos intensos, envolvendo a polícia, desen ção dos crimes sexuais criando o crime de
volveram-se entre trabalhadores nacionais e defloramento (isto é, obter consentimento
estrangeiros (Fausto, 1984:59-69); Andrade, para um intercurso sexual com uma mulher
1987:13-7). Em 1896, durante a construção menor de 21 anos de idade, virgem, median
de uma estrada de ferro em Sabará, 1.200 te engano, fraude ou sedução), que se torna
trabalhadores, a maioria italianos, lutou con ria, nos anos seguintes, a principal figura nas
tra a população e a polícia, resultando em 14 estatísticas criminais de crimes sexuais, al
prisões e duas mortes. A companhia teve de cançando 51,4% nos dados de Fausto.16 Os
transferir o grupo para outra cidade a 40 km julgamentos desses casos eram transforma
de distância. O chefe de polícia ilustrou o dos em julgamentos da honra e bom com-
pensamento geral: “O povo de Minas é o portamentckdas vítimas. Os casos analisados
mais pacífico do m undo. A polícia desta boa por M artha Esteves revelam a ênfase que
terra não teria quase nada a fazer se não fos juizes e advogados davam ao com portam en
sem os estrangeiros.” (Andrade, 1987:16). to das mulheres. Em alguns momentos, o
A inserção dos imigrantes no Rio de J a simples fato de sair de casa sem um acom pa
neiro foi bem diferente. D esde a Inde nhante, ou mesmo gostar de dançar, era sufi
pendência existia entre a população da cida ciente para a queixa de defloramento ser ne
de um forte preconceito contra os portugue gada. As vítimas tinha de provar sua morali
ses. Alguns distúrbios antilusitanos ocor dade a fim de ganhar o caso. Isso permitia o
reram já na década de 1830.14 Nos anos aparecimento de outros tipos de preconcei
1890 a imigração massiva aum entou o nú tos, o que pode ser percebido na taxa de re
mero de portugueses para 20% da popula sultados positivos para queixas de mulheres
ção da cidade. Republicanos radicais estig brancas, que era maior do que nos casos de
matizavam a exploração portuguesa como mulheres não-brancas (os crimes sexuais têm
um resquício dos laços coloniais. No Rio, os a menor taxa de condenação encontrada por
imigrantes eram o alvo das queixas dos Fausto). Esteves interpretou esses julgamen
trabalhadores urbanos, um a vez que muitos tos como um a tentativa — frustrada — de
empregadores consideravam-nos um a força controle do comportamento e cultura das
de trabalho de melhor qualidade. mulheres da classe trabalhadora, argumen
Na década de 1890 ocorreram conflitos tando que os valores sexuais dos pobres re
políticos importantes, liderados por políticos sistiram à imposição de uma moralidade se
jacobinos, , contra os portugueses (Hahner, xual diferente. Todavia, essa autora não re
1976; Ribeiro, 1987). Nos processos crimi solve a questão de que os casos de deflora
nais relativos a homicídios ou ofensas físicas mento se originaram das queixas dadas por
é comum ver imigrantes com o vítimas e essas mesmas mulheres pobres. Elas, de al
testemunhas da acusação e brasileiros como guma forma, concordavam com a lei e seus
réus e testem unhas da defesa. A luta era pe valores — os casamentos legais e a coabita-
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Ção coexistiam no universo cultural dos po se a polícia, assim, em um instrumento dócil
bres e o apelo à Justiça parecia ser um a es de exercício do poder burguês. O com porta
tratégia disponível e, freqüentem ente, utili m ento ambivalente dos grupos dominados,
zada (Soihet, 1989:247-52). apelando freqüentemente para a instituição
Pesquisas mais amplas tomando como policial, e a resposta diferenciada dos mem
base processos criminais feitas por Sidney bros desta não parecem fazer parte do uni
Ghalhoub (1986), utilizando casos de assas verso de preocupações desses pesquisadores.
sinatos, e por Rachel Soihet (1989), para cri Para eles, o papel da polícia é meramente
mes cometidos por mulheres, convidam-nos instrumental (a mesma visão é partilhada
a retornar ao trabalho original dc M aria Sil por Tortima, 1988).
via de Carvalho Franco. Em sua maioria, os A história das instituições policiais no
crimes eram cometidos em circunstâncias Brasil ainda está, em sua maior parte, por
envolvendo família, trabalho ou lazer, sendo
ser feita. As primeiras forças policiais foram
réu e vítima, usualmente, conhecidos. Esses
criadas aqui no início do século XIX, ainda
novos estudos, contudo, incluem esses cri
sob a dominação portuguesa. Seguindo o
mes no “processo de expropriação do ho
modelo da polícia de Lisboa, a força brasilei
mem livre e o esforço de enquadrá-lo na or
ra foi concebida com o objetivo de proteger
dem social capitalista em ergente” (Cha-
o Estado e m anter a ordem. Ao longo do sé
Ihoub, 1986:30). Estabelecer tal elo geral pa
ra o estudo do crime em pobrece a análise culo esse modelo espalhou-se do Rio para
pela introdução de um elem ento externo de outras forças locais (ver Fernandes, 1974,
poder — um a classe dom inante — capaz de para São Paulo; Brasil, 1990, para o Ceará;
construir a ordem social. A importância da Holloway, 1987, para Santa Catarina). Foi a
violência como parte de um a cultura comum partir do final do século que a preocupação
perde sua signifícância para a ação de fatores crescente com o crime estimulou o aperfei
externos. çoamento das forças policiais. As tentativas
de reformá-las esbarraram, no entanto, na
3. A s Forças da O rdem
interferência política, no mau recrutamento
e nos conflitos sobre o monopólio da ativida
O estudo da história da polícia não tem de policial.18
atraído muita atenção no Brasil. Por um lon Naquele momento, o esforço intelectual
go tempo o trabalho sobre a polícia militar de enfrentar o problema do crime era gene
de São Paulo, realizado por Ileloísa Fernan ralizado. Foram realizados congressos — al
des (1974), permaneceu com o a única refe guns inclusive de âmbito latino-americano —
rência existente. A té hoje essa pesquisa é a sobre o trabalho da polícia e a repressão ao
única disponível enquanto estudo da organi crime (Tortima, 1988) e publicados inúme
zação legal e padrões de recrutam ento ou ros periódicos e livros sobre o tema. Muitas
carreira de um a força policial militar.17 Na reformas na lei foram feitas a partir do novo
maioria das análises produzidas sobre crime Código Penal de 1890, proliferando-se a
e violência, a polícia tem sido apresentada discussão sobre o problema criminal, suas
como o instrum ento da classe dominante, causas e a forma de lidar com ele. As inova
exercendo seu poder de acordo com vonta ções da Antropologia criminal européia e a
des externas. Essa ainda é a visão de muitos abordagem legal positivista também causa
pesquisadores, entre os quais destaca-se Ne- ram muitas transformações na lei criminal
der et alii (1981) com seu estudo sobre a po (Fry & Carrara, 1986), aum entando a preo
lícia do Rio de Janeiro. Segundo esses auto cupação com o criminoso. Isso provocou o
res, as transformações na estrutura da cida desenvolvimento de sistemas de identifica
de e a emergência da dominação capitalista ção — por fichas criminais, carteiras de iden
exigiram o reforço do poder policial para tidade e impressões digitais — que, em um
controlar a classe trabalhadora, constituindo- certo período de tempo, tornaram -se um
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requisito geral (C arrara, 1990). As causas do te. Esperemos que estando atentos à riqueza
comportamento criminal estavam sempre dessa fonte, os historiadores possam olhar a
presentes na discussão e muitos intelectuais violência como a força penetrante que ela é.
associaram-no ao problema do consumo de Seu uso e existência não são apenas um ins
trum ento para produzir ou prevenir m udan
drogas e álcool (Adiala, 1986). Os médicos
ças sociais. A violência tem de ser examinada
preocuparam-se com a loucura criminal e foi
como uma parte integrante da vida social e
criada uma instituição para lidar com o insa um recurso disponível que pode apresentar-
no criminoso (Carrara, 1987). se, na história de um país, em muitas situa
Os arquivos criminais têm sido uma das ções diferentes.
fontes principais para o estudo do início des
te século. A atenção maior dos pesquisado
res, contudo, volta-se, geralmente, para o (Recebido para publicação
controle dos pobres pelos governantes da eli em março de 1991)
Notas
1. Essa preocupação pode ser encontrada nos sociólogos franceses como Durkheim e Tarde
ou, posteriorm ente, na sociologia da chamada Escola de Chicago. Ver os exemplos em Ja-
coby (1979).
2. Os historiadores sociais ingleses da linha de E.P. Thompson são fundamentais para o de
senvolvimento dessa tendência. Ver, por exemplo, Hay et alii (1975) ou o artigo de Peter
Linebaugh em Pinheiro, (1983).
3. Não discutirei aqui a já extensa bibliografia sobre rebeliões escravas e quilombos. Minha
preocupação centrar-se-á nos atos d e escravos que podiam ser classificados nos crimes co
muns, isto é, aqueles que poderiam ser considerados crimes também se cometidos por ho
mens livres. N o que diz respeito ao com portam ento urbano, entretanto, é impossível dei
xar de lado atitudes como a fuga ou estar na rua em hora não permitida.
4. É interessante notar que ao analisar inquéritos sobre suicídios de escravos, Zenha verifi
cou que a Justiça da época parecia compartilhar esta visão, atribuindo, geralmente, o sui
cídio às condições do cativeiro (Zenha, 1984:83.)
5. A capoeira parece acompanhar o processo de integração entre escravos e homens livres
e pobres que ocorre durante o século XIX. Se no início do século ela é essencialmente es
crava, com o passar do tem po ela vai perdendo essa característica. Sobre capoeiras, ver
Holloway (1989) e Bretas (1991).
6. Essa questão é essencial para a discussão da Abolição. Alguns pesquisadores vêm argu
mentando que ela ocorreu quando a escravidão já estava desaparecendo, pela resistência
dos escravos. Para esse ponto de vista ver, por exemplo, a descrição dos crimes de escra
vos em São Paulo feita a partir de relatórios oficiais por Azevedo (1987).
7. Franco está lidando com as categorias clássicas de Tõnníes (1963) para comunidade.
8. Material estatístico pode ser encontrado em Fausto (1984), para São Paulo; Adamo
(1983), para o Rio de Janeiro; Huggins (1985), para o Recife e Andrade (1987), para Be
lo Horizonte.
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9. As detenções sem apresentação de nota de culpa eram ilegais mas muito comuns. Um
“gatuno conhecido” podia ficar m etade do ano na prisão sem ser julgado ou mesmo acu
sado de algum crime (Bretas, 1988).
10. A pesquisa de Bastide cobre o período de 1988 a 1941.
11. Fausto encontrou um a cifra d e 40,4% de reús condenados em casos de assassinato, roubo
e crimes sexuais. Nos casos envolvendo réus negros, a porcentagem de condenação au
mentava para 57,4% (Fausto, 1984:233-6).
12. Existem várias evidências de agentes da polícia envolvidos nas seitas afro-brasileiras.
13. Um exemplo do que poderia ser chamado “cultura nacional” no pensamento da época é a
análise feita por Evaristo de Morais, um advogado de trabalhadores, sobre como os dife
rentes grupos nacionais comportavam-se durante as greves (Morais, 1989).
14. Os portugueses eram acusados de controlar a propriedade dos armazéns e das casas de
aluguel da cidade e eram responsabilizados pelo povo da cidade sempre que ocorria um
aum ento nos preços.
15. Muitos anúncios de jornal ofereciam empregos apenas para portugueses.
16. Os outros crimes sexuais considerados por Fausto foram rapto (29,3%), seqüestro (5,1%)
e atentado ao pudor (14,2%). Veja Fausto (1984:179).
17. O tema tam bém é abordado por Baggio (1979) e Bretas (1988).
18. As forças policiais conflitavam-se, especialmente, com o Exército e a G uarda Nacional,
que exerciam várias atividades policiais (Bretas, 1988).
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