Você está na página 1de 7

Revista Expressão Católica Jul - Dez, 2016; 5 (1)

DOMINAÇÃO E REPRESSÃO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL


AVANÇADA EM HOMEM UNIDIMENSIONAL DE HERBERT
MARCUSE

Ramom Gomes da Silva RESUMO

Este trabalho apresenta uma reflexão acerca dos instrumentos de domina-


ção e repressão da sociedade industrial avançada. A partir da leitura da primeira
parte do livro Ideologia da sociedade industrial: O homem unidimensional, Her-
bert Marcuse analisa a sociedade industrial avançada e as tendências do capi-
talismo tardio expondo as novas formas de controle e dominação dos indivíduos
na contemporaneidade. Os meios de dominação do capitalismo avançado têm-
-se mostrado mais eficientes e eficazes do que antigos regimes baseados na vio-
lência explícita, isto é, sem uso de um terror aberto, tem o domínio das esferas
da existência humana, sejam elas públicas ou privadas. Esses mecanismos de
controles proporcionaram a integração entre o pensamento e o comportamento
dos indivíduos, de tal modo que o sujeito sente-se livre em situação de não liber-
dade, situação em que necessidades impostas são aceitas e ainda repassadas
às gerações seguintes sem o menor questionamento.

Palavras-chave: Controle. Repressão. Dominação. Perspectiva de Libertação.

ABSTRACT

This article presents a reflexion about the instruments of domination and


repression on advanced industrial society. From the first chapter of the book
“One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society”,
Herbert Marcuse analyses the advanced industrial society and the late capitalism
tendences exposing new forms of individuals’ control and domination contem-
poraneity. The advanced capitalism ways of domitaion have shown themselves
more efficient and effective then old regims based on explict violence, in other
words, without the use of an opened terror, (a partir daqui essa oração está
confusa, mesmo em portugues. Creio que um ponto final seria mais adequado)
They have the domain of the whole human existence espheres, whether public
or private. These controls’ mechanisms provided the integration of the indivuals
thoughts and behaviors in a such way that they fell themselves free in a unfree-
dom situation, where imposes necessities are being accepted and passed to the
nexts generations without the slightest questioning.

Keywords: Control. Repression. Domination. Perspective of Libertation.

107
Revista Expressão Católica Jul - Dez, 2016; 5 (1)

1 INTRODUÇÃO 2 A SOCIEDADE INDUSTRIAL AVANÇADA MODIFI-


COU A ESTRUTURA SOCIAL PROPORCIONAN-
“A sociedade contemporânea parece capaz de con- DO UMA DOMINAÇÃO EFETIVA NA DIMENSÃO
ter a transformação social – transformação qualitativa
DA EXISTÊNCIA HUMANA
que estabeleceria instituições essencialmente diferentes,
uma nova direção dos processos produtivos, novas for-
“A sociedade industrial avançada faz suas a tecno-
mas de existência humana”. (MARCUSE, 1979, p. 16).
logia e a ciência é organizada para a dominação cada
A obra do filósofo Herbert Marcuse (1898-1979),
vez mais eficaz de seus recursos. Torna-se irracional
Ideologia da sociedade industrial: o Homem unidimen-
quando o êxito desses esforços cria novas dimensões
sional (1964) apresenta de maneira mais desenvolvida
de realidade humana”. (MARCUSE, 1979, p.36)
a tese de Eros e Civilização: uma interpretação filosófi-
Marcuse, a partir das análises das tendências do
ca de Freud ( 1955). A tese anunciava que só se podia
capitalismo norte-americano define a sociedade avan-
evitar a fatalidade de um estado de Bem-Estar Social
çada como fechada em seu interior, abrindo-se apenas
mediante a existência de um estado Beligerante que
para a expansão econômica, política e militar. A socieda-
possibilitaria estabelecer um novo ponto de partida; com
de se torna fechada por meio da assimilação das forças
o qual seria criado um novo sistema produtivo afastan-
do-se das bases mentais que serviram tanto para domi- e dos interesses, que antes eram opostos, da adminis-
nação como para exploração dos indivíduos. tração dos instintos humanos, com tendência para uma
Essa sociedade tem se diferenciado das civili- administração total da sociedade. As necessidades e
zações passadas pela sua capacidade de controlar aspirações são impostas e aceitas pelo conformismo ao
e integrar cada vez mais as dimensões da existência sistema, “as próprias forças que tornaram a sociedade
humana; sejam públicas ou privadas. Rompendo com capaz de amenizar a luta pela existência serviram para
os antigos modos de produção, seu modo de adminis- reprimir nos indivíduos a necessidade de tal libertação”
tração, tornou-se uma ameaça à liberdade humana. (MARCUSE, 1966, p. 13). Essa sociedade caracteriza-
Sem o uso de violência explícita, com controles mais -se pela produção do supérfluo, dos novos inventos e
eficientes, que consegue barrar as forças de oposição do obsoletismo planejado como meio de manter o ciclo
que poderiam pôr em risco o sistema estabelecido da vicioso do consumo.
ação e do discurso. O avanço do progresso técnico na Na sociedade industrial avançada as forças de
sociedade industrial avançada ao invés de proporcionar negação foram dominadas, o protesto individual foi
maior libertação dos indivíduos, transformou-se em ins- suprimido e o antagonismo das classes foi superado.
trumento de dominação mais efetiva tanto do homem Os elementos dissociativos foram unidos num sistema
como da natureza. de assimilação e reprodução e a democracia passou a
A proposta desse artigo se limitará à apresentação exercer a função de dominação de forma mais efetiva
do capitulo primeiro, As novas formas de controle, base que o antigo regime, o absolutismo. “A nossa sociedade
para o desenvolvimento desse trabalho. Marcuse abor- se distingue por conquistar as forças sociais centrífu-
da as mudanças e as características que tornaram essa gas mais pela tecnologia do que pelo terror, com dúpli-
civilização diferente daquelas que a antecederam. Tanto ce base numa eficiência esmagadora e num padrão de
pela resolução dos antagonismos internos como pela ad- vida crescente” (MARCUSE, 1979, p.14).
ministração total da existência humana, e tais caracterís- O modo pelo qual a sociedade está organizada,
ticas atestam a perda do protesto individual, da autono- por mais racional que se apresente aos indivíduos, é em
mia do indivíduo e das forças que poderiam amenizar a si mesma irracional. Pois uma sociedade que tem seus
luta por sua existência, passaram a agir, em contraparti- valores cujos fins últimos se distanciam do processo de
da, como fator de repressão e coesão do sistema. humanização não pode ser considerada uma socieda-
Dessa forma, temos como objetivo apresentar meios de organizada de forma racional, mas, antes vê na pro-
de controle e dominação que impedem os indivíduos de dutividade seu bem maior que é considerado o motor
agirem e pensarem por si mesmos, também tentaremos de todo o processo de produção. O progresso técnico
mostrar o nível de dominação do homem na sociedade, tinha como função, a principio, a satisfação das neces-
na qual não consegue reconhecer as suas próprias ne- sidades humanas de forma mais eficiente, no entanto,
cessidades. Em suma, a partir da assertiva marcuseana transformou-se em destruição, não apenas das livres
na qual pensar é negar, e esse pensar negativo é negar satisfações, mas também da natureza. Portanto, nos
a realidade dos fatos dados, temos como objetivos espe- encontramos diante da situação na qual o sujeito não
cíficos, a partir dos expostos suscintar uma inquietação é livre, “perdeu ou está perdendo, a individualidade, a
nas pessoas para que diante dos fatos dados possam liberdade e a habilidade de discordar e de controlar seu
encontrar as inadequações internas na sociedade. próprio destino” (MARCUSE, 2015, p. 21).

108
Revista Expressão Católica Jul - Dez, 2016; 5 (1)

Marcuse expõe o caráter de dominação da civili- so produtivo do capitalismo avançado tem alterado a for-
zação industrial avançada afirmando que se chegou ao ma de domínio: o véu tecnológico esconde por detrás das
ponto em que a sua irracionalidade mostra-se racional. mercadorias a exploração de classes” (MARCUSE, 1977,
A produtividade e a eficiência integram todas as dimen- p.25). A tecnologia e a ciência podem servir de veículos de
sões da vida humana e a ausência de uma dimensão libertação, contudo o uso desses agentes numa sociedade
crítica no homem torna explícito o grau de aceitação repressiva os transforma em veículos de dominação em
e introjeção21 desses controles. O aparato técnico de massa. A máquina em si não é repressiva, nem a tecno-
produção e distribuição passou a funcionar não apenas logia ou a ciência, mas a presença daqueles que fazem
como uma soma de meros instrumentos que poderiam desses produtos parte da sua existência.
ser isolados dos seus efeitos sociais e políticos, mas
passaram a funcionar, segundo Marcuse, “como um sis- 3 DIFICULDADE DE RECONHECIMENTO DAS VERDA-
tema que determina “apriori” tanto o produto do aparato DEIRAS NECESSIDADES HUMANAS SOBRE O DO-
como as operações, manutenções e ampliação” (MAR-
MÍNIO DA CIVILIZAÇÃO INDUSTRIAL AVANÇADA
CUSE,1979, p.18), quer dizer, essa sociedade se dis-
tingue das anteriores pela capacidade de subjugar as
“O homem unidimensional não conhece suas ver-
forças sociais críticas de oposição mais pela tecnologia
dadeiras necessidades, porque suas necessidades não
do que pelo terror, mais pela eficiência do sistema técni-
suas próprias – são administradas, sobrepostas e hete-
co-científico do que pela opressão explícita.
rônomas; não é capaz de resistir à dominação, nem de
Além disso, considera esta sociedade como tota-
agir autonomamente”. (MARCUSE, 2015, p.22).
litária, onde totalitário não é “apenas uma coordenação
O poder político da sociedade industrial tem se afir-
política terrorista da sociedade, mas também uma co-
mado por meio do domínio dos processos mecânicos e
ordenação técnica-econômica não terrorista que opera
sobre a organização técnica do aparato produtivo, nos
através da manipulação das necessidades por meio
quais os termos tradicionais que definiam a sociedade
de interesses adquiridos” (MARCUSE,1979, p.24). Por
como livre se tornaram inadequados ou foram ressigni-
conta dos aspectos citados desta sociedade, ele rejeita
ficados. Tais termos como liberdade de economia, liber-
o conceito tradicional de “neutralidade da tecnologia”;
dade política e também intelectual, tornaram-se inapro-
uma vez que os controles tecnológicos que tiveram seu
priados, esses termos são considerados inadequados
início com a inserção das máquinas em fábricas se es-
porque se tornaram demasiadamente significativos na
tenderam às outras áreas da existência humana, tanto
sociedade estabelecida. A forma mais eficaz e resisten-
nas organizações da vida social quanto no trabalho, la-
te contra a libertação é a implantação das necessida-
zer e descanso, alcançando os níveis da subjetividade
des, tanto materiais como intelectuais que configuram
e da sexualidade.
formas obsoletas de dominação.
Todavia, vale destacar que ao longo do pensamento
marcuseano, o qual se refere ao caráter não neutro da tec- Assim, liberdade econômica significaria liberdade
nologia, não vemos sua recusa, ao contrário, afirma que a de economia – de ser controlado pelas forças e re-
vida alcançou níveis de existência em que o retrocesso se lações econômicas; liberdade de luta pela existên-
torna inviável. A crítica passa a residir no aspecto político cia, de ganhar a vida. Liberdade política significaria
de dominação por meio do avanço tecnológico. “O proces- a libertação do individuo da política sobre a qual
ele não tem controle eficaz algum (MARCUSE,
1979, p. 25-26).
21 1Quando Marcuse nos diz que os controles sociais são “in-
trojetados” na realidade das pessoas rompendo com protesto in- O homem nessa sociedade é avaliado de acor-
dividual, ele esclarece que o conceito de “introjeção”, devido à
forma como tem se perpetuado a dominação, não expressa de do com sua produtividade, sua capacidade de tanto
forma precisa esse modo de dominação, mas a “Mimese” seria poder melhorar como aumentar as coisas socialmente
o termo mais apropriado para descrever essa realidade. “Assim, úteis. Dessa forma, passar a designar o grau de domí-
introjeção subentende a existência de uma dimensão interior dis- nio e de transformação da natureza, esta sociedade se
tinta e até antagônica das exigências externas, uma consciência
individual e uma consciência individual separada da opinião e do
destaca das civilizações passadas pelo o alcance da
comportamento público. A ideia de ‘Liberdade interior’ tem aqui dominação sobre o indivíduo ser incomensuravelmente
sua realidade: designa o espaço privado no qual o homem pode maior como jamais presenciado na história.
torna-se e permanece ‘ele próprio’ ”. Em outras palavras, “intro- As necessidades instintivas, diz Marcuse, são as
jeção” sugere um “eu” (Ego) que transferia de forma espontânea
verdadeiras necessidades que devem ser satisfeitas
a realidade exterior para o interior. Mas Marcuse diz que atual-
mente, esse espaço privado se apresenta invadido ou desbastado de forma indiscutível; as demais satisfações que estão
pela realidade tecnológica, logo o resultado é a identificação ime- além dessa esfera são necessidades históricas, portan-
diata do indivíduo com a sua sociedade, logo tal identificação não to, são instituídas. Toda forma de satisfação depende de
significa introjeção, mas “mimese”. MARCUSE, Herbert, Ideologia padrões críticos predominantes, dessa forma, a maio-
da Sociedade Industrial.

109
Revista Expressão Católica Jul - Dez, 2016; 5 (1)

ria das necessidades que se apresentam como sendo instrumentos de destruição controlados pelos governos
comuns aos indivíduos na sociedade estabelecida são tornaram obsoletos e românticas as formas clássicas de
resultados de satisfações predeterminadas, sendo tais luta social”. (MARCUSE, 1978, p. 406)
necessidades aceitas sem o menor questionamento e Marx já mostrava que a ideia de progresso como
ainda repassadas às gerações seguintes. possibilidade de pacificação da existência humana foi
A identificação das necessidades como verdadei- desviada do seu objetivo inicial. O conceito de progres-
ras ou falsas é uma tarefa que só o sujeito enquanto li- so técnico que não é um conceito neutro, pois carrega
vre poder definir. A dificuldade quanto ao reconhecimen- em sua própria existência a produtividade como seu
to se eleva mediante a ausência de indivíduos capazes maior valor, com isso temos uma sociedade em que a
de reconhecer as necessidades como verdadeiras ou sua engrenagem tem como motor propulsor o proces-
falsas. “Em última análise, a questão sobre quais neces- so produtivo. Isso implica que as relações na sociedade
sidades devam ser falsas ou verdadeiras só pode ser avançada são mediadas pela produção, como resultan-
respondida pelos próprios indivíduos, mas apenas em te temos reificação e fetichização total dos indivíduos.
última análise; isto é, se e quando estiverem livres para Nesse contexto da sociedade industrial, Marx,
dar a sua própria resposta” (MARCUSE, 1979, p.27). cita Marcuse, acreditava na possibilidade de mudança
Contudo, Marcuse acrescenta dizendo que qualquer qualitativa por meio da socialização do aparato técnico de
resposta que venha a ser proferida não pode ser validada produção, o homem de posse da organização produtiva
como do próprio individuo, “A livre escolha entre ampla faria uso da mesma para a satisfação das necessidades
variedade de mercadoria e serviços não significa liberda- livremente desenvolvidas. “E tal modificação pressuporia
de se esses serviços e mercadoria sustêm os controles que as classes trabalhadoras estivessem, em sua própria
sociais sobre uma vida de labuta e temor” (MARCUSE, existência, alienadas desse universo, que a sua consciên-
1979, p. 28). O homem perdeu sua autonomia median- cia fosse à da impossibilidade de continuar a existir nesse
te os padrões de vida estabelecidos pela sociedade. O universo” (MARCUSE, 1979, p.42). Entretanto, diz Marcu-
avanço do progresso técnico impôs novas necessidades se, que embora essa consciência de negação pudesse
que, na sua grande maioria, estão a serviço da manu- surgir de dentro da sociedade estabelecida e tenha se tor-
tenção do sistema por meio do consumo. “O conceito de nado, posteriormente, uma pedra angular na teoria marxis-
necessidade engloba tanto alimentação, roupa, moradia ta, o protesto individual e coletivo, ambos foram modifica-
quanto bombas, máquina caças níqueis e a destruição dos em decorrência do desenvolvimento produtivo.
de produtos invendáveis” (MARCUSE, 2001, p.117). O homem não é mais uma negação viva da socie-
A sociedade estabelecida alcançou o nível de do- dade como fora antes, hoje à modificação dos aspec-
minação no qual há a anulação do protesto individual tos do trabalho é rompida pela troca de esforço físico
do homem cedendo espaço para o conformismo de pelo esforço mental, o trabalho que antes era símbolo
pensamento e comportamento. A ausência da dimen- de exaustão física passou a ser exaustão mental. “a au-
são crítica está cada vez mais sendo reduzidas por uma tonomia ‘profissional’ anterior do trabalhador era, antes
sociedade que tem o controle d as necessidades vitais, sua escravidão profissional. Mas esse modo específico
nas quais os desejos e aspirações, assim como os va- de dominação, era ao mesmo tempo, a fonte de seu
lores e medos, estão sendo ditados e administrados. O poder específico, profissional de negação” (MARCUSE,
homem, sob o domínio cada vez intenso da sociedade, 1979, p.45), a maquina afirma sua dominação quando
passa a não desenvolver suas potencialidades e sua reduz à autonomia do trabalhador, o poder que o ho-
autodeterminação tornando-se “unidimensional” 22, pois mem tinha em parar um processo produtivo lhe dava
se submete à dominação cada vez mais totalizante. certa autonomia profissional.
Diante do moderno conceito de progresso, a exis-
4 A SOCIEDADE INDUSTRIAL AVANÇADA BARROU tência da separação entre as necessidades social e ne-
A PROPOSTA DO HOMEM ENQUANTO NEGA- cessidade individual, acaba por resultar é que a vida se
resume apenas ao trabalho, “que o próprio trabalho se
ÇÃO VIVA DO ESTABELECIDO
torna o conteúdo da vida. O trabalho é concebido como
socialmente necessário e útil; sem ser absolutamen-
“O progresso tecnológico mudou fundamentalmen-
te concebido como trabalho individualmente satisfató-
te a balança do poder social. O alcance e eficácia dos
rio, individualmente necessário” (MARCUSE, 2001, p.
116), Logo, o trabalho que advém do conceito de pro-
22 2 Marcuse propõe a interpretação do termo “Unidimensional”
gresso que fez surgir essa Moderna civilização indus-
como conformidade ao pensamento e comportamento existente,
e, tal vez o aspecto mais importante, a ausência de uma dimen- trial é o trabalho desprazeroso. O indivíduo trabalha
são crítica e de uma dimensão de potencialidades que poderiam sem visar sua plena realização, o trabalho que lhe é a
transcender a sociedade existente. MARCUSE, Herbert, Ideologia própria vida é agora trabalho alienado.
da Sociedade Industrial.

110
Revista Expressão Católica Jul - Dez, 2016; 5 (1)

A análise da sociedade fechada, que se abre ape- 5 AS SATISFAÇÕES DAS NECESSIDADES LIVRE-
nas para a expansão externa da economia. Alcançou o MENTE DESENVOLVIDAS ATESTAM A DIFEREN-
nível pelo qual só pode ser definida com novos valores ÇA QUALITATIVA DA SOCIEDADE
e novas categorias23. “Quanto mais racional, produtiva,
técnica e total se torna a administração repressiva da A particularidade distintiva da sociedade industrial
sociedade. Tanto mais inimagináveis se torna os mo- desenvolvida é a sufocação das necessidades que exi-
dos e os meios pelos quais os indivíduos administrados gem libertação - libertação também do que é tolerável
poderão rompe sua servidão e conquistar sua própria e compensador e confortável (MARCUSE 1967, p. 28).
libertação” (MARCUSE, 1979, P 28). A principal altera- A crítica de Marcuse reside, nesse contexto, não ao
ção no caráter do trabalho, nos instrumentos de produ- materialismo dessa forma de vida imposto pela socieda-
ção, junto com a mudança na atitude e a consciência do de industrial avançada, mas sim ao falso modo de vida
trabalhador, reflete a grau de integração social e cultural no qual os indivíduos são submetidos junto ao alto grau
do proletariado na sociedade capitalista. Essa Integra- de repressão. A satisfação das necessidades livremente
ção priva o indivíduo de práticas históricas que pode- desenvolvidas reflete em termos a proposta marcuseana,
riam transcender o universo estabelecido da ação e do de uma sociedade poder ser regida por novos valores,
discurso, caso houvesse transcendências estas seriam por um novo principio de realidade. Dessa forma, o pro-
de ordem metafísicas, contudo, inaceitáveis. testo contra a produtividade se torna a recusa em aceitar
Com o progressivo avanço da civilização industrial, a dominação cada vez mais totalizante, evidenciando a
se alcançou elevados padrões de vida. A satisfação dos proposta de mudanças qualitativas e o distanciamento da
desejos e aspirações é mantida por meio do consumo sociedade com base nos valores da produção.
das mercadorias e o estado de Bem-Estar que configura A libertação da sociedade estabelecida pressupõe
o padrão de vida da sociedade avançada, é um estado uma transformação a nível “biológico” das necessida-
marcado por restrição completa da liberdade em virtu- des instintivas, caso contrário, o protesto acabaria se
de do alto grau de administração da existência humana. tornando incompleto. Marcuse faz uso do termo “biológi-
Deparamo-nos com indivíduos completamente satisfei- co” para enfatizar que essas necessidades são aquelas
tos e felizes com as mercadorias e serviços que lhe são em que não podem deixar de ser satisfeitos. São aque-
servidos por essa sociedade administrada. Logo, se as las em que não se podem encontrar um substituto, pois
mercadorias satisfazem as necessidades em nível de acabaria por comprometer o funcionamento de todo o
sentimento, desejos, pensamento, imaginação, não há organismo, “A necessidade de possuir, consumir, mane-
razões para desejarem, pensarem e imaginarem por si jar e renovar constantemente os inventos, os utensílios,
mesmo. Se as satisfações administradas das necessi- as máquinas, imposta ás pessoas […] tornou-se uma
dades resulta em felicidade não há motivos para pensar necessidade biológica”. (MARCUSE, 1977, p. 24).
numa mudança dessa estrutura social. O triunfo do capitalismo avançado é marcado quan-
O alto padrão de vida juntamente com as conquis- do o processo produtivo tem altera a forma de domínio na
tas sobre o homem e o domínio da natureza afirma o po- sociedade, quando as pessoas não conseguem rejeitar
der sobrenatural, que a sociedade industrial avançada a dominação que lhe é imposta, quando as mercadorias
impõe aos homens e mulheres. Diante disso, as força que consomem se tornaram parte de sua própria existên-
de oposição são derrotadas ou reconciliadas com o sis- cia. As necessidades e satisfações, nessa esfera, confi-
tema estabelecido, Marcuse a firma que não é preciso guram uma vida de “servidão voluntária”. O progresso na
esperar que as próximas bombas sejam detonadas ar- civilização não só reduz o ambiente de liberdade huma-
rasando cidades inteiras para que as pessoas possam na, mas também o desejo de tal libertação. O véu tec-
abrir seus olhos para as crueldades dessa sociedade. nológico não só esconde, por detrás das mercadorias, a
exploração e dominação das classes, mas, ao consumi-
rem os produtos, as pessoas estão consumindo também
parte de sua vida e, nesse sentido, o véu tecnológico não
23 Marcuse no diz que a análise desta sociedade exige novas só esconde a exploração, mas transfigura-a.
categorias tanto morais, políticas e estéticas, e, como forma in-
trodutória faz uso da categoria “Obsceno” para definir essa socie- A liberdade depende pois largamente do progresso
dade da abundancia, nos diz que esta sociedade é obscena em técnico, do avanço da ciência. Mas este facto facil-
produzir exibir indecorosamente uma abundancia sufocante de mente nos levas a esquecer a condição prévia es-
mercadoria, ao mesmo tempo em que priva largamente as suas sencial: afim de se tornarem veículos de liberdade,
vítimas da satisfação de necessidades vitais. Obsceno não é uma a ciência e a tecnologia terão de mudar a sua atual
gravura de uma mulher nua que expões os pelos dos púbis, mas direção e objetivos: terão de ser formadas por uma
um general completamente vestido que exibe suas medalhas de
nova sensibilidade (MARCUSE,1977, p.34).
recompensa numa guerra de agressão. MARCUSE, Herbert, Um
ensaio para a libertação, Livraria Bertrand. Lisboa, 1977.

111
Revista Expressão Católica Jul - Dez, 2016; 5 (1)

As necessidades que são geradas em função des- das necessidades não sublimadas, isto é, a partir das
se sistema são necessidades estabilizantes e conserva- necessidades que não foram desviadas de seus propó-
dores que militam a favor da contrarrevolução. Uma so- sitos iniciais, para as quais não foi encontrado um subs-
ciedade qualitativamente diferente necessita de novas tituto. Dessa forma, está posta a base biológica para
fundamentações, novos valores de um novo princípio uma sociedade mais livre, mais humana. Sabendo que
de realidade. Uma sociedade que seja organizada por a tarefa e o objetivo de toda libertação é a melhor satis-
homens cujas necessidades, desejos e aspirações se- fação das necessidades, “mas, ao progredir em direção
jam a negação determinadas desta sociedade repres- a tal objetivo, a própria liberdade deve tornar-se uma
siva, “o homem só é livre quando está livre das coações necessidade instintiva e, enquanto tal deve mediar as
internas e externas, físicas e morais - quando não é demais necessidades” (MARCUSE, 1993, p.08.).
reprimido pela lei nem pela necessidade” (MARCUSE, A partir do instinto de liberdade não sublimado que
1968, p.167). teríamos as raízes para uma liberdade política e social,
teríamos as exigências de uma transformação social
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS qualitativamente diferente, um momento de ruptura com
a lógica de dominação e perpetuação do progresso ma-
Marcuse compreende que a classe trabalhadora terial que gera novas necessidades heterônomas. Um
ainda é essencialmente, o agente histórico de revolução, novo princípio de realidade a partir dessa fundamen-
embora reconheça que existencialmente não o seja, isto tação libertaria a base biológica dos valores estéticos,
devido ao controle de sua consciência, devido à satisfa- “porque a beleza, o repouso, a harmonia, são neces-
ção das necessidades de consumo que auxiliam a per- sidades orgânicas do homem, cuja repressão e a ad-
petuação da servidão dos trabalhadores nesta sociedade ministração mutilam o organismo e ativam a agressão”
controlada pela administração capitalista. Reconhece que (MARCUSE, 1993, p.10. Tradução do Autor).
as conquista da ciência e da técnica negaram um objetivo A técnica pode transformar-se em arte, rom-
humano. Quanto mais a tecnologia se desenvolve, mais pendo as barreiras da alienação, da identificação dos
poderia tornar-se capaz de criar melhores condições de indivíduos ao trabalho controlado pelo capital. Tornan-
satisfações das necessidades humanas. No entanto, a so- do-os conservadores e contra revolucionários. “Quan-
ciedade industrial se organizou e fez uso para uma domi- do homens e mulheres agirem e pensarem livre dessa
nação efetiva do homem e da natureza. As novas formas identificação […] eliminaria as causas que tem feito da
de controle na sociedade contemporânea têm como obje- historia a humanidade a história do domínio e servidão”
tivo a continuidade da produção sem levar em considera- ( MARCUSE, 1977, p. 41). Numa sociedade estritamen-
ção as verdadeiras necessidades humanas. “As criaturas te autêntica o homem jogaria ao invés de labutar, sua
se reconhecem em suas mercadorias; encontra sua alma vida seria mais de realização pessoal e social do que
em seu automóvel, hi-fi, casa em patamares, utensílios de trabalho árduo. O resultado seria uma sociedade regida
cozinhas” (MARCUSE, 1977, p. 29). por um novo princípio de realidade, por uma nova sen-
Uma mudança qualitativa na sociedade corres- sibilidade, em que a ciência e a técnica não estariam a
ponderia a uma transformação da sociedade, rompendo serviço da manutenção do sistema, seria uma socieda-
os objetivos atuais da política conforme a racionalidade de autenticamente humana.
da dominação, em que corpo e mentes são mantidos
num estado de mobilização em defesa do status quo. REFERÊNCIAS
A transformação no caráter repressor da ciência e da
técnica pressupõe a construção de uma nova sociedade MARCUSE, H. A ideologia da Sociedade Industrial: o
regida por valores humanos, uma sociedade que neces- homem Unidimensional. Tradução de Giasone Rebuá.
sitaria de homens e mulheres com sensibilidade e cons- 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1979.
ciência diferenciada, isto é voltadas para sua própria
. Cultura e Psicanálise. Tradução de: Wolfgang
felicidade. Marcuse propõe uma mudança nos valores
Leo Maar, Robespierre de Oliveira, Isabel loureiro. São
vigentes na sociedade, de modo que o trabalho penoso
Paulo: Ed. Paz e Terra, 2001.
seja substituído pelo trabalho não alienado, seus afaze-
res devem tornar-se entretenimento, a tecnologia e au- . Eros e Civilização: Uma interpretação filosofi-
tomação hoje já o permitem. “Reduzi-se-ia á alienação ca de Freud. Tradução: Alvaro Cabral, Ed. Rio de Janei-
com a progressiva redução do dia de trabalho, mas este ro: Zahar Editora, 1972.
permaneceria um dia de sujeição, racional, mas não li-
vre” (MARCUSE, 1977,p. 36). . O Homem Unidimensional: estudos da ideo-
As bases para uma mudança na sociedade es- logia da sociedade avançada. Tradução de Robespiee-
tabelecida deveriam iniciar-se a partir das satisfações re de Oliveira, Deorah Antunes e Rafael Cordeiro Silva.
São Paulo: Edipro Editora, 2015.

112
Revista Expressão Católica Jul - Dez, 2016; 5 (1)

. El Hombre Unidimensional: ensayo sobre la


ideología de la sociedad
industrial avanzada. Buenos Aires: Ed. Planeta Agosti-
ni, 1993.
. Razão e revolução: Hegel e advento da teoria
social. Tradução de Marília Barroso.- 2. ed. Rio de janei-
ro: Paz e Terra, 1978.
. Um Ensaio Sobre a Libertação. Tradução de
Maria Ondina Braga. Lisboa: Livraria Bertrand, 1969.

SOBRE O AUTOR

Ramom Gomes da Silva


Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual
do Ceará (UECE). Ex-monitor da disciplina de Lógica I
(2013) e Filosofia Social e Politica I (2014). Membro do
Grupo de Estudos de Atualidades do Pensamento de
Herbert Marcuse, Além de interesses na filosofia Medie-
val (Santo Agostinho) e autores do período clássico (os
Pré-Socráticos e Platão).
E-mail: s_ramom@yahoo.com.br

113

Você também pode gostar