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Fontes da rebelião

Acima de tudo, eu sou tomada pela revolução. Precisa ser desta forma. O vento que passou
pela ruína onde nasci, as velhas pessoas que cuidaram de mim, a solidão e liberdade da
minha infância, as lendas de Haute-Marne¹, os pedaços de conhecimento recolhidos aqui e
ali - tudo que abriu meus ouvidos para cada harmonia, meu espírito para cada iluminação,
meu coração para ambos amor e ódio. Tudo interligado em uma unica musica, um único
sonho, um único amor: a revolução.

Até onde me lembro, a origem da minha revolta contra os poderosos foi meu horror ao ver
as torturas infligidas aos animais. Eu costumava desejar que os animais se vingassem, que
o cão pudesse morder o homem que impiedosamente o batia, que o cavalo sangrando
debaixo do chicote pudesse derrubar o homem o atormentando. Mas animais mudos
sempre se submetem a seu destino…

Animais sempre se submetem, e quanto mais agressivo um homem é com os animais, mais
este homem se curva àqueles que o dominam…

Minhas tardes na vila alimentaram o sentimento de revolta que tenho diversas vezes. Os
camponeses semeiam e colhem o grão, mas nem sempre tem pão. Uma mulher me falou
que durante um ano ruim - assim que chamam os anos em que os monopolistas esfomeiam
o país - nem ela, nem seu marido, nem suas quatro crianças podiam comer todo dia.
Possuindo apenas as roupas de seus corpos, não tinham nada mais para vender.
Mercadores que tinham grãos não lhes deram mais crédito, nem um pouco de aveia para
fazer pão, e duas de suas crianças morreram, eles acreditam que de fome.

“Você deve se submeter,” ela me disse “Nem todo mundo pode comer pão todo dia.”

Seu marido queria matar o homem que se recusou a lhes dar créditos a 100 porcento de
interesse enquanto suas crianças estavam morrendo, mas ela o impediu. As duas crianças
que conseguiram sobreviver acabaram indo trabalhar para o homem que seu marido queria
matar. O agiota mal lhes paga, mas pessoas pobres, ela disse, “devem se submeter as
coisas que não podem evitar.”

Seu tom era calmo quando ela me disse essa história. Eu olhei com fúria nos olhos, e disse
para ela: “Você deveria ter deixado seu marido fazer o que ele queria. Ele estava certo.”

Eu conseguia imaginar os pequeninos morrendo de fome. Ela conseguiu expressar aquela


miséria tão dolorosamente que eu pude sentir em mim mesma. Eu vi o marido em sua
camisa usada, suas sandálias de madeira calejando seus pés, indo implorar ao maligno
agiota e voltando pelas estradas congeladas com nada. Eu o vi tremendo os punhos
agressivamente quando seus filhos estavam mortos em cima de um punhado de palha. Eu
vi sua esposa o impedindo de vingar seus próprios filhos e outros. Eu vi as duas crianças
sobreviventes crescendo com esta memória, e então indo trabalhar para aquele homem:
covardes.

Eu pensei que se aquele agiota viesse a vila naquele momento eu iria pular em sua
garganta para mordê-la, e disse isso para ela. Eu estava indignada na sua crença de que
nem todo mundo podia ter comida todo dia. Tamanha estupidez me desnorteava. “Você não
deve falar assim pequenina,” disse a mulher. “Isso faz Deus chorar.”

Você já viu um carneiro levantar seu pescoço para a faca? Essa mulher tinha a mente de
uma ovelha...

Mais do que caridade é necessário para que cada pessoa sempre tenha algo para comer.
Quanto aos ricos, eu tinha pouco respeito por eles. Eu conheço toda a realidade do trabalho
pesado na terra. Conheço as desgraças do camponês. Ele se curva constantemente sobre
uma terra que é dura como uma madrasta. Em troca de seu trabalho, tudo o que recebe são
restos de seu mestre, e ele pode ter ainda menos conforto de seus pensamentos e sonhos
do que nós podemos. Trabalho pesado dobra ambos homens e mulheres e bois sobre os
sulcos, com o matadeiro para as bestas exaustas e o saco dos pedintes para os humanos
exaustos.

A terra. Esta palavra está no alicerce da minha vida. Estava no grosso livro ilustrado de
história romana através do qual minha família inteira de ambos os lados aprendeu a ler.
Minha avó me ensinou a ler dele, apontando para as letras com sua agulha de tricô. Criada
no interior, eu entendi as revoltas agrárias da velha Roma, e derramei muitas lágrimas nas
páginas daquele livro. A morte dos gregos me oprimiu naqueles dias tanto quanto os
enforcamentos na Rússia iriam depois.

Quão enganosos são estes textos sobre a felicidade nos campos. As descrições da
natureza são reais, mas a descrição da felicidade dos trabalhadores do campo é uma
mentira. Pessoas olham para as flores nos campos e a bela grama fresca e acreditam que
as crianças que cuidam dos animais brincam ali. Os pequenos desejam a grama apenas
para se deitar e dormir um pouco ao meio-dia. A sombra das árvores, as copas amareladas
que o vento move como ondas - o camponês está cansado demais para as achar bonitas.

Seu trabalho é pesado, seu dia é longo mas ele renuncia a si, ele sempre renuncia a si, pois
sua vontade está quebrada. O homem é sobrecarregado como um animal. Ele está meio
morto e trabalha para seu explorador sem pensar. Nenhum camponês fica rico por trabalhar
na terra; eles apenas geram dinheiro para aqueles que já tem muito. Muitos homens me
contaram, em palavras que ecoaram o que aquela mulher me disse na vila: “Você não deve
dizer isto, pequena. Isso ofende Deus.” Isso é o que eles me disseram quando eu lhes disse
que todo mundo tem direito a tudo que existe na terra.

Minha pena por tudo que sofre foi longe - talvez mais pelo silêncio dos animais que dos
homens. Minha revolta contra as desigualdades sociais foi além. Cresceu, e continuou
crescendo, através de batalhas e de carnificina. Ela domina meu luto, e domina minha vida.
Não existia forma alguma de eu me impedir de jogar minha vida para a revolução.

¹Departamento situado ao nordeste da França

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