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TEORIAS

LITERÁRIAS

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TEORIAS LITERÁRIAS

Caro (a) aluno (a),


A partir de agora, você vai cursar a disciplina Teorias Literárias. Para compreender o texto literário,
consideraremos algumas abordagens teóricas. Você deve ser receptivo à teoria. É através da teoria que o
homem procura explicar algum fenômeno. Portanto, é através da teoria da literatura que o homem procura
explicar os textos literários. Mas, antes de vermos algumas abordagens teóricas que procuram explicar a
literatura, vamos pensar. Você sabe dizer o que é Literatura?
Literatura é uma palavra de muitos significados. A palavra Literatura pode ser usada para designar
um conjunto de obras literárias de um país (ex.: a literatura alemã...) ou de uma época (ex.: na literatura
modernista, o fluxo da consciência...), a bibliografia referente a um assunto (após consultar a literatura que
versava sobre botânica...).
Na acepção que nos interessa mais, devemos entender literatura como o resultado do ofício de
quem trabalha a palavra de forma artística. O texto literário é uma manifestação artística. Essa
manifestação artística é fruto da inventividade, criatividade, observação, fantasia.
É em decorrência dessa manifestação artística, desse conhecimento, que o homem passou a
teorizar sobre a literatura.
Desde a antiguidade o homem teoriza sobre o texto literário. Há uma teoria que procura classificar
os textos literários em gêneros.
A palavra gênero significa origem, classe, espécie, geração. As obras Literárias são classificadas em
gêneros, os gêneros literários. Os gêneros literários são três: gênero épico, gênero dramático, gênero lírico.
Cada gênero literário tem suas características.

PESQUISE:
Para ampliar seus conhecimentos sobre os
significados da palavra literatura, consulte AGUIAR
E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. São
Paulo: Martins fontes, 1976. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/proin/versao_1/aguiar/index.
html. Consulte também o verbete Literatura em um
dicionário e/ou um site de busca/pesquisa.

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UNIDADE 1

GÊNERO ÉPICO

O gênero épico – também chamado de gênero narrativo – caracteriza-se por um conjunto de


categorias. Essas categorias são:

- O narrador – É quem conta a história;


- Personagens – São aqueles/pessoas que vivenciam a ação;
- Tempo – É a duração da história;
- Espaço – É o lugar onde os personagens desenvolvem a ação;
- Enredo – é o conjunto dos fatos que compõem a história.

O que diferencia o gênero épico/narrativo dos demais gêneros é o narrador.

(Woman Reading 1875 Pierre Auguste Renoir)

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Na pintura vê-se uma mulher lendo um livro. O livro apresenta uma história. Esta história é contada
por alguém. O narrador é quem conta uma história.

Atenção: O narrador é responsável pelos valores transmitidos ao longo do enredo. Mas, o narrador
não é o escritor. O narrador não pode ser confundido com quem escreve um texto literário

Vamos ler um fragmento do conto Cabelos compridos do escritor Monteiro Lobato:

- Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Das Dores é isso, só isso - boazinha. Não possui outra qualidade. É feia, é
desengraçada, é inelegante, é magérrima, não tem seios nem cadeiras
nem nenhuma rotundidade posterior; é pobre de bens e de espírito; é
filha daquele Joaquim da Venda, ilhéu de burrice ebúrnea - isto é dura
como o marfim. Moça que não tem por onde se lhe pegue fica sendo
apenas isto - boazinha.

- Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Só tem uma coisa a mais que as outras - cabelo. A fita da sua trança
toca-lhe a barra da saia. Em compensação, suas idéias medem-se por
frações de milímetro, tão curtinhas são. Cabelos compridos, idéias curtas
- já o dizia Schopenhauer.

O conto fala de uma moça. Essa moça se chama Das Dores. Ela é a personagem do conto. Quem
fala sobre Das Dores é o narrador. O narrador não participa da história. Mas, dá opiniões sobre Das Dores.
Na teoria Literária classifica-se o narrador que não participa da história de heterodiegético.
Reflita: O narrador diz que Das Dores é uma pessoa sem muita inteligência. Será que ele precisaria
citar Schopenhauer para dizer isso? Schopenhauer é um filósofo. Você sabe o que faz um filósofo? Você
conhece Schopenhauer?
Agora vamos ler um fragmento do romance O triste fim de Policarpo Quaresma do escritor Lima
Barreto:
Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele
estreito calabouço? Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão
profundos pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim? (...)

Não estava ali há muitas horas. Fora preso pela manhã, logo ao erguer-
se da cama; e, pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava sem
relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-lo à fraca luz da
masmorra, imaginava podiam ser onze horas

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O romance tem muitos personagens. O personagem central é Policarpo Quaresma. A história gira
em torno dele. Ele é o protagonista. O narrador fala sobre o protagonista, o que acontece com ele, sobre
seus pensamentos e etc. O narrador não participa dessa história. O narrador é heterodiegético.
Leiamos outro fragmento. Desta vez do romance São Bernardo do escritor Graciliano Ramos.

Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.

Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade


em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais (...)

Estive uma semana bastante animado, em conferência com os principais


colaboradores, e já via os volumes expostos, um milheiro vendido (...)

Abandonei a empresa, mas um dia deste (...) iniciei a composição de


repente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto
me traz qualquer vantagem, direta ou indireta (...)

Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo bebendo


café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das
laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um
objeto pesado. Não estou acostumado a pensar.

Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove


quilos e completei cinqüenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as
sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-
me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidades,
a consideração era menor.

O romance São Bernardo fala da vida de Paulo Honório. Paulo Honório é um personagem. Ele é o
protagonista. Ele é quem narra sobre sua vida. Paulo Honório também é o narrador. O narrador, que é
Paulo Honório, participa da história. Na teoria literária, classifica-se o narrador que participa da história e é
protagonista de narrador autodiegético. Se o narrador é uma personagem, mas não é o protagonista a
teoria literária o classifica como narrador homodiegético.

Resumo da lição:

O gênero épico também é chamado de gênero narrativo.


O gênero épico caracteriza-se por um conjunto de categorias.
A categoria que distingue o gênero épico dos demais gêneros é a categoria do narrador.
O narrador é quem conta uma história.
O narrador pode ser classificado como heterodiegético ou homodiegético ou autodiegético.

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REFLITA
Você já sabe o que é o protagonista. O protagonista é o
personagem principal. Você também já sabe o que é o
narrador. O narrador é quem conta a história. Agora releia
com calma e atenção o fragmento do conto Cabelos
Compridos do escritor Monteiro Lobato. Das Dores é uma
protagonista? Por quê? É Das Dores quem narra a história?
Discuta com os seus colegas.

Agora é
sua vez O Projeto Nupill disponibiliza na internet a íntegra do romance O triste
fim de Policarpo Quaresma. Caro aluno surdo e ouvinte, acesse o link a
seguir e procure ler esta, que é uma obra representativa da literatura
brasileira: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/quaresma.html. Há
também uma adaptação fílmica deste romance. Você pode assisti-lo no
you tube e, assim, complementar o seu entendimento acerca do
enredo.

PESQUISAR:
O texto de Lima Barreto aborda um período importante da
história do Brasil. O romance O triste fim de Policarpo
Quaresma é uma crítica a esse período histórico brasileiro.
Pr
Procure na internet informações a esse respeito e amplie o seu
conhecimento.

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UNIDADE 2

GÊNERO DRAMÁTICO
O gênero dramático é feito para ser representado no teatro. Os personagens agem. Os
personagens são responsáveis pelo desenvolvimento da ação. Por isso, o texto dramático não precisa de
um narrador para contar a história. A base do texto dramático é o diálogo. No texto dramático os
personagens dialogam entre si e desenvolvem a ação.
Vamos ler um trecho da peça O pagador de promessas de Dias Gomes.

(Olhando a igreja). É essa. Só pode ser essa.

Rosa para também, junto dos degraus, cansada, enfastiada e deixando já entrever uma
revolta que se avoluma.

Rosa

E agora? Está fechada.

É cedo ainda. Vamos esperar que abra.

Rosa

Esperar? Aqui?

Não tem outro jeito.

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Rosa

(Olha com uma raiva e vai sentar-se num dos degraus. Tira o sapato). Estou com cada bolha
d’agua no pé que dá medo.

Eu também (Num ricto de dor, despe uma das mangas do paletó.). Acho que meus ombros
estão em carne viva.

Bem feito. Você não quis botar almofadinhas, como eu disse.

(Convicto) Não era direito. Quando eu fiz a promessa. Não falei em almofadinhas.

Rosa

Então: se você não falou, podia ter botado; a santa não ia dizer nada.

Não era direito. Eu prometi trazer a cruz nas costas, como Jesus. E Jesus não usou
almofadinhas.

Este fragmento que você acabou de ler é um diálogo entre Zé-do-Burro e sua esposa, Rosa. Eles
são personagens. O diálogo entre Zé-do-Burro e Rosa não precisa ser apresentado por um narrador. O que
diferencia o gênero dramático dos demais gêneros é a ação associada à predominância quase que absoluta
de diálogos.
Outra característica do gênero dramático é o conflito. O conflito é a oposição entre forças. Essas
forças/vontades acreditam na legitimidade de suas ações. O gênero dramático se desenvolve a partir do
choque entre duas vontades, gerando o conflito dramático.
No caso da peça O Pagador de Promessas, a vontade de Zé-do-Burro é de cumprir sua promessa. A
promessa é a de colocar uma cruz no altar da igreja de Santa Bárbara. A promessa foi feita em um terreiro
de Candomblé. Para o padre da igreja de Santa Bárbara, a promessa de Zé-do-Burro não é legitima porque
não foi feita de acordo com o ritual católico. O padre representa o ponto de vista da igreja católica.
Percebe-se um conflito: Zé-do-Burro quer colocar a cruz dentro da igreja e o padre não quer deixar.

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(Em desespero.) Mas, padre, eu prometi levar a cruz até o altar-mor! Preciso cumprir a minha
promessa!

Padre

Fizesse-a então numa igreja. Ou em qualquer parte, menos num antro de feitiçaria.

Eu já expliquei...

Padre

Não se pode servir a dois senhores, a Deus e ao Diabo!

Padre...

Padre

Um ritual pagão, que começou num terreiro de candomblé, não pode terminar na nave de
uma igreja!

Mas, padre, a igreja...

Padre

A igreja é a casa de Deus. Candomblé é o culto do Diabo!

Padre, eu não andei sessenta léguas para voltar daqui. O senhor não pode impedir a minha
entrada. A igreja não é sua, é de Deus!

Padre

Vai desrespeitar a minha autoridade?

Padre, entre o senhor e Santa Bárbara, eu fico com Santa Bárbara.

Padre

(Para o Sacristão.) Fecha a porta. Quem quiser assistir à missa que entre pela porta da
sacristia. Lá não dá para passar essa cruz. (Entra na igreja.)

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Resumo da lição:

O gênero dramático é feito para ser encenado no teatro.


O gênero dramático fundamenta-se na ação direta dos personagens, não precisando de um
narrador para contar a história.
Os diálogos entre os personagens também são um fundamento do gênero dramático.
A predominância quase que absoluta de diálogos é um traço distintivo do gênero dramático em
relação aos demais gêneros.
Outra característica do gênero dramático é o conflito.
Por conflito deve-se entender a oposição entre forças/vontades que acreditam na legitimidade
de suas ações.

Agora é
com
você
Muitas obras literárias dos gêneros épico e dramático viraram
filme. Pesquise na internet e descubra informações sobre quais
textos literários foram adaptados para o cinema. Afinal, os
filmes que são adaptados podem ajudar o aluno surdo e ouvinte
a conhecer um pouco mais uma determinada obra literária.

O Pagador de Promessas foi adaptado para o cinema. O filme recebeu


muitos prêmios. O prêmio mais importante foi a Palma de Ouro,
entregue no Festival de Cinema de Cannes. A personagem Rosa foi
interpretada pela atriz Glória Menezes. Glória Menezes é uma atriz de
televisão famosa.

ATENÇÃO
Os filmes que se baseiam em uma obra literária nunca são
iguais às obras literárias. As obras literárias sempre passam
por alguma adaptação. Filmes não são iguais a obras
literárias, porque cinema não é literatura. Literatura é um
tipo de arte e cinema é outro tipo de arte.

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UNIDADE 3

GÊNERO LÍRICO

O gênero lírico também é chamado de poesia. O gênero lírico se diferencia dos demais gêneros por
uma voz poética que é chamada de eu - lírico. A voz poética do eu - lírico não é a voz do autor/escritor. O
eu - lírico, portanto, não deve ser confundido com o escritor de um poema.
A voz poética do eu - lírico é fictícia/criada. O eu - lírico fala de sentimentos, emoções. Portanto, eu
- lírico é uma voz poética que fala de sentimentos e emoções como amor, ódio, alegria, tristeza, angústia,
prazer, dor e etc., ou seja, tende a manifestar o interior do ser humano.
Vamos ler o poema O que fizeram do Natal do poeta Carlos Drummond de Andrade.
Natal.
O sino longe toca fino,
Não tem neves, não tem gelos.
Natal.
Já nasceu o deus menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
( Natal)
mais o boi mais o burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando.
Natal.

As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.

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O poema fala do Natal. O Natal é uma festa cristã. O dia de Natal é feriado. As pessoas devem
celebrar o nascimento de Jesus. O eu-lírico observa que essa tradição não é seguida pelas novas gerações.
As pessoas mais jovens vão dançar em clubes. Elas esqueceram do nascimento de Jesus. Elas esqueceram o
verdadeiro motivo do Natal.
Você já comemorou o Natal? Você conhece pessoas que se lembram do nascimento de Jesus? Você
conhece pessoas que aproveitam o Natal só para beber e dançar?
A voz poética do eu-lírico não é a voz do escritor, como já falamos. É a representação da
interioridade, de um sentimento. O poema emite a visão individual de mundo do eu-lírico. Ao mesmo
tempo, essa voz é produzida socialmente. Isto significa que os valores são objetivos.
Nesse sentido pense: As pessoas hoje em dia não comemoram mais o Natal como antigamente,
esse fato é determinado historicamente, por motivos diversos. A voz do eu-lírico expressa seus sentimentos
diante deste fato, ao mesmo tempo em que é uma voz que expressa certos valores que são determinados
por questões históricas e sociais.
Agora leia o poema Versos de Natal do poeta Manuel Bandeira.

Espelho, amigo verdadeiro,


Tu refletes as minhas rugas,
os meus cabelos brancos,
os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
obrigado,obrigado!

Mas,se fosses mágico,


penetrarias até ao fundo desse homem triste,
descobririas o menino que sustenta esse homem.
O menino que não quer morrer,
que não morrerá senão comigo.
O menino que todos os anos
na véspera de Natal
pensa ainda em pôr
os seus chinelinhos atrás da porta

Esse poema também é sobre o Natal. O eu - lírico manifesta um sentimento. O sentimento é


esperança. A esperança se renova no Natal. A renovação dos sentimentos bons (esperança, amor,
felicidade e etc.) é simbolizada no Natal pelo nascimento de Jesus.

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Resumo da lição:

O gênero Lírico, modernamente, por convenção, é também chamado de poesia.


O gênero lírico caracteriza-se por uma voz poética.
A voz poética é chamada de eu-lírico.
O eu - lírico fala de sentimentos, emoções.
A manifestação da interioridade do ser humano é um traço distintivo do gênero lírico em
relação aos demais gêneros.
A expressão individual de sentimentos é determinada histórica e socialmente.

Você acabou de estudar os gêneros literários. A forma como os textos são apresentados sinaliza a
que gênero literário pertence cada texto. Essas são as formas mais comuns que representam os
textos literários e seus respectivos gêneros. Nem sempre as formas são suficientes para distinguir
um gênero literário de outro. Por isso é muito importante identificar as principais categorias
distintivas entre cada gênero.

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UNIDADE 4

MISTURA DE GÊNEROS

Os textos literários são divididos em três gêneros: gênero épico, gênero dramático e gênero lírico.
Essa divisão é uma convenção. Um gênero pode possuir características de outro gênero. Para compreender
à qual gênero literário pertence um determinado texto é preciso identificar a principal característica
distintiva do mesmo.
Leia o conto Nossa amiga do escritor Carlos Drummond de Andrade.

Não é bastante alta para chegar ao botão da campainha.


O peixeiro presta-lhe esse serviço, tocando. Alguém abre.
- Foi a garota que pediu para chamar...
Quando não é algum transeunte austero, senador ou ministro do Supremo, que atende à sua
requisição.
Com pouco, a solução já não lhe satisfaz. Descobre na porta, a seu alcance, a abertura forrada
de metal e coberta por uma tampa móvel, de matéria idêntica: por ali entram as cartas. Os
dedos sacodem a tampa, desencadeando o necessário e aflitivo rumor. Antes de abrir,
perguntam de dentro:
- Quem está aí? É de paz ou de guerra?
De fora respondem:
- É Luci Machado da Silva. Abre que eu quero entrar.
Ante a intimação peremptória, franqueia-se o recinto. Entra uma coisinha morena,
despenteada, às vezes descalça, às vezes comendo pão com cocada, mas sempre séria, ar
extremamente maduro das meninas de três anos.
À força de entrar, sair, tornar a entrar minutos depois, tornar a sair, lanchar, dormir na
primeira poltrona, praticar pequenos atos domésticos, dissolveu a noção de residência, se é
que não a retificou para os dicionários do futuro.
- Qual é a sua casa?
- Esta.

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- E a outra de onde você veio?
- Também.
- Quantas casas você tem?
- Esta e aquela.
- De qual você gosta mais?
- Que é que você vai me dar?
- Nada.
- Gosto da outra.
- Tem aqui esta pessegada, esta bananinha...
- Gosto desta casa! Gosto de você!
Não é gulodice nem interesse mesquinho... Será antes prazer de sentir-se cortejada, mimada.
Esquece a merenda para ficar na sala, de mão na boca, olhando os pés estendidos, enquanto
alguém lhe acarinha os cabelos.
Nem tudo são flores, no espaço entre as duas residências. Há Catarina e Pepino.
Catarina foi inventada à pressa, para frustrar certa depredação iminente. Os bichos de cristal
na mesinha da sala de estar tentavam a mão viageira. Pressentia-se o momento em que as
formas alongadas e frágeis se desfariam. Na parede, esquecida, preta, pousara uma bruxa.
- Não mexa nos bichinhos.
Mexia.
- Não mexa, já disse...
Em vão.
- Você está vendo aquela bruxa ali? É Catarina.
- Que Catarina?
- Uma menina de sua idade, igualzinha a você, talvez até mais bonita. Muito mexedeira, mas
tanto, tanto! Um dia foi brincar com o cachorrinho de vidro, a mãe não queria que ela
brincasse. Catarina teimou, mexeu e quebrou o cachorrinho. Então, de castigo, Catarina virou
aquela bruxinha preta, horrorosa. Para o resto da vida.
A mão imobiliza-se. A bruxa está presa tanto na parede como nos olhos fixos, grandes,
pensativos. Entre os mitos do mundo (entre os seres reais?) existe mais um, alado,
crepuscular, rebelde e decaído.
Pepino tem existência mais positiva. Circula na rua - a rua é o espaço entre as duas quadras,
repleto de surpresas - geralmente à tarde. Vem bêbado, curvado, expondo em frases
incoerentes seus problemas íntimos. Pegador de crianças.
- Vou embora para minha casa. Você vai me levar.
- Mas você mora tão pertinho...
- E Pepino?
- Pepino não pega ninguém. Ele é camarada.
- Pega, sim. Eu sei.
- Pois eu vou dar uma festa para as crianças desta rua e convido Pepino. Você vai ver se ele
pega.
- Eu não vou na festa.
- Você é quem perde. Vem Elzinha, Nesinha, Heloísa, Alice, Maria Helena, Lourdes, Bárbara,
Édison, Careca, João e Adão. Pepino vai dançar para as crianças. Você, como é uma boba, não
toma parte.
- Até logo!
Sai voando, a porta fecha-se com estrondo. Da varanda, ainda se vê o pequeno vulto
desgrenhado.
- Espere aí, você não tem medo do Pepino?
- Não. Estou zangada com você.
Com a zanga, desaparece o temor. Seria realmente temor? Gosta de ser acompanhada, para
dizer à mãe, quando chega em casa:
- Espia quem me trouxe.
Volta meia hora depois, penteada, calçada, vestido limpo.

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- Espia minha roupa nova. Meu sapato branco.
- Mas que beleza! Onde você vai?
- Vou na festa.
Para tomar banho e trocar de vestido, é necessário que se anuncie sempre uma festa, jamais
localizada ou realizada, mas que opera interiormente sua fascinação. Não há pressa em ir
para ela. A merenda, a conversa grave com pessoas grandes, estranhamente preferidas a
quaisquer outras, o brinquedo personalíssimo com o primeiro encontro do dia - um carretel, a
galinha que salta do carrinho de feira - fazem esquecer a festa, se não a constituem. E resta
saber se o enganado não será o adulto, que sugere terrores ou recompensas fantasiosas. Nas
campinas da imaginação, esse galope de formas - será a verdade?
Senta-se no corredor, e com uns panos velhos, lápis vermelho, pedrinha, qualquer elemento
poetizável, representa para si só a imemorial história das mães.
- Comadre, seu filhinho como vai?
- Tá bom, comadre, e o seu?
- Tá com dedo machucado e dodói na barriga. Vai tomar injeção.
- Então vou dar no meu também.
Perguntas e respostas, recolhidas em conversas de adulto, saem da mesma boca
inexperiente. O objeto que serve de filho é embalado com seriedade. A doença existe,
existem os sustos maternais. Mas tudo se desfaz, se acaso um intruso vem surpreender a
criação, tirada em partes iguais da vida e do sonho, e que os prolonga. Assim pudesse a mãe
antiga tornar invisível seu filho, ante os soldados de Herodes.

O conto Nossa amiga pertence ao gênero épico. O conto tem um narrador que conta a história. O
conto tem uma personagem que é Luci Machado da Silva. Mas, ele possui características do gênero
dramático. Perceba os diálogos entre os personagens.
O narrador relata os acontecimentos. Mas, o narrador também expressa um sentimento. É um
sentimento comum às mães. O amor pelo filho, refletido no desejo de protegê-lo de tudo. Perceba que
para falar do sentimento comum às mães o narrador faz referência a um fato bíblico mencionado no
evangelho de Mateus (Mt 2, 16): o massacre dos meninos de Belém, ordenado por Herodes.
Agora leia o Soneto de luz e treva do poeta Vinicius de Moraes

Ela tem uma graça de pantera


No andar bem comportado de menina.
No molejo em que vem sempre se espera
Que de repente ela lhe salte em cima

Mas súbito renega a bela e a fera


Prende o cabelo, vai para a cozinha
E de um ovo estrelado na panela
Ela com clara e gema faz o dia.

Ela é de capricórnio, eu sou de libra


Eu sou o Oxalá velho, ela é Inhansã
A mim me enerva o ardor com que ela vibra

E que a motiva desde de manhã.


- Como é que pode, digo-me com espanto
A luz e a treva se quererem tanto...

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O poema apresenta um conflito. O conflito é percebido nas oposições luz X treva; Oxalá velho X
Inhansã; signo de capricórnio X signo de libra. O eu-lírico opõe-se a “Ela”. Esta oposição é um traço do
gênero dramático presente no poema.
O eu-lírico fala dEla. Ela é uma personagem. Personagens são característicos do gênero épico.
Portanto, a presença dEla, personagem, é um traço do gênero épico presente no poema.

Resumo da lição

A teoria literária divide os textos literários em gêneros.


Os gêneros literários são três: gênero lírico, gênero épico, gênero dramático.
A divisão é uma convenção.
Os textos literários podem possuir traços estilísticos de mais de um gênero literário.
O que vai caracterizar um texto literário em um determinado gênero é a predominância de uma
determinada característica.

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UNIDADE 5

FORMA
A forma do texto literário é muito importante. Na poesia não é diferente. A forma do poema está
ligada ao conteúdo do poema. A forma apresenta /comunica ideias, amplia o sentido do que se quer dizer.
A forma enriquece o significado do conteúdo.
O poema se compõe de estrofes e versos. A estrofe é a reunião de versos.

Veja e leia o poema Retrato da poetisa Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje, ] verso


assim calmo, assim triste, assim magro, ] verso
nem estes olhos tão vazios, ] verso Estrofe
nem o lábio amargo. ] verso

Eu não tinha estas mãos sem força, ] verso


tão paradas e frias e mortas; ] verso
eu não tinha este coração ] verso
que nem se mostra. ] verso
Estrofe
Eu não dei por esta mudança, ] verso
tão simples, tão certa, tão fácil: ] verso
- Em que espelho ficou perdida ] verso
a minha face? ] verso
Estrofe

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O poema Retrato de Cecília Meireles apresenta a forma tradicional. É composto de versos e
estrofes. Tem uma linearidade que obedece a sintaxe.

Poesia concreta
A poesia concreta tem sua origem no Brasil. Três poetas iniciaram o movimento concretista. Eles se
chamam Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos.
A poesia concreta propõe o poema-objeto, o que significa que o poema se realiza na sua
construção, no seu modo de fazer. Em outras palavras a forma é que informa.
A poesia concreta utiliza-se de múltiplos recursos: acústico, visual, carga semântica da palavra, o
espaço tipográfico, a disposição geométrica dos vocábulos na página.
A poesia concreta quebra com a tradição da forma poética, ao negar o verso tradicional. A poesia
concreta caracteriza-se pela possibilidade de leituras múltiplas.
Ou seja, a poesia concreta caracteriza-se por inovação formal e maior proximidade com outras
manifestações artísticas.
A poesia concreta busca a essência da palavra, a palavra por si, na sua materialidade.
A poesia concreta aproxima-se do imediatismo da comunicação visual.
Veja o poema

Neste poema a palavra lixo se forma a partir da palavra luxo.


O que significa cada uma dessas palavras?
Lixo é algo sem valor ou utilidade ou detrito.
Luxo corresponde a um estilo de vida baseado na ostentação, despesas excessivas, aquisição de
coisas caras e supérfluas. Coisas que não são de modo algum necessárias.

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As letras (tipografia) que compõem cada uma das palavras procuram comunicar o campo
semântico dessas palavras. Por isso a letra da palavra luxo é enfeitada (tem curvas) enquanto a letra da
palavra lixo não é enfeitada (sem curvas).
Essas palavras têm significados opostos. Mas, na medida em que o poeta forma a palavra LIXO a
partir da palavra LUXO, esses significados se unem e se complementam. Então, não há lixo sem luxo e
também não há luxo sem lixo. Lixo é um luxo e luxo é um lixo. Se você tira qualquer uma das palavras, a
outra deixa de existir.
Neste poema a forma informa, sendo uma crítica ao consumo excessivo da sociedade. Um
consumo desnecessário e que gera lixo.
O tamanho das palavras também apresenta uma ideia. Pequenos luxos geram um grande lixo.

REFLITA:
A literatura pode levar a pessoa a refletir. A Literatura pode
estimular uma percepção diferenciada da realidade. Diante
das afirmações, você já parou para pensar na relação entre o
luxo e o lixo? Você saberia da um exemplo de um luxo que
gera lixo? Você contribui no seu dia a dia para uma situação
como a que o poema evidencia? Reflita! Discuta com os seus
colegas!

Agora veja o seguinte poema de José Lino Grünewald:

f o r m a
r e f o r m a
d i s f o r m a
t r a n s f o r m a
c o n f o r m a
i n f o r m a
f o r m a

É um poema concreto. Portanto sua forma visual é muito importante. A forma informa.
Se você olhar em um dicionário, vai ler os seguintes significados para as palavras:
Forma: configuração, molde.
Reforma: formar de novo, melhorar, aprimorar, reconstruir.
Disforma: dis = separação, negação (da forma); remete a deforma: alterar uma forma.
Transforma: dar nova forma, modificar.
Conforma: conciliar, harmonizar.
Informa: Comunicar, participar.
As palavras como estão no poema, portanto, apresentam a seguinte ideia:

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Uma forma inicial é modificada. Ela é muito modificada. Então, não se reconhece a forma original.
Acontece uma transformação. A transformação/modificação resulta em uma nova forma. Então, a nova
forma passa a ser conhecida.
A nova forma pode significar um novo início. Por isso o poema tem uma forma que se assemelha a
um círculo. O movimento de transformação da forma, que gera uma nova forma, pode se repetir. Ideia
reforçada pela possibilidade de se ler o poema de baixo para cima.

Retrato auto-retrato

Vamos associar esta mensagem que o poema apresenta/mostra a partir de sua forma com obras de
arte. Vamos considerar o retrato.
O retrato ou auto-retrato (self-portrait) tradicionalmente é a pintura que representa as pessoas.
Você vê a pintura e reconhece a pessoa retratada. O retrato ou auto-retrato é considerado uma arte
figurativa.
Veja a seguir uma foto do escritor Mário de Andrade:

(Arquivo Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo)

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A imagem a seguir é uma pintura – retrato – de Mário de Andrade feita pelo pintor Cândido
Portinari.

(Retrato de Mário de Andrade, 1935 Candido Portinari)

Entre a fotografia e a pintura percebe-se uma semelhança em relação às imagens de Mário de


Andrade, em suas formas reconhecíveis para aqueles que as olham.
Agora veja as fotos do pintor Salvador Dalí:

( Foto de Marc Lacroix/EFE)

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A pintura a seguir é uma pintura de Salvador Dalí feita por ele mesmo. Veja:

(auto-retrato mole com um bacon assado. Salvador Dalí. 1941)

A pintura é um retrato. Um auto-retrato de Salvador Dalí. A única indicação de que a pintura é um


retrato de Salvador Dalí é o bigode. Uma marca conhecidíssima do pintor. Mas, imagine: se não houvesse o
bigode, poderíamos dizer que a pintura é um retrato de Salvador Dalí? Se você não conhecesse o pintor,
você diria que essa pintura é um retrato? Não há nenhuma semelhança entre a pintura e a pessoa do pintor
que é retratada.
Agora volte as páginas e veja novamente a foto do escritor Mario de Andrade. Na foto, Mario de Andrade
usa óculos. Os óculos redondos são uma marca de Mário de Andrade. Olhe a pintura – retrato – de Mario de
Andrade feita pelo pintor Cândido Portinari. Na pintura da pessoa de Mário de Andrade, este não usa óculos. Mas,
você consegue identificar/associar imediatamente a pessoa da pintura à pessoa da foto.
Você viu as fotos e as pinturas. Houve uma mudança/transformação na ideia de retrato e/ou auto-
retrato. Essa mudança tem a ver com a ideia que o poema “Forma” apresenta/mostra. A forma sofre
mudanças. Pode ser a forma da pintura ou a forma da Literatura ou a forma de qualquer outra obra
artística (escultura, música, dança, teatro, cinema).

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Resumo da lição:

A forma de um poema apresenta/comunica idéias.


A forma de um poema tradicional é composta de versos e estrofes.
A poesia concreta aproxima-se do imediatismo da comunicação visual.
A poesia concreta realiza-se na sua construção.
A forma informa.
A forma pode mudar, significando um novo início, uma nova forma de informar.
No campo das artes plásticas, a concepção de auto-retrato apresentada pelo pintor Salvador
Dalí é um exemplo de que a forma, que informa, se transforma...

Bem, terminamos por aqui nossos estudos, mas lembrando que na teoria literária, onde se
pretende um estudo sistematizado das obras literárias, há inúmeras abordagens que pressupõem conceitos
e formulações básicas, estabelecendo-se assim, um conhecimento acerca do literário.

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