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DISCURSO PELOS 200 ANOS DE TURGUÊNIEV

Notas de um caçador: uma laçada entre Púchkin e Lênin

Carlos Novaes, 30 de outubro de 2018

Apresentado em 07 de novembro de 2018, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, na mesa de abertura de
evento comemorativo pelos 200 anos do nascimento de Ivan Turguêniev.

Turguêniev deixou uma obra literária que é, a um só tempo, bela, instrutiva e desafiadora: bela por si só,
instrutiva pelo que diz do mundo e desafiadora pelo que esconde. Quando constatamos que a força de
Turguêniev está mais em seus personagens do que em suas tramas, ou quando recordamos que o próprio
Turguêniev confessou a dependência que tinha de tipos humanos reais para criar seus personagens, nem
sempre afastamos o risco de, ao fazer esses juízos acertados, deixar escapar algo que além de ser verdadeiro,
é fundamental: Turguêniev se ocupava da vida presente com a perspectiva de compreender de onde poderiam
provir mudança ou estagnação. Ele observava o mundo com alma de artista, por certo, mas essa observação
sensível se fazia amparada num ajuizar que também é próprio do teórico social engajado.

Ao se orientar pela mudança real, Turguêniev não tinha como dar trato artístico a ela pela ação de heróis
desenhados na prancheta do autor segundo um destino por assim dizer literariamente já traçado, arbitrado
por um criador onisciente. Os heróis de Turguêniev não nascem heróis – a realidade da trama, na qual sempre
está inserido um desafio estético, é que fará deles heróis (sempre incompletos e, até, duvidosos), ou ainda
anti-heróis, ou fracassados. E a trama em que eles agem aparece como que descosturada não por falta de
talento para a composição, mas porque ela expressa a dinâmica da própria realidade que o autor aspira ver
mudar pela ação do homem comum, a quem ele se dirige quando faz literatura não para doutrina-lo, nem para
meramente entretê-lo, nem para dar vazão a um impulso artístico que valha por si só – nada disso –,
Turguêniev é autor de uma literatura que eu chamo de arte realista nacional: tendo por realismo sua imersão
em um fazer literário calibrado pela observação criteriosa, que valha enquanto tal ao ser narrada
artisticamente, e tendo por nacional seu inarredável compromisso com a busca por melhores dias para o povo
da sua querida Rússia.

Em algum momento da elaboração de Terra Virgem, um livro já do fim da vida, o editor faz um apelo para que
Turguêniev entregue os originais para publicação e nosso autor responde que não poderia fazê-lo porque
estava a esperar o desenvolvimento dos fatos reais que o motivavam!

Outro exemplo conhecido aparece em carta que escreveu dizendo das impressões perturbadoras que lhe
haviam causado o médico que o inspirou para construir o tipo Bazárov, do romance Pais e Filhos:

“em nenhuma obra literária eu havia encontrado sequer um sinal daquilo que agora eu pressentia em toda parte”.

Não poderia haver evidência mais clara da imbricação entre (i) observação da realidade em busca de sinais de
mudança, (ii) a sensação de ser capaz de fazê-lo (ele pressentia em toda parte o que julgava que nenhum
outro escritor via), (iii) a motivação para fazer uma literatura inovadora saída desse pendor transformador e
(iv) a decorrência de fazer a construção do personagem depender de alguém tão realisticamente observado
que pudesse servir de base para a apreensão artística de um tipo próprio ao contexto russo a ser
transformado.

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Quanta diferença para Flaubert, por exemplo: embora Turguêniev e o autor francês fossem, além de amigos,
companheiros artísticos, ambos animadores de um grupo intelectual que entendia partilhar uma concepção
geral acerca da arte, não há em Flaubert uma preocupação assim com o destino dos franceses ou da França.
Nenhuma heroína de Turguêniev possui qualquer traço da formidável Madame Bovary, e essa mais famosa
personagem de Flaubert não caberia em nenhuma das obras de Turguêniev nem como vizinha estrangeira,
não apenas porque ela é um tipo da ordem burguesa, mas, sobretudo, porque essa madame está acima de
qualquer nacionalidade, ao contrário das heroínas de Turguêniev, russas a cada fio de cabelo.

Turguêniev desde a juventude se ocupou conscientemente do que Herzen viria a agarrar quando indagou:

“onde estão as provas de que o povo russo pode se reanimar e quais são as provas em contrário? Essa
questão ocupou todos os intelectuais, mas nenhum deles encontrou a resposta. [...] Seria preciso se
adaptar, como fez Gógol, ou correr ao encontro da própria morte, como Liérmontov?”.

A obra de Turguêniev pode ser vista, desde sempre, como uma contribuição ao trabalho por encontrar a
resposta nesse intervalo entre a recusa de se adaptar ou se entregar à morte, num esforço que incluía
compreender e superar as contribuições que recebera dos esforços anteriores. O que me fisgou na obra de
Turguêniev deve ter sido justamente esse seu jeitão singular de, no fundo, fazer teoria social na forma
literária, nos sentidos fraco e forte do termo forma: tanto ele põe sob forma literária a realidade social em
seus impasses e possibilidades, quanto busca problematizar/expressar na forma literária, como que
comprometido com um programa de transformação estética não escrito, os impasses e possibilidades que a
realidade social impõe ao próprio fazer literário. Para Turguêniev, a realidade é, ao mesmo tempo, assunto
literário e matéria literária: no trato do assunto ele dava vazão ao seu pendor para teórico social; no embate
com a matéria ele realizava sua vocação artística.

Sou um cientista político que gosta de Turguêniev, e isso diz quase tudo. Não tenho formação em teoria ou
análise literária, fiz vida profissional longe de qualquer lida propriamente literária, passei a me ocupar de
Turguêniev muito recentemente, em 2013, e sequer sei a língua russa; portanto, foi com essas limitações que
fiz meu voo de pássaro sobre a fortuna crítica e, assim, não tenho como garantir como novidade sequer o
cerne do que irei dizer, embora nada tenha encontrado de parecido. Seja como for, nessa matéria não se deve
aspirar mais do que abrir a vereda pela qual exploradores melhor equipados possam avançar.

Se o que vou dizer mais adiante é uma decorrência dessa visada de amador; o que disse até aqui foi uma
tentativa de situar minha presença nessa honrosa mesa, com os professores Rubens Figueiredo, Samuel Titan
Jr. e João Armando Nicotti, aos quais cumprimento com o meu bom dia. Estar aqui só se justifica, se for o caso,
pela abertura que a obra desse grande homem oferece ao juízo, e pela generosidade do espírito aberto da
professora Maria de Fátima Bianchi, que me distinguiu com este convite, a quem agradeço, bem como aos
demais organizadores deste evento.

Na juventude, li de Turguêniev, Pais e Filhos, e foi só. No tardio reencontro com ele no final de 2013, me
deparei com Relíquia viva, na edição da Nova Antologia do Conto russo, da editora 34. Esse conto me intrigou
de tal jeito, me arrastou a conjeturas tais que, não fosse a escassez de tempo, valeria a pena narrar todo o
processo de pesquisa a que ele me levou, trajeto que desembocou na descoberta de Notas de um caçador,
obra de que acabei me ocupando em Turguêniev apura o ouvido, texto que circula na internet desde meados
de 2015. De lá para cá, em meio a tarefas de outra ordem, não consegui largar Turguêniev nem Notas de um
caçador, uma vez que acabei por entender que essa reunião de contos é um fio de amarração para a
compreensão de toda a obra do artista, pois quando se olha o conjunto constata-se que Notas oferece
material para agarrarmos o sentido do fazer literário em Turguêniev.

Ataquemos a matéria.

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A singularidade de Notas de um caçador decorre particularmente do fato de que seu material narrativo levou
quase trinta anos para ficar pronto, de 1847 a 1874. Fiel ao seu fazer literário, depois da primeira publicação
em livro Turguêniev esperou a realidade agir por longos, sofridos e turbulentos 22 anos para, então, já entrado
na velhice, dar arremate final à obra iniciada na juventude. A versão final de Notas de um caçador aparece em
1874, exatamente no meio do século que se abre com o nascimento da obra máxima de Púchkin e se fecha
com a morte de Lênin, pois como vocês sabem, Púchkin terminou o primeiro capítulo do Eugênio Oneguin em
outubro de 1823, e em outubro de 1923 Lênin fez, pouco antes de morrer, sua última visita a Moscou, quando
se despediu do Kremlin. Naturalmente, esse século que acabo de delimitar é tão arbitrário quanto qualquer
outro. Nós mesmos estamos aqui a celebrar não um, mas dois séculos, arbitrariamente delimitados pelo
nascimento de Turguêniev. Enfim, meu século entre Púchkin e Lênin, com a conclusão de Notas de um caçador
bem no meio, só se justificará se eu conseguir dar algum sentido a ele. Esse sentido, se houver, deverá passar
por Marx, de quem Turguêniev foi rigorosamente contemporâneo: ambos nasceram em 1818 e morreram em
1883, sendo que o alemão viveu apenas 15 dias mais do que o russo: foram 23.674 dias para Turguêniev e
23.689 dias para Marx.

Como sabido, a elaboração e publicação de Eugenio Oneguin-EO foi marcada pelos padecimentos do autor sob
a tirania Romanov, naquela altura protagonizada pelo mais medonho dos seus déspotas, Nicolau-I, que se
encarregou pessoalmente da censura ao Eugenio Oneguin, notadamente do primitivo capítulo oito, que de tão
censurado acabou por ser destruído por Púchkin e jamais veio à luz. Essa circunstância marcou duplamente a
aparição da obra aos seus contemporâneos: de um lado, porque para toda gente letrada da época ficou claro
que ao não poderem ler a Viagem de Oneguin, que era o tema do capítulo 8 original, lhes fora roubado um tão
ansiado quanto inédito encontro com a Rússia; de outro lado porque a supressão deste capítulo oito original
obrigou o autor a recuar aquele que então era o último capítulo, o nono, mutilando ainda mais a obra:
primeiro, porque obrigava arranjos composicionais para juntar o capítulo sete ao 9, agora tornado 8; segundo,
e mais importante, porque deixava inexplicada a transformação que Tatiana, a heroína do romance, exibia em
toda a sua força no capítulo final.

Como o próprio Púchkin disse num prefácio de 1833:

“O autor reconhece abertamente ter excluído do seu romance um capítulo inteiro, no qual se descrevia a
viagem de Oneguin através da Rússia”.

Entre “variantes e inéditos” do EO encontramos complemento valioso. Diz Púchkin:

“Oneguin (de novo me ocupo dele), depois de haver matado o amigo em duelo, e ter vivido até aos vinte e
seis anos sem qualquer propósito, e sem trabalhar, não era capaz de fazer nada, entediado com a ociosa
inanidade, sem trabalho, sem esposa, sem emprego”.

[...]

“...certo dia, durante a estação chuvosa, ele acordou como um patriota. Pela Rússia, senhores, em um
momento, ele realmente e definitivamente se afeiçoou. Apaixonado por ela, delirando pela Rússia, ele já
odiava a Europa, sua política árida e sua vaidade esmagadora. Oneguin viaja; ele visita a santa Rússia:
seus campos, desertos, cidades e mares.”

Em agosto de 1832, em carta ao irmão Nicolau, Serguei Turguêniev (esses irmãos eram parentes distantes do
nosso Ivan Turguêniev) diz que Púchkin não havia podido publicar aquela parte do EO em que descrevia a
viagem de Eugênio pela Rússia e os levantes de 1825. Além disso, Turguêniev inclui na carta os seis últimos
versos da estrofe XV do cap.10 (nunca terminado), que depois de uma louvação aos dezembristas, se referem
nominalmente ao compromisso de Nicolau Turguêniev com a luta contra a servidão.

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Creio que isso basta para relembrarmos a radiação antiautocracia da viagem abortada e fora por isso que
Nicolau proibira aos russos essa viagem pela Rússia. Ou seja, temos aqui a primeira parte do dano que a
supressão do oitavo capítulo causou. Vamos à segunda parte dele.

Também no prefácio de 1833 já referido, Púchkin deu explicitamente razão às críticas de Katenin,
reconhecendo que a supressão do Cap. Oito acarretara problemas de continuidade:

[Katenin diz que com a supressão do cap.8] “a passagem da Tatiana senhora de província para a Tatiana
senhora do gran mundo se dá de modo muito imprevisto e inexplicável. A observação revela a experiência
do artista. O próprio autor adverte sobre o acerto disso, mas decidiu descartar esse capítulo por causas
que são importantes para ele e não para o público.”

Turguêniev viveu a adolescência e a juventude nessa atmosfera em que se lamentava que uma obra de gênio
fosse mutilada pela censura estatal no que tinha de fundamental: mostrar a Rússia a si mesma e dar desenho
cabal a uma heroína que mesmo desfigurada a todos apaixonara. Esses ficaram sendo os lábios de uma ferida
aberta na literatura russa, e lidar com ela se impunha como um desafio até inconsciente para os jovens
aspirantes à vida literária (a atmosfera decorrente da repressão a Púchkin, especialmente depois da morte
trágica do artista, empurrava conteúdo e forma literária à mudança, e no rastro de Púchkin).

Para enfrentar o desafio que a própria realidade impunha, um jovem que fosse enfronhado na matéria e
corajoso o bastante teria de partir do próprio EO, em particular dos indícios que haviam escapado à fúria de
Nicolau – partir do que sobreviveu da Viagem de Oneguin, tendo em mente (e isso, ressalto, é muito
importante) tendo em mente que um jovem russo ilustrado como Turguêniev tinha na cabeça o mapa da
Rússia de então; não era para ele como é para mim, estrangeiro e ignorante, que para atinar com a coisa tive
de ir literalmente ao mapa. Vejamos esses “fragmentos”.

Localizando no mapa todos os pontos em algum lugar mencionados, o mapa fica assim:

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A certa altura dos “fragmentos”, Púchkin menciona a partida de Oneguin de Odessa para as margens do Neva
e, então, o mapa da Viagem de Oneguin pode ser finalizado assim:

As coisas estavam nesse pé quando, em 1836, ano em que Turguêniev comemorou seus 18 anos e vivia o
frenesi do seu penúltimo ano na universidade, em São Petersburgo, Púchkin resolveu publicar sua Viagem a
Arzrum, (que viria a ser sua última publicação em prosa), um conto saído de fabulações suas sobre
experiências vividas quando de uma viagem ao Cáucaso em 1829, durante uma das guerras que Nicolau
empreendeu contra a Turquia. Ora, considerando a atmosfera que perdurava desde a proibição da Viagem de
Oneguin, não devem ter sido pequenas as expectativas geradas por uma publicação de Púchkin versando
sobre uma viagem, especialmente para quem sabia que o artista começara a escrever a Viagem de Oneguin no
outono de 1829, justamente depois de chegar de uma viagem ao Cáucaso...

Tendo localizado no mapa as localidades mencionadas pelo autor, sigamos as cavalgadas do angustiado
Púchkin.
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O conto tem 45 páginas. Não obstante, Púchkin chega a Novotcherkassk ainda antes de terminar a segunda
página. Nesse ponto da narrativa, bem no seu início, portanto, ele já adverte o leitor de que

“A passagem da Europa para a Ásia torna-se mais perceptível a cada hora.”

Entre Moscou e Novotcherkassk, tirando por um amigo a quem visitou, Púckin não se ocupou de nada nem de
ninguém. É só a partir de Novotcherkassk -- de onde segue viagem junto com um dezembrista e a partir de
onde já se vê, como avisou, saindo da Europa e entrando na Ásia -- que ele, por assim dizer, desce do cavalo e
passa a descrever lugares e pessoas, mas, ainda assim, o primeiro contato com o povo que descreve não é
propriamente com um russo, mas com uma jovem calmuca, vista pelo autor como de outra nacionalidade. Em
mais quatro páginas das 45 ele já está no limiar da fronteira russa, em Vladikavkaz. Todo o resto da história,
até seu regresso à mesma Vladikavkaz, se passará além fronteiras – definitivamente, era mesmo uma viagem a
Arzrum, com nada que pudesse saciar a sede do público letrado por relatos a respeito da vida russa enquanto
tal, pois dos 2.500 quilômetros percorridos, apenas o trecho de 600 km além fronteiras foi objeto de atenção
descritiva.

Se nos colocarmos no lugar do jovem Turguêniev, a coisa toda se impunha, consciente ou inconscientemente,
como matéria mental. Viagem a Arzrum não poderia ser recebida senão como uma provocação em torno
daquilo que fora proibido. De modo que, acerca do tema “viagem através da Rússia”, o que se tinha eram as
indicações da Viagem de Oneguin e essa marcha batida até Arzrum, na qual o autor mistura fatos reais e
ficção.

Reunamos as duas viagens no mapa.

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Tomado em seu desenho em solo russo, o trajeto cumprido até Arzrum forma uma vereda em meio aos
resquícios da Viagem de Oneguin. A um viajante disposto a olhar para os lados e a explorar o terreno, o trajeto
da Viagem a Arzrum serviria de guia para explorar os vazios deixados pela censura à Viagem de Oneguin.

Se olharmos para as mais remotas ocupações da Rus, veremos que a Rússia que ficou por ser descrita é antiga.

Em suma, está claro que esses traçados das viagens são muito pobres quando se tem em mente o que Púchkin
disse no prefácio já citado. Segundo o autor, relembremos, Oneguin percorreu, com amor pela Rússia, seus
“campos, desertos, cidades e mares”. Ficou faltando muita coisa, como se pode ver no mapa abaixo:

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As perdas com a supressão da Viagem de Oneguin e a relativa frustração com essa Viagem a Arzrum oprimiam
como um pesadelo o cérebro dos vivos. A opressão sobre Púchkin era de tal ordem que, mesmo tendo ficado
por apenas seis páginas em solo russo, e tendo descrito apenas o encontro com um amigo nesse trecho russo
da Viagem a Arzrum, ainda assim o artista se viu compelido a esclarecer -- num recado a Nicolau que não
poderia deixar de frustrar seus leitores -- a respeito do tal encontro com o amigo que:

“Passei cerca de duas horas com ele. [e] Não se falou uma palavra sobre governo e política”.

Ora, era precisamente esse o desafio que a situação impunha ao artista: não poder, mas, ainda assim, dar um
jeito de falar de governo e de política.

No início dessa elocução eu falei de Turguêniev como um artista debruçado sobre a realidade e orientado pela
mudança, ainda que avesso à prédica. Pois bem, é hora de enfatizar que nessa realidade de que se ocupava,
Turguêniev incluía, é claro, tanto a produção literária de seus predecessores e contemporâneos, e, nela, em
especial, e como não poderia deixar de ser, a obra de Púchkin; quanto tinha de enfrentar a mesma censura, e
sob o mesmo tirano.

Suponho que todos aqui conheçam Notas de um Caçador. O livro tem sido visto como a narrativa de andanças
de caça pela vizinhança, mas quem olhar no mapa verá que não é bem assim:

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O mapa abaixo mostra, entre outras coisas, que a área de caça coberta pelo narrador de Notas de um caçador
é maior do que o território da França.

Olhando o mapa mais de perto, fica evidente o caráter complementar entre o que falta nas viagens de Púchkin
e o que aparece nas andanças do caçador.

Assim como no caso das narrativas de Púchkin, as Notas de um caçador fabulam ficcionalmente sobre
experiências do próprio autor, pois Turguêniev nasceu, viveu e caçou no miolo da região, como indicado no
mapa a seguir.

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Quão consciente estaria Turguêniev dessa complementaridade?

Púchkin descreve o início da Viagem a Arzrum nos seguintes termos, literalmente:

“De Moscou fui a Kaluga, Beliov e Oriol e assim percorri duzentas verstas além do necessário.”

Notem bem: além de passar voando, como já vimos, ele ainda diz que poderia ter sido mais rápido, deixando
claro que não vai deter-se em solo russo. [Nesse aspecto, é de frisar que tanto Oneguin quanto Púchkin vivem
apressados, esbaforidos, angustiados, atormentados, até. Passam pelos lugares, que podem chegar a ser
descritos vivamente, mas sempre num certo frenesi (havia o efeito plástico de uma urgência, que muito deve à
experiência com a perseguição da censura – tema para ser desenvolvido em outra hora)].

Vejamos, agora, como começam as Notas de um caçador, literalmente:

“Quem já foi do distrito de Bolkhov ao de Jizdra possivelmente ficou espantado com a aguda
diferença no aspecto das pessoas da província de Oriol e de Kaluga...”

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Como que se atravessando no caminho de Púchkin, Turguêniev (que com a morte da mãe herdou uma
propriedade em Jizdra) faz o caçador se deter para nos descrever tanto Oriol como Kaluga, com detalhes que
vão da roupa, passam por cercas caídas, portões que fecham e tanques imundos, indo até altas confabulações
com Khor e Kalínitch que -- num contraste explícito com a cuidadosa observação que Púchkin concedera a
Nicolau no relato da sua Viagem – tratavam, sim, de política e da administração dos negócios de governo,
comparando países estrangeiros com a Rússia:

“Khor se ocupava de questões administrativas e estatais... [...] ‘Então, isso é que nem aqui ou é
diferente? ... então, diga, como é? ... isso não iria dar certo aqui, mas é bom – é a ordem’ . [...] de
nossas conversas extraí a convicção de que Pedro o grande foi essencialmente um homem russo,
e russo exatamente em suas reformas”.

Como se essa referência a conversas políticas não bastasse, Turguêniev ainda deixa mais explícito o contraste
com a pressa cuidadosa de Púchkin quando informa ao leitor que:

“No quarto dia, à tarde, o senhor Polutikin mandou me buscar. Tive pena de me
separar do velho”.

Quer dizer, enquanto Púchkin concedeu a um amigo de Oriol o máximo de duas horas, e sem política; o
caçador de Turguêniev ficou com um desconhecido de Kaluga por quatro dias, falou longamente de política e
governo, elogiou as reformas ocidentalizantes de Pedro e ainda lamentou ter de ir embora.

É como se Turguêniev dissesse a Púchkin e ao leitor: “calma, refreemos a montaria, deixemo-la e sigamos a pé
para conhecermos demoradamente a Rússia, explorando o seu potencial à mudança”.

Alguém dirá: esse cara tá exagerando. Pois bem, vejamos o passo seguinte de Púchkin:

“De Moscou fui a Kaluga, Beliov e Oriol e assim percorri duzentas verstas além do necessário, em
compensação vi Iermolov. Vive em Oriol”. (grifo meu)

Nesse segundo passo de Púchkin somos apresentados ao general Iermolov. O que nos leva ao próximo passo
de Turguêniev. Como já vimos, os passos diferem. O de Turguêniev é bem mais lento e longo. Por isso,
enquanto Púchkin chega a dar mais de um passo numa mesma linha, Turguêniev gasta todo um conto para dar

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um único passo e, então, chegar ao conto seguinte. No segundo conto das Notas de um caçador somos
apresentados àquele que será nosso fiel e inseparável companheiro de caçadas, cujo nome é Iermolai. Não
contente de nos remeter ao amigo de Púchkin, Turguêniev ainda deixa claro que ao invés de ser um encontro
passageiro, em uma não menos rápida passagem pela região, seu Iermolai vai permanecer como nosso
companheiro de viagem por muitos verões, primaveras, invernos e outonos, explorando uma vasta área da
Rússia.

Ah! Ainda há gente cética acerca de o quão intencional e conscientemente Turguêniev está a agir? Pois bem,
vamos à descrição que Turguêniev cria para o seu Iermolai, um personagem fictício. Logo em seguida à
explicação que abre o conto, na qual se estende sobre o que é uma campana, (observem o requinte: a
campana é a arte da espera, do fazer-se demorar na tocaia à presa a ser abatida) o caçador de Turguêniev se
põe a nos apresentar Iermolai, com quem irá seguir viagem:

“olhinhos cinzentos, cabelos eriçados, boca com lábios irônicos, num cafetã alemão de nanquin
amarelo”, menciona em seguida suas “provisões de pólvora e chumbo para a espingarda de
caça”, para então nos informar que “ele não parava no lugar, vencendo 70 verstas num dia”.

Como sabido, Turguêniev sempre tem que partir de alguém na vida real. Quem teria sido o modelo para seu
Iermolai? Bem, o general Iermolov, amigo de Púchkin, não é apenas um personagem, existiu de fato, nasceu
em 1772 e morreu em 1861, tendo se destacado na guerra de 1812 contra Napoleão e sido governador do
Cáucaso. Poderia ele ter servido como tipo real para Turguêniev? Eis como Púchkin o descreveu no segundo
passo daquele parágrafo inicial do seu Viagem a Arzrum:

“olhos cinzentos, cabelos arrepiados, boca com sorriso não natural, numa jaqueta circassiana de
cor verde”, menciona em seguida seus “sabres e adagas”, para então nos informar que “ele
suportava a inatividade com impaciência”.

Não estou inventando nada, 11 anos depois, até a ordem em que os atributos são apresentados é a mesma.
Nosso Iermolai é, a la Gógol, o sub-oficial intendente, responsável pelos cachorros, armas e munições
indispensáveis à guerra contra galinholas, patos e tetrazes. Turguêniev executa com maestria o recurso
engenhoso de se basear ao mesmo tempo na realidade e na literatura pregressa sobre essa mesma realidade,
mas para dar um passo adiante, aliciando o leitor com todo cuidado para não levantar a lebre para a censura
e, assim, assegurar-se de dar um passo adiante ao de Púchkin. É formidável!

A própria amizade entre Khor e Kalínitch é mostrada numa assimetria que revisita o tema da amizade não
menos assimétrica entre Eugênio e Vladimir Lenski no EO, sendo que os contrastes são descritos nos mesmos
termos: Khor, que recebeu desenho realista mais firme do que Eugênio, também é descrito como
antirromântico; enquanto Kalínitch é dito pertencer aos idealistas, românticos, gente entusiasmada e
sonhadora, tal como Vladimir. Se a amizade dos mujiques não termina em duelo, pelo contrário, é descrita
como pacífica, leal e terna, é porque Turguêniev entendia, entre outras coisas, que àquela altura chutar o
romantismo seria chutar um Lenski morto.

Nessas retomadas cuidadosas do EO e da Viagem a Arzrum o jovem Turguêniev já aparece ciente do que
Herzen só irá dizer depois:

“quando sabe que o escritor tem de ser cuidadoso, o leitor o lê com mais atenção; entre ele e o autor se
estabelece uma ligação secreta: um oculta aquilo que escreve; outro aquilo que entende”.

Obviamente, não poderei apresentar aqui todas as evidências que colecionei no curso das Notas, mas parece
clara a relação entre as andanças do caçador e a ideia de viagem pela Rússia, frustrada pela ação da censura
quando tentada por Púchkin. Entretanto, falta algo: embora já tenha feito muito, para estar à altura do desafio

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Turguêniev teria de enfrentar o outro lábio da ferida: a falta que a Viagem de Oneguin faz para que o leitor
compreenda a transformação operada em Tatiana, a heroína do romance de Púchkin.

Voltemos ao conto de abertura das Notas. Nele, as mulheres não só não têm nome -- sendo indicadas apenas
pelos seus papéis dentro da família (esposa, mãe, sogra e nora) --, como são tratadas com desprezo explícito, a
ponto de Khor chegar a se dirigir a elas com o grito “Ei, mulherada!” e dizê-las “bicho estúpido”. Mais adiante,
quando o caçador tenta interceder pelas noras de Khor, surradas pela sogra, o velho mujique acrescenta: “que
vontade é essa de se ocupar dessas ninharias...? [...]... não vale a pena sujar as mãos”.

Já no segundo conto, Iermolai e a Moleira, a moleira destaca-se por ser a primeira mulher do livro a ter um
nome depois que a mulherada do primeiro conto não mereceu nominação: ou seja, a falta de uma mulher
definida no primeiro conto dá potência ao surgimento, à estreia, de um nome feminino no conto seguinte. E
que nome é esse? Alguém aqui lembra o nome da moleira? -- Arina. Esse nome lembra alguém? Arina era o
nome da famosa babá de Púchkin, figura central da vida dele, celebrada pelo artista como quem o introduziu e
ambientou na mitologia eslava profunda, base da cultura russa popular, cujas histórias que contava povoaram
o mundo simbólico da infância do artista e o inspiraram por toda a vida; circunstância que, não por acaso, está
ligada ao fato de que no EO haverá uma babá fundamental no desenvolvimento de Tatiana.

Por isso, numa engenhosa carpintaria literária cruzada, a história amorosa da moleira Arina é, sem tirar nem
por, a contra face servil (realista) da história amorosa da nobre Tatiana: ambas correram os riscos de tomar a
iniciativa de buscar a própria felicidade amorosa, ambas tiveram frustrada sua genuína motivação romanesca,
ambas deixaram a terra natal em razão dessa frustração, ambas passaram por mudança considerável de
status, especialmente depois que casaram, sem ter amor, com homens “importantes”, Arina com um moleiro,
que a comprou pela utilidade que viu nela para os negócios; Tatiana com um general, que a alojou no seu
acervo de glórias – ao final do conto, quando o caçador indaga da saúde de Arina, Iermolai diz “não é a saúde”,
indicando que o problema é o coração partido da moça, resignada à sua condição de mulher casada, tal como
Tatiana ao final do EO. Em ambas as cenas finais, há a intervenção repentina dos respectivos maridos, com o
detalhe sutil de que ambos se fazem apenas ouvir, e sob o registro do “dono” (do general de Tatiana se ouve o
tilintar das esporas; do moleiro de Arina se ouve um chamado imperioso por ela).

Notem a sofisticação da diferença entre a situação ainda marcada pelo romantismo e aquela radicalmente
realista: Tatiana sai da cena que já não lhe interessa antes de ouvir as esporas do general (a renúncia
romântica); Arina só sai da cena em que ainda tem interesse porque ouviu o chamado do moleiro (a crueza
realista da relação imposta) – como disse Riobaldo no Grande Sertão, “quem mói no aspro não fantaseia”: ao
girar a sua impiedosa mó realista, a obediente moleira Arina reduz a pó o romantismo que ainda sustentara a
nobreza altiva de Tatiana.

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Advertidos por todo esse engenhoso jogo com Arina no segundo conto, somos levados de volta ao conto
anterior, o primeiro do livro, Khor e Kalínitch, pois enxergamos mais um ponto na costura entre Notas e EO no
tema das noras surradas pela sogra, pois aqui Turguêniev também está a retomar tema já tratado no EO, que
aparece na estrofe XVIII do cap. 2, quando a babá de Tatiana revela que ao casar nada sabia do amor e que a
sogra a teria surrado se falasse disso. Permitam-me mais um registro: o moleiro com quem Arina casou-se é de
Beliov. Com esse detalhe, Turguêniev arremata o objetivo de advertir os leitores de que vai promover a mescla
entre EO e Arzrum, pois abarca logo no início das Notas do seu caçador peripatético as três localidades
referidas por Púchkin na primeira linha da sua viagem galopada, saída de Moscou: Kaluga, Beliov e Oriol (assim
como no EO também tinham sido três as localidades mencionadas de enfiada, à saída de S. Petersburgo: Valdj,
Torzok e Tver).

É uma verdadeira relojoaria de referências cruzadas entre realidade, ficção e literatura pregressa, sempre com
o mapa na cabeça. E isso já está desse tamanho, sendo que tratei apenas dos dois primeiros contos de Notas
de um caçador, sem aprofundar o sentido político e estético dessas convergências já apontadas. Nesses dois
primeiros contos Turguêniev já estabelece que Notas de um caçador tem uma perspectiva bifronte: sua
viagem inicia-se por onde Púchkin também começou seu Viagem a Arzrum; mas nessa nova viagem sua
abordagem da mulher inicia-se por onde Púchkin terminou seu EO. Jogando com o tempo, Turguêniev remete
simultaneamente ao início e ao término das viagens de Púchkin, embaralhando dialeticamente os temas: a
“viagem” enquanto tal, cujo tema é assunto político-social, será refeita; o tema “mulher”, que é matéria
estético-literária, terá de ir adiante, recebendo, por sua vez, abordagem dupla: em sua face romanesca, trata-
se de um malogro amoroso entre outros, como esculpiu nessa simetria de Arina com Tatiana; em sua face
simbólica, a mulher servirá à discussão de uma Rússia em mudança.

Dessa perspectiva, é como se o primeiro conto das notas devesse ser lido como Eugênio e Vladimir (mas em
outra chave); e o segundo como O general e Tatiana (mas em outra chave). Nesse segundo caso, é de observar
que em Iermolai e a moleira, o homem tem nome, a mulher é nomeada pela função, a de triturar. É
impressionante o domínio cerebrino do fazer artístico que Turguêniev exibe já na juventude, o que vai facilitar
a retomada de Notas na velhice.

Notas de um caçador é uma síntese e uma resposta ao que falta na fusão literária da Viagem de Oneguin com
a Viagem a Arzrum – Turguêniev as fundiu para dar um passo adiante. Ele escreveu e, depois de 22 anos,
retomou Notas de um caçador porque concebeu essa obra para, política e esteticamente, preencher o vazio, e
ultrapassar os embargos que a censura de Nicolau instalara ao proibir a publicação da Viagem de Oneguin e ao

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intimidar Púchkin a ponto de fazê-lo andar sobre brasas no seu ulterior relato de viagem ao seu querido
Cáucaso. Vale anotar, ainda, duas coisas: primeira, estivera nos planos de Púchkin escrever um Diário de
Oneguin, do qual ficaram fragmentos, onde seu herói faria notas do dia-a-dia; segunda, no prefácio de Viagem
a Arzrum, Púchkin diz que a obra é a publicação de suas Notas de viagem.

Resumindo ainda mais: Turguêniev concebeu, realizou e aperfeiçoou seu Notas de um caçador para que fosse
lido como a Viagem de Oneguin, o proibido capítulo 8 de Eugênio Oneguin, como para restaurar a obra do
grande predecessor.

Julgo que poderei apresentar essa descoberta de maneira melhor fundamentada em texto ainda por terminar.
Por isso mesmo, fico devendo a metade que nos leva de Notas de um caçador a Marx e a Lênin. Adianto,
apenas, que, dessa minha perspectiva, essas Notas constituem um legado vivo, do qual, mesmo hoje, 200 anos
depois do nascimento do autor, podemos nos valer, tirar proveito, no esforço de não nos deixarmos tragar
pela treva circundante e perseverarmos na busca pela transformação.

Para terminar, deixem-me recuperar palavras ditas por Thomaz Mann, num ensaio de 1906. Embora escritas
mais de 20 anos depois do desaparecimento de Turguêniev e se sustentarem em filosofia que só apareceu
depois que Turguêniev era homem feito, julgo poder aplica-las, sem esforço, de modo duplamente
retrospectivo, tanto ao jovem Turguêniev que acabo de discutir quanto ao Turguêniev consagrado, a quem
singelamente homenageamos neste evento:

“Existe na Europa uma escola de intelectuais, criada por Friedrich Nietzsche, o poeta alemão do
conhecimento, na qual nos acostumamos a fundir o conceito de artista com o de conhecedor.
[...]. O artista dessa espécie – e talvez não seja uma espécie ruim – quer conhecer e criar: quer
conhecer profundamente e criar com beleza, e o fato de suportar com paciência e altivez as
dores inseparáveis dessas duas escolhas confere sacralidade moral à sua vida.”

Era isso. Obrigado.

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