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MARIELLE COMO MEMÓRIA E

ESPERANÇA
Carlos Novaes, 20 de março de 2018

Sendo ela um dispositivo do cérebro, a memória, como sabemos, é plástica como ele: ela

assume formas e contornos variados no transcurso do tempo de nossas vidas, essa vida que

cada um de nós luta para preservar, enriquecer, atribuir sentido. Essa plasticidade da forma não

se dá apenas no espaço, portanto, ela se dá sobretudo no tempo. Resumindo muito: nossa

memória retroage e dá significados novos ao passado — recorrer à memória já é, por assim

dizer, alterar o passado. E nós o alteramos para ter esperança, que é o vestíbulo para um futuro

que nasça da escolha, não da inércia.

A leitura quase ininterrupta de tudo o que tem saído sobre a execução de Marielle e o

assassinato de Anderson tem tido sobre mim o efeito de reavivar esperanças que estavam

quase mortas. E veja bem, leitor: embora as matérias e o os artigos de opinião venham sendo

fundamentais, não é exatamente sobre o conteúdo deles que se erguem minhas esperanças

novas, ainda que seja maravilhoso ver tanta gente, com preferências tão diferentes, se ocupar

do que é valioso para o bem comum – minhas esperanças estão a ser nutridas graças às

reações indecentes, na forma de comentários raivosos e da mentira pura e simples, que os fatos

em si e aquele volumoso material decente vem suscitando em certos segmentos. E isso por

quatro razões principais:

Em primeiro lugar,​ o contraste entre as mentiras atiradas às redes sociais e a diligente ação da

mídia convencional no sentido de preservar um solo mínimo para a construção de uma memória

não facciosa acerca da execução de Marielle e do assassinato de Anderson abre uma

oportunidade valiosa para que se entenda a diferença que há entre se informar pelas redes

sociais e pela chamada grande imprensa, em favor desta última. Assim, todos estão tendo a

oportunidade de aprender que se a mídia convencional nunca é, de fato, neutra ou mesmo

imparcial como pretende nos fazer acreditar, ela certamente sobrevive da verossimilhança do

que publica, e isso é meio caminho andando na direção da verdade, embora não a garanta

(quem acha possível alcançar essa garantia acaba propondo o controle da mídia…). Por outro

lado, está a ficar claro para qualquer um que não seja um completo idiota que as redes sociais

estão infestadas de raiva e de mentira elaborada. Os raivosos estão a tentar abafar para si

mesmos a tremenda complexidade da realidade em que supunham ter aninhado suas


limitadíssimas expectativas de acomodação; os mentirosos estão a reagir ao fato de que o que

se move sob seus pés não é a prancha com que sonhavam surfar a onda reacionária que

parecia estar ao seu dispor.

O material publicado na mídia convencional, provida de mediações, é totalmente diferente do

material publicado numa mídia sem mediações como as redes sociais. Na mídia com mediações

temos o Sujeito que tem de informar; na mídia sem mediações temos o EU que pode inventar.

Na primeira, o indivíduo está contido pelas mediações e não pode simplesmente mentir; na

segunda, o indivíduo está livre de mediações e pode mentir à vontade. E mais: a natureza do

comportamento daqueles que mentem na mídia sem mediação diz muito da natureza do apego

deles pelo homem de Estado que também despreza as mediações, que, como eles, faça e

aconteça sozinho, sem freios.

Veja bem o que quero agarrar, leitor: na mídia convencional, uma informação só é transmitida

depois de passar por mediações, pois há o repórter, o redator, o editor, o chefe dos editores, o

chefe geral da redação e, no limite, o dono do veículo, os quais, juntos, formam o Sujeito da

informação; já nas redes sociais, pelo contrário, pode haver apenas o EU superlativo do

perdedor isolado, que só presta contas à sua própria raiva. Essas duas formas têm tudo a ver

com as formas de exercício do poder político que lhes correspondem: à mídia convencional,

cujas informações são submetidas a mediações, corresponde um poder de Estado sujeito ele

também a mediações; já ao abutre solitário que faz das redes sociais plataforma para

simplesmente mentir como bem entender, só pode corresponder a preferência simplista por um

poder de Estado igualmente arbitrário, liberto de qualquer mediação. Eles preferem o Bolsonaro

pela mesma razão que os faz preferir mentir: a ilusão de que a sociedade pode ser submetida

ao que EU quero.

Em segundo lugar,​ a marca da invencionice nessas calúnias contra Marielle é tão evidente,

seu caráter forjado é tão óbvio, que fica estampada a sua infantilidade conspiratória, ridículo

que, a contrapelo, permite que nos libertemos da memória de que o que está em marcha contra

a maioria de nós seja uma grande conspiração (chamo a ideia de conspiração de ​memória

porque essa ideia está tão arraigada que funciona como um verdadeiro pano de fundo para o

que pensamos). Não há conspiração totalizante alguma. O que há é a reunião de facções no

âmbito do Estado, que se fazem e refazem em meio a conspirações, é certo, mas conspirações

rivais umas às outras; e ​também​ por serem rivais não têm o poder de ditar o resultado final do

processo – ainda bem. O “também” grifado antes se explica assim: o final do processo não pode
ser antecipado por conspiração alguma porque além da rivalidade entre as facções do Estado

em crise de legitimação, há, do outro lado, ainda de forma in​s​ipiente, é verdade, a

movimentação imprevisível da sociedade, especialmente daqueles segmentos que atuam de

forma totalmente independente das facções conflagradas nessa luta pelo controle do Estado de

Direito Autoritário ​ilegítimo (embora seja legal​ – ele está cheio de leis e conta com o Judiciário

respectivo!). Quem teria previsto uma movimentação como a que está havendo em nome de

Marielle e de Anderson?

Por in​c​ipiente que ainda seja, a movimentação da sociedade vai ajudando a dificultar acordos

entre as facções (ainda não conseguiram abafar a Lava Jato, por exemplo), pois até mesmo os

acertos muito bem escondidos entre governadores de Estado e líderes de facções nas

penitenciárias vão ficando claros para a opinião pública. E note bem, leitor: esses acertos, e sua

divulgação, também são expressão da crise de legitimação do Estado, pois desafiados pelas

cada vez mais desagregadoras consequências sociais e políticas da desigualdade, os

governadores, que devem suas eleições (em última instância…) ao compromisso com a

manutenção da mesma desigualdade, precisam se acertar com as facções penitenciárias para

tentar neutralizar o potencial explosivo do conjunto ilegítimo, com o que formam um cipoal cada

vez mais difícil de esconder e pelo qual todas as facções estatais (penitenciárias, policiais,

institucionais e representacionais) tiram proveito ​relativo​ do sofrimento absoluto que impõem à

maioria da sociedade através do poder de Estado, isto é, segundo o ​exercício faccioso dos

poderes institucionais.​

Em terceiro lugar,​ as ações e reações à execução de Marielle e ao assassinato de Anderson

nos permitem abandonar a memória de uma polarização fajuta que aprisiona nosso potencial

para a criação política do novo. Esse crime medonho, nas circunstâncias dessa crise de

legitimação do Estado, suscitou realinhamentos políticos que podem nos levar a procurar algo

mais rico do que a polarização ​esquerdaXdireita, ​providência que daria uma chance para a

reconfiguração das noções de “nós” e “eles” – veja bem, leitor: estou a sustentar que a

polarização ​esquerdaXdireita​ é tão sem sentido quanto uma outra que até muito pouco tempo

apaixonou multidões e, agora, vai sendo convenientemente esquecida, pois ficou nua em toda a

sua fajutice, e sua vacuidade já não se presta às ilusões de ninguém que tenha juízo: PTxPSDB

(aliás, não é à toa que como resultado da crise Dória tenha se tornado o verdadeiro líder do

PSDB e o PT não tenha para onde correr sem o Lula — e com a horda boçalnara correndo por

fora a vituperar que esses dois outros são iguais por serem ambos “comunistas”!! kkkkkk).
Em quarto lugar,​ a insistência dos mentirosos em vincular Marielle às facções do crime comum

trouxe à tona o debate sobre a quem interessaria a execução dela. E o resultado é que resta

como plausível que Marielle tenha sido executada a mando do tráfico, da milícia, da banda

podre da PM ou de alguma facção paisana da política carioca ou federal. E é exatamente por

ser plausível para qualquer um de nós (esteja você de que “lado” esteja) que a responsabilidade

do ato possa ser de quaisquer das facções mencionadas, é exatamente por isso que já não se

pode ter dúvidas acerca da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro: a luta

pelo poder igualou a todos e se faz contra a, e às custas da, maioria da sociedade. Essa

evidência exige reconfigurar a memória que viemos reunindo sobre a crise em que o país se

encontra, pois nos permite dar sentido novo aos acontecimentos e sofrimentos até aqui

experimentados, e compreender de outra maneira as atitudes dos diferentes agentes

implicados.

Marielle vem sendo o que sempre foi: um ponto articulador para a usinagem mediada de

memórias diferentes e, até, conflitantes, mas sempre excluindo a mentira, pois uma memória é,

por definição, o oposto da mentira — a mentira é urdida naquilo que não foi, a mentira é o nada

da memória.

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