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Recife, 24 de março de 2018 sábado Jornal do Commercio 5

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Cultura
LUGAR DE FALA Estudantes da UFPE se preparam para realizar dois curtas, O Frio e Noite Fria, em que podem compartilhar suas vivências

Um cinema afrocentrado

FOTOS: DIEGO NIGRO/JC IMAGEM


ROSTAND TIAGO
rfilho@jc.com.br

U
ma inquietação tomou conta COESÃO
de cineastas negros da Univer- Equipe é
sidade da Califórnia em Los formada por
Angeles (UCLA) na década de 1970, alunos que
traduzindo esse desconforto, de forte vivem a
base racial, em imagem e som. Nomes experiência de
como Charles Burnett (O Matador de serem negros
Ovelhas, O Casamento do Meu Irmão) no Brasil
e Julie Dalsh (Filhas do Pó) trouxeram
narrativas poderosas, que garantiram
mais dimensões para os negros, princi-
palmente quando se compara com as
representações mostradas no dito ci-
nema clássico, no movimento intitula-
do L.A Rebellion.
A quase 10 mil quilômetros dali, es-
sa inquietação ressurgiu aproximada-
mente 40 anos depois em outra facul-
dade, na Universidade Federal de Per-
nambuco (UFPE). Após conversas e
descontentamento sobre como a negri-
tude é representada no audiovisual,
um grupo de estudantes de cinema,
negras e negros, concebeu duas pro-
duções, O Fio e Noite Fria, com o obje-
tivo de colocar a discussão sob a ótica
de suas vivências. “O fato de sermos
nós, pessoas negras, LGBT, cotistas,
atrás das câmeras e contando nossas
histórias, possibilita um novo discur-
so. Geralmente, não são nossas narra-
tivas que estão no cinema
hegemônico”, explica Anthony Ribei-
ro, diretor de O Fio.

Paixão cinéfila uniu


O jovem de 22 anos veio de São Cris-
tóvão, cidade periférica da Região Me-
tropolitana de Aracaju, Sergipe, e está
no segundo período do curso. Depois

São Paulo e Recife


de passagens pelas faculdades de En-
genharia Química e Medicina, decidiu
ir para Cinema por não se ver nessas
áreas. “Eu acho que o cinema é o lu-
gar da arte que eu mais consigo comu-
nicar minhas ideias, colocar em ima- Entre os membros da equipe de O ano seguinte em um local mais
gens o que as palavras não conse- Fio e Noite Fria, estão duas estudantes próximo. Até que sua mãe chegou e
guem dizer”, conta. Escolheu Recife que partiram de São Paulo para trilhar perguntou “Tu quer ir pra lá não?”. Foi
pela atração que tinha pela cena cultu- suas trajetórias no Recife. Letícia tudo que se precisou para começar a
ral local, além de ser mais perto de ca- Batista e Vitória precisaram sair de planejar a mudança para a cidade
sa e ter amigos na cidade. casa ainda jovens, lidando com a nova, mesmo com apenas 18 anos
Anthony desenvolveu o roteiro de distância dos familiares e as recém-completados. “A preparação
O Fio na tentativa de expressar como dificuldades impostas pela carreira dos maior foi a emocional. Eu me via muito


o racismo não funciona só de forma sonhos. imatura e sempre fui muito apegada,
escancarada, mas também através de Letícia sempre achou que estudaria principalmente para me mudar para o
pormenores, muitas vezes não lidos Cinema é uma arte cara. A indústria é muito elitizada e funciona história. Aos poucos, foi entrando em outro lado do país assim”, explica.
como ferramentas de opressão. O tra- na base das panelinhas”, argumenta Vitória. “Meus patrões viviam contato e se deslumbrando com a Tanto Letícia, quanto Vitória
balho foi aprovado em um edital da dizendo que, se eu não passasse no vestibular, pelo menos tinha sétima arte por meio de um amigo, precisaram absorver toda uma
própria universidade, angariando R$ meu emprego garantido lá”, complementa Letícia, que antes de vendo que havia interseções entre seu realidade referente às suas condições
5 mil para seu desenvolvimento. Entre- passar no vestibular trabalhou como empregada doméstica desejo original e seu novo interesse. diante do curso e da indústria
tanto, o edital restringe o gasto de al- Decidiu por cinema. Nos seus planos, cinematográfica nacional. “Cinema é
guns elementos da produção, como estavam a Universidade Federal uma arte cara. A indústria é muito
transporte, alimentação, objetos da di- Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, e elitizada e funciona na base das
reção de arte, fazendo com que fosse a UFPE. O custo de vida e os contatos panelinhas, tem uma galera que entra
lançada uma proposta de financia- que já tinham pesaram a favor da já inserida, com contatos e
mento coletivo lançada na plataforma faculdade pernambucana. Para tornar facilidades”, afirma Vitória. “É difícil
Catarse, em que pretende-se arreca- isso possível, passou a trabalhar como arranjar câmera, tripé, equipamento.
dar R$ 6 mil. empregada doméstica no horário antes Isso tudo para começar a aprender, a
Quem levou Anthony a participar do cursinho pré-vestibular, juntando gente não consegue extrair tanto da
do edital e levar O Fio adiante foi a es- dinheiro para se estabilizar na futura faculdade”, endossa Letícia.
tudante Priscila Nascimento, diretora nova moradia. Contudo, ambas também concordam
de Noite Fria. As duas produções com- Nessa rotina, acabava por vezes que há um movimento visível para que
partilham quase que a maioria da sendo desestimulada no próprio a situação mude. As cotas e a entrada
equipe, de uma maneira afrocentra- ambiente de trabalho. “Meus patrões de mais negros na universidade é um
da. Para Noite Fria, Priscila decidiu viviam dizendo que se eu não passasse dos pontos destacados como

“ “
que a maioria dos cargos de direção no vestibular, pelo menos tinha meu motivadores desse processo. Até
fossem assinados por mulheres. “Re- emprego garantido lá. Acabou gerando mesmo os editais dão sinais de
centemente, depois de 32 anos, uma O cinema é o lugar da Acho que haverá um um medo em mim de que isso movimentação, como os do programa
mulher negra dirigiu um longa-metra- arte que eu mais consigo estranhamento quando realmente acontecesse e tudo virasse #AudiovisualGeraFuturo, do Ministério
gem no Brasil. A primeira tinha sido comunicar minhas verem o homem um ciclo, como minha mãe, que não da Cultura, com cotas para diretores
Amor Maldito, da Adélia Sampaio. Em ideias, colocar em sofrendo uma violência conseguiu terminar a escola e virou negros, indígenas e mulheres. Porém,
termos de mulher negra periférica nes- imagens o que as legada à mulher”, diz empregada”, conta. A aprovação veio e Vitória ressalta que é preciso cautela.
tas posições, temos bastante pouco”, palavras não conseguem Priscila, sobre o roteiro a garantia dada por seus patrões foi “As coisas não mudaram de fato, ainda
afirma. dizer”, conta Anthony que está desenvolvendo desprezada. não se dá dinheiro para negros fazerem
No curta, Priscila quis questionar a Entretanto, antes da mudança, longas, por exemplo. Entretanto, a
relevância que a mídia e os homens Letícia e a mãe, Marizete, precisaram gente tem que olhar com carinho para
dão à violência contra a mulher. “O fil- internalizar entre si como seria a vida as pessoas que estão se
me subverte a violência contra a mu- dali em diante. Marizete preferia que a movimentando. Ela garante que
lher, colocando vários homens sofren- filha estudasse história, por acreditar conhecer pessoas com realidades
do essa violência e gerando reflexão a ter mais garantia, apesar do pouco próximas da dela é importante para
partir disso. Ele pega o típico persona- salário. Não conseguiu convencer seguir no curso.
gem de ação masculino e coloca uma Letícia, então passou a ajudar no Foi assim na gênese de Noite Fria e O
feminina no lugar. Acho que haverá planejamento e na parte financeira. “A Fio, quando o grupo começou a
um estranhamento quando verem o gente sempre foi muito ligada, conversar e discutir o negro
homem sofrendo uma violência lega- vivíamos só nós duas. No aeroporto, representado no cinema a partir das
da à mulher”, salienta. ela chorou, gritou e se agarrou em uma sessões do último Janela Internacional
“Eu vejo produções do tamanho da pilastra. As coisas foram se acalmando. de Cinema, em 2017. “Apesar de muitos
minha e de Anthony que, no processo Hoje, quando vou visitá-la, ela até filmes racistas terem sido exibidos,
de pré-produção, já tinham consegui- pergunta brincando se eu não vou entramos em contato com o L.A
do equipamento emprestado por pro- embora”, afirma. Rebellion. Estudamos dois semestres
dutoras, de graça. São pessoas que já FORÇA Um grupo de estudantes de Com Vitória, as coisas foram um de Cinema Mundial e nunca tínhamos
possuíam um nome e famílias que, cinema da UFPE, negras e negros, pouco diferentes. A começar por sua ouvido falar do movimento. É sempre
por si só, já abriam portas. Para a gen- concebeu duas produções, O Fio e decisão em fazer cinema desde os 13 estudado um cinema branco,
te é muito diferente. Nossas famílias Noite Fria, com o objetivo de colocar anos. Foi aprovada no curso no Recife europeu”, explica. Decidiram agir para
estão muito à margem disso”, afirma a discussão sobre preconceito como segunda opção e já se planejava se colocar tal quais aqueles estudantes
Priscila. dentro da ótica de suas experiências para voltar ao cursinho, tentando no da UCLA.

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