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CULTURAL E ACCOUNTABILITY
Desafios para a governança ambiental*
Andréa Zhouri
próprios conselheiros, pelo senso comum e por mento, e a propósito de uma suposta defesa do
especialistas como um espaço “democrático” e interesse público e do desenvolvimento, assumem
“participativo”, na medida em que se apresentam a representação dos interesses parcelares e priva-
como espaços de negociações e estabelecimento dos (Zhouri, Laschefski e Pereira, 2005, pp. 96-97).
de pactos entre concepções e interesses distintos O jogo de mitigação, segundo Carneiro, fun-
acerca da apropriação dos recursos naturais.7 A ciona como um legitimador do campo enquanto
composição por câmaras técnicas setoriais e Plená- tal. O autor considera que os agentes de um cam-
rio em regime de paridade representativa entre se- po interessam-se pelos proveitos específicos gera-
tores governamental, não-governamental e socie- dos pelo desenvolvimento do campo. Assim, ten-
dade civil corrobora esta visão. dem a minimizar suas divergências, fortalecendo
Nessa medida, os Conselhos são considera- consensos. Para ele:
dos espaços de construção de consensos, portanto,
espaços apropriados para o exercício de uma “boa [. . .] os agentes do campo da política ambiental termi-
governança”. As análises nesta direção assentam-se nam por promover o consenso de que a dinâmica do
jogo que nele se joga deve estar limitada, por um lado,
sobre uma concepção de meio ambiente como pelo cuidado em não obstaculizar os interesses da acu-
realidade externa às relações sociais. A “crise am- mulação e, de outro lado, pela necessidade, para a pró-
biental” apresenta-se como uma realidade objetiva pria sobrevivência do campo e dos proveitos que ele
que pode ser apreendida pelo conhecimento técni- oferece a seus agentes, de obter “mitigações ambien-
co moderno, sujeita, portanto, a diagnósticos e so- tais”. É precisamente nesses termos que os agentes po-
dem se legitimar apresentando, à sociedade e a si mes-
luções mitigadoras e compensatórias.
mos, uma imagem do campo da “política ambiental”
Ao contrário desta visão, verificamos que os como um jogo sério e responsável, no qual os cuidados
conselhos são espaços de relações de poder altamen- com a “defesa do meio ambiente” como um “bem pú-
te hierarquizadas. Ao analisar o Copam em Minas, blico” não se curvam mecanicamente aos “interesses
Carneiro (2003) observou um processo de oligar- econômicos” mas também não os obstaculizam “irres-
quização do poder deliberativo e de juridificação ponsavelmente” (Carneiro, 2003, p. 78).
do campo ambiental. A oligarquização ocorre, en-
tre outros meios, pelo controle do ingresso de no- O jogo político dá-se, então, no âmbito do
vos membros e pela concentração do poder deci- paradigma da adequação ambiental, o qual é des-
sório nas mãos de uma minoria. Salienta-se que o tinado a viabilizar o projeto técnico, incorporando-
ingresso no campo exige um capital específico, de- lhe algumas “externalidades” ambientais e sociais
finido e imposto pelo próprio campo ambiental, na forma de medidas mitigadoras a compensatórias,
de forma que não raro se encontra no Copam con- desde que essas, obviamente, não inviabilizem o
selheiros que desempenham o mesmo papel há mais projeto do ponto de vista econômico-orçamentá-
de uma década. rio. 8 Dessa forma, assegura-se a dominação do
O capital específico do campo é caracteriza- espaço de tomada de decisões por uma visão he-
do pela formação e pela reputação técnica e/ou gemônica do que sejam as possibilidades de “uso”
científica dos agentes, pela “representatividade” de dos recursos naturais a partir da lógica de mercado.
determinado segmento da sociedade e, finalmente, O poder simbólico exercido pela juridificação do
pelas relações pessoais. Há nessa dinâmica uma cir- Estado não se restringe apenas à imposição da vi-
culação de posições dos atores, ora em cargos pú- são hegemônica de mundo por meio de leis e nor-
blicos deliberativos, ora como consultores ambien- mas deliberativas, mas, sobretudo, se revela como
tais e mesmo como empreendedores. Tal círculo poder de efetiva intervenção no mundo. Neste pro-
vicioso evidencia o mecanismo pelo qual se dá a cesso, as diversidades socioculturais são anuladas
perpetuação de uma visão dominante acerca dos em função de uma visão parcelar legitimada pela
recursos naturais, ou seja, da apropriação sempre cientifização e juridificação das políticas e imposta
capitalista da natureza. com o propósito de representação do bem comum.
A partir desse quadro de poder, mas sob a Subjacente a essa intervenção, ancora-se uma contradi-
égide de uma pretensa representatividade e impar- ção ainda mais profunda entre a sustentabilidade do
cialidade conferidas pelos procedimentos formais, capitalismo – que toma o meio ambiente como fluxo
os conselheiros, sem qualquer tipo de constrangi- homogêneo de matérias-primas e energias para a acu-
mulação – e as sustentabilidades das formas de repro- proposta apresentada. Alguns aspectos a considerar:
dução material e simbólica não-capitalistas – que to- planejamento centralizado; participação limitada pe-
mam os meios ambientes como sistemas específicos,
los termos de referência e pelos EIA/RIMAs (Estu-
singulares, diferenciados e, portanto, insubstituíveis
(Zhouri, Laschefski e Paiva, 2005, p. 97). dos e Relatórios de Impacto Ambiental), dificuldades
de acesso à informação; marginalização nas Audiên-
Assim, observa-se que o avanço das institui- cias Públicas e falhas na função de regulação.
ções e normas formais democráticas não garante a
participação e a incorporação, de fato, dos atores Planejamento centralizado
e dos segmentos sociais representativos das distin-
tas formas de existência e interação com o meio, Antes do licenciamento, programas nacionais
pois são constrangidos pelo paradigma da adequa- e estaduais definem o papel estratégico dos proje-
ção no âmbito do movimento maior de globaliza- tos vis-à-vis as linhas gerais de planejamento e os
ção econômica neoliberal (Dagnino, 2004). Leis e recursos que serão disponibilizados para sua im-
normas são interpretadas casuisticamente, de for- plementação. No caso das hidrelétricas, que repre-
ma a adequar meio ambiente e sociedades aos pro- sentam mais de 80% da energia elétrica produzida
jetos técnicos, por meio de medidas de mitigação e no país, papel central é conferido à Agência Nacio-
compensação.9 O processo de licenciamento am- nal de Energia Elétrica (Aneel). Interessante notar
biental, neste paradigma, deixa de cumprir sua fun- que o planejamento das hidrelétricas se dá em refe-
ção precípua de ser um instrumento de avaliação rência a um levantamento do potencial de produ-
da sustentabilidade socioambiental das obras para ção energética dos recursos hídricos realizado desde
ser mero instrumento viabilizador de um projeto a década de 1950. Nenhuma referência ou atualiza-
de sociedade que tem no meio ambiente um recur- ção foi feita em relação ao conhecimento e à legis-
so material a ser explorado economicamente. lação ambiental produzidos pelo país nos últimos
trinta anos. Portanto, o modelo energético mostra-
Problemas político-procedimentais do licenciamento se altamente centralizado e inflexível a outros per-
cursos de planejamento, como aqueles apontados
No âmbito do paradigma da adequação am- por ocasião da crise energética de 2001.10 Os con-
biental e da oligarquização do campo são produzi- selheiros do Copam, entre outros, consideram a
dos problemas procedimentais do licenciamento aprovação de projetos hidrelétricos pela Aneel um
ambiental que conduzem à marginalização das co- fato determinante para a aprovação das licenças. O
munidades atingidas. A falta de transparência é um que se observa, então, é que o destino dos recursos
dos principais empecilhos à participação da popu- naturais e das comunidades ribeirinhas é predeter-
lação. O conhecimento prévio e aprofundado dos minado por alguns planejadores que ocupam posi-
projetos, desde o acompanhamento do planeja- ções-chave na política, na administração e no setor
mento, seria uma forma de promover maior parti- privado, inviabilizando uma ampla discussão com
cipação da população nas decisões. Contudo, o que a população que vive na região de sua instalação.
se vê, apesar da legislação prever o contrário, é a
falta de um mecanismo institucional que, de fato, Termos de Referência e EIA/RIMAs
considere as demandas e o conhecimento das co-
munidades na caracterização dos impactos socio- O Termo de Referência é emitido pelo ór-
ambientais de um empreendimento. Geralmente, gão ambiental (Ibama, Feam etc.) e indica ao empre-
quando as comunidades são comunicadas sobre a endedor quais os aspectos a serem contemplados
possibilidade da instalação de um empreendimen- no EIA/RIMA. Os EIA/RIMAs são os documen-
to, o processo de licenciamento já se encontra em tos que trazem as informações sobre as caracterís-
estágio avançado. Muitas vezes, as decisões já fo- ticas técnicas, socioeconômicas e ambientais de uma
ram tomadas e acordos já foram estabelecidos en- obra de infra-estrutura. Contudo, o Termo de Re-
tre o poder local e os empreendedores. Assim, sem ferência é um roteiro padronizado a ser seguido
o conhecimento das reais dimensões dos impactos por qualquer obra, o que limita o caráter informa-
dos projetos, as comunidades não têm informa- tivo dos EIA/RIMAs no que tange as especificida-
ções suficientes para um posicionamento sobre a des ecológicas, sociais e culturais locais. Muitas fa-
lhas nos EIA/RIMAs advêm do fato de estes se- cópia exclusiva para finalidade de consulta por parte
rem cópias uns dos outros, com apenas algumas da sociedade, e então os documentos estão na
adaptações circunstanciais. Dado a relevância do maioria das vezes sob avaliação em instâncias téc-
EIA/RIMA como base do licenciamento ambien- nicas e jurídicas. Até mesmo a possibilidade de fo-
tal, as comunidades deveriam ter acesso e partici- tocópia de um documento é dificultada, visto ser
par de sua elaboração desde o início, na definição possível apenas nas dependências da instituição e
dos aspectos relevantes a serem estudados pelos pelos valores cobrados por esta, geralmente muito
consultores. O Termo de Referência deveria ser um acima do mercado. Assim, a garantia formal de
documento discutido com as comunidades para publicização e de acesso às informações de interes-
que suas demandas fossem incorporadas desde o se público fica claramente comprometida. Recen-
princípio. Mesmo estando inserido no paradigma temente, portaria da Fundação Estadual do Meio
da adequação, este é um processo adotado em Ambiente (Feam) normalizou condições para o in-
outros países, como a Alemanha, por exemplo.11 deferimento à consulta e ao fornecimento de cópias
Outro agravante na falta de transparência para de processos administrativos mediante situações
a elaboração dos EIA/RIMA refere-se ao papel avaliadas, entre outras, como de “interesse públi-
das empresas de consultoria ambiental. Essas são co” pelo órgão ambiental (Portaria 273 de 13 de
contratadas diretas das empresas construtoras. As- junho de 2005). Este fato coloca claramente em
sim, os consultores tendem a elaborar estudos que questão a transparência e a accountability dos órgãos
não inviabilizem o projeto dos contratantes. Na públicos, além de explicitar um exercício de poder
lógica de mercado, o EIA/RIMA torna-se, então, que se pretende monolítico e impermeável a um
uma mercadoria adquirida pelo empreendedor, cujo arcabouço legal maior que define direitos mais
objetivo é ter seu projeto aprovado pelos órgãos abrangentes de acesso à informação pelo cidadão.
licenciadores (Lacorte e Barbosa, 1995). Além dis- Uma outra ordem de dificuldades remete a
so, sob o paradigma da adequação, os EIA/RI- limitações de natureza simbólica, que dizem respei-
MAs apóiam-se em um discurso técnico-científico to ao formato técnico da documentação. A técnica
e são apresentados, assim, como registros objeti- é um instrumento de significação e imposição de
vos e inquestionáveis da realidade (Lemos, 1999). ordem no mundo. Logo, na luta pela apropriação
Finalmente, o público interessado terá acesso do meio ambiente, ela é o mecanismo pelo qual se
ao EIA/RIMA num estágio avançado do licencia- dá a desqualificação e a deslegitimação das popula-
mento, durante a Audiência Pública, o que impede ções rurais atingidas por projetos de infra-estrutu-
inclusive o atendimento da legislação que afirma ra, como as barragens. Como capital específico do
que os estudos devem contemplar todas as alterna- campo ambiental, o conhecimento técnico torna-
tivas tecnológicas e de localização do projeto, con- se um elemento central de marginalização das outras
frontando-as com a hipótese de não execução do formas de conceber e de expressar visões e projetos
projeto e com a análise dos impactos ambientais distintos para o mesmo território. As falas locais são
do projeto e de suas alternativas (Resolução Cona- vistas pelos conselheiros como emocionais, “cho-
ma 001, de 23/01/86, art. 5o.). Uma discussão so- ramingas” daqueles que têm “interesses” a perder.
bre a necessidade essencial da obra e de alternativas Vale observar que a retórica técnica dos EIA/
possíveis jamais acontece. RIMA não impede a verificação de que são, em
geral, documentos com muitas falhas do ponto de
Dificuldades de Acesso às Informações vista da informação. Erros grosseiros e linguagem
imprecisa tendem a desqualificar os impactos para
Inúmeras circunstâncias de origem prática di- favorecer, assim, o projeto técnico.12 Ademais, uma
ficultam o acesso da população à documentação e visão patrimonialista, cartorial e mercantil, contabili-
às informações sobre o processo de licenciamento. za propriedades atingidas, ou seja, objetos passíveis
Não raro as comunidades estão distantes geografi- de indenização, ao contrário de sujeitos atingidos,
camente das instâncias técnica e deliberativa dos com suas intricadas formas de apropriação e uso
órgãos ambientais. O acesso aos documentos dos do território, além dos diversificados laços societários
processos somente pode ser obtido mediante soli- e culturais. Via de regra, propriedades são desqua-
citação formal e com antecedência. Inexiste uma lificadas no sentido mercantil, enquanto um grande
contingente de sujeitos atingidos, não-proprietári- das hidrelétricas de Capim Branco e Irapé e das
os no sentido mercantil estrito, são invisibilizados. PCHs Aiuruoca e Fumaça, entre outros. Este fato
torna evidente o caráter estritamente político das
Marginalização das Audiências Públicas decisões nos conselhos, uma vez que pareceres téc-
nicos são sumariamente desconsiderados sem qual-
Do ponto de vista da participação da popu- quer justificativa por parte dos conselheiros.
lação no processo de licenciamento ambiental, as Tal fato nos leva a questionar mais profunda-
Audiências Públicas constituem o único momento mente o papel de controle das instituições ambien-
formal em que a participação está prevista durante tais no país. Cabe ao Ibama, assim como à Feam e
todo o processo. Concebido como espaço de deba- demais órgãos ambientais em nível estadual, a ava-
tes sobre a viabilidade dos empreendimentos, na liação sobre as condições básicas para a realização
prática este procedimento configura-se tão-somente das obras de acordo com a legislação em vigor.
como uma formalização do processo de licencia- Essa legislação representa certo consenso da socie-
mento ambiental, um jogo de cena de procedimen- dade em torno da governança ambiental. A arbi-
tos democráticos e participativos. Programadas para trariedade das decisões rompe com esse suposto
uma etapa do licenciamento já em curso, as Audiên- consenso e resulta em obras que causam graves
cias acontecem tardiamente, quando decisões já conflitos sociais e ambientais. Numa inversão do
foram tomadas e as dificuldades de acesso à docu- princípio político, as comunidades, ao defenderem
mentação apontadas anteriormente dificultam uma seus direitos, são vistas como ameaças à democra-
participação informada. Ademais, um agravante do cia e suas manifestações, consideradas um desres-
ponto de vista da transparência e da contabilidade peito à autoridade dos conselheiros. Muitas vezes,
dos órgãos públicos é a inexistência de um procedi- os direitos dos cidadãos são interpretados como
mento formal que garanta um retorno aos partici- defesa de “interesses” particulares passíveis de ne-
pantes das Audiências Públicas, a título de informa- gociação. Assim, os atingidos não são indenizados
ção sobre as questões debatidas, dúvidas e problemas de maneira justa, de forma a reproduzirem seu
emergentes durante uma audiência e que deveriam modus vivendi. Em geral, sofrem perdas materiais sig-
ser de fato incorporados no planejamento da obra. nificativas, fato que se configura como verdadeira
Este retorno, a incorporação de fato do que é de- expropriação. Por meio de “jogos” de mediação,
batido nas Audiências, é matéria obrigatória, pre- as perdas são “legalizadas” quando os atingidos,
vista na legislação ambiental de outros países, como cansados de inúmeras reuniões e negociações, fi-
a Alemanha (Zhouri, Laschefski e Pereira, 2005, p. nalmente concordam com as propostas oferecidas
108; Bunge, 2002). No Brasil, os relatos técnicos (Zhouri, Laschefski e Pereira, 2005, p. 111).13 Vale
das Audiências, em geral, apenas contabilizam os ressaltar que, apesar de reificados nos EIA-RIMAs
participantes e as posições a favor e contra o em- e no processo de licenciamento como um todo, os
preendimento, como num jogo esportivo. O con- atingidos não são vítimas passivas e têm lutado, seja
teúdo do debate raramente consta dos relatos, e as em coletivos locais, seja no âmbito do movimento
dúvidas e questionamentos da população nunca são dos atingidos por barragens e redes de apoio e as-
respondidas. “É por essa via que as comunidades sessoria, para sair da condição de objeto ao se co-
atingidas, como sujeitos ativos, são negligenciadas locarem como sujeitos ativos com quem se deve,
e transformadas em meras legitimadoras de um de fato, negociar (Zhouri e Rothman, 2008).
processo previamente definido” (Zhouri, Lasche- Assim, as falhas apresentadas ao longo das
fski e Pereira, 2005, p. 108). etapas do licenciamento são negligenciadas pelos
conselheiros que apostam nos jogos políticos na
Falhas na Função de Regulação expectativa de que esses acelerem o licenciamento.
Contudo, não observadas as falhas do licenciamento,
Uma prática recorrente no Copam tem sido as comunidades recorrem a processos jurídicos in-
a aprovação de licenças, apesar das recomendações terpostos pelo Ministério Público, o que acaba por
técnicas pelo indeferimento devido à inviabilidade delongar o processo.
socioambiental ou pelo não-cumprimento de con- Neste contexto, mediante a idéia fixa de au-
dicionantes por parte das empresas. Este é o caso mento das taxas de crescimento, corroborada pelas
pressões do setor elétrico, os governos estaduais e desde a Constituição de 1988 vem sendo subsumida
federal têm empenhado esforços para promover pela governança neoliberal global delineada pelo
medidas que acelerem o licenciamento, entendido Consenso de Washington e colocada em prática por
como entrave burocrático ao desenvolvimento. No instituições, esferas e encontros multilaterais diversos.
nível estadual, a portaria que veta o acesso às infor-
mações em caso de decisão do Estado é um exem-
plo, assim como o desmembramento recente da Justiça ambiental e diversidade cultural
equipe técnica da Feam que há quase duas décadas
se ocupava das análises dos projetos de infra-estru- Os problemas de governança ambiental ana-
tura de energia. Após intensa perseguição interna, lisados remetem ao paradigma da “adequação
os técnicos foram alocados em diferentes departa- ambiental”, perspectiva tributária de uma visão
mentos, ficando as análises técnicas a cargo de uma desenvolvimentista, pois ao apostar na “moderni-
equipe menor e menos experiente, além de consul- zação ecológica”, motiva ações políticas que atri-
tores ad hoc, contratados a partir de um banco de buem ao mercado o poder de resolução sobre a
dados da instituição. Esta medida impede claramente degradação ambiental. Como um paradigma refor-
o reconhecimento e a atribuição de responsabilida- mador, a adequação está na contramão dos per-
des pelas análises ambientais, dificultando o acom- cursos que visam à construção de um paradigma
panhamento por parte dos cidadãos, além de am- transformador para a sustentabilidade. Este deman-
pliar o círculo vicioso da troca de papéis entre os daria, para além do foco nas alternativas técnicas
agentes do campo, ora técnicos da Feam, ora con- inseridas no âmbito dos objetivos do mercado, a
sultores das empresas. Em nível federal, o “impas- consideração sobre a finalidade do empreendimen-
se” no licenciamento ambiental das hidrelétricas de to e das ações de conservação vis-à-vis os segmentos
Jirau e Santo Antonio, no rio Madeira, levou ao sociais beneficiados, os potenciais ecológicos de
desmembramento do Ibama em maio de 2007, produção do lugar e as condições sociais e cultu-
sendo que, ao final de 2006, o governo já havia rais das populações envolvidas etc.
encaminhado ao congresso um projeto para acele- Além disso, ao contrário dessa perspectiva,
ração do licenciamento ambiental, considerando o em geral, pela adequação dos processos produti-
“tamanho do impacto” como critério básico para vos, ênfase é dada apenas numa possível “revolu-
o licenciamento através do Ibama e não a localiza- ção da eficiência” em detrimento de um debate
ção do empreendimento. maior sobre a necessária “revolução da suficiên-
Com uma maior centralização, o processo cia” (Sachs, 2000), qual seja, a mudança nos pa-
torna ainda mais distante a participação da popula- drões de produção e consumo da sociedade, base
ção local em projetos de grande impacto. Além de para pensarmos, de fato, a sustentabilidade. É for-
tentar agilizar os processos de licenciamento de gran- çoso, pois, reconhecer que a adaptação tecnológica
des barragens na Amazônia, como as do comple- com vistas a uma maior eficiência na produção (no
xo do rio Madeira e de Belo Monte, o governo sentido do não desperdício no uso dos recursos
tem também como objetivo a aceleração do pro- ambientais e da diminuição das emissões), embora
cesso para construção da usina nuclear de Angra 3. necessária, não é suficiente para garantir a sustenta-
Todos esses são projetos de grande impacto socio- bilidade no sentido amplo – ambiental, social, po-
ambiental e sistematicamente contestados pela po- lítica, cultural e econômica – de toda a sociedade
pulação local e entidades ambientalistas, além de (Leff, 2001).
cientistas. Medidas como estas, que não registram Ademais, pensar a sustentabilidade em uma
as falhas dos projetos, mas tentam atribuir ao meio sociedade tão diversa e desigual como a brasileira
ambiente e à legislação vigente a suposta morosidade requer equacioná-la impreterivelmente à diversida-
dos processos, são pautadas por uma visão estrita- de cultural, à democratização do acesso aos recur-
mente desenvolvimentista que encontra paralelo sos naturais e à distribuição dos riscos da produ-
histórico no regime militar dos anos de 1970. Elas ção industrial. Trata-se de um princípio de justiça
sustentam nossa observação de que a expectativa ambiental (Martinez-Alier, 2001), ou seja, da espa-
de uma governança ambiental preconizada pelo cialização da justiça distributiva (Deutsch Lynch,
avanço do arcabouço institucional democrático 2001). Na nossa sociedade, as considerações sobre
coletivos que aderiram ao paradigma da moderni- 12 Ver análise e exemplos em Zhouri e Oliveira (2005)
zação ecológica, ou adequação ambiental, a partir e Zhouri, Laschefski e Pereira (2005, p. 106).
dos anos de 1980, como analisado por Zhouri 13 Para uma análise detalhada sobre o exaustivo pro-
(2006) a propósito das Ongs e das políticas para a cesso de negociação do Termo de Ajustamento de
Amazônia. conduta referente à barragem de Irapé, consultar
5 O Licenciamento é um procedimento administrati- Zucarelli (2006).
vo e exigência legal do Estado em relação a ativida-
des causadoras ou potencialmente causadoras de
impactos ambientais. Uma discussão mais apro- BIBLIOGRAFIA
fundada sobre o licenciamento ambiental, inspira-
dora desta seção, encontra-se em Zhouri, Lasche- ACSERALD, H. (2004a), “Justiça ambiental: ação
fski e Pereira (2005, pp. 89-116). coletiva e estratégias argumentativas”, in Henri
6 Além do acompanhamento das dinâmicas em ou- Acserald, José Augusto Pádua e Selene Her-
tros estados e em nível nacional com base em pro- culano, Justiça ambiental e cidadania (orgs.), Rio
cessos nos Ministérios das Minas e Energia e do de Janeiro, Relume-Dumará.
Meio Ambiente, na Aneel e na rede de entidades ACSERALD, H. (2004b), Conflitos ambientais no Bra-
que compõem o GT “Energia do Fórum Brasileiro sil. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.
de ONGs e Movimentos Sociais”, seguimos os re- ALTVATER, E. (1999), “Restructuring the space
gistros de que o Conama talvez tenha sido inspira- of democracy”. Ambiente e Sociedade, ano II (3
do no Copam mineiro (Carneiro, 2003). e 4): 5-27.
7 Para o caso do Copam mineiro, consultar Starling BOURDIEU, Pierre. ([1972] 1993), Outline of a the-
(2001). ory of practice. Cambridge, Cambridge Uni-
8 O projeto hidrelétrico Irapé, no Rio Jequitinhonha, versity Press.
orçado no início dos anos de 2000 em torno de 500 BRAUMÜHKL, C & WINTERFELD, V. (2005),
milhões de reais, após quase duas décadas de resis- “Sustainable governance: reclaiming the poli-
tência por parte das comunidades locais atingidas, tical sphere: refelctions on sustainability, glo-
recebeu licenciamento operatório em dezembro de balization and democracy”. Wuppertal Papers,-
2005, quando o Termo de Ajustamento de Condu- 135e. Disponível no site <www.wupperinst.
tas levado a efeito pelo Ministério Público Federal org>.
fez com que a empresa estatal Cemig reconhecesse BRYANT, R & BAILEY, S. (1997), Third world poli-
vários direitos antes negados. Assim, as “externali- tical ecology. London/Nova York, Routledge.
dades” sociais reconhecidas contribuíram para a BUNGE, Thomas. (2002), “As bases legais do es-
duplicação do valor orçamentário da obra. tudo de impacto ambiental”, in Clarita Mül-
ler-Plantenberg e Aziz Nacib Ab’Saber (orgs.),
9 A exemplo da PCH Aiuruoca, projeto que incide
Previsão de impactos: o estudo de impacto ambiental
sobre uma área de APP, dentro da zona de amorte-
no Leste, Oeste e Sul. Experiências no Brasil, Rússia
cimento do Parque Estadual do Papagaio, zona de
e na Alemanha, 2 ed. 1. reimpr., São Paulo,
refúgio da vida silvestre da APA Federal da Manti-
queira, portanto, um ecossistema típico da Mata
Edusp, 2002.
Atlântica, com várias espécies endêmicas ameaçadas
CARNEIRO, Eder Jurandir. (2003), Modernização
de extinção. Uma área, enfim, sujeita a várias legisla- recuperadora e o campo da política ambiental em Mi-
ções de preservação e cujo projeto, não obstante, nas Gerais. Tese doutorado em Sociologia e
obteve licença prévia concedida pelo Copam após Política, Belo Horizonte, UFMG.
sete anos de resistência de movimentos locais. CAVALCANTI, Clóvis. (2004), “Caracterísitcas da
governança ambiental no Brasil”. XXIV Reu-
10 Para mais detalhes, consultar Zhouri, Laschefski e nião da ABA, FP.27 “Antropologia e a práxis
Pereira (2005, p. 102) e Zhouri (2003). socioambiental”, Olinda.
11 O processo, conhecido em inglês como scoping, esta DAGNINO, E. (2004), “Sociedade civil, partici-
previsto na legislação alemã (Gesetz über die Umwel- pação e cidadania: de que estamos falando?”,
tverträglichkeitsprüfung, UVPG, Artigo 5). in Daniel Mato (coord.), Politicas de cidadania y
Este artigo apresenta uma reflexão críti- The article presents a critical view on the Cet article présente une réflexion criti-
ca sobre os significados da noção de go- notion of governance, mainly in the envi- que à propos des sens de la notion de
vernança, sobretudo no campo ambien- ronmental field, with respect to the em- gouvernance, en particulier dans le do-
tal, com referência aos modelos empíricos pirical models represented by the council maine environnemental, en faisant allu-
representados pelos conselhos de política of environmental policies and the pro- sion aux modèles empiriques représentés
ambiental e ao processo de licenciamen- cess of environmental licensing. Environ- par les conseils de la politique environ-
to. A governança ambiental é remetida mental governance is inscribed in the nementale et au processus d’obtention
ao contexto do paradigma da moderni- ecological modernization paradigm, or de permis environnementaux. La gou-
zação ecológica, ou adequação ambiental, adequacy paradigm, centered in the vernance environnementale est renvoyée
centrado nas estratégias técnicas, merca- technical, market oriented and consensus au contexte du paradigme de la moder-
dológicas e no consenso político como building strategies as solutions for the nisation écologique, ou adéquation envi-
soluções para os ditos “problemas am- so-called “environmental problems”. ronnementale, centrée sur les stratégies
bientais”. A análise dos problemas es- Through the analysis of the structural techniques, de marché et sur le consen-
truturais e procedimentais do licencia- and practical problems of the licensing sus politique en tant que solutions pour
mento ressalto os limites desta noção de process, the paper highlights the limits les dénommés “problèmes environne-
governança que se impõe como controle of this notion of governance that im- mentaux”. L’analyse des problèmes struc-
sobre os territórios e as pessoas. Ao final, poses itself upon territories and peoples. turels et de procédure du système de
sublinha-se a necessidade de se colocar At the end, it is stressed the call for permis met en avant les limites de cette
em destaque os princípios da justiça am- principles related to environmental notion de gouvernance, qui s’impose
biental, da diversidade cultural e da trans- justice, cultural diversity and accoun- comme un contrôle sur les territoires et
parência como essenciais para a cons- tability as crucial for the constructing of les personnes. En conclusion, nous sou-
trução de uma sociedade que se quer a sustainable society. lignons le besoin de mettre en avant les
sustentável. principes de la justice environnementale,
de la diversité culturelle et de la transpa-
rence en vue de la construction d’une
société qui se veut durable.