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Viajar por dentro de Arroios

Durante um dia cotidiano, onde quer que estejamos, podemos fazer o exercício da
viagem. Uma viagem por dentro da nossa cidade, dos limites urbanos. A partida, isso pode
parecer uma ideia consoladora para quem não pode, apesar de querer, deixar a casa, tirar
férias e gozar um tempo em outro lugar. Ao considerarmos as atuais circunstâncias
pandêmicas, talvez não seja possível nem ao menos sair de casa nesses tempos de outras
condições para a mobilidade espacial, o que torna mais urgente o despertar do olhar, de um
olhar mais lúcido, encantado e curioso para o que está perto.
Esse despertar é potencial em cada um de nós. Por exemplo: sabe aqueles dias em
que, misteriosamente, um detalhe no caminho cotidiano nos chama atenção para em seguida
transformar nossa forma de olhar? Iniciada a inspiração, sentimos que estamos sendo guiados
pela cidade, e não guiado por nós próprios. A cidade parece se mostrar em toda sua especial
dinâmica e infinitos detalhes, que, de tão singelos, poderiam passar despercebidos.
Eu vivo em Lisboa, na zona de Arroios, há cerca de um ano (espaço de tempo mínimo
para ser considerada moradora, mas não tão curto para ser enquadrada como turista). Guardo
nos olhos boa dose de surpresa, fico sempre um pouco mais apaixonada pelos lugares de
Lisboa. Contaram-me que a área do Intendente era mesmo muito perigosa, espaço de
prostituição e dependência química e que passou por uma requalificação. Nada desse passado
me surpreende, pois as camadas de história desta cidade não foram nem ao nível mais
superficial investigadas por mim. Estou em processo de conhecer Lisboa, e, além disso, sou
brasileira e familiarizada com requalificações em grandes cidades que envolvem complexidade
social. Aqui, em Intendente, Anjos, Arroios — e os outros bairros: dos Castelinhos, Andrade,
das Colónias, de Inglaterra —, eu caminho ainda pela superfície, a partir de estratégias que
estou a inventar. Estratégias de morar que, conforme Michel de Certeau (no livro A Invenção
do Cotidiano), tem segredos que envolvem táticas de caminhar e de percorrer as imediações.
Para viajar por Arroios, bairro e freguesia charmosa, diversa, multicultural e dinâmica,
é conveniente começar um ir e vir pela avenida central, a Almirante Reis, e vagar em linha reta
sem importar-se com a direção: ou para os lados de Areeiro ou a caminho da Baixa. Pisar a
Almirante Reis e avistar Fernão de Magalhães na Praça Chile, e ver além, ver China, Índia,
Nepal, falar e escutar português, “brasileiro”, inglês, espanhol, francês (são 92 nacionalidades
e cerca de 40 mil pessoas, de acordo com a Junta da Freguesia de Arroios). Em várias partes de
Lisboa é possível viajar de modo local e global ao mesmo tempo, mas a diversidade parece
mais acentuada por esses lados em que misturam-se turistas, imigrantes, moradores de rua,
boêmios, bikers, runners, praticantes de baiseball, patinetistas, comerciantes porta a dentro e
encostados nas portas, e eventuais lunáticos — além de pombos.
Essa atmosfera de Arroios, concentrada na Almirante Reis, diz muito sobre a essência
dessa parte lisboeta. De modo que os limites territoriais que realmente nos importam,
enquanto viajantes-moradores ou moradores-turistas, são os que nos fazem notar estarmos
ou não em Arroios. É claro que é interessante saber onde começa e termina essa organização
da administração pública que resulta da fusão das freguesias Anjos, Pena e São Jorge de
Arroios. Essa curiosidade, contudo, é puramente cuidadosa, para evitar falarmos de Arroios
nos referindo a outro espaço de Lisboa. Do ponto de vista dos caminhantes e pessoas que se
deslocam na cidade, pouco importa se passaram um pouco do limite e chegaram a Penha de
França, ou Areeiro: importa mais saber como a identidade dessa zona é percebida por quem a
cruza, a frequenta e toma algum nível de contacto com ela.
A área compreendida pela Junta de Freguesia de Arroios é feita de partes altas e partes
baixas que formam um tipo de vale cujo principal rio é a avenida Almirante Reis — definida por
Kalaf Epalanga, no Guia Ler e Ver Lisboa, como a artéria mais cosmopolita da cidade (pulsante
e calorosa). Hoje em dia, ao invés de águas (que o site da Junta da Freguesia informa sobre a
abundância delas e terras férteis no passado), escorrem com mais visibilidade para o leito da
Almirante: pessoas e carros, motas e carrinhos de bebês conduzidos por mulheres com véus,
homens concentrados em frente a cafés a falarem ao telemóvel, senhoras com carrinhos de
compras de mercado. São perceptíveis vários territórios — pense o território da Martim
Moniz, o Largo do Intendente Pina Manique. Territórios erguidos durante o dia e outros
construídos a cada anoitecer. Territórios feitos de moradia sem paredes e portas, os espaços
em que presta-se assistência social e os de glamour.
A paisagem sonora de Arroios: badaladas marcando o tempo diário, gaivotas,
conversas em línguas que conhecemos mas com sotaques que apenas suspeitamos, e outras
vocalizações da linguagem que só arriscamos associar a alguma língua ao observar as pessoas
que as falam. A depender do território, escutamos risadas, música ambiente, copos brindando,
gritos de jogadores, eventualmente um desentendimento, muitas businas, sirenes de
ambulâncias e de carros da polícia. Antes da Covid 19 e todo o impacto na boemia local, ouvia-
se com mais intensidade garrafas se quebrando, cantos em grupo de jovens erasmianos nas
imediações do Crew Hausen, Bus, Desterro, Anjos 70.
Para além dos ouvidos, sente-se Arroios também com a pele: as rajadas de vento que
levam embora algumas cismas pessoais, a brisa fresca e convidativa que costuma estar pelo
Largo do Intendente; quando é inverno, o calor das portas das marisqueiras da Almirante Reis.
Alguns pontos de Arroios são como imã para nossa necessidade de descansar as pernas—
bancos no Campo Mártires da Pátria, na Praça José Fontana; de nutrir o espírito e o intelecto
na Biblioteca São Lázaro, na Leituria, na livraria Sistema Solar e na Tigre de Papel; de conviver:
no Mercado de Arroios, na esplanada do Jardim Constantino, no Brick Café; de ampliar os
horizontes por meio da meditação em quadros de paisagem no miradouro do Monte Agudo.
Gosto de avaliar que existem muitas camadas de Arroios a serem percorridas com
espírito sensível, livre e crítico. Viagens da alma com paciência de investigador, viagens
detalhistas com trânsito livre como o dos artistas, viagens comuns com muito diálogo e
encontro. Irei iniciar 4 jornadas pela área da Freguesia de Arroios.
A primeira viagem será pelas paisagens e vistas dessa freguesia, por meio da qual
exploraremos a geografia, o urbanismo, a memória cultural, sem dispensarmos os
sentimentos, as sensações e as perguntas contempladas pela compreensão da paisagem.
A segunda viagem será pela cartografia social da região de Arroios por meio de uma
perspectiva focada simultanemante no passado (nomeado em ruas, largos, praças, edifícios
públicos e monumentos) e no presente (nos grupos urbanos, nos públicos, nos territórios).
Vamos conhecer mais da história e da configuração social-urbana dos espaços públicos da
zona.
Já a terceira viagem será uma busca pelas áreas verdes e tudo que associa Arroios a
uma área verde e sustentável, incluindo o passeio por jardins, hortas comunitárias e comércio
“verde”, ações em prol do meio-ambiente, projetos socioambientais.
Na quarta viagem, o percurso será definido por uma curiosidade: quais novos arranjos,
ações, movimentos a favor da vida, da solidariedade social, da manutenção dos espaços
comerciais e culturais estão a ser inventados no atual contexto de crise?
O mundo está nos lugares e os lugares fazem o mundo. Esse pode ser ampliado e não
corresponder às visões que construímos e mantemos congeladas dentro de nós por nos
proporcionarem certo conforto. Os tempos do agora, contudo, são tempos de reestruturação
e renovação e, independentemente da idade, da nacionalidade, da profissão e dos interesses,
estão todos convidados para seguir comigo a desenhar novos trajetos por Arroios.
Vamos a isso! Viajar por dentro de seu bairro, freguesia ou cidade é como entoar um
mantra preparatório; repetir, repetir, até ter a resposta para a pergunta: quem sou eu como
viajante? De onde venho, o que mais me chama a atenção aqui, o que me incomoda (níveis de
estranhamento), o que me parece banal e em que aspectos sou capaz de concordar com a
maioria? Exercitar a observação e a crítica. Em segundo lugar, viajar por dentro estimula a
abertura das “janelas interiores”para os afetos que, de fora, iluminam os de dentro, de modo a
percorrer, olhar, sentir e perceber para percorrer, olhar, sentir e perceber dentro de si.

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