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Alonso saiu do banheiro, sem sorrir.

Olhou pra mesa onde


o dia em que Alonso sorriu estava o pão e não sorriu. Respondeu que não queria comer
nada para uma pergunta que não existiu, de novo sem sorrir.

Naquela terça, Alonso acordou cedo, tinha tirado a - Mas tu precisa comer, vai de estômago vazio? – Perguntou a

semana de férias. Levantou e foi andando lentamente até o esposa;

banheiro enquanto sentia a perna tremer. Olhou no espelho, - Que que adianta? Bucho cheio ou vazio, ele vai me rodar de
lavou o rosto com as mãos fazendo um movimento circular do novo – retrucou, ainda sem sorrir. Depois de um silêncio,
meio do rosto para as pontas, esticando a testa e as bochechas, prosseguiu: - É sempre assim, já foram duas... aquele miserável!
pensava que fazer o contrário criaria mais rugas. Fez a barba Tu sabe que a gente não se dá!
olhando para os poucos cabelos que restavam, respirou ***
tomando coragem e pensou não... dessa vez, não! “Aquele miserável” era a descrição preferida de Alonso
Na cozinha, a esposa arrumava um pão com mel pro café. para se referir ao Marafiga. A relação dos dois era antiga, já
Depois de tudo pronto, como de costume, abria o armário naquela época, e perdurou por mais bons longos anos. O
aéreo para retirar do pacote um maço de cigarros para o dia. O Marafiga era amigo da maioria dos amigos dele, principalmente
pacote branco, com letras estridentes que formavam a palavra do Baltazar. Os anos de amizade-ao-contrário iniciaram logo
Bill na mesma cor do olho do então presidente dos Estados que se conheceram e foram se afirmando com o passar dos
Unidos, ficava escondido atrás do pote de metal que guardava domingos. A cada domingo, o grupo de amigos se reuniam no
erva-mate. Retirou duas carteiras e as pôs em cima da mesa. bolicho da outra vila para jogar bocha, tomar samba, falar de
Nessa o único filho comia olhando para o vão da porta do futebol, tentar falar de política, mas só reclamar; cantar verso e
quarto, avistando a parede verde riscada de giz branco, competir na tal da prosa. A cada domingo surgia uma nova
desenhos lineares que havia feito nas férias. fagulha, um novo motivo para se olharem atravessado. Quando
um competia na prosa, o outro secava; um era gremista e não chave de seu Fusca branco, ano 74, foi em direção à mesa,
aceitava desaforo mesmo com o time em má fase, o outro era movimentou o braço por cima dela, passou pelo pão e pegou a
colorado e o deboche por estar em melhor momento era carteira de cigarros. Bateu com dois dedos duas vezes sobre o
merecido; um tava se filiando ao PT, outro tava fazendo lado fechado para os cigarros pularem pelo lado aberto.
campanha para um vereador de um partido antagonista. Foi Acendeu um Bill e caminhou pela casa até a porta, onde parou
questão de tempo até surgir uma rivalidade. e ficou olhando o tempo se armar. - Não faz chover São Pedrô!

Ainda se os encontros fossem resumidos aos domingos – Gritou para ninguém. Voltou, pegou a carteira e conferiu

naquela cancha de bocha, talvez a rivalidade virasse algo mais dinheiro, apagou o cigarro no cinzeiro de vidro e respirou forte

amigável. Mas o Marafiga era avaliador das provas de motorista soltando fumaça pelo nariz.

da cidade e até aquela terça já havia reprovado o Alonso duas - Leandro! Tu vai comigo.
vezes. Na época, as provas para tirar a carteira de motorista O guri e a esposa acharam estranho. O Leandro não discutiu,
eram realizadas no próprio carro de quem estava fazendo a sabia que não levaria a nada, levantou e foi trocar de roupa. Ela
prova. Alguém já com carteira deveria levar o carro para quem pestanejou, pensou, olhou, respirou fundo e já com medo da
faria a prova, esperar a prova ser realizada e depois trazer o resposta perguntou:
carro de volta. - Mas quem vai ser teu motorista?
*** Sem sorrir, ele franziu a testa e respondeu:
Enquanto Alonso se arrumava para a batalha, na cozinha - Eu não preciso de motorista, eu sou meu próprio motorista,
a esposa e o filho permaneciam em silêncio. Isso não quer dizer sou braço!
que não comunicavam nada, pelo contrário, é que o clima de Houve então um momento de leve discussão, mas nada tão
apreensão já falava tanto que a cada troca de olhares já não importante para mudar o rumo da história, cuja única
havia nada mais a ser dito. Entrou no quarto e voltou com a consideração importante é que ao final Alonso saía de casa com
seu filho, enquanto a esposa olhava para cima, para baixo, para que eu mesmo faço – olhou pro lado e terminou: - E traz um
o nada, balançando a cabeça com ar de reprovação. Entraram refri pra esse guri.
no carro e logo o Fusca descia de ré pela garagem. Os Obviamente o filho não gostava nada daquilo, mas também não
retrovisores foram checados e ajustados antes de passar pelo se sentia na posição de julgar, de modo com que perdeu
portão e pedal do freio sentia o toque de uma perna a tremer. qualquer pensamento e conseguiu ter apenas um pequeno
*** diálogo envolvendo palavras como “terça-feira”, “manhã”,
A primeira quadra a ser percorrida para chegar no lugar “beber”, “dirigir”, “prova”, “Marafiga” e “chega! ”, também
da prova era uma subida, não importava o caminho que se insignificante para o rumo da história. O seu Ari voltou com
tomasse. O Fusca subiu pela rua mais íngreme dentre as uma garrafinha de vidro de Coca fechada, uma de Sprite aberta
possíveis, soltando uma fumaça preta que assustava os e com canudos dentro, um copo grande com três pedras de gelo
cachorros da rua e, para a surpresa do filho que acompanhava e um copinho de cachaça. Não demorou muito e ele trouxe um
o pai, quando alcançou o topo da mesma o auto parou no segundo copinho de cachaça.
acostamento. Lá em cima tinha um bar, o Bar do Ari. Os dois Ainda sem sorrir, Alonso degustou cada gole
desceram do carro e entraram no bar, Alonso sentou em um vagarosamente, entre um gole e outro olhava para o relógio de
dos bancos que ficavam ao balcão, olhou em volta, viu um pulso, os ponteiros finos encontravam os números romanos e
conhecido, seu Antônio, e cumprimentou balançando a cabeça anunciavam no contraste com o fundo dourado que a hora de
pra frente com a gíria da época: - óh! ir estava mais perto a cada vez que ele olhava. Entre uma e
Antes do seu Antônio responder apareceu o seu Ari: - Ô seu outra conversa sobre qualquer coisa com o piá, o relógio prata
Alonso! Quê que manda? balançava no pulso e se ajeitava para a vista como um grito.

De pronto ele respondeu: - Ari, me vê um samba. Pensou um ***


pouco e completou: - ou melhor, traz uma coca e aquela boa Último gole! Não, voltou o copo da boca e observou o
liquido preto dançar mais um pouco. “Agora sim! ”, e de um - Eu não preciso de motorista, o carro tá parado.
golão só: agora aquele Marafiga me paga! ” - precisava de alguém pra te trazer e pra te levar de volta, ou tu
- Ari, pendura aí pra mim! vai deixar o carro aí?
Saiu do bolicho, entrou no carro e arrancou em direção ao - Pra volta eu já vou ter carteira! – Respondeu, com o
destino. Conforme ia chegando perto do local da prova sua olhar vidrado.
testa franzia e a expressão facial ficava cada vez mais séria.
O Marafiga sorriu, ou melhor, esboçou o início de um
Talvez não fosse possível ficar mais séria do que já estava, mas
sorriso e parou, como quem escuta uma piada e só depois
agora ela parecia dizer algo como “é tudo uma m* mesmo! ”.
entende que ela lhe ofende. No lugar do sorriso colocou um
Logo que dobrou a última esquina, avistou o Marafiga na outra
olhar irônico, virando o rosto de leve só para poder olhar de
quadra, parado com uma prancheta na mão e olhando para o
canto por cima dos óculos e comentou: – Muito bem, tu já sabe
relógio de pulso. Parou o carro no lugar marcado, disse pro guri
o procedimento – riu por dentro, respirou e olhou de frente
descer e logo saiu.
apontando com o dedo para aquilo que falava – dá uma volta,
– Tu tá atrasado, seu Alonso! – Comentou o Marafiga.
para na subida, dá balão pra voltar e faz a baliza, depois arranca
- Achei que fosse dez e meia- Respondeu.
e estaciona.
- Tá bem! E como que tu anda? Como vai o Grême?
***
Perguntou o Marafiga, com um sorriso debochado.
O Leandro ficou ali do lado do Marafiga, olhando tudo
“Colorado de uma figa”, pensou antes de responder: - Não vi o apreensivo enquanto seu pai entrava no carro. Alonso sentou e
jogo, mas não vim aqui pra falar de time, depois do Grenal tu ligou o Fusca sem pensar, a perna tremeu realizando o
me pergunta, ou durante se tu também for ver no bar do comando do primeiro arranque, mas o Fusca branco foi saindo
Leonir. de vagar com a seta ligada. Ou assim ele imaginava que tivesse
- Tá certo! E cadê teu motorista? sido.
Gotas de suor escorriam de perto dos poucos cabelos, ver? Olha aqui... –
passando por toda a testa até encontrar a sobrancelha grossa, Ligou o carro bem rápido, tentou arrancar e o Fusca apagou de
mas o mesmo olhar concentrado dava a entender que podia ter novo.
uma tempestade na frente dos olhos que seria como se nada - Viu só? É o carro!
estivesse acontecendo. Parou o Fusca na subida, arrancou, deu - E tu sabe consertar?
a volta e a partir desse momento alternou olhares para com o - Mas Craro que sei, so mais que motorista!
painel do Fusca, a estrada e o Marafiga. Passou do lado dele, deu
- Conserta então.
uma olhada pro não-amigo e entrou na baliza com perfeição. Na
Alonso saiu do carro rápido, sem pestanejar, foi até a
hora de arrancar, olhou de novo pro lado, o Marafiga estava
traseira do Fusca e abriu a parte do motor. Desencaixou uma
cuidando atentamente como se torcesse pra algo dar errado, a
mangueira que deveria ser quase transparente, mas estava
perna tremeu, tremeu mais um pouco, parou e voltou a tremer
preta, com algo que parecia fuligem. Colocou uma parte da
justo quando estava soltando a embreagem e o carro apagou,
mangueira na boca e soprou um pouco. Saiu o que parecia uma
num soco, num pulo! E num riso do Marafiga.
poeira negra, mas bem pouco. Olhou pro filho que estava
– Então tá seu Alonso, pode sair do carro e chamar alguém pra
parado na calçada do outro lado da rua e abriu um sorriso.
vir te buscar.
Gargalhou por dentro.
- Negativo! – Olha aí, não te disse, tá afogado por causa dessa mangueira
- Como assim negativo? Tu apagou o carro, sabe que isso roda. suja!
- Negativo! Eu não apaguei nada, foi falha mecânica. Olhando pro filho, tomou ar como quem dá um último suspiro,
- Falha mecânica? – Questionou rindo – Tu apagou o carro, olhou pro Marafiga e soprou bem mais forte. Dessa vez saiu
Alonso. muita poeira preta, tanta que o Marafiga que estava perto deu
- Foi culpa do carro, esse fuca que afoga de vez em quando, quer um pulo para trás com medo de se sujar. Alonso deu mais um
sopro, com todo o fôlego que tinha e colocou no lugar. passando a ponte, era só contornar uma curva e dobrar a
- Agora sim, agora vai pegar! primeira à esquerda. O Fusca andava pela estreita estrada de
- Então agora não vai ter desculpa? – Completou o Marafiga. terra soltando as pedras da rua. Alonso guiava fazendo
Sem responder, entrou no carro, ligou de vagar, esperou um pequenos ziguezagues com o volante, pensava que não poderia
tempo e arrancou acelerando até terminar a prova. fixar o voltante por conta das pedras soltas na rua. As rodas

- Então tá seu Alonso, tá aprovado. Parabéns! Só tem uma coisa, driblavam as pedras e as apertavam contra o solo, jogando a

tu não ganha a carteira agora, vai ter que chamar um motorista. maioria delas para o acostamento, mas algumas iam para a parte

- O meu motorista sou eu – disse entrando de volta no Fusca interna do auto e batiam em baixo dele, fazendo um barulho

onde já estava o filho e saindo, olhando o Marafiga pelo forte e estranho que deixavam o guri desconfortável a ponto

retrovisor e dando adeus com as sobrancelhas. de segurar forte com as duas mãos na lateral do assento do
banco.
***
Alonso voltou para casa, mas não sem antes passar mais
uma vez no Bar do Ari. Almoçou e dormiu. De tarde, levantou Na curva depois da ponte, a rua de terra e pedras soltas
e foi na cozinha. ficava ainda mais estreita por causa das valetas que se
– Leandro, te arruma, vamo lá no Baltazar. formavam com a chuva e desaguavam no córrego. Tal como na
O guri se arrumou e em questão de segundos estavam a ponte, que continha tábuas horizontais para formar a base, e
caminho da casa do amigo. um par de tábuas verticais que orientavam o caminho que as
O Baltazar morava do lado da casa do Marafiga, em uma rodas deveriam percorrer; naquela parte do caminho
vila com ruas de terra, que só poderia ser acessada por um geralmente só passava um carro por vez. Logo que entrou na
único caminho, no qual havia uma ponte de tábuas para curva, Alonso avistou que do outro lado dela apareceu um
atravessar um córrego. Para chegar na rua da casa deles, carro e parou o Fusca. Em seguida pensou que aquele Chevette
bordô, ano 74, só podia ser de uma pessoa daquela vila e muito tentando não deixar o carro cair na valeta, passando pouco a
provavelmente da cidade toda. pouco do lado um do outro, quase colados. Quando as janelas
Do outro lado da curva, dentro do Chevette, o Marafiga se encontraram, pararam um pouco e se olharam. Logo depois
pensava a mesma coisa: “esse Fusca branco só pode que é....” o Marafiga abriu a boca, pegando ar para falar alguma coisa, mas
Alonso parou de parar o carro e os dois foram se antes de sair qualquer escutou uma voz de dentro do fusca:
aproximando até se verem pelos para-brisas e confirmarem de - Não comprei minha carteira!
vez as suspeitas. De dentro do Fusca deu pra ver o Marafiga
segurando uma mão no volante e levantando a outra,
mostrando-a com os dedos para baixo e balançando “volta de
ré”. Logo depois o mesmo sinal com a mão, fechada virada para
baixo movimentando de trás para frente saiu do motorista do
Fusca. Mais uma vez o Marafiga fez um sinal, só que agora a
resposta foi precedida por um sinal de “não” e completada com
o mesmo gesto que dizia “tu volta e eu passo!”.
Depois de um tempo nesse impasse, Alonso olhou pro
filho e riu, grunhiu algo como “mas esse bosta...”, abriu a janela
do Fusca e encolheu o espelho. Prontamente o Marafiga abriu
a janela do Chevette e também encolheu o espelho. O Leandro
olhava como quem não acreditava no que estava vendo. Os dois
foram de mansinho para os respectivos lados direitos da pista

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