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46 COMO HAVEMOS DE IVER? limitem a prometer maior prosperidade material a cada eleitor. (Na Nova Zelandia, apés uma década na qual os principais partidos concordaram em reduzir 0 imposto sobre o rendimento e a cortar na despesa piiblica, 0 re- ‘cém-formado Partido da Alianca (Alliance Party) pro- metet que, se for eleito, aumentard os impostos ~ argu- mentando que vale a pena pagar um bom sistema iiblico de satide, seguranca social e educacao. As son- dagens realizadas sugerem que o Partido da Alianca esté suficientemente bem colocado para constituir uma ameaga para 0s principais partidos.) Hé uma vida melhor em aberto, para nés— em to- dos 0s sentidos do termo, excepto o sentido tornado do- minante pela sociedade de consumo que promove a aquisicdo como padrao do que é bom. Quando nos con- seguirmos livrar da concepcao dominante da vida boa, podemos novamente trazer para o centro do palco as questoes acerca da preservacao da ecologia do planeta ce acerca da justica mundial. 56 entéo podemos esperar assistira uma renovacio da vontade de lidar com a raiz, que provoca a pobreza, o crime e a destruicio a curto pprazo dos recursos do nosso planeta. Uma politica basea- da na ética poderia ser radical, no sentido original do termo: ou seja, poderia alterar as coisas partir das raizes, ETICA E INTERESSE PROPRIO. Subsistem diividas pessoais acerca da ética. Viver ticamente, supomos, seré duro e desconfortével, en- volvera sacrificio proprio e, em termos gerais, nao seré compensador. Vemos a ética como contrapondo-se 20 interesse proprio: pressupomos que aqueles que fazer. A ESCOLA ULTIMA "7 fortuna recorrendo a informagoes internas ignoram a Gtica, mas sao bem sucedidos na satisiacao dos seus in- teresses (desde que nao sejam apanhados). Nos proprios fazemos 0 mesmo, ao aceitar um emprego no qual a re- muneragdo 6 superior 4 de outro, mesmo significando isso que estamos a ajudar a fabricar ou promover um produto que nao faz qualquer bem ou, na verdade, faz adoecer as pessoas. Por outro lado, considera-se que ‘quem recusa oportunidades de subir na carreira devido 4 «escrtipulos» éticos sobre a natureza do seu trabalho, ‘ou quem doa a sua riqueza a boas causas, esta a sacrifi- car 08 seus interesses proprios de forma a obedecer aos, ditames da ética. Ainda pior, podemos consideré-los, palermas, desperdicando todas as coisas boas de que poderiam usufmuir, enquanto outros se aproveitam da sua generosidade initil, Esta ortodexia corrente acerca do interesse proprio eda ética traca um quadro da ética como algo externo a 1nds, hostil mesmo aos nossos proprios interesses. Vemo- nos constantemente divididos entre o impulso de con- tribuir para 0 nosso interesse proprio e o receio de ser- ‘mos apanhadosa fazer algo que 0s outros condenarao, pelo qual seremos punidos. Este quadro esta arraiga- cdo em muitos dos mais influentes modos de pensar na nossa cultura. Encontra-se nas ideias religiosas tradicio- nnais que prome:em recompensas ou ameagam castigos para 0 bom e o mau comportamento, mas remetem a Fecompensa ou castigo para outro reino e, assim, tor- ham-no externoa este mundo, Encontra-se também na ideia de que os seres humanos se situam no ponto inter- médio entre o céu ea terra, partilhando o reino espiritual dos anjos ao mesmo tempo que estao aprisionados pela 48 COMO HAvEMOS DE VIVER? sua natureza corporalmente grosseira a este mundo das bestas, O filésofo alemao Immanuel Kant retomou esta ideia ao retratar-nos como seres morais apenas na me- dida em que subordinamos 05 nossos desejos fisicos naturais as ordens da razdo universal que percebemos, através da nossa capacidade de raciocinio. & facil ver uma relagdo entre esta ideia e a visio de Freud das nossas, vidas dilaceradas pelo contfito entre id e super-ego. ‘A mesma assuncao de conflito entre ética e interes- se proprio subjaz a fundamentacéo da economia mo- derna. E propalada em apresentacdes pablicas de sociobiologia aplicada a natureza humana. Livros como ‘ode Robert J. Ringer, Looking Out for # 1, que esteve na lista do The New York Times dos livros mais vendidos du- rante um ano inteiro e ainda se vende substancialmen- te, dizem a milhées de leitores que colocar a felicidade de alguém acima da nossa propria felicidade ¢ «perver- teras leis da Natureza».*A televisdo, tanto nos seus pro- gramas como nos antincios, veicula imagens materia- Tistas de sucesso a que falta contetido ético. Como Todd. Gitlin escreveu, no seu estudo sobre a televisao norte- -americana, Inside Prime Time: [.u1.¢ hordrio nobre mostra-nos pessons preocupadas com a anibigio pessoal. Se no completamente consumidas pela amtbigio e 0 receio de acabarem como falhadas, estas personagens tomam tanto a ambigdo como 0 receio como 18, Robert]. Ringes, Looking Out or #1, Fawcett Crest, Nova Torque 1978, PB AESCOLHA tLTINA ° _garantidos. Sendo rodeadas de grandes quantidades de bens de consumo de classe média, elas préprias sto encarnagdes {fascinantes do desejo. A felicidade por que almejam 6 prioa- ‘a, ¢ néo pablica: fazem poucas exigéncias a sociedade en- quanto todo e, mesmo quando perturbadas, parecem satis- {fazer-se com a ordem institucional vigente. A ambigao pessoal eo consumismo so as forcas motrizes das suas vi- ‘das. Os cenirios sumptuosos ¢ofuscantemente iluminados ‘da maior porte das séries equivalem a aniincios a uma ver- ‘so centrads no consumo da vida boa, eisto nem sequer tem ‘em conta 0; antincios incessantes que veiculam a ideia de que as aspiragdes humanas @ liberdade, ao praze,@realiza- ‘io pessoal e ao estatuto podem ser satsfeitas no reino do consumo. ‘A mensagem é fortemente veiculada, mas algo esté cerrado. Hoje em dia, a afirmacio de que a vida nao tem significado ja nao nos chega dos fildsofos existencialistas| que a tratavam como uma descoberta chocante: chega- nos das bocas de adolescentes aborrecidos, para quem é ja um trufsmo. Talvez o responsavel por isto seja 0 lugar central ocupado pelo interesse proprio, e a forma como concebemos o nosso proprio interesse. A busca do inte- resse proprio, tal como é geralmente concebido, corres- ponde a uma vida sem qualquer significado que nao 0 ‘nosso proprio prazer ou satisfacao individual. Uma vida assim é, frequentemente, uma empresa que se anula a si propria. Os artigos conheciam 0 «paradoxo do hedo- 19, Todd Git, Inside Prime Tine, Pantheon, Nova Torque, 1983, pp. 2689, 50 ‘COMO HAVEMOS DE VIVER? rnismo», segundo o qual quanto mais explicitamente nés perseguissemos 0 nosso desejo de prazer, mais inapre- ensivel descobrririamos a sua satisfacio, Nao hi razao para acreditar que anatureza humana mudou tao drasticamen- te a ponto de tornar inaplicavel esta sabedoria antiga. ‘As questdes sdo antigas, mas o investigador mo- derno nao esta limitado as respostas antigas, Embora 0 estudo da ética possa nao progredir da forma extraordi- néria como progride o estudo da fisica ou da genética, durante o iltimo século conheceu-se muita coisa. O pro- sesso ndo apenas na drea da filosofia, mas também na das ciéncias, contribuiu para 0 nosso conhecimento da ética. A teoria da evolucao ajuda-nos a responder a per- ‘guntas antigas acerca dos limites do altruismo, A «teo- ria da escolha racional» — ou seja, a teoria sobre o que & escolher racionalmente em situagdes complexas que envolvem incertezas ~ chamou a atencao para um pro- blema nao discutido pelos pensadores antigos, conhe do como « Dilema do Prisioneiro». A discussio moder- na deste problema sugere que quando cada uma de duas ‘ou mais pessoas, agindo bastante racionalmente, deliberadamente, e com a melhor informacao possivel, persegue independentemente os seus interesses, podem. ambas acabar pior do que se tivessem agido de forma ‘menos racionalmente centrada nos seus interesses. A exploracao deste problema revela modos nos quais a natureza humana pode ter evoluido por forma a ser ca- paz de mais do que o mero interesse proprio. Também 0 pensamento feminista moderno nos obrigou a reflectir na possibilidade de o anterior pensamento sobre ética ter sido limitado pelo predominio de uma perspectiva masculina do mundo. O mesmo poders ser verdadeiro A ESCOLA ULTIMA 51 relativamente a nossa concepgéo de interesse proprio. O dilema do prisioneiro, 0 paradoxo do hedonismo e as influéncias feministas no pensamento ético constituem alguns dos temas abordados mais adiante, neste livro, de modo a desenvolver uma nova e mais abrangente concepgao de interesse proprio. Neste ponto, a ica regressa para completar 0 nos- so quadro, Uma vida ética é aquela em que nos identifi- ‘amos com outros objectivos, mais amplos, conferindo assim sentido as nossas vidas. A perspectiva de que a vida ética e a vida do interesse proprio esclarecido sao uma e a mesma ¢ antiga, mas é agora frequentemente desdenhada por quem é demasiado cinico para acredi- tar em tal harmonia, O cinismo respeitante ao idealis- mo ético nao passa de uma reacgao compreensivel a grande parte da historia moderna: por exemplo, a for- ma tragica como 0s objectivos idealistas de Marx e dos seus seguidores foram pervertidos pelos lideres comu- nistas russos até conduzirem, primeiro, ao terror estali- nista e, depois, a ditadura completamente corrupta da cra de Brejnev. Com tais exemplos perante nds, ndo ad- mira que o cinismo tenha mais adeptos do que a espe- ranga num mundo melhor. Mas podemos ser capazes de aprender com a histéria. A opiniao antiga era a de que uma vida eticamente boa é também uma vida boa para a pessoa que a vive. Jamais foi t20 urgente que as raz6es para aceitar esta visdo mais antiga sejam ampla- ‘mente compreendidas. Para isso, temos de por em cau- saa visio do interesse proprio que domina a sociedade ocidental ha muito tempo. Entao, a existir uma alterna- tiva vidvel aesta perspectiva,a escolha tiltima pode, afi nal de contas, ter uma solugio racional A ‘COMO HAVEMOS DE VIVER? tacdo dos sem-abrigo que nos diz. mais do que as suas, causas. Quando 0 nimero de pessoas a viver nas ruas comegou a aumentar drasticamente durante 03 anos da administracio de Reagan, a primeira reacgao foi de cho- (que e de exigéncia de que se fizesse qualquer coisa. Mas ‘0 choque depressa esmoreceu. Como refere a revista Time, «Ap6s anos a saltar obstéculos sobre corpos em cestacdes ferrovidrias, a ser empurrados por mendigos nas ruas, muitos habitantes urbanos passaram da pie- dade ao desprezo e j4 nao sao afectados pelo sofrimen- toa que assistem. ‘A presenga visivel dos sem-abrigo ¢ agora apenas ‘mais uma faceta da vida americana. Embora tenha ha- vvido muitas iniciativas locais para se fazer alguma coisa em relagéo a questao, nao houve qualquer grande es- forgo a nivel nacional para resolver o problema. No final dos anos de Reagan, 0 governo federal gastava anual- mente 8 mil milhoes de délares em habitacao, compa- rados com os 32 mil milhdes de délares despendidos no final da administracao de Carter, quando 0 problema dos sem-abrigo estava muito menos disseminado. Todavia, durante estes mesmos anos, as taxas de imposto sobre 0 rendimento decresceram. Nessa altura, mesmo 0s ele- ‘mentos mais ricos da sociedade — aqueles que auferem de um rendimento tributavel superior a 200 mil délares anuais ~ pagavam um imposto federal sobre 0 rendi- mento de apenas 24 por cento. Se tivessem sido tributa- dos segundo as taxas de 1979, ter-se-ia conseguido 82 mil milhées de délares suplementares ~ muito mais do 16, Tne, 17 Dez 1990. -QUE LUCRO EUCOM ISSO” 6 que aquilo que foi poupado através da diminuicéo do orcamento destinado habitacio. Uma sociedade que prefere reduzir as taxas dos impostos cobrados aos mui- to ricos em vez de ajudar os pobres e sem-abrigo deixou de ser uma comunidade em qualquer sentido real do termo. A PERDA DA COMUNIDADE Um importante factor que contribui para a limita- io da perspectiva individual € o deficiente sentido de ‘comunidade que resulta do facto de tantos americanos virem de outro local qualquer e, provavelmente, irem novamente para outro lugar ainda, dentro de poucos anos. Fm nome da eficiéneia cconémica, as empresas deslocam o pessoal a medida das suas conveniéncias, € recusar tum convite para ser deslocado € arriscar ser to- mado por pouco sério relativamente a respectiva carrei- ra, Os autores de Habits ofthe Heart notaram que as pes- soas que entrevistaram pareciam muitas vezes lesquecer-se daquilo que tinham recebido dos seus pro- senitores e sentiam-se igualmente incomodadas a0 se- rem relacionadas com os seus proprios filhos adultos. Referem que, ao passo que para os japoneses «deixar a casa» € uma expressdo utilizada somente na rara even- tualidade de entrada na vida monéstica e abandono de todos 0s lagos que liguem a pessoa a uma existéncia vulgar, para os americanos, deixar a casa é algo que € ‘esperado, parecendo a infancia constituir uma prepara- ‘to para tal. Esta parece ser uma tendéncia delonga data, ha sociedade americana, uma vez que jé fora observada ie (COMO HAvEMOS DE VIVER? por Tocqueville. Este autor escreveu que a heranca cul- tural americana faz «os homens esquecerem-se dos seus antepassados [..] ensombra-Ihes a visio dos seus des- cendentes e isola-os dos seus contemporineos.»” Frances Fitzgerald entrevistou residentes em Sun City, uma comunidade de aposentados na Florida, e descobriu que aqueles viam a dependéncia dos filhos ‘como uma fraqueza. Viver com os filhos néo era para eles, como afirmou um dos resicentes de Sun City: «HA outros individuos ~ negros e cubanos — que vivem jun- tos, mas nés atingimos um ponto em que nao precisa- mos de o fazer» Outro, comparando 0s beneficios de vviver perto dos filhos num Estado do Norte com a vida na Florida, perguntou: «Quer sacrificar cinco meses de ‘bom tempo por trés dias Acco de Gragas, Natal e Pés- ‘coa?», dando assim vor eloquente a importancia decres- cente dos lagos familiares na sociedade americana, den- tro ou fora dos aldeamentos de aposentados. ® ‘Num trabalho notével que compara muitas cultu- ras diferentes de varios pontos do globo, Raoul Naroll, pioneiro da antropologia intercultural que ensinou na Universidade Estadual de Nova lorque, em Buffalo, su- blinhou a importancia daquilo que designou como «re- des morais» ~ ou sea, relagdes familiares e comunitérias que ligam as pessoas umas as outras e fornecem um con- 17, Robert N, Bella et al, Habits of th Heart, pp. 57, 82 194; a ctagio € Ge Alexis de Tocqueville, Democracy in Ameria, J. Mayer, org Doubleday Anchot, Nova lorgu, 1969, p, 58. (Ed. portugues: Alexis de Tocqueville, Da Democracia na America, Caeas, Principia, 202) 18, Frances Fzgerald, Cites oma Hil Picador, Londres, 1987, pp. 241 2 QUE LUCRO EU COM ISSO” o texto ético aquilo que cada individuo faz. As redes mo- rais ajudam os individuos nas suas escolhas éticas, tor ‘nando mais fécil optar por aquilo que a rede moral con- sidera como coisa correcta a fazer. Segundo Naroll, as redes morais fortes séo construidas através de lacos s0- , Journal of Personality ad Social Psyohlogy, 195, vol. 59, 85, p. 1010, n ‘COMO HAvEMOS DE VIVER? quiser», Em muitas grandes cidades americanas, ni existe simplesmente comunidade, no sentido que Tonnies atribui ao termo. ‘Na opiniao de Robert Bellah, soci6logo de Berkeley e autor principal de Habits ofthe Heart, embora a Améri- ca seja h4 muito individualista, a moderna sociedade americana é mais individualista do que nunca: No inicio, 0 individualismo na América era um indi- vidualismo que também honrava os valores comunitaros. ‘Actualmente, existe uma ideologia de individualismo que simplesmente incentiva as pessoas a maximizar as vanta- _gens pessoas. Isto conduz a uma politica de consumo na (qual «Que tenho a lucrar com isso?» é tudo o que importa, ‘0 passo que as consideragdes do bem comum si cada vez ‘mais irreleoantes. = E ironico que quando ruiam os desprezados regi- mes comunistas da Europa de Leste e da Unido Soviética e os reformadores procuravam implantar apressadamente as forcas do mercado livre os sociélo- 0s € fildsofos ocidentais estivessem a recuperar as teo- rias da importancia da comunidade na politica ena vida Sética, As criticas de Karl Marx ao capitalismo sobrevi- veram muito melhor do que as suas deficientes pro- postas categéricas para uma melhor forma de socieda- de. O Manifesto Comunista é um ataque poderoso a ideia da sociedade enquanto livre associagao de individuos. 25, Citado em Daniel Coleman, «The Group and the Self New Focus on 4 Caltral Ritts, New York Times, 25 Dez 1990. QUE LUICRO EU COM ISSO” Marx e 0 seu co-autor Friedrich Engels nao simpatiza- vam certamente com as formas tradicionais ou feudais de sociedade; apesar disso, escreveram com um misto de raiva e temor acerca da forma na qual tais socieda- des foram destrufdas pela ascensao de uma sociedade baseada em dinheito: A burguesia, sempre qe seconseguiu impor-se is res tantes clases, ps fim a todas as relagdes feuds, patriar- cas ¢ idlicas. Rompew impiedosamente os variados lacos Jfeudais que ligaoam 0 homem acs seus «superiores natu- ‘ais, nao deixando qualquer nexo entre um homente outro homem que noo interesse prépro nu, o cruel «pagamento ‘monetérion, © capitalismo criou, assim, de forma cruel, uma sociedade de individuos livres; mas esta nao era uma sociedade livre. Pelo contrério, tratava-se de uma socie- dade descontrolada: ‘A moderna sociedade burguese, com as suas relagbes de produgio, troca e propriedade, uma sociedade que res- niu tais meios gigantescos de produto e troca, é como 0 Jeiticero,incapaz de controlar os poderes do mundo inferior {que invacou com os seus feticos.®* Entre estes «poderes do mundo inferior», pensava Marx, contava-se o proletariado, essa grande classe de operérios despojados de propriedade que é, para a bur- 26, D. McLellan, org, Karl Mare Selected Waiting, pp. 223,226 ” ‘COMO HAvEMOS DE VIVER? ‘guesia, apenas mais um bem, a ser comprado quando 0 seu poder de trabalho é necessério, e a lancar para 0 ‘monte de escérias em tempos de recessdo. Marx estava convencido de que, ao criar 0 proletariado, o sistema capitalista gerara as sementes da sua propria destrui cao. Quanto a isto, Marx estava redondamente enga- nado. As contradicées do capitalismo nao se intensifica- ram paulatinamente: 0 capitalismo melhorou a sorte da maioria dos seus trabalhadores e, nos pafses capitalistas ‘mais avancados atraiu para as suas fileiras uma parte substancial das classes trabalhadoras. Em contraste, aqueles que realizaram revolugdes com sucesso em nome de Marx nao foram capazes de criar uma sociedade que satisfizesse as necessidades da maioria, e permaneceram no poder apenas enquanto se mostraram dispostos a usar de forga para suprimir a oposicao. Assim, 0 capita- lismo sobreviveu, e agora, no final do século xx, parece ter triunfado. Contudo, hd algo valido na viséo de Marx do capitalismo enquanto sociedade que criou forgas que nao consegue controlar. Vemos isso uma vez mais na recessio que se seguiu aos anos de expansao da década de 1980. A confianca econ6mica diminui por razdes que rninguém consegue entender completamente, 0s precos dos bens baixam e hé milhdes de pessoas sem emprego, ccujas energias e competéncias nao encontram utilidade no sistema capitalista, Marx teve raz4o quando sugeriu que a sociedade de mercado livre, ao quebrar os lacos tradicionais, ao re- duzir todas as ligagSes a0 nexo do dinheiro e ao libertar a forcas do interesse préprio individual, tinha invoca- do um génio que nao conseguia controlar. O génio trou- QUE LUICRO EULCOM ISs0r. Ed ‘e-nos uma sociedade em que a politica é dominada pela ‘economia. Em todas as eleigdes, as grandes questies sio ‘econémicas. Dizem-nos que nao podemos deter o de- senvolvimento que é prejudicial a0 ambiente porque 0 nosso pais tem de concorrer economicamente com os seus concorrentes estrangeiros. As propostas para me- Ihores cuidados de satide, apoios sociais e habitacéo para ‘0s pobres naufragam nos rochedes do desejo de impos- tos mais reduzidos para fornecer mais incentivos ao in- vvestimento. Virar as costas a uma prosperidade material cada vez maior tornou-se impensivel. Os nossos lide- res politicos reconhecem que fazerisso seria suicidio elei- toral. Agora, 0 GATT — Acordo Geral sobre Pautas Adua- neiras e Comércio, as Sagradas Escrituras do raciona- lismo econémico mundial - amplia este predominio da economia a todo o mundo. Os senhores do GATT di- zem aos pafses da Unido Europeie que tém de expor os seus agricultores a concorréncia cas mega-exploragoes da América do Norte e da Austrdlia ~ concorréncia que certamente 0s eliminaria e alterara ireversivelmente a paisagem da Europa Ocidental. Quando 0 Gabinete Europeu de Patentes hesita relativamente a questao éti- ca de um animal vivo poder ser patenteado, os Estados Unidos argumentam nas negociagées do GATT que re- ccusar aceitar a patenteacao de animais constitu uma li- mitagdo ilegal ao comércio que impede os inventores americanos de colher as suas merecidas recompensas. (A intengdo dos Estados Unidos era proteger lucros po- tenciais de trabalhos dos cientistas americanos que pa- tentearam animais como 0 «onco-rato», uma infeliz cria- tura engendrada geneticamente para desenvolver 76 ‘COMO HAVEMOS DE VIVER? tumores que os cientistas pudessem estudar.”) Todavia, em mais um triunfo da economia sobre a ética, 0s pr6- prios Estados Unidos viram-se atacados com recurso a ‘um argumento similar. Invocando a sua Lei de Protec- «0 dos Mamiferos Marinhos, os Estados Unidos proibi- ram a comercializacao de atum mexicano com base no argumento de que a frota pesqueira mexicana, usando :métodos ja abandonados pela frota americana, matava desnecessariamente 50 mil golfinhos todos os anos. O México apelou ao GATT, afirmando que a proibicio cons- titufa uma barreira comercial injusta... e ganhou!* O génio libertado pelo nosso incentivo ao simples interesse proprio debilitou o nosso sentido de pertenca a.uma comunidade. Cada individuo adopta a ética de