Você está na página 1de 8

Escola Superior de Música de Lisboa

Disciplina:​ Análise Musical 6


Professor Orientador:​ ​Carlos Caires

A Repetição no Discurso Musical


ao serviço da Forma e da Textura

Sumário:​ Este trabalho terá como objetivo principal estudar de que forma a
repetição influencia o discurso musical por interferência direta através da forma e da textura.
Importa averiguar o contributo da repetição na construção de texturas e de blocos formais e,
assim, verificar como a mesma influencia o discurso musical não só micro, como
macroscopicamente.

É de todo meu interesse abordar este tema uma vez que é algo que está também
presente nas nossas vidas, tanto micro, como macroscopicamente: quer no bater do
coração, no andar, quer no nascer e pôr do sol ou qualquer outro comportamento rotineiro,
respetivamente. E não só: a aprendizagem dos comportamentos mais básicos à vida
(também eles repetitivos) é apenas atingida através da repetição. Por exemplo: falar, andar,
escrever, aprendizagem de diversos mecanismos/atividades, etc. Assim, a repetição é
classificável como algo muito mais constante e visceral do que possamos imaginar. É quase
como que omnipresente, uma vez que é um fenómeno ora observável, ora por nós
experienciado no cotidiano. Assim, sendo a música também algo bastante visceral da
perspetiva do compositor, é natural que a repetição seja um elemento inerente à
composição, na medida em que é natural utilizá-la durante o processo composicional,
mesmo sem que nos apercebamos.

Tendo já enunciado e definido os diferentes tipos de repetição em trabalhos


anteriores, voltarei a fazer uma breve referência recorrendo a exemplos musicais.

Em primeiro lugar temos a repetição textual, que consiste na repetição literal de um


trecho musical. Prática comum desde os primórdios da música ocidental até ao início do
século XX, é um fenómeno a nível macroscópico, que irá desse modo interferir diretamente
na forma. Normalmente esta é enunciada através de uma barra de repetição, como é o caso
da repetição de uma exposição numa forma sonata. Acaba por ser uma prática raramente
empregue hoje em dia, uma vez que os compositores contemporâneos quando querem
repetir uma secção, por norma preferem escrever a repetição a fim de ter margem para
introduzir algumas diferenças. Desse modo, existe uma repetição alterada que, de certa
forma, tem vindo a predominar desde o início do séc. XX até à atualidade.

Acima temos um claro exemplo dessa


prática, na peça “Ouijist” da compositora canadiana Nicole Lizée. Há claramente uma
reexposição do material inicial (ver números de compasso) sendo que, no entanto, há
mudanças ao nível do compasso, transposição, e pequenas nuances na textura.

Esta peça será o ponto de partida para explorarmos a repetição como ferramenta de
desenvolvimento a nível microscópico, a fim de construir os diferentes blocos que
constituem a peça, que tem uma forma classificável como “macro-mosaico”.
Este termo designa um tipo de forma em que a peça é constituída por vários
grandes blocos com uma articulação formal muito clara entre si. Cada bloco é construído
através da micro repetição e encadeamento/desenvolvimento de pequenos gestos.
Esta peça em concreto, pode ser dividida em nove blocos distintos:

Bloco 1 - Compassos 1 a 59
Bloco 2 - Compassos 60 a 108
Bloco 3 - Compassos 109 a 138
Bloco 4 - Compassos 139 a 181
Bloco 5 - Compassos 182 a 218
Bloco 6 - Compassos 219 a 238
Bloco 7 - Compassos 239 a 253
Bloco 8 - Compassos 254 a 281
Bloco 9 - Compassos 282 a 306
Todos os blocos são diferentes entre si, com a
excepção do primeiro e do sétimo, como tínhamos
verificado (no que diz respeito ao material utilizado -
repetição alterada). São também singulares na medida em
que são construídos com elementos que não encontramos
em qualquer outra secção: o gesto das tercinas no
vibrafone com vassouras (e aqui o timbre é preponderante)
e o gesto tipo trilo na flauta alto em cánone com o violino.
Esta peça é interessante ao nível da repetição como auxiliar da forma e da textura
na medida em que a mesma é utilizada microscopicamente para desenvolver um
determinado bloco, mas também no sentido em que os quatro primeiros blocos enunciam
todo o material utilizado, uma vez que os restante cinco são constituídos por elementos dos
quatro anteriores. Por exemplo: as figuras de tercina do bloco 3 voltam a aparecer no bloco
9; a melodia do bloco 5 (entoada pela flauta alto e vibrafone (baquetas)) é apresentada a
meio do bloco 3; as figuras de tercina de semicolcheia na percussão nos blocos 6 e 8, são
no fundo uma variação das tercinas do bloco 1, ou até mesmo uma diminuição da figura
rítmica do contrabaixo e bombo no bloco 4.

Ainda assim, cada um tem algo que o caracteriza como único, tal como o 1 e o 7
(que já explorámos): o bloco 2 tem uma melodia com notas repetidas que vai oscilando
entre pequenas transposições; o bloco 3 distingue-se pelo ritmo tercinado, que repete a
cada pulsação; o bloco 4 pelo gesto tipo “ricochet” no vibrafone com acordes (variação do
“ricochet” dos “chopsticks” no bloco 2), etc., etc.

Existem ainda outras particularidades, como no bloco 6 onde é interessante verificar


que este se aproxima da forma mosaico tradicional, na medida em que ele próprio é a
alternância entre dois mosaicos, com articulação bem perceptível, um pouco à semelhança
do bloco 4, que alterna com o gesto “nota repetida” (ver compassos 154 a 157, p.e.)

Deste modo, julgo ser possível ter já adquirido uma noção bem clara daquilo que
denominei de “Forma Macro-Mosaico”. Ainda assim, através da repetição e reiteração de
elementos dos quatro primeiros blocos nos seguintes, esta peça acaba por ter uma
componente muito forte ligada à memória.
Sendo a Música uma arte que decorre no tempo, a repetição torna-se ainda mais
importante na medida em que torna possíveis associações utilizando a memória e,
consequentemente, ao associar elementos musicais já ouvidos, é criada expectativa no
ouvinte. A memória acaba por ser um termo chave para a coerência do discurso musical
pois permite-nos olhar a peça como um todo, e não apenas como algo que vai sucedendo
ao longo do tempo. Isso é bastante evidente em géneros como, por exemplo, a Fuga e a
Forma Sonata. Na Fuga porque a cada nova entrada do tema é como um “regresso a casa”,
pois já estamos familiarizados com aquele material. Na Forma Sonata, a Reexposição
relembra-nos toda a Exposição assim que acabamos de ouvir o Desenvolvimento.
Na peça “Ouijist”, Nicole Lizée procura este mesmo conceito, embora de uma forma
um pouco mais anárquica.

Voltando à temática da repetição, irei agora falar sobre uma peça da minha autoria
para cravo solo, “B. W. V.”.
Esta peça surge em oposição a “Ouijist” na medida em que não é pretendido que
haja qualquer ligação entre os blocos que a constituem. A ideia é precisamente que haja um
contraste absoluto entre, neste caso, os dois blocos que constituem a peça. Ainda assim, tal
como na peça de Nicole Lizée, a repetição é utilizada como forma de desenvolvimento dos
dois blocos contrastantes.
O primeiro bloco (compasso 1 a 32) é constituído essencialmente por uma figura que
é em si mesma uma forma de repetição: uma hemíola. Neste caso trata-se de uma célula
com a duração de 17 semicolcheias, encaixada num compasso quaternário.

Deste modo, é possível repetir uma célula rítmica sem que esta pareça repetir-se
desde que, haja a noção bem clara da pulsação.
Neste caso, há uma repetição exaustiva do material musical. Um elemento que
tocado apenas uma vez seria apreendido como perfeitamente vulgar, ou até despercebido,
torna-se, como diria Sigmund Freud, “estranhamente familiar”. Esta é a tradução mais
adequada do termo de Freud utiliza: “​Unheimlicher​”. No seu ensaio “​Das Unheimlicher​” (“O
Estranhamente Familiar”), Freud fala acerca de como um objeto se pode tornar
estranhamente familiar através da repetição, e também de “duplos” (elementos em
duplicado) que, já agora, é uma ferramenta utilizada por Nicole Lizée na peça acima
analisada. Podemos observar o conceito de “duplos” no cánones nos blocos 1 e 2, entre
flauta e violino, e flauta e vibrafone, respectivamente.
Esta observação é interessante uma vez que a peça está associada a um conceito
fantasmagórico, representado pela eletrónica (a compositora apresenta a eletrónica na
instrumentação como “fantasmas”). É um conceito que descobri há pouco tempo, e que me
tem fascinado bastante. No entanto, deixarei o desenvolvimento do mesmo para um futuro
próximo por considerar que há ainda muita investigação a fazer nesta matéria.

De volta a B. W. V., o segundo bloco da peça pretende criar contraste absoluto com
o primeiro. Aqui é mesmo importante a “não repetição” (que desenvolveremos mais à frente)
pela questão da singularidade dos dois blocos. Enquanto o primeiro é rápido, bastante
mecânico e repetitivo, o segundo é lento, e com um carácter mais lírico e tranquilo. Aliás,
mesmo a nível estético há um choque enorme, na medida em que cito um excerto do início
da Fuga n.º8 em Mi bemol menor, (WTC) de J. S. Bäch. Assim, ao recuperar um elemento
do passado, é-me conseguido obter oposição máxima em relação ao material musical do
primeiro bloco: muda por completo a harmonia, o ritmo, a textura, o andamento, a
dinâmica,etc.
B. W. V. é, deste modo, um exemplo claro de oposição, conseguida através da “não
repetição”, termo que esmiuçaremos de seguida.

Por não repetição entenda-se isso mesmo: não repetir. Ao nível do discurso musical,
isto traduz-se por ter partes da narrativa verdadeiramente singulares. Ou seja, são
normalmente momentos climáticos ao nível do discurso, e que se tornam especiais
precisamente pela sua singularidade. O facto de um elemento isolado ter mais ênfase no
discurso do que um elemento repetido deve-se, na minha opinião, à alternância que ocorre
à volta do momento isolado. Havendo apenas a repetição/desenvolvimento de um ou
poucos mais elementos discursivos, diria que há uma estagnação do discurso. É no fundo a
preparação da “chave” do discurso, no caso de o clímax ser posterior a esses elementos.
Logo, é mais persuasivo passar uma informação envolta em elementos de retórica com uma
semântica completamente diferente do que simplesmente repetir essa informação várias
vezes. Deste modo, a alternância prepara o recetor para a informação que realmente
importa, para a “chave” do discurso. A repetição é importantíssima na preparação do clímax
discursivo porque se essa alternância fosse entre elementos sem ligação por via da
repetição, todos os elemento seriam diferentes e, dessa forma, o elemento “chave” perderia
força, pois deixaria de ser singular. Assim, é assegurada a singularidade dos elementos
discursivos que compõem o clímax pelo absoluto contraste entre os blocos repetitivos que o
rodeiam.

Um elemento é tão mais singular quanto mais for diferente no maior número possível
de parâmetros musicais (ritmo, harmonia, dinâmica, timbre, articulação, textura, registo,
etc.). Um bom exemplo onde podemos verificar esta premissa será a minha peça para
ensemble de câmara “Granny Spider”.

No que toca à forma, tudo é bastante evidente. Cinco secções bastante


contrastantes compõem a peça:
-secção A: início - letra C de ensaio;
-secção B: letra C de ensaio - letra E de ensaio;
-secção C: letra E de ensaio - letra F de ensaio;
-secção D: letra F de ensaio - letra G de ensaio;
-secção E: letra G de ensaio - fim.

Assim, cada secção corresponde a um bloco da forma macro-mosaico. Cada bloco


terá o seu material característico que, através da repetição, permitirá o seu
desenvolvimento.

A ​secção A​ inicia-se com um gesto sincopado na escala octatónica de Sol. Será este
o mote para toda a secção: ritmos sincopados e a ambiência da escala octatónica, numa
textura do tipo melodia acompanhada. Tudo isto será integrado num ambiente que, como
sugere a indicação de carácter, terá de enquadrar uma envolvência à volta do sinistro, do
inquieto, do incerto, etc.

A ​secção B​ aparece com a função de criar um contraste quase absoluto com a


secção anterior. O ambiente frenético e rítmico, assente numa harmonia essencialmente
atonal, dá agora lugar ao bimodalismo, inserido numa textura de cánone acompanhado, que
evolui para uma textura que se pode considerar pandiatónica, uma vez que a certo ponto já
não há controlo harmónico do contraponto, existindo apenas uma “massa de som”. Aqui a
repetição é mais evidente uma vez que se trata do cánone, uma das formas musicais mais
antigas que faz uso da repetição.
A melodia do cánone está apresentada abaixo:
A melodia tem a duração de 31 tempos, enquanto que o acompanhamento, em
forma de ostinato, tem a duração de 25 tempos. Assim, há um desfazamento entre as duas
camadas que permite nunca haver coincidências na relação melodia - harmonia a cada
nova entrada do cánone.
Com o decorrer da secção, a estrutura canónica vai sendo “destruída” em prole do
discurso musical, e da ambiência flutuante que caracteriza esta secção.

A ​secção C​ não passa de uma pequena ponte para preparar a secção que se lhe
segue. É como um eco da secção anterior, onde a repetição entra no facto de ser utilizado
material da mesma, criando como que reminiscências da secção anterior. Enquanto que na
primeira transição o efeito pretendido era um choque, aqui prezam-se já a continuidade e a
fluência do discurso.

Na ​secção D​ podemos encontrar claramente uma ambiência influenciada pela


corrente do minimalismo americano, e que recupera a textura de melodia acompanhada,
sendo o piano o instrumento solista. Este recupera o ​groove ​da primeira secção, que ainda
assim adquire um carácter completamente diferente neste novo contexto. Aqui a repetição
aparece ao nível da pulsação, tal como na corrente do minimalismo americano.

A secção final, a ​secção E​, surge em quase absoluto contraste com a secção
anterior, à semelhança das duas primeira secções. A sua função é a de recuperar algum do
material utilizado na primeira secção, em jeito de reiteração, com o propósito de concluir a
peça. A única célula utilizada é a melodia do clarinete presente no início da peça, nos
compassos 18 a 36. Através da aumentação e diminuição da melodia (e de apenas uma
transposição, de quarta perfeita) é criada uma textura contrapontística propositadamente
descontrolada, que procura progredir através de oscilações na “vida interior” da textura, e
também através da exploração do timbre.
O encaminhamento para o fim da peça é conseguido através de aumentações
sucessivas da melodia, criando assim uma textura mais vazia e mais “seca”, também
através da utilização de timbres menos ressonantes (registo agudo do piano, ​pizzicato​ nas
cordas, e sons de chaves nas madeiras).

Assim, é possível concluir que os gestos base de cada bloco são diferentes entre si,
a fim de conferir singularidade a cada bloco. É através dessa singularidade que pretendo
fazer com que cada bloco seja climático, na medida em que cada um tem algo de
importante a acrescentar ao discurso. É como se cada um tivesse em si uma de todas as
“chaves” do discurso.

No fundo, este tipo de forma musical surge em oposição a uma narrativa que se
baseia na preparação (ou distenção) de um ou mais clímaxes. Ao empregar esta forma
musical, pretendo que cada bloco seja climático em si mesmo, na medida em que a
narrativa global da peça é construída por sub-narrativas super contrastantes, permitindo
que, através da micro repetição em cada uma, cada uma seja verdadeiramente singular e
possa de facto transmitir algo ao ouvinte.
Em suma, é possível concluir que:

A nível microscópico a repetição funciona como elemento de proliferação de


material musical, sendo essencial para preservar a singularidade da secção que
constrói.
A nível macroscópico, importa ver a repetição como um elemento unificador
do discurso, na medida em que a mesma confere coerência ao discurso musical
através da memória, e suscita no ouvinte expectativa em relação ao seguimento do
material que é repetido.
A “não repetição” representa singularidade em relação ao maior número
possível de parâmetros musicais, e funciona como uma ferramenta para enaltecer
uma secção/ bloco, que se torna especial/climática precisamente por conter
elementos que não estão presentes em qualquer outro lugar da peça.

Manuel Moreira, n.º 20141129

Você também pode gostar