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1. Introdução
O assédio moral é um fenômeno que, embora não seja recente, prolifera-se nos dias
atuais com rapidez ímpar, e não apenas nas relações de trabalho. Com a mesma velocidade e
força nas atividades comerciais, a utilização dos serviços de telemarketing ou teleatendimento,
consequência de um mundo cada vez mais globalizado, que exige, ao mesmo tempo, maior
agilidade e conforto nas relações interpessoais, traduzidos neste caso na possibilidade de se
realizarem transações comerciais inteiras com apenas uma ligação. E dadas as características
inerentes a cada um, o primeiro encontrará no segundo campo fértil para o seu desenvolvimento.
É com base nessas premissas iniciais que desenvolveremos o presente estudo. Ao longo
do texto analisaremos alguns dos elementos essenciais do assédio moral, bem como das
atividades de telemarketing, para que, posteriormente, tracemos um paralelo entre os dois,
com vistas a entender a crescente e perigosa aproximação de ambos.
O tom é crítico. Na atual quadra do direito, com a consolidação dos valores
constitucionais como norte de todo o ordenamento jurídico e como vetores de um Estado
Democrático – premissas que, por óbvio, se irradiam, também, sobre as questões trabalhistas
–, é lamentável e preocupante constatar que o assédio moral se torna cada vez mais comum
nas relações empregatícias, sobretudo por tratar-se de prática que viola princípios e garantias
basilares assegurados a todo indivíduo e protegidos constitucionalmente.
Assim sendo, o nosso intuito, nas próximas linhas, será explicar e buscar as raízes desse
mal que avança perigosamente, e como se forma a sua relação com os serviços de telemarketing.
1. Servidor do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, lotado na Seção de Precatórios – Seprec, especialista em
Direito do Estado pela UERJ e pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM.
De acordo com essa definição, podemos listar cinco elementos principais que
caracterizam o assédio moral: repetição sistemática, intencionalidade, direcionalidade (quando
uma pessoa do grupo, apenas, é o alvo das humilhações), temporalidade e degradação
deliberada das condições de trabalho3. Dentre eles, cumpre destacar o fator temporalidade.
Com efeito, o assédio moral não se resume a uma prática isolada, de um evento só. A ofensa,
praticada uma única vez ou esporadicamente, caracteriza hipótese de dano moral, mas não de
assédio.
Nesse diapasão, cumpre lembrar, à luz do que ensina o desembargador Alexandre
Agra Belmonte, que o dano moral é toda ofensa perpetrada em face da vítima, causando-lhe
profunda dor na alma, estado de humilhação, vergonha, medo etc., e não o simples estresse
ou aborrecimento cotidiano. E o dano moral trabalhista, assim como o assédio, deve advir
de ofensas ao agredido enquanto empregado; ou seja, a agressão deve estar relacionada ao
contrato e à relação de trabalho existente entre vítima e agressor, destoando dessa natureza
quando a ofensa, embora grave, não tenha fundamento numa relação trabalhista4.
Com efeito, a psicóloga Ana Paula Parreira, em artigo publicado no Boletim Anamatra,
em julho de 2007, afirma que “o assédio moral não é um ataque súbito, isolado e evidente. É
um lento e premeditado seqüestro da alma [...] repetidas vezes, no qual a vítima fica assustada
e com medo, sem saber de que a acusam e sem encontrar uma saída”5.
Ou seja, o assédio moral desenvolve-se gradativa e cotidianamente, através de
agressões sucessivas causadas à vítima por uma ou mais pessoas, pelo superior hierárquico ou
pelos colegas de trabalho, sendo ele, nestes casos, vertical ou horizontal, respectivamente. E
os exemplos são os mais variados e cruéis: vão desde ofensas gratuitas e “broncas” vexatórias
do empregador sobre a vítima, na frente dos demais empregados, até o conluio, veja-se, dos
próprios funcionários, que, conjuntamente, passam a humilhar o agredido, difamando-o,
isolando-o do convívio profissional – atitude comumente motivada por inveja, recalque
pela sua ascensão profissional. O intuito, contudo, em todos os casos é o mesmo: humilhar
a vítima, atacá-la, forçá-la a pedir demissão ou rever certa postura que esteja incomodando,
constrangimento que, normalmente, leva o agredido a adoecer, física e/ou psicologicamente.
Outrossim, uma ressalva se faz importante: devemos atentar para o fato de que é
comum a confusão entre assédio moral e estresse profissional. Com efeito, muitas pessoas se
dizem vítimas de assédio quando na verdade não o são. É por esse motivo que Marie-France
Hirigoyen, psiquiatra francesa e uma das maiores especialistas no tema, concluiu, após longo
2. FONSECA, José Geraldo da. O assédio moral nas relações de trabalho. Monografia apresentada em 2008 à Escola
da Magistratura da Justiça do Trabalho (Ematra) no Estado do Rio de Janeiro, para o Concurso de Ensino Jurídico
sobre Direito do Trabalho – Prêmio Délio Maranhão, p. 10. Cumpre ressaltar entendimento do autor, no sentido de
que não é em qualquer relação de trabalho que o mobbing se manifesta, mas, quase que exclusivamente, nas de
emprego.
3. Disponível em: <http://www.assediomoral.org>. Acesso em: 22 nov. 2010.
4. BELMONTE, Alexandre Agra. Danos morais no direito do trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 148.
5. Artigo disponibilizado aos alunos da pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho da UCAM, pela professora e
juíza substituta do trabalho Cláudia Márcia, em 10/4/2010.
estudo em que entrevistou diversas pessoas que se diziam vítimas de mobbing, que boa parte
dos relatos não trazia em si casos de assédio moral. Justamente, percebeu uma confusão entre
situações de mero estresse profissional e outras nas quais, efetivamente, houve assédio moral6.
De fato são eventos distintos.
Muito embora a linha que os divida seja tênue, podemos distingui-los por um elemento
crucial: a intenção maldosa. Neste diapasão, no estresse profissional não há intenção de
prejudicar o empregado, sendo resultado de fatores como competitividade acirrada e
necessidade de cumprimento de metas e prazos num exíguo espaço de tempo, por exemplo.
Já no assédio moral o desejo deliberado de prejudicar e humilhar é o ponto nodal do vício,
é o substrato que lhe dá sustentação. Portanto, as implicações de um ambiente de trabalho
estressante, por si só, não configuram assédio moral. É necessária a confluência, indissociável,
dos elementos citados linhas acima, sobretudo a habitualidade e a intenção maldosa.
2. A atividade de telemarketing
O telemarketing, conceitualmente falando, é a transmissão de ideias, informações e
habilidades. É o ato de emitir, receber e transmitir mensagens através da linguagem escrita,
falada e de sinais, bem como por meio de aparelhamento técnico especializado, sonoro e/ou
visual. A terminologia foi cunhada por Nadji Tehrani em 1982 e designa a promoção de vendas e
serviços pelo telefone. Este conceito inicial expandiu-se ao longo do tempo, levando o serviço a
abranger outros mecanismos, como a telecobrança, o atendimento ao consumidor e o suporte
técnico7.
O teleatendimento funciona como um importante canal de comunicação entre a
empresa e o mercado, na medida em que reduz os custos de comercialização, diversificando
sua atuação para novos clientes e novas praças. O serviço é hoje realizado em grandes centros
chamados de call centers (centrais de atendimento), através do SAC (Serviço de Atendimento
ao Cliente).
As empresas enumeram diversos fatores que levam o telemarketing a ser considerado
um serviço vantajoso, e entre eles se destacam cobertura, comodidade, custo, velocidade e, por
fim, otimização.
Dentre as modalidades, o teleatendimento pode ser receptivo (in bound) ou ativo
(out bound). No primeiro, os operadores recebem as chamadas dos clientes, quando estes
buscam alguma informação ou pretendem realizar alguma compra. Já no segundo caso, são os
operadores que ligam para os clientes, ou potenciais clientes da empresa. No presente modelo,
o melhor momento de abordagem é escolhido pelo operador, que ou promove diretamente a
oferta do produto ou serviço ou, inicialmente, aborda o cliente apenas para promover aquilo
que a empresa quer lhe oferecer; não obstante, a proposta de venda pode vir na mesma ligação,
após realizada a propaganda.
Muito embora o teleatendimento seja hoje uma das principais ferramentas utilizadas
pelas empresas para captar clientes e expandir os negócios, mormente em virtude da
otimização de tempo e da redução de custos, o trabalho do operador de telemarketing é dos
mais desgastantes e de baixa remuneração. Os operadores utilizam como instrumentos de
6. HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006, p. 19.
7. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Telemarketing>. Acesso em: 22 nov. 2010.
Pois bem. São vários os exemplos de como o assédio moral manifesta-se nos call
centers. Para ilustrar, podemos citar os casos de e-mails enviados a todos os funcionários, às
vezes diariamente, com a lista dos operadores que não estão cumprindo suas metas, expondo-
os ao ridículo, ao invés de ajudá-los a superar aquele problema. Há também as advertências
grosseiras realizadas pelos supervisores na frente de todo o grupo, as “broncas”, com direito,
às vezes, a gritos e xingamentos, com vistas a não apenas humilhar o funcionário, mas também
incutir, nele e nos demais, temor hierárquico. Ademais, sob a distorcida perspectiva de uma
punição “divertida”, por assim dizer, não raro os operadores que estão rendendo abaixo do
esperado têm de trabalhar, quiçá um dia inteiro, fantasiados, servindo a punição como castigo
para eles e ameaça aos outros, fixando a ideia de que todos que não renderem como devem
estarão sujeitos àquela humilhação. E os exemplos não param por aí.
Contudo, talvez a pior de todas as manifestações de assédio seja o rigoroso controle de
horários. Ora, obviamente, responsabilidade e comprometimento com o trabalho são obrigações
básicas de todo e qualquer trabalhador. Com efeito, durante a jornada laboral, cumpre ao
empregado otimizar ao máximo seu serviço, dedicando-se exclusivamente ao trabalho,
sobretudo evitando dispersões. Todavia, é direito de todo ser humano, e é direito constitucional
do trabalhador, ter durante a jornada um horário mínimo para repouso, alimentação e higiene.
Ocorre que nos serviços de telemarketing há um controle excessivamente rigoroso sobre esses
intervalos.
De fato, avultam relatos de que, por exemplo, a ida ao banheiro nos call centers é
regulada. Em regra o trabalhador tem de pedir autorização para deixar seu posto e atender às
suas necessidades fisiológicas, tendo o supervisor o poder de negar-lhe permissão. Outrossim,
quando autoriza, comumente estipula um prazo máximo de ausência – exíguo, às vezes não
mais do que cinco minutos, sem levar em consideração as necessidades do empregado.
Portanto, cada segundo é contado, e, caso o funcionário extrapole o limite, é repreendido,
não raro na frente dos colegas, e, em certos casos, acaba tendo seu direito de ir ao banheiro
limitado ainda mais.
Ora, na atual quadra do direito, é inconcebível o desenvolvimento de uma prática tão
escabrosa quanto o assédio moral e com a intensidade do que foi relatado acima. Afinal, vivemos
um momento de afirmação constitucional, em que os princípios e garantias fundamentais
cada vez mais ganham destaque no ordenamento jurídico, norteando a vida em sociedade no
sentido da obrigatoriedade da sua observância e da punição daqueles que os violam. Vivemos
a era do neoconstitucionalismo e do pós-positivismo, da força normativa da Constituição e da
normatividade dos princípios e garantias constitucionais.
Cada ato de assédio moral afronta diversos direitos e garantias constitucionais – como
o direito à liberdade, à intimidade, à honra e à imagem, entre outros insculpidos no art. 5º
da Constituição de 1988. Na mesma pegada, viola também os previstos no art. 7º, direitos
constitucionais trabalhistas, e, mais importante, atenta contra a dignidade da pessoa humana
e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, fundamentos da República Brasileira,
preconizados no art. 1º da Constituição de 1988.
Felizmente, podemos dizer que o “contra-ataque” já começou. Na jurisprudência e na
doutrina encontramos manifestações de repúdio ao assédio moral. O debate a respeito do
tema se alarga e mais e mais pululam denúncias e decisões judiciais contra a odiosa prática,
de modo que, hoje, o combate ao assédio moral ganha força e notoriedade. Sendo certo que
ainda há muito a fazer e que, em certos casos, ainda é difícil para a vítima comprovar o assédio
ou provar que não se trata de mero estresse profissional, por outro lado a jurisprudência se
mostra cada vez mais incisiva no ataque a tais atitudes danosas. Destarte, cresce o número
de decisões favoráveis às vítimas de assédio moral, com significativas punições aos agressores.
Neste sentido, vejamos os seguintes julgados do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região
(TRT/RJ):
Não é apenas no tribunal fluminense que o assédio moral tem sido combatido. Também
assim caminha a jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT/MG):
9. Veja-se, ainda, no sítio do tribunal na internet, tamanha a importância que o tema ganha no Judiciário, notícia
veiculada na sua página inicial em 1º/12/2010, a partir de recente decisão do TST, cujo título é Danos Morais para
empresa que limitou tempo de uso do banheiro. Disponível em <http://www.trt1.js.br>.
4. Conclusão
Chegamos ao final do nosso estudo sem a pretensão, todavia, de ter exaurido o tema, tão
cheio de nuances e particularidades. Entretanto, acreditamos ter alcançado nosso objetivo, de
denunciar e criticar a prática odiosa de assédio moral, que cresce perigosamente nas atividades
de telemarketing. Neste diapasão, entendemos que, antes de a questão chegar ao Judiciário, a
solução do problema deve ser, prioritariamente, a prevenção.
Com efeito, o assédio moral é um mal em si mesmo, pois a habitualidade das ofensas,
antes mesmo de considerarmos a extensão do dano, basta para considerá-lo ilegal e imoral.
Portanto, somente indenizar a vítima não é suficiente. É necessário, em primeiro lugar, fiscalizar
e denunciar a prática no seu nascedouro, coibindo-a antes que se alastre. No cumprimento
deste desiderato, a atuação do Ministério Público do Trabalho e dos auditores do trabalho é
de suma importância, na medida em que ambos detêm o poder investigativo e inquisitório
necessário para agir sobre as atividades consideradas focos de assédio moral ou campos
propícios para semear a prática.
No entanto, além do trabalho dos órgãos fiscalizatórios, também importante é o agir
do próprio ofendido. É seu dever identificar, nas atitudes do superior hierárquico ou mesmo
dos colegas, indícios de assédio e cortar o mal pela raiz. Cumpre-lhe, destarte, denunciar as
agressões sofridas, recorrendo às vias administrativas ou judiciais. Tal postura evita que as
ofensas e ataques sofridos fiquem impunes, além de possuir o caráter social e pedagógico
intrínseco às condenações por assédio e dano moral.
Enfim, como todo mal que se alastra sem tomar conhecimento de limites territoriais ou
geográficos, o assédio moral demanda ação conjunta, orquestrada e ampla, com vistas à sua
dissipação. Assim, que se denuncie o assédio moral. Que sejam eliminados, definitivamente,
estes arroubos de intolerância e menoscabo. Que o Judiciário puna com rigor os agressores
desumanos, que tiram a humanidade de suas vítimas. Que haja força para que essas vítimas
superem as dores físicas e psicológicas causadas por essa patologia. Que a esperança vença o
medo; que se levantem e sigam em frente; e que não tenham medo de dizer “chega!”.