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CAPITULO III – AMIGOS

A professora retirou uma pasta de papel cartão azul da estante e colocou-a sobre a mesa de
centro de sua sala de estar. Era onde guardava os desenhos de Ellie. Sempre tivera o hábito de
guardar os trabalhos de seus alunos em pastas daquele tipo, para não amassarem. Eram todas
coloridas, para facilitar a organização: cada série tinha sua cor. Mas Ellie era diferente; tinha
muito talento e grande produtividade, de modo que Margarida reservava para ela uma pasta
individual.

Sentou-se no sofá e olhou para os policiais à sua frente, apreensiva, suas mãos calejadas se
contorcendo no colo. Ela havia dito à Thomas, havia dito à ele quando ligou, que não sabia de
nada, que não havia notado nada estranho com Ellie, e aquilo já fora suficientemente
frustrante, porque ela queria ajudar, queria muito. E agora estava prestes a experimentar o
mesmo sentimento de insuficiência, só que frente à polícia. Nada havia mudado, Margarida
continuava presa na ignorância, mas supunha que passaria por muitos interrogatórios, pois
ocupava um lugar muito especifico na investigação: havia sido a última pessoa a ver Ellie no dia
em que desapareceu.

Os policiais encaravam a pasta em cima da mesa com ar interrogativo. Um deles pigarreou.

“Desculpe, isto... Isto é...?”

“Os desenhos de Ellie”, respondeu Margarida, prontamente. Estava ciente de que não
levariam nada do que dissesse á sério, como a maioria das pessoas normalmente faziam, mas
não se importava. O preço que se pagava por ser professora de artes em uma cidade pequena
era a falta de credibilidade, porém isso não a impediria de dizer o que pensava. “Eu analisei os
últimos que ela fez assim que soube que havia desaparecido.”

Kennedy e Robert, ou assim eles haviam se apresentado quando entraram em sua casa,
trocaram um olhar significativo. O que significava, no entanto, ela não sabia. Desconfiava,
entretanto, que questionavam sua sanidade.

“O que isso pode acrescentar ao caso, exatamente?”

“Bem”, começou Margarida, “existem muitos estudos sobre a psicologia das cores, entendem,
e como temos tendência de utilizarmos cores especificas de acordo com nossos sentimentos”,
e enquanto dizia isso, ela retirava os desenhos de Ellie da pasta e começava a espalhá-los
sobre a mesa. “Olhem”, pediu.

Os policiais franziram o rosto em confusão enquanto examinavam os desenhos.

“A garota é boa”, soltou Kennedy. “Pinta dentro das linhas”, e riu da própria piada. Margarida
se limitou a respirar fundo.

Robert deu de ombros e fez um gesto impaciente para a papelada.

“Certo, está tudo azul”, fez ele, quase bufando. “Exceto por aquele ali no canto, que é
amarelo.”
“Exato!”, exclamou Margarida, quase saltando do sofá. “Azul é a cor preferida de Ellie. Ela
raramente usava outras, tanto que nossas aulas eram sempre sobre corte tonal, porque essa
era a única variação que ela aceitava”, ela soava quase triunfante, esperando que enxergassem
o óbvio.

Não aconteceu.

“Mas o que isso tem a ver com...?”

“Não estão vendo?!”, interrompeu Margarida, sem nem se preocupar com qual policial havia
começado a falar. “Só há um desenho de cor diferente nessa mesa. Você acabou de citá-lo. E
coincidentemente é o que Ellie fez no dia em que desapareceu.”

Kennedy pegou o tal desenho na mão. Não havia muito que ver: os vários tons de amarelo
davam forma ao que parecia um submarino no centro da folha. O policial correu os olhos pelos
demais desenhos espalhados na mesa. Não havia um tema especifico, mas ele tinha que
admitir que um submarino amarelo era bastante peculiar se comparado aos outros.

Ainda assim, aquilo não lhe dizia nada.

“Ela devia estar inspirada”, foi o que acabou dizendo.

Margarida o encarou, escandalizada.

“Está me dizendo que isso não parece no mínimo estranho?”

“É estranho, claro”, concordou Robert. “Mas se estamos falando de psicologia das cores,
então dá para concluir que ela estava especialmente alegre.”

“Alegre?!”, explodiu a professora.

“Até onde sabemos, azul é uma cor triste e amarelo é uma cor alegre”, explicou-se Robert, na
defensiva, jogando um olhar para o parceiro, que parecia concordar completamente. “É
estranho pensar que ela esteve triste em quase todos os outros dias de sua vida, mas enfim...”

“Não estamos aqui para julgar a palheta de cores da sua aluna”, concluiu Kennedy. “Então, se
puder se lembrar de alguma coisa útil com a qual possamos trabalhar...”

Margarida levantou ambas as mãos, num sinal para que parassem. Como poderia explicar de
uma forma que entendessem? Que parecesse plausível, racional, e não um desequilíbrio
emocional? Não precisava que saíssem de lá com a confirmação de que a professora da escola
estava fora de suas faculdades mentais.

“Tentem eliminar, por favor, o senso comum de que amarelo é a cor do sol, do dia, ou sei lá”,
pediu, suspirando. “Azul é, de fato, uma cor que pode ser relacionada à melancolia, mas
também passa calma, tranquilidade, confiança, serenidade. Estou errada?”, os policiais fizeram
que não com a cabeça. “Logo, se azul pode ter essa dupla mensagem, significa que o amarelo
também pode”, ela tomou o desenho do submarino de Ellie em suas mãos e o exibiu, como se
fosse uma questão de ângulo. “Imaginem um semáforo”, pediu. “O que o sinal amarelo
significa?”
Kennedy fez um som súbito de entendimento.

“Atenção”, respondeu, finalmente em um tom que sugeria confiabilidade ao que ela dizia.

“Percebem?”, prosseguiu Margarida, baixando o desenho. “Era um alerta. Algo estava


errado.”

Mamãe não poderia estar mais furiosa. Seu nariz estava franzido, como acontecia quando via
um monte particularmente grande de sujeira, só que este monte tinha nome e trouxera um
amigo: Ellie estava na sala de estar conversando alegremente com Vovó e apresentando Alex a
ela. Patrick estava sentado em uma das poltronas, acompanhando a conversa com
tranquilidade e um sorriso pleno no rosto.

James jamais o perdoaria.

Todo e qualquer contato com Ellie Harris deveria ter acabado assim que Russel chegou em
casa. Era esse seu plano desde o inicio. Mas Patrick fez o imenso favor de fazer amizade com
Ellie e convidá-la para visitar o cachorro com ele todas as tardes, incluindo o Gago no convite.
James deveria ter imaginado que isso iria acontecer, afinal os Harris e os Karl moravam na
mesma rua, e a única coisa que faltava para que fizessem contato era a força de uma
circunstância. Mas se Patrick queria fazer amizade com aquela trupe, o problema era todo
dele, não significava que tinha de arrastar o resto da família!

Só lhe restava torcer para que Damien não descobrisse, ou aquilo se tornaria um caso de
reclusão estratégica e desconforto social.

Mamãe parecia pensar exatamente a mesma coisa e só não tinha botado a dupla de
inconvenientes para correr por causa de Vovó. A velhinha estava estranhamente sorridente e
satisfeita com a tagarelice interminável de Ellie e os comentários relutantes de Alex. Tanto
tempo havia se passado desde que a matriarca se tornara melancólica, que qualquer sinal de
mudança, por menor que fosse, deixava o resto da família de mãos atadas, com medo de
tomar alguma atitude que estragasse o momento.

Era frustrante.

“Alex e eu não fomos amigos logo de cara, porque ele tem vergonha de falar, e quando se
mudou era quase impossível arrancar qualquer palavra dele”, ia dizendo Ellie, gesticulando
feito doida. James não conseguia entender como alguém conseguia falar tanto com as mãos
quanto com a boca.

“E-e você-ê que fa-fala q-que nem u-u-uma met-t-tralhadora”, retrucou Alex, fazendo Vovó e
Patrick soltarem uma risada audível.

James sentiu-se na obrigação de concordar. Ellie Espaguete parecia constantemente ter


engolido um rádio ligado no último volume.
“Bem, se não fosse isso, nós jamais teríamos conversado!”, defendeu-se Ellie. “Você ficava
todo constrangido por causa da gagueira”, James não o culpava. Também se sentiria
constrangido. Ele já se sentia, e a gagueira nem mesmo era dele. “Eu tive que me impor em
nome da nossa futura amizade.”

Alex revirou os olhos e deu um empurrãozinho na amiga, divertido. Ellie mostrou-lhe a língua.

“É revigorante ver que uma relação entre duas pessoas diferentes pode florescer tão bem”,
disse Vovó, com deleite, e então olhou ternamente para Patrick. “Você tem muito bom gosto
para amizades, querido.”

Patrick abriu um sorriso gigante com o elogio da avó e levantou-se de um salto para chegar
mais perto dela. James sentiu uma pontada de inveja. Vovó conhecia Damien, mas nunca havia
feito um comentário daqueles. Pelo contrário: sempre se retirava para o quarto quando o
garoto estava por perto. Ele não conseguia entender; Mamãe adorava Damien e sempre
dissera ao filho que aquele era o tipo adequado de companhia.

James olhou para a mãe para ver a reação dela com o que a avó dissera, mas logo se
arrependeu. Mamãe parecia prestes a vomitar, e uma veia enorme parecia querer saltar na
testa dela. A imagem de um sapo gigante e gordo invadiu a mente de James.

Arrepiante.

Ellie estava falando novamente:

“... e eu sempre voltava de bicicleta sozinha depois das aulas extras de desenho, mas Patrick
conhece um atalho que passa perto da antiga fábrica de salgadinhos...”

James sentiu-se inflar de raiva. Patrick havia contado à ela! Era um segredo, um segredo entre
amigos, entre primos!

“Era um atalho secreto, só eu e James conhecíamos”, acrescentou Patrick. “E agora que Ellie e
Alex fazem parte da turma...”

Parte da turma? Parte de qual turma, exatamente?

“... agora que somos todos amigos, ele me mostrou e é realmente muito mais rápido, só que é
meio assustador também, por causa de todo aquele mato e as ruínas da fábrica...”

Eles não eram todos amigos!

“Nós usávamos sempre, até que o James deu com a língua nos dentes para a tia Helô e ela nos
proibiu de ir para a escola por lá, porque as barras das calças ficavam cheias de carrapicho.”

Ela tinha um ponto!

“... então eu pedalo até parecer que meus pulmões vão explodir, porque assim não dá tempo
de reparar em nada, e não parece tão bizarro...”

Deveria, mas aquilo não soava covarde. James sentia-se cada vez mais perto de explodir,
tamanha era sua indignação.
Vovó acompanhava a narrativa como quem assiste a um campeonato de ping-pong. Era
surreal como aquela amizade, que surgiu do dia para a noite, entre o primo de James e Ellie
Espaguete tinha evoluído de tal forma que eles até conseguiam contar a mesma história
simultaneamente. James sentia seu nariz franzir tanto quanto o de Mamãe; eles só paravam
de falar quando Vovó tinha alguma contribuição para a conversa, ou o Gago fazia menção de
dizer algo.

“A-a-a ce-cerca em volt-t-ta da-da-a fábrica est-t-tá toda-a que-quebrada, e eu e-e-e Ellie q-
queremos entrar lá-á um d-dia”, Alex respirou fundo antes de prosseguir: “Deve ser mui-i-i-to
mais assust-t-ta-dor lá dent-t-tro-o.”

James não conseguia imaginar uma ideia mais estúpida.

Patrick demonstrou empolgação, mas todos foram repreendidos por Vovó, que os fez
prometer não fazer nada daquilo. Ellie fez um gesto de pouco caso e assegurou que aquela
bronca já havia sido dada por seu pai, e que eles não poderiam ir de qualquer forma, pois não
tinham lanternas.

Vendo que aquela seria a deixa perfeita para que Ellie começasse uma nova história, Mamãe
decidiu intervir e botou as crianças para fora.

“Se quiserem brincar com o cachorro, é bom que façam isso antes do anoitecer”, foi a
desculpa dela. James estava dividido entre ir atrás deles para monitorar o que fariam com
Russel ou ficar e privar-se do que prometia ser um fim de tarde insuportável, quando foi
puxado de lado pela mãe. “Vá atrás deles e evite que façam muito barulho, não quero que os
vizinhos saibam que aquela ralé está no nosso quintal”, e empurrou o filho para a porta.

Sem saída, James caminhou lentamente para seu destino, com a certeza de que acabaria
louco após uma tarde inteira ouvindo seu cachorro ser chamado de Bolinho.

“O que pode nos dizer sobre Ellie Harris?”

Que ele desejava jamais ter se metido em seu desaparecimento. Mas algumas coisas
acontecem, infelizmente.

“É uma boa menina”, disse Carlinhos. O nome dele não era esse, nunca foi. Porém as crianças
o chamavam assim desde que trabalhava na escola como zelador, e isso fazia tanto tempo que
ele já nem se importava mais. “Muito gentil, e educada.”

Carlinhos já estava velho. Os setenta anos estavam quase batendo em sua porta, junto com
uma boa dor nas costas. Ele tinha quase certeza de que precisava de uma bengala, mas se
recusava á consultar um médico para receber a confirmação. Bastavam-lhe todas as doenças
que ele já sabia que tinha. E agora chegava também uma onda de estresse com a qual ele não
contava.
Naquela manhã, Carlinhos fora informado de que um aluno qualquer havia pichado a parede
do banheiro masculino. Não era algo incomum, e ele se preparou com uma esponja e os
produtos de limpeza para tirar o rabisco do azulejo. Enquanto esfregava, seu olhar caiu sobre
um pedacinho de tecido listrado preso na janela. Podia não ser nada; mas podia ser alguma
coisa.

Uma das primeiras informações divulgadas quando Ellie Harris desapareceu foi a roupa que
ela estava usando: camiseta listrada de laranja e verde, calça jeans escura, tênis Converse
preto. Foi pensando nisso que Carlinhos pegou entre os dedos aquele pedaço de pano e ligou
para a polícia, mesmo que em sua cabeça aquilo não fizesse o menor sentido.

“O senhor já a viu dentro do banheiro masculino?”

“Não, não. Nunca a vi fazendo nada de errado, nada do tipo”, era uma boa menina, sempre o
ajudava se estivesse carregando alguma coisa, sempre lhe perguntava como estava sua coluna.
“Se chegou a estar naquele banheiro, provavelmente não entrou porque quis”, ele se ouviu
dizendo.

O policial Robert o encarou com uma sobrancelha levantada após essa afirmação. Carlinhos se
repreendeu mentalmente.

“O que o faz pensar isso?”

O velho zelador sabia que crianças às vezes faziam chacota, e tanto tempo trabalhando na
escola deu-lhe o dom de reconhecer quem eram os maiores alvos. Ellie Harris era, com
certeza, um deles.

“A garota não era muito popular”, começou ele, tentando escolher as palavras com cuidado;
não queria que acabasse sobrando para nenhum dos alunos. “Faziam piada sobre ela.
Pregavam-lhe peças. Não tinha muitos amigos... Na verdade, era sempre evitada.”

“Tem alguma ideia do motivo?”

Sim. Santa Antonieta era uma cidade má. As crianças que cresciam ali, em sua maioria, eram
más, mesmo sem saber.

“Ellie era... diferente.”

“Diferente?”

Inteligente. Acima da média. Fora de seu tempo.

“Acho que cresceu demais. É a mais alta entre os colegas, magricela e um pouco estabanada.
Deram-lhe um apelido maldoso por conta disso. Chamam-na de Ellie Espaguete”, ou pelo
menos era isso que Carlinhos os via escrevendo no armário dela.

Robert tomou nota daquilo. Não sabia o motivo, mas parecia importante.

“O senhor acredita então que se ela esteve no banheiro, foi por causa de um logro?”

Carlinhos fez que sim com a cabeça.


“É provável.”

“Sabe informar quem poderia ter sido o responsável?”

Ah, ele conseguia pensar em alguns nomes. Mas não diria, eram muitos, ele teria que listar. E
acima de tudo, eram crianças. Não mereciam envolvimento naquela história.

“Como eu disse, ela não era muito popular. Talvez devesse perguntar quem não foi o
responsável”, respondeu com amargura, a boca se retorcendo, como se tivesse acabado de
tomar uma colher de Dipirona.

Robert deu uma boa olhada no velho.

“Não pode estar sugerindo que devamos checar todas as crianças.”

Mas ele estava. Santa Antonieta era uma cidade destrutiva. Quem nascia ali, em sua maioria,
nascia destrutivo. Mesmo sem saber.

James e Patrick estavam a caminho da escola, numa discussão acirrada sobre qual seria o
próximo episódio de sua série animada preferida, quando foram obrigados a saltar para o lado
para dar passagem a três bicicletas. Não era preciso uma análise profunda para entender
quem eram; as vestes surradas não mentiam, e o cabelo embaraçado de Ellie Harris poderia
ser reconhecido de longe.

A reação dos garotos foi literalmente oposta: James fechou a cara, enquanto Patrick começou
a acenar feito doido.

“Oi, gente!”

Aceitar que seu primo gostava de Ellie Espaguete já tinha sido difícil, e agora ele também
estava se dando muitíssimo bem com o resto da família Harris, aparentemente. James não
sabia o quanto seria capaz de aturar em nome de seus laços de sangue.

Não só a garota frequentava sua casa quase todas as tardes, como também batia papo com
sua avó, acenava para ele no intervalo entre as aulas e parecia absolutamente incapaz de
lembrar o nome correto de seu cachorro. James teve que dedicar horas de seus dias com
meditação e exercícios de paciência para finalmente se conformar com essa nova realidade,
pois quando demonstrou seu desconforto para Patrick, o mesmo o chamou de ingrato.

“É por causa dela que Russel está bem! Demonstre um mínimo de simpatia, cara!”

Isso ele até poderia fazer. Com esforço, poderia diminuir a acidez no tom de voz ao
cumprimentá-la. Mas um Harris de cada vez, por favor. Ele não tinha toda essa capacidade de
fingimento.

“Oi, Pat, oi, James. Querem carona?”, ofereceu Ellie, parando a bicicleta ao lado deles. Seus
irmãos fizeram o mesmo. James os conhecia de vista apenas; os gêmeos Brianna e Matthew,
apesar de indiscutivelmente bons no piano, ainda eram considerados má companhia por
Mamãe.

James sentiu uma risadinha de deboche escapar-lhe pelos lábios.

“Até parece”, foi a sua resposta. Que Ellie era capaz de carregar um dos dois na garupa de sua
bicicleta, ele não duvidava. Era preciso assumir: a garota era alta, tinha pernas longas. Pedalar
deveria ser moleza nessas circunstâncias. Mas ele jamais, nunquinha, aceitaria ser carregado
por ela. Chegar à escola junto com Ellie Espaguete era mais do que sua reputação poderia
aguentar.

Patrick não parecia pensar o mesmo, pois subiu em sua garupa em menos de um minuto,
deixando James embasbacado.

Ellie soltou uma gargalhada.

“Não sei se vamos chegar a tempo para a primeira aula, com todo esse peso extra”, brincou.
“Cento e vinte quilos, não é, Karl? Acomode bem a banha, para não me desequilibrar.”

“Ah, não enche, Harris! Tem medo de quebrar essas pernas finas?”

Por Deus, eles já eram muito amigos. James conteve o impulso de vomitar na sarjeta.

Brianna e Matthew ainda tentaram convencê-lo a ir com eles, mas James foi firme ao anunciar
que preferia a morte. Ser visto com eles não era tão ruim quanto ser visto com ela, mas se Ellie
tinha piolhos, os irmãos dela com certeza também tinham, e manter certa distância era uma
questão de segurança.

Quando chegou à escola, cinco minutos mais tarde, ele soube que estava encrencado. Damien
o esperava perto de seu armário, e tinha uma expressão alarmada. Provavelmente tinha visto
Patrick com os Harris. Toda a escola deve ter visto.

“Mas o que foi aquilo?! Está planejando suicídio social?”, despejou Damien. “Primeiro o
cachorro, então ela visita a sua casa e agora...”

“Eu...”

“Seu primo está vindo para a escola com Ellie Espaguete?!”

“Não!”, exclamou James, agitado. “Quer dizer, é. Ele pegou uma carona na bicicleta estúpida
dela, mas foi só hoje!”

Damien bufou.

“Cara, isso é mal. Essa garota está se infiltrando na sua família. Fala com o Karl. Você precisa
começar a tomar as rédeas.”

“Não dá! Não é só o Patrick. Mesmo que eles parem de se falar, não vai adiantar nada. Minha
avó adora ela”, contou James, amargurado.

“Sua avó?”
“É, convidou ela para tomar chá e tudo o mais, e aquele Gago idiota também.”

“O Gago também?!”

“Não ouviu o que eu disse?!”

Damien olhou-o com pena.

“O que você vai fazer?”

James balançou a cabeça negativamente.

“Esperar um milagre?”

Thomas enfiou-se em um casaco pesado, verde musgo, e galochas. Agarrou a maior lanterna
que tinha e todas as pilhas que pôde encontrar em casa. Não podia arriscar ficar sem luz no
meio da noite.

Demorara, mas finalmente, depois de encontrarem um pedaço da camiseta de Ellie, o


delegado Carter começara a recrutar voluntários para realizar uma busca pela área ao redor da
escola. Thomas sentia, sabia, que não iria muita gente para ajudar, mas ainda assim conseguia
se sentir um pouco mais aliviado. Estavam procurando. Estavam fazendo alguma coisa. A
sensação de movimento lhe dava esperança.

Cristoph Doyle, pai de Alex, aguardava no sofá. Havia sido um dos primeiros a se voluntariar
para procurar Ellie.

“Nós vamos achá-la. Ela deve estar bem, você vai ver. É uma garota esperta.”

Ellie era esperta. Thomas nunca duvidara disso. Mas também era pequena, e não precisava de
muito para derrubar uma criança de onze anos. Ele mal conseguia respirar imaginando o que
poderiam ter feito à sua menina.

Thomas passou a mão pelos cabelos, respirou fundo e caminhou até a sala. Cristoph levantou-
se de um salto quando o viu, assim como os gêmeos. Matthew se adiantou.

“Pai, eu vou com vocês”, anunciou, se esforçando para parecer confiante. “Brianna pode ficar
em casa, caso alguém ligar, ou...”

“Não. Você fica”, ordenou Thomas.

Matthew se empertigou.

“Eu posso ajudar.”

“Você vai ajudar. Vai ficar com sua irmã, em casa”, e jogou-lhe as chaves da caminhonete, que
o rapaz apanhou no ar. “Se alguém ligar, se alguma coisa acontecer, você vai estar pronto para
agir.”
Thomas saiu em direção à porta, Cristoph em seu encalço.

“Brianna pode dirigir perfeitamente”, argumentou Matthew, jogando a chave para a irmã, um
passo atrás deles. “Eu seria muito mais útil em...”, mas foi interrompido pelo pai, que virou-se
bruscamente para encará-lo.

“Matt, você vai ficar, vai cuidar da Brianna. Vocês dois precisam se apoiar, vou ficar mais
tranquilo se souber que vocês estão em casa, juntos e salvos”, colocou a mão no ombro do
filho. “Como vou poder me concentrar em procurar Ellie com você embrenhado no meio do
mato?”

Matthew tirou a mão de Thomas de seu ombro e ajeitou a postura para encarar o pai. Sentiu
seus olhos marejados e fez força para não chorar. Tinha que parecer forte.

“É a minha irmã”, rosnou.

Thomas queria não se sentir tão orgulhoso dele naquele momento. Agarrou o rapaz pelo
colarinho e sacudiu uma vez.

“Escute aqui”, disse, olhando-o nos olhos. “Eu vou trazê-la de volta”, prometeu, e seu
estomago borbulhou de determinação. “Deus me ajude, eu vou trazê-la para casa!”, uma
lágrima rolou pelo rosto de Matthew, e Thomas o sacudiu novamente. Brianna arfou e
começou a chorar livremente, agarrando a chave do carro como se sua vida dependesse disso.
“Não posso perder mais ninguém. Por favor. Fique.”

Então largou o filho, virou-se, abriu a porta com um puxão e saiu.

Cristoph suspirou. Olhou os gêmeos uma última vez.

“Lúcia mandou um pedaço de torta. Está em cima da bancada”, disse, meio sem jeito. “Façam
o favor de comer e tentar dormir, sim?”

Então saiu, batendo a porta atrás de si.

“Você só pode estar de brincadeira! É domingo!”

Ellie Harris abriu um sorriso enorme na soleira da porta.

“Que recepção diferente”, comentou, divertida.

James bufou, irritado.

“Cai fora!”, e bateu a porta na cara da garota. Mas mal havia dado dois passos para longe,
quando a campainha soou novamente. Um som gutural começou a se formar na garganta de
James, quase como um rosnado. Ele voltou-se para a porta e, sem abri-la, gritou: “O que você
quer?!”
A semana inteira, todos os dias, ela apareceu. Xeretou, falou com Vovó, brincou com o
cachorro. Por consequência, Damien não passou nem perto de sua casa, Mamãe não parou de
reclamar um só minuto e James estava a ponto de ter um surto psicótico. Ele só queria um dia
de paz. Um dia. Era pedir demais?

“Sarah me chamou para tomar chá”, Ellie respondeu, sua voz abafada pela madeira.

James suspirou. Sarah. Porque Vovó precisava daquela pentelha para tomar chá? Ele estava
ali. Poderia tomar chá com ela sempre que quisesse. Ela já havia falado com Ellie Harris em
uma semana mais do que havia falado com ele sua vida inteira!

“Entra”, disse, derrotado. “Mas Vovó ainda está cochilando, você vai ter que esperar.”

Ellie abriu a porta devagarzinho e entrou, não sem antes deixar os sapatos na varanda, como
agora já estava habituada a fazer. James a encarou com a maior cara de desprezo que
conseguiu fazer; queria que ela soubesse que não a queria ali.

“Eu trouxe quebra-cabeça”, anunciou ela, sem parecer notar, estendendo a caixa em frente ao
corpo.

James revirou os olhos.

“E daí?”

“Podemos montar juntos.”

“Não.”

“Porque não?”

“Porque eu não quero.”

Ellie mordeu o lábio, pensativa diante da recusa. E então deu de ombros.

“Eu também trouxe meu bloco de desenho”, ofereceu, colocando a caixa no chão e tirando a
mochila do ombro. “Podemos desenhar juntos.”

“Não.”

“Mas eu posso te emprest...”

“Não.”

“Não gosta de desenhar?”

“Não!”

“O que quer fazer então?”

“Nada que seja com você.”

“Mas você mesmo disse que Sarah ainda está dormind...”


“Então vá para casa!”

Ellie ainda abriu a boca para falar, mas então a fechou novamente, apertando os lábios em
uma linha fina. James sentiu-se um pouquinho mal por ter sido tão incisivo, porém precisava
fazê-la notar que não era bem-vinda, não importava se tinha salvado Russel, não importava o
quanto Vovó gostasse dela. James pensava que isso já estava bastante claro, não conseguia
entender como Ellie não percebia. Todos sabiam, todos viam, até se constrangiam em seu
nome, como era possível que só ela fosse insensível a esse fato?

“Porque você me odeia?”

Ou talvez não fosse.

“Eu não te odeio”, mentiu James, por educação. Mas Ellie revirou os olhos.

“Odeia sim, todo mundo odeia”, disse ela, recolhendo a caixa de quebra-cabeças do chão e se
pondo ereta. “Eu só não sei o motivo.”

James se viu subitamente sem graça.

“Eu não te odeio”, repetiu.

“Você bateu a porta na minha cara”, retorquiu Ellie, com uma expressão que dizia ‘é óbvio’.

“Ah, bem...”, ele balançou-se nos calcanhares, pensando no que falar.

“E você não quer que eu seja amiga do seu primo.”

“Então, sobre isso...”

“E nem da sua avó.”

“É que...”

“Me evita na escola.”

“Eu...”

“E não quis brincar quando eu ofer...”

“É porque você é insuportável!”, gritou James, sentindo-se corar de fúria por ser
constantemente interrompido. “Será que não sabe calar a boca?!”

Certo, aquilo fora desnecessário. Ellie entendia bem mais do que transparecia,
aparentemente; ela já devia ter chegado a essa conclusão sem que ele precisasse gritá-la em
sua cara. Ainda assim, James não se sentiu culpado.

A garota abaixou a cabeça e forçou os lábios novamente.

“Desculpe”, sussurrou, quase sem movê-los. Ela apertou a caixa contra o peito e fez um sinal
com a cabeça para a porta. “Vou esperar na varanda.”
Ellie virou-se e saiu, fechando a porta atrás de si. James ficou parado, encarando o nada e
pôde escutar enquanto ela deixava a mochila cair e sentava-se no chão. E se esses tivessem
sido os únicos sons, ele provavelmente teria ido se ocupar da própria vida, mas não. Um
arrastar leve chegou aos seus ouvidos, seguido do que pareciam pecinhas se esparramando
pelo piso de madeira.

James caminhou na ponta dos pés até a porta, ajoelhou-se o mais silenciosamente que pôde e
espiou pela entrada de cartas. Ela ia montar o quebra-cabeça. Sozinha. Isso o fez sentir-se
como um verdadeiro canalha. Porque, bem, ele gostava de quebra-cabeça, e Ellie Harris não
podia ser assim tão ruim porque também gostava de quebra-cabeça, e mesmo que fosse,
como ele saberia? Nunca falara mais do que dez minutos com ela.

Porque ele a odiava, Ellie havia perguntado. Ela acreditava que todos a odiassem e queria
saber o motivo. James teria lhe dito, de bom grado, se soubesse. Sim, ela era meio bagunçada,
amarrotada, perguntava o que não devia, falava demais, mas e daí? A verdade é que nunca
pensara sobre isso. Sempre fora ensinado a não chegar perto dela, era a única coisa da qual
podia se lembrar, porém as razões nunca eram relacionadas à própria Ellie. Diziam-lhe que um
pai solteiro criar três crianças não era bom, que todos tinham os genes da mãe fugitiva, mas
que prova se tinha disso? Ninguém sequer sabia se ela tinha mesmo piolho, quanto mais se
cresceria como a delinquente que pregavam.

O que ele sabia sobre Ellie Harris, afinal? Ela chamava seu cachorro de Bolinho. James não
gostava disso. E o que mais? Não gostava como ela fazia sua avó rir, porque era ele quem
deveria fazer isso. E o que mais? E o que mais?

James a odiava porque a cidade toda a odiava. Não por causa dela.

“Quantas peças?”, ele perguntou, tímido.

Ellie teve um pequeno sobressalto. Olhou para James pela entrada de cartas e sorriu.

“Mil e quinhentas”, respondeu, e então levantou a tampa da caixa para que ele pudesse ver a
imagem que ela iria montar: pessoas fazendo um piquenique, ou algo do tipo. “Uma Tarde de
Domingo na Ilha de Grande Jatte”, acrescentou Ellie.

James uniu as sobrancelhas em confusão.

“O que é isso?”

“É uma pintura de Georges Seurat”, ela explicou.

James fingiu entender, pois não queria parecer um idiota.

“Você gosta dessas coisas de arte, não é?”, disse ele, lembrando-se do bloco de desenhos que
ela disse ter trazido. Ellie fez que sim, voltando sua atenção para o quebra-cabeça, de modo
que a única coisa que James conseguia ver agora era um monte de cabelos. Ele queria ir lá fora
montar também, mas já havia dito que não queria, e não voltaria atrás. Tentava se convencer
de que não ia gostar, era um quebra-cabeça velho, já muito usado e marcado, porque os Harris
não têm dinheiro para comprar coisas novas. E isso fez James se lembrar de uma coisa, e se viu
dizendo: “Sinto muito por não ter ganhado a caixa de lápis com 120 cores.”

Ellie sorriu para ele, de um jeito doce. James levantou os cantinhos da boca, mas logo tratou
de abaixar.

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