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RENÉ DREIFUSS E O LIVRO “1964: A CONQUISTA DO ESTADO”:

ESTUDOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE


Cristina Ferreira
Leandro Lopes Costa
(Universidade Regional de Blumenau - FURB)

Resumo.

A obra “1964: a conquista do Estado”, publicada pelo cientista político René A.


Dreifuss em 1981, integra um rol de significativas pesquisas sobre o golpe de
1964 no Brasil, por isso, convém analisá-la a partir das relações entre Estado e
sociedade verificadas pelo autor. A metodologia dessa proposta de pesquisa
está em consonância com a operação historiográfica, pautada na articulação
entre o lugar social de produção, sua prática científica e escrita. Recorre-se à
produção acadêmica atual, com o fito de apreender os problemas
historiográficos contemporâneos, responsáveis pela rediscussão do papel dos
sujeitos históricos na constituição do golpe. Para Dreifuss, o golpe de 1964 foi
resultado da articulação entre diversos atores civis e militares, mas seu
protagonismo recai sobre a ação política, ideológica e financeira das elites
empresariais sobre as classes médias, consideradas passivas e alienadas. A
fundamentação documental baseia-se em pesquisa de fôlego realizada pelo
autor nos arquivos brasileiros e americanos, além da produção de historiadores,
sobretudo brasilianistas, fator que denota a ausência de estudos brasileiros
nesse período. Embora tenha sido inovador ao cunhar o termo “civil-militar” e
compreender o golpe para além das artimanhas militares, Dreifuss concedeu
extrema valorização ao aspecto doutrinário e manipulador da “burguesia”,
desconsiderando a ação relativamente autônoma e os interesses específicos
dos diversos grupos sociais que conferiram apoio ao golpe, o que permitiria
transcender a tese de simples manipulação de classe. Entendemos, portanto, as
relações entre Estado e sociedade como ambivalentes, marcadas não apenas
pela opressão e manipulação, mas também pela colaboração, acomodação e
legitimação.
Palavras-chave: Golpe de 1964; Historiografia; René A. Dreifuss

Financiamento: Programa de Iniciação Científica FURB PIPe/Artigo 170.

Introdução/Justificativa/Objetivos

Os eventos relacionados ao golpe civil-militar de 1964 e à ditadura militar


tem gradualmente despertado maior interesse dos historiadores, sobretudo nas
2

duas últimas décadas (2004 e 2014), quando o evento completou 40 e 50 anos.


Isso se deve, em grande medida, ao contexto acadêmico favorável à expansão
das pesquisas históricas e ao distanciamento temporal em relação à data.
Todavia, no âmbito das Ciências Humanas, em especial das Ciências Sociais e
Política, a produção acadêmica sobre essas temáticas remonta a tempos
anteriores, muitas delas ainda nos períodos em que a ditadura militar estava em
vigência, fator que enseja maior atenção dos historiadores no tocante aos
aspectos da temporalidade e contexto de produção dessas obras.
Uma das mais significativas incursões nessa seara é a obra “1964, A
conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe”, publicada pelo
cientista político René Armand Dreifuss em 1981 e resultado de sua tese de
doutorado, intitulada “State, Class and the Organic Elite: the Formation of an
Entrepeneurial Order in Brazil—1961-1965”, realizada entre 1976 e 1980 na
universidade de Glasgow, na Escócia. A obra teve grande repercussão na
produção acadêmica brasileira desde os anos de 1980 e, não obstante a grande
profusão de estudos mais recentes relacionados ao tema, ainda constitui
referência no assunto. Diante dessa justificativa, o objetivo desse artigo é
analisar o livro de Dreifuss, “1964: a conquista do Estado”, à luz de seu contexto
social, político e acadêmico de produção, com base no estudo dos aspectos
teórico-metodológicos e problemas historiográficos vinculados à produção
acadêmica recente sobre o tema.
Evidentemente, não temos a pretensão de dar conta de todas as
características e pormenores da referida obra. A intenção é apresentar algumas
sugestões de análise historiográfica, com ênfase no objeto de pesquisa em
questão, pautado na relação entre Estrado e sociedade, com o fito de apreender
os problemas da historiografia brasileira contemporânea, responsáveis pela
rediscussão em torno da ação dos sujeitos históricos em relação ao evento de
31 de março de 1964.

Resultados
3

O golpe civil-militar de 1964 e a historiografia

A historiografia sobre a ditadura é ainda relativamente recente. Os


estudos historiográficos nessa temática até pouco tempo consistiam em uma
espécie de “movimento de incorporação” dos historiadores pelas temáticas já
estudadas anteriormente pelos cientistas políticos, sociólogos e os próprios
partícipes dos eventos1. Em que pese a considerável contribuição desses
trabalhos para o avanço dos estudos acadêmicos, nota-se um movimento de
crítica historiográfica a algumas de suas principais teses. Exemplo disso foram
os debates em torno da noção de “populismo”, formulada pela sociologia dos
anos 1960, ancorada em Francisco Weffort2. Para este autor, o golpe de 1964
seria resultado do esgotamento do “populismo”, forma de governar oriunda do
Varguismo e baseada na cooptação e manipulação das massas pelo Estado. Em
um de seus principais artigos, publicados no livro “O populismo na política
brasileira”, em 1980, Weffort apresentava o populismo como um movimento
caracterizado por “formas pequeno-burguesas de ação”, e, portanto, condenado
à traição inevitável do Estado às classes trabalhadoras.3 Nessa perspectiva, o
golpe teria sido o resultado de um esgotamento no modelo de desenvolvimento
fundamentado na conciliação de classes, e a ditadura seria apenas uma
consequência inevitável. Contudo, a crítica historiográfica recente tem apontado
as deficiências teóricas desses modelos4, à medida que sugere um suposto
modelo de “consciência de classe” e apresenta as classes trabalhadoras como
pouco cientes de sua condição de espoliação e ausentes da condução de seu

1 FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 24, n. 47, 2004, p. 02.
2 GOMES, Ângela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a

trajetória de um conceito. In: FERREIRA, Jorge. (Org.). O populismo e sua história: debate e
crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 32.
3 WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989,

p. 28.
4 Para algumas críticas à noção de “populismo” nas ciências sociais, conferir: FERREIRA, Jorge

(Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
4

processo político, negligenciando a “ação consciente dos trabalhadores” e “sua


capacidade de elaborar avaliações, cálculos, escolhas”5,
Tais formulações, portanto, devem ser problematizadas em relação ao
seu contexto acadêmico, social e político de produção, de modo a analisá-las a
partir de um maior "desprendimento político"6 em relação à data. Isso porque
uma obra historiográfica nunca é apenas o seu texto final, nem tampouco um
empreendimento puramente individual, mas sim uma produção coletiva. Logo,
deve ser analisada a partir do conjunto de autores que a compõe, em
consonância com os diálogos e “redes” estabelecidos com a produção
acadêmica, seus interesses próprios e as instituições de vinculação7.
A abordagem metodológica que envolve esses elementos da operação
historiográfica, na sugestão de Michel de Certeau, pode ser agrupada a partir de
três dimensões principais: um “lugar social”, resultado da articulação dos
pesquisadores com seu meio; uma “prática historiográfica”, nas relações que os
historiadores estabelecem com a natureza para a produção do conhecimento
histórico; e, por fim, uma “escrita”, representação histórica do passado articulada
com um lugar social e uma prática científica. Embora seja dotada de
procedimentos próprios, a escrita da história não é simplesmente um
procedimento livre, desarticulado de seu processo científico, ela “permanece
controlada pelas práticas das quais resulta”8.
Assim, as análises acadêmicas mais recentes, conscientes das limitações
do conhecimento histórico e da necessidade de distanciamento em relação ao
objeto de estudo, têm contribuído no sentido de rediscutir certos mitos e

5 REIS FILHO, Daniel Aarão. "O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança
maldita". In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 353.
6 FICO, op. cit., p. 02.
7 JANOTTI, M. L. M.. O diálogo convergente: políticos e historiadores nos inícios da República.

In: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.). Historiografia Brasileira em perspectiva. São Paulo:
Contexto, 1998, p. 132.
8 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p.

95.
5

estereótipos com relação ao golpe, sobretudo no que tange à relação entre


Estado e sociedade civil.
Um dos principais debates políticos dos anos 1960, também responsável
pela movimentação de amplos setores da sociedade, estava ligado às propostas
de reforma agrária, frustradas devido à falta de alinhamento entre as direitas e
as esquerdas. Nesse cenário de desacordo entre ambos os lados, "Goulart não
encontrou condições políticas para enviar ao Congresso Nacional um projeto de
Reforma Agrária"9.
Ao radicalismo do cenário político nacional soma-se o contexto da Guerra
Fria, onde os conflitos entre Estados Unidos e União Soviética abarcavam, por
extensão, grande parte das nações do globo e colocavam no centro do debate
político a polarização entre o capitalismo e o comunismo. No Brasil era
constante, entre os grupos de direita, a bandeira do anticomunismo, “com vistas
ao enfrentamento da chamada “onda esquerdista” que supostamente tomaria
conta do Brasil”10.
Assim, o golpe pode ser compreendido como o resultado da soma de
diversos fatores, tais como: a fragilidade institucional; as mudanças estruturais
da sociedade brasileira; o radicalismo de amplos setores políticos e a
propaganda anticomunista, marcadamente acentuada a partir da crise política e
econômica do início dos anos 1960. No entanto, o estopim para a adesão de
amplos setores das forças armadas ao golpe ocorreu em março de 1964, com a
participação de João Goulart em uma festa de sargentos e suboficiais no salão
do Automóvel Club, no Rio de Janeiro, e a posterior realização do comício da
Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Nos dois eventos, Goulart

9 FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In:______ O Brasil


Republicano; v. 3. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2003, p. 350.
10 FERREIRA, Cristina. Nas malhas da história: sociabilidade e política no cotidiano dos

trabalhadores têxteis de Blumenau (1958-1968), 2015. 374 f. Tese (Doutorado em História) –


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014,
p. 256.
6

radicalizara seu discurso em defesa das reformas de base, compostas pelas


bandeiras da reforma agrária, tributária e eleitoral, entre outras11.
A partir de então, dado o claro alinhamento de Goulart com as esquerdas,
o golpe se desenrolou rapidamente. O início das movimentações militares
ocorreu em 31 de março de 1964, a partir da iniciativa do general Olympio
Mourão Filho, em Juiz de Fora (MG), responsável pela movimentação de tropas
em direção ao Rio de Janeiro. Para surpresa dos principais articuladores, não foi
verificada qualquer resistência da parte de Goulart. O então presidente decide
deixar a sede do poder no Rio de Janeiro rumo à Brasília e, posteriormente, ao
Rio Grande do Sul, devido à falta de apoio militar e a fim de evitar sua prisão12.
Com o abandono de Goulart e a declaração de vacância da presidência,
realizada pelo presidente do Senado Aldo de Moura Andrade na madrugada do
dia 2 de abril de 1964, estava consolidado o golpe.
Contudo, embora a iniciativa das movimentações e a deflagração do golpe
tenham sido protagonizadas pelos militares, suas ações não foram possíveis
sem o amplo respaldo de diversos setores da sociedade civil: empresários,
políticos, igreja, entre outros. Trata-se, portanto, de golpe civil-militar, “altamente
político e civil em sua formação e execução”, e não “um mero golpe militar”13,
como já advertia René Dreifuss no início dos anos 1980.

René Dreifuss e obra “1964: a conquista do Estado”

O livro de Dreifuss teve grande repercussão na produção acadêmica


brasileira, tendo em vista a pesquisa de fôlego realizada pelo autor e sua sólida
e vasta formação intelectual. Uruguaio de nascimento, nascido em Montevidéu
em 1945, era “apaixonado pelo Brasil” e sensível aos seus problemas sociais,

11 JG anuncia a encampação de refinarias no comício. Folha de S. Paulo, nº 12.690, São Paulo,


14 de março de 1964, p. 6 (Primeiro Caderno).
12 FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, p.

93.
13 DREIFUSS, René. A Conquista do Estado. Ação Politica e Golpe de Classe. Petrópolis:

Editora Vozes, 1981, p. 397.


7

como relatam amigos próximos14. Mas foi na Grã Bretanha onde desenvolveu o
interesse pelo tema de sua tese e obra mais famosa. Realizou seu mestrado em
Ciência Política, na Universidade de Leeds, em 1974, e o doutorado na
Universidade de Glasgow, em 1980. Sua produção acadêmica é composta por
uma vasta quantidade de artigos e livros sobre assuntos diversos, sobretudo
relacionados às elites e o poder, as ações das forças armadas e as relações
internacionais.
Entre os livros publicados, além do clássico “1964: a conquista do Estado”,
publicado em 1981 pela editora Vozes, constam o livro “A Internacional
Capitalista: estratégias e táticas do empresariado transnacional” (1986), “O Jogo
da Direita na Nova República” (Vozes, 1989), “Política, Poder, Estado e Força -
uma leitura de Weber” (Vozes, 1993); e, por fim, a obra “A Época da
Perplexidade” (Vozes, 1996). Após a conclusão de seus estudos de doutorado,
Dreifuss passou a ter grande atuação acadêmica no Brasil e, em 1980, integrou
o Departamento de Ciência Política da UFMG, onde atuaria por cinco anos.
Também foi professor do programa de pós-graduação da UFF entre 1986 até o
seu falecimento, em 2003, além de ter integrado diversos grupos de pesquisa
relacionados, principalmente, aos estudos políticos e às relações exteriores15.
Em sua principal obra, “1964, A conquista do Estado”, Dreifuss defende a
tese de que a deflagração do golpe e a instauração da ditadura militar foi
resultado de uma ampla articulação política entre setores civis e militares,
marcada por uma dimensão essencialmente classista e empresarial, resultado
da ação coordenada entre o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). O “complexo IPES/IBAD”, nas
palavras de Dreifuss, utilizaram-se do apoio militar das forças armadas e de
setores civis conservadores e tomaram o poder através de um golpe de Estado
que já se ensaiava desde 1961. Assim, para Dreifuss, o golpe consiste na

14 FIGUEIREDO, E. L.. René Dreifuss. Dados (Rio de Janeiro) , v. 46, n.1, 2003. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582003000100006 Acesso
em: 12/06/2016
15 Idem.
8

“culminância de um movimento civil-militar e não como um golpe das Forças


Armadas contra João Goulart”16. Sua contribuição acadêmica articulou o uso do
termo “golpe civil-militar”, em contraponto ao termo “Golpe Militar”, que tendia a
reconhecer o evento como uma ação exclusivamente militar.
A partir de pesquisa de fôlego realizada em arquivos brasileiros e norte-
americanos, Dreifuss empreende uma análise minuciosa nas redes tramadas
entre políticos, militares e empresários na ação de “conquista do Estado”. Dentre
as principais documentações mobilizadas pelo autor, constam os Arquivos do
IPES, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil (CPDOC), do Arquivo Nacional, da Biblioteca do Exército e da Escola
Superior de Guerra, além de recorrer às memórias de oficiais de alta patente.
Dentre os arquivos estrangeiros, o autor teve acesso aos documentos oficiais do
National Secutiry e da Biblioteca John Kennedy, entre outros, além de uma farta
bibliografia acadêmica, em grande parte norte-americana, o que denota a
escassez de estudos brasileiros nesse período.
O aspecto central da conspiração golpista, na análise de Dreifuss, reside
na ação política e militar dos ativistas ligados ao IPES/IBAD, por meio da
organização de movimentos civis-militares. Havia, na rede criada pelo Complexo
IPES/IBAD, um “sistema de intensa cooperação com civis, apoiando e
reforçando algumas das atividades políticas”17, coordenadas a partir da
comunicação entre atores políticos e militares nos quatro cantos do país e em
diversas reuniões realizadas em escritórios em São Paulo e no Rio.
Desta ampla articulação golpista culminaria a ação do General Olympio
Mourão Filho no deslocamento das tropas no dia 31 de março, supostamente
controlada pelos núcleos golpistas. Ainda que o General desconhecesse as
forças civis e militares do IPES/IBAD na articulação do golpe, seu movimento

16 DREIFUSS, René. A Conquista do Estado. Ação Politica e Golpe de Classe. Petrópolis:


Editora Vozes, 1981, p. 361.
17 Idem.
9

teria sido, nas palavras do autor, “fomentado e controlado, em todo o seu


desenrolar, pela liderança do complexo IPES/IBAD”18.
Nota-se, na análise de Dreifuss, a concepção do golpe como resultante
de ações meticulosamente articuladas pelos setores golpistas ligados ao
empresariado, leitura que apresenta algumas lacunas, pois insuficiente para a
compreensão da dimensão civil do golpe em toda a sua complexidade. A
concepção de “participação civil” adotada pelo autor tende a sobrevalorizar o
aspecto doutrinário e manipulador da “burguesia”, sobre uma classe média tida
como passiva e alienada. Afinal, as classes médias não eram formadas apenas
por sujeitos passivos diante do processo político, mas por pessoas que
“percebiam que um processo radical de distribuição de renda e de poder por
certo afetaria suas tradicionais posições e seus relativos privilégios naquela
sociedade brutalmente desigual”19. Ademais, o autor subestima a participação
das camadas populares nos eventos decisivos do golpe. Exemplo dessa leitura
é a interpretação da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de 1964,
concebida por Dreifuss como um evento “restrito”, “ostensivamente uma
manifestação da classe alta e classe média alta”20, não obstante o próprio autor
reconheça a presença de 500 mil pessoas somente em São Paulo. Nesse
sentido, não houve uma atenção maior à ação relativamente autônoma dos
diversos grupos sociais que conferiram apoio ao golpe, bem como seus
interesses específicos, o que permitiria transcender a tese de simples
manipulação de classe.
Evidencia-se ainda uma excessiva valorização dos fatores econômicos na
deflagração do golpe, representados na centralidade do complexo IPES/IBAD.
Embora seja evidente a relevância da ação empresarial, há uma ênfase
demasiada na suposta coordenação entre empresários e militares. A própria

18 DREIFUSS, René. A Conquista do Estado. Ação Politica e Golpe de Classe. Petrópolis:


Editora Vozes, 1981, p. 373.
19 REIS FILHO, Daniel Aarão. "O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma

herança maldita" In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 335.
20 DREIFUSS, op. cit., p. 298.
10

iniciativa de Mourão Filho, ao iniciar o deslocamento das tropas em direção ao


Rio de Janeiro, constituiu-se de forma improvisada, e não meticulosamente
coordenada pelo IPES, como sugere Dreifuss. Embora pudesse ser considerado
um “conspirador de longa trajetória”, a comunicação entre os grupos de
diferentes regiões do país era pequena, além de terem sido consideradas
imprudentes por muitos adversários políticos de Goulart, a exemplo dos próprios
generais Costa e Silva e Castelo Branco21. Assim, no afã de desmistificar a
excessiva dimensão militar do golpe, vigente nas leituras anteriores, Dreifuss
inverte o polo do protagonismo: para o autor trata-se, essencialmente, de um
golpe de classe articulado pelos empresários com o apoio dos militares, e não o
inverso.
A centralidade da ação política empresarial permanece também na
condução do novo governo instaurado após a derrubada de Goulart, por meio da
infiltração de industriais e banqueiros multinacionais (denominados “tecno-
empresários”) nos postos chave do novo governo. Assim, Dreifuss contrapõe a
noção de que as formulações das novas diretrizes econômicas teriam sido
realizadas por técnicos imparciais e apartidários, ao apontar a relação entre os
funcionários administrativos do governo e as grandes indústrias22.
A ênfase excessiva no controle empresarial do Estado no pós-golpe,
contudo, não se verifica na própria formulação do autor. Ao diferenciar a ação de
civis e militares no novo governo, afirma Dreifuss:

enquanto a formulação de diretrizes políticas e a tomada de decisões


estavam nas mãos de civis do complexo IPES/IBAD - na maioria grandes
empresários - a condução das diretrizes políticas nacionais estava
parcialmente nas mãos dos militares politizados formados pela ESG. (...)
Os tecno-empresários e empresários do IPES viam nos militares a fonte
de apoio político e de autoridade que aqueles não poderiam obter
através de apelo político à população como um todo, tendo em vista seu

21 FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, p.
74.
22 DREIFUSS, op. cit., 455.
11

programa de governo modernizante-conservador nitidamente


impopular.23

Evidencia-se, portanto, um dos aspectos centrais do governo autoritário


pouco explorado por Dreifuss: a ação política e coercitiva dos militares na
condução do Estado no pós-golpe, sobretudo aqueles formados na Escola
Superior de Guerra, como aponta o próprio autor. A compreensão dos militares
como simples coadjuvantes do novo processo político não era estranha ao
contexto em que a tese de Dreifuss foi produzida. Tem origem, em grande
medida, nas formulações de autores brasilianistas como Alfred Stepan, Ronald
Schneider e Riordan Roett, mencionados com recorrência em seu texto. Para
Stepan, os militares teriam facilidade para intervir, mas dificuldade para
governar, atuando como simples sujeitos passivos diante de um processo
político meticulosamente coordenado por empresários. Há que se relativizar a
suposta imagem de inferioridade e ingenuidade dos militares, afinal as forças
armadas são, desde os anos 1930, um pilar extremamente importante do poder
político, tendo papel fundamental na consolidação do poder do Estado24. Além
do mais, a suposta incapacidade política dos militares na condução do país e o
predomínio do projeto econômico antiestatista e liberal das elites do IPES/IBAD
não se verificou na ditadura militar brasileira, amplamente marcada pelo caráter
estatizante e autoritário do projeto político militar.
Assim, se o argumento de Dreifuss com relação à dimensão civil do golpe
se verifica na ampla documentação mobilizada pelo autor, tendo em vista,
sobretudo, a ação de políticos e empresários, o mesmo não se verifica com
relação à condução política do novo regime, marcada por um paulatino
afastamento do poder civil em detrimento do avanço militar na articulação política
e econômica do Estado. Ainda que, como demonstra Dreifuss, importantes
cargos do novo governo tenham sido assumidos por empresários, também havia

23Ibidem, p. 418.
24 MARTINS FILHO, J. R. Forças Armadas e política (1945-1964). In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. (org.). O Brasil republicano. O tempo da experiência
democrática: Da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, v. 3, p. 102.
12

a inserção de grande quantidade de militares em cargos em agências


governamentais. Além do mais, “as sucessivas crises do período foram
resolvidas manu militari e a progressiva institucionalização do aparato
repressivo também demonstra a feição militar do regime”25, fator que permite
contrapor a noção de que os setores empresariais teriam sido os únicos
detentores da condução do processo político após a derrubada de João Goulart.

Considerações Finais
Do ponto de vista da memória social, o golpe civil-militar de 1964 e a
ditadura militar ainda são frequentemente lembrados pela sociedade brasileira
enquanto eventos essencialmente militares, desprovidos de uma maior
participação da sociedade em sua construção. Nesse sentido, a obra de Dreifuss
constitui importante contribuição na desmistificação do golpe, ao reconhecer
neste a atuação de uma imensa quantidade de atores civis e políticos.
Contudo, em que pese a grande contribuição e os reconhecíveis méritos
de sua obra, tendo em vista a pesquisa de fôlego realizada pelo autor e as
renovações que representou na produção acadêmica, a concepção de
“participação civil” adotada em sua obra ainda carece de maior problematização,
na medida em que se restringe à análise da articulação entre setores
empresariais e militares, por certo pouco representativos da dimensão civil que
de fato ajudou a construir o golpe e a ditadura militar. Entendemos, portanto, as
relações entre Estado e sociedade como ambivalentes, marcadas não apenas
pela opressão e manipulação do Estado ou da burguesia, mas também pela
colaboração, acomodação e legitimação dos diversos atores que compõem a
sociedade.

25FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 24, n. 47, 2004.
13

Por fim, diante das críticas e dos méritos de Dreifuss em seu livro “1964:
a conquista do Estado”, seguramente os argumentos centrais da obra
permanecem fundamentais para a compreensão crítica da história recente do
Brasil.

Referências

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1982.
DREIFUSS, René. A Conquista do Estado. Ação Politica e Golpe de Classe.
Petrópolis: Editora Vozes, 1981.

FERREIRA, Cristina. Nas malhas da história: sociabilidade e política no


cotidiano dos trabalhadores têxteis de Blumenau (1958-1968), 2015. 374 f.
Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.
FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964.
In:_____ O Brasil Republicano; v. 3. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira,
2003.
FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2014.
______. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, 2004.
FIGUEIREDO, E. L.. René Dreifuss. Dados (Rio de Janeiro) , v. 46, n.1,
2003. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52582003000100006
GOMES, Ângela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas
sobre a trajetória de um conceito. In: FERREIRA, Jorge. (Org.). O populismo e
sua história: debate e crítica. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
JANOTTI, M. L. M.. O diálogo convergente: políticos e historiadores nos inícios
da República. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.). Historiografia Brasileira
em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 119-143.
JG anuncia a encampação de refinarias no comício. Folha de S. Paulo, nº
12.690, 14 de março de 1964, p. 6 (Primeiro Caderno).
14

MARTINS FILHO, J. R. Forças Armadas e política (1945-1964). In: FERREIRA,


Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. (org.). O Brasil republicano. O
tempo da experiência democrática: Da democratização de 1945 ao golpe civil-
militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 3.
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WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro:
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