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CAPÍTULO 3
AS DESPROPORÇÕES
Embora alguns dos principais trabalhos que caracterizam esta vertente tenham sido
publicados antes dos de Rosa Luxemburgo, a hipótese das desproporções foi formulada
justamente para criticar as teorias que afirmam a impossibilidade da realização do valor
produzido, na economia capitalista. A vertente das desproporções retoma os esquemas de
reprodução, salientando que eles demonstram a possibilidade da realização, desde que certas
condições de equilíbrio sejam respeitadas, e não a impossibilidade, como afirmavam as teses
subconsumistas. A partir disto, uma outra explicação deveria ser encontrada para o aparecimento
recorrente de crises de superprodução. É daí que nasce a hipótese das desproporções, ou seja, a
não ocorrência das condições de equilíbrio nos esquemas de reprodução , como causa das crises
1
de realização.
Este capítulo se baseia nas idéias de dois dos principais autores desta vertente: Tugán-
Baranovsky e Hilferding. O primeiro não pode ser classificado como um marxista, por motivos
que serão destacados adiante, mas exerceu forte influência sobre o chamado austromarxismo e,
por isso, merece destaque como adepto deste tipo de interpretação. Hilferding, por sua vez, é
um dos mais destacados autores do pensamento marxista. Ele aceitou a hipótese das
desproporções como causa da crise. No entanto, distingue-se por procurar identificar alguns
fatores que expliquem a perturbação da desproporcionalidade. Para isso, Hilferding destacou o
papel exercido pelo mecanismo de ajuste de preços. Apesar das particularidades, estes dois
autores defendem a desproporcionalidade como causadora da crise.
1 Ureña ( 81, pág. 158-159 ) discute dois conceitos alternativos de desproporcionalidade. Um se refere a desvios
da condição de equilíbrio, enquanto que o outro está ligado à necessidade do desequilíbrio, dado o maior
crescimento relativo do Departamento que produz meios de produção. Ao longo deste capítulo será utilizado o
primeiro conceito.
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(I) w1 = c1 + v1 + m1
(II) w2 = c2 + v2 + m2
w1 = c1 + c2
c1 + v1 + m1 = c1 + c2
(1) v1 + m1 = c2
Qual o significado dessa expressão? Uma vez realizadas as trocas internas aos
departamentos, isto é, quando os capitalistas de (I) realizam internamente o correspondente a c1,
115
(2) c2 > v1 + m1
(3) c2 < v1 + m1
Em (2), produziu-se mais valor no Departamento (II) do que foi demandado; ocorreu
uma superprodução de bens de consumo. Por outro ângulo, pode-se dizer também que foi
produzido menos valor no Departamento (I) do que foi demandado, definindo uma produção
insuficiente de meios de produção. Em (3), ocorre o contrário: superprodução de meios de
produção e produção insuficiente de bens de consumo. Por isso, as hipóteses (2) e (3) definem
uma situação de desproporção na distribuição do capital social. Na situação (2), existe capital
em excesso no Departamento (II), e ele é escasso em (I). Em (3), ocorre o inverso.
A mesma condição de equilíbrio pode ser obtida a partir do Departamento (II). O valor
produzido por este é w2, que se desdobra em c2 + v2 + m2. Sua demanda é composta por todas
as demandas de bens de consumo. Os trabalhadores de (I) e (II) gastarão seus salários em bens
de consumo, e os capitalistas de (I) e (II) também utilizarão os montantes de mais-valia para
consumo improdutivo, já que se trata da reprodução simples. Assim, como foi feito para (I),
tem-se que o valor produzido por (II) será totalmente realizado se oferta e procura por bens de
consumo se igualarem:
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w2 = v1 + m1 + v2 + m2
c2 + v2 + m2 = v1 + m1 + v2 + m2
(4) c2 = v1 + m1
Note-se que as expressões (1) e (4) são a mesma e, portanto, possuem o mesmo
significado. Isto não poderia ser diferente, já que nesta economia hipotética, existem apenas dois
departamentos e, se um deles está em equilíbrio, conseqüentemente o outro também estará.
vendas\ I II VBP
compras
I c1 c2 c1+c2
II v1+m1 v2+m2 v1+m1+
v2+m2
VBP c1+v1+ c2+v2+ w1+w2
m1 m2
2 O estudo que Marx fez sobre a reprodução do capital social já havia sido empreendido, com outros objetivos, por
Quesnay em seu Tableau Économique. Da mesma forma, a matriz insumo-produto de Leontief, de elaboração
mais atual, também procura captar as relações entre setores. É mister, no entanto, ressaltar as diferenças entre as
abordagens. Enquanto a matriz insumo-produto é elaborada de acordo com coeficientes técnicos de produção, os
esquemas de Marx estudam o movimento do capital com unidade entre valor e valor de uso. Além disso, a matriz
insumo-produto é geralmente utilizada para cálculos de renda ( valor agregado ), enquanto Marx ressalta o valor
bruto da produção, o que inclui o valor transferido pelo capital constante.
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obtém-se o valor das demandas dos dois departamentos: c1+c2 para (I) e v1+m1+v2+m2 para
(II). A coluna ( linha ) que representa o valor bruto da produção define a demanda ( oferta ) total
da economia. Para que todo o valor produzido seja realizado, a demanda total tem que ser igual
à oferta total da economia, que equivale a w1+w2.
Note-se também que a condição de equilíbrio se define pela igualdade entre o segundo e
o terceiro quadrante ( c2 = v1 + m1 ). Este esquema define a proporcionalidade na distribuição
do capital social por esta igualdade.
Isso constitui o valor que foi produzido. O processo de realização do valor se dá pelo
estabelecimento das demandas de cada departamento. Desta maneira, a demanda de
Departamento (I) é constituída pela demanda por meios de produção. Esta última é composta
por c1 + c2, assim como na reprodução simples, que garante a reposição material de meios de
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w1 = c1 + c2 + mc1 + mc2
(1) c2 = m1 + v1
Percebe-se claramente que c2 de (5') é menor que c2 de (1'). Para obter (5'), basta
diminuir ( mc1 + mc2 ) de (1'). Portanto, (1') é maior que (5'). O que significa isto? Dizer que a
parcela que repõe o capital constante do Departamento (II) tem que ser menor na reprodução
ampliada, é o mesmo que afirmar que uma parcela da produção de meios de produção, que era
demandada anteriormente por (II), deve ser deslocada para atender as necessidades de
acumulação de (I). O departamento (II) não pode mais comprar o que restou de meios de
produção, depois que o Departamento (I) recompuser seu capital constante. Existe agora, na
reprodução ampliada, uma parcela desse resto que será acumulada por (I). É por isso que se
estabelece uma diferença quantitativa entre as condições de equilíbrio (proporcionalidade ) . 3
3 Recorde-se do capítulo anterior que, para que a acumulação se processasse, o valor novo gerado por (I) tinha
que ser maior que o valor transferido por (II), isto é, c2 < v1 + m1.
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V\C I II VBP
I c1+mc1 c2+mc2 c1+mc1+c2
+ mc2
II v1+mv1 v2+mv2 v1+mv1
+ms1 +ms2 +ms1+v2
+mv2 +ms2
VBP c1+v1+mc1 c2+v2+mc2 w1+w2
+mv1 +ms1 +mv2+ms2
onde: V representa as vendas e C as compras
expressa em (5) e (6), e representada pela igualdade entre o segundo quadrante ( c2 + mc2 ) e o
terceiro (v1 + mv1 + ms1 ).
A partir deles é que esta seção procura entender a causa da crise, dentro do pensamento
deste autor. Ele interpretou os esquemas de reprodução de Marx procurando demonstrar que o
sistema capitalista pode realizar a mais-valia e, portanto, se desenvolver em reprodução ampliada
sem problemas de realização. Assim, dado que é possível a realização, os desequilíbrios e crises
só podem ser provocados por desproporções. Desta forma, se o sistema capitalista continua
desenvolvendo-se, de uma forma ou de outra, as teorias do colapso, que se baseiam ou no
subconsumo ou na lei da queda tendencial da taxa de lucro, seriam falsas.
4 "Desde el punto de vista de la concepción materialista de la historia todo el proceso social es determinado por el
econômico." ( Tugán-Baranovsky, in Colletti (78), pág. 242 - o itálico não é original ). As críticas a esta
interpretação economicista do pensamento de Marx são mais do que conhecidas. Para alguns textos clássicos
sobre o assunto, ver Kosik (95) e Lefebvre (91).
122
Em segundo lugar, o autor em questão frisa que a satisfação das necessidades sociais não
é o objetivo da produção capitalista. Isto fica claro quando ele afirma que:
5 Desde já, é preciso deixar claro que esta concepção de Tugán-Baranovsky, sobre a teoria de Marx, está
completamente equivocada. O fato de alguns pensadores marxistas defenderem a hipótese de subconsumo não
quer dizer que o próprio Marx o fizesse. Muito pelo contrário, é através da teoria de Marx que se pode fazer uma
crítica coerente das interpretações subconsumistas, como o capítulo anterior procurou fazer. Esta crítica fica mais
estranha ainda, quando se sabe que foi justamente Marx o primeiro a ressaltar que a produção social é composta
por bens de consumo e meios de produção.
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produção, um objeto dessa economia. Deste segundo grupo de sistemas, fazem parte o
escravismo, o feudalismo e o capitalismo.
Além disso, os símbolos utilizados por Tugán-Baranovsky são diferentes dos de Marx.
Ele representa os meios de produção por p, o correspondente dos salários por a e o referente ao
excedente por r. Tratar-se-ia de uma mera questão de preferência, se não fosse a justificativa
dada por Tugán-Baranovsky:
"En mi opinión, en la creación del plusproducto - es decir, de la renta - no hay diferencia alguna
entre la fuerza de trabajo humana y los medios de trabajo inanimados. Existe el mismo derecho
para calificar de capital variable tanto a la máquina como a la fuerza de trabajo humana, ya que
ambos producen plusproducto." (Tugán-Baranovsky, in Colletti (78), pág.263, nota 1 ).
Esta é a principal razão pela qual é problemático classificar esta autor como marxista . 8
Para ele, não existe nenhuma diferença, no processo de produção, entre o meio de produção e a
força de trabalho. Assim, da mesma forma que o pensamento neoricardiano, ele possui
dificuldades para explicar a formação do excedente, ao não perceber diferença entre os
elementos do capital produtivo, no que se refere a seus papéis na formação do valor.
6Marx também chega a dividir a economia em três Departamentos. Para isso, ele supõe uma subdivisão do Departamento (II)
em: produção de meios de subsistência necessários e produção de artigos de luxo.
7 Kalecki (90), pág. 1, faz o mesmo.
8 Aliás, ele mesmo admite na mesma nota que não se situa no campo da teoria da mais-valia de Marx.
125
Assim, para que toda a produção seja realizada deve existir uma distribuição
proporcional da produção social, uma condição de equilíbrio. Em termos genéricos, tem-se:
(I) p1 + a1 + r1 = w1
(II) p2 + a2 + r2 = w2
(III) p3 + a3 + r3 = w3
Para que toda a produção seja realizada, oferta e demanda de meios de produção devem
ser iguais:
w1 = p1 + p2 + p3
p1 + a1 + r1 = p1 + p2 + p3
(7) a1 + r1 = p2 + p3
w2 + w3 = a1 + r1 + a2 + r2 + a3 + r3
126
p2 + a2 + r2 + p3 + a3 + r3 = a1 + r1 + a2 + r2 + a3 + r3
(8) p2 + p3 = a1 + r1
Como era de se esperar, as expressões (7) e (8) são a mesma. Essa condição de
proporcionalidade é a mesma desenvolvida no ítem 4.1.1 para a reprodução simples. A única
diferença é que, como Tugán-Baranovsky subdivide o Departamento que produz bens de
consumo, a parcela relativa à reposição dos meios de produção desse departamento também está
dividida.
Primeiro ano
Segundo ano
Terceiro ano
pela máquina, no processo produtivo, o processo de realização dar-se-ia apenas para realizar os
elementos necessários para operar esses meios de produção.
a) a acumulação do capital se dá com uma queda constante e significativa dos salários, sem
aumento compensador do consumo capitalista.
c) a mais-valia se divide em 25% para acumulação e 75% para consumo improdutivo ( taxa de
acumulação de 25% ).
Primeiro ano
Segundo ano
Terceiro ano
Como se pode notar por esse exemplo, apesar da queda da demanda por bens de
consumo e da rápida expansão da produção social, não resulta nenhum valor excedente incapaz
de ser realizado. Toda a produção é realizada. O valor de 2720 produzido por (I) é realizado
pela demanda de meios de produção do segundo ano ( 1987,54 + 372,6 + 360 ), e a produção de
bens de consumo, tanto para trabalhadores como para capitalistas, também é totalmente
realizada. Dessa maneira, " este esquema está destinado a mostrar de qué manera debe
distribuirse la producción para que, a pesar del descenso del consumo social y de la rápida
expansión de la producción social, no resulte un producto excedente impossible de vender."
( Tugán-Baranovsky, in Colletti (78), pág.254 ). A constante diminuição do consumo social não
é capaz de provocar a menor perturbação do processo de valorização do capital porque o
consumo produtivo toma o lugar do improdutivo.
onde, rp é a parcela do excedente acumulada em meios de produção, ra se refere aos salários dos
trabalhadores adicionais, e rs ao consumo improdutivo dos capitalistas.
Para que toda a produção de meios de produção seja realizada, oferta e demanda têm
que ser iguais:
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Essa mesma expressão (9) poder obtida igualando a oferta e a demanda por bens de
consumo. O importante a destacar é que se trata da mesma expressão (5) e (6), com a única
diferença que Tugán-Baranovsky subdivide o Departamento (II) e, portanto, a necessidade
externa de meios de produção se divide em duas partes ( p2 + rp2 e p3 + rp3 ).
Mas, se mesmo com a redução de demanda por bens de consumo é possível realizar toda
a produção, o que provoca as crises? Essa noção no pensamento de Tugán-Baranovsky fica mais
intrigante, quando ele próprio afirma, a respeito da Lei dos mercados de Say: "Sin embargo,
considero que la médula de esta teoria, su idea principal - la de que, en una distribución
proporcional de la producción social, la oferta de mercancías debe coincidir con la demanda - no
sólo es correcta, sino incluso indiscutible." ( Tugán-Baranovsky, in Colletti (78), pág.271-272,
nota 2 ). Qual a causa da crise para Tugán-Baranovsky?
O autor faz questão de ressaltar que se o investimento total for distribuído entre os
departamentos de acordo com o crescimento da demanda pelos produtos de cada um deles, o
que requer uma movimentação de capitais ( concorrência ) que acompanhe a da demanda, não
haverá problema de realização. Portanto, se houver algo na economia capitalista que não garanta
essa proporcionalidade, ocorre o problema de realização, a crise. Tugán-Baranovsky afirma
ainda que a sociedade capitalista possui a contradição fundamental entre a produção como uma
forma de satisfazer as necessidades humanas e a produção como um fim em si mesma. Isto por si
131
estabelecida uma distribuição do capital, que não a proporcional, gera-se superprodução parcial.
Mas, como todos os departamentos são interdependentes, ocorre um efeito de alastramento de
retração na demanda, o que leva à superprodução generalizada, característica da crise.
O mais interessante de sua argumentação é a relação que ele faz com o subconsumo;
inusitadamente, ele diz que: " En cierto sentido puede decirse que la causa fundamental de las
crisis la constituye la pobreza popular, el subconsumo de las clases trabajadoras." (Tugán-
Baranovsky, in Colletti (78), pág.276 ). A idéia aqui é que a baixa participação dos trabalhadores
no produto equivale à maior formação de excedentes. Isto aumenta a capitalização e, portanto,
também cresce a probabilidade de aparecimento de desproporções. Justamente por ter que
encontrar campos de inversão para novos capitais, o aumento do excedente e da acumulação
tornam mais improvável a distribuição proporcional do capital. É só neste sentido que deve ser
entendida a afirmação acima.
Rudolf Hilferding também é conhecido pela sua defesa das desproporções como causa
das crises. Para ele, que a produção capitalista se desenvolva em ciclos de prosperidade e
depressão, com a crise como uma fase de transição, trata-se de uma lei empírica. O fato deste
ciclo ser periódico o leva a analisar suas causas. Ele faz isto na quarta parte, capítulos XVI a
XX, de sua obra O Capital Financeiro.
Inicialmente, ele procura diferenciar as condições gerais para a crise. Segundo o autor, a
dupla existência da mercadoria, enquanto mercadoria propriamente dita e dinheiro, define a
primeira condição. Quando o dinheiro passa a assumir a forma equivalente geral do valor e,
portanto, são separadas compra e venda na circulação de mercadorias, define-se uma condição
133
geral da crise. Uma outra se dá pela contradição existente entre a autonomia das economias
privadas e a irregularidade da produção, frente à dependência dos produtores com relação ao
mercado, ou seja, a anarquia da produção. Por último, a separação entre produção e consumo de
bens finais, ilustrada pelo fato de que, no capitalismo, o consumo é determinado pela dimensão
da produção, e não pela satisfação das necessidades, completa o quadro das condições gerais
para a crise.
Mas isto não explica as causas da crise. Afinal, " a possibilidade de crise, na verdade, já
nasce da possibilidade da produção desordenada; portanto, da produção de mercadorias em
geral; mas sua realidade origina-se somente da produção desordenada, que simultaneamente
suprime a relação direta entre produção e consumo que caracteriza outras formações sociais, e
que insere, entre a produção e o consumo, a condição de exploração do capital pela
correspondente taxa determinada de lucro." ( Hilferding (85), pág.233 ).
Para conseguir seu intento de determinar a causa da crise, o autor procura caracterizar o
ciclo. Ele observa que a crise aparece no momento em que a taxa de lucro cai: " a crise supõe
escassez de venda. A falta de venda na sociedade capitalista pressupõe baixa taxa de lucro; essa
baixa da taxa de lucro é dada pela mudança da composição orgânica do capital ocorrida no
reinvestimento desse capital, a crise significa nada mais do que o momento em que sobrevém a
baixa da taxa de lucro." ( Hilferding (85), pág.245 ). O que este autor percebeu é que, na
prosperidade, a demanda cresce a um ritmo tal que toda a produção é vendida, propiciando
preços e lucros elevados, o que incentiva o reinvestimento de capital. No entanto, além disso, a
prosperidade se caracteriza por fatores que tendem a levar ao decréscimo da taxa de lucro. São
eles: o aumento na composição orgânica do capital pelos novos investimentos; o crescimento do
tempo de rotação do capital, dada a maior participação do capital fixo nos investimentos, em
relação ao capital circulante; queda da taxa de mais-valia, devido à crescente procura por força
de trabalho, que pressiona os salários para cima; e, o aumento das taxas de juros, dados o
crescente aumento da demanda por capital de empréstimo, e a restrição da oferta pela
transformação do capital monetário ocioso em capital produtivo, que reduz a participação dos
lucros no excedente.
Depois de tudo isto, Hilferding só pode chegar a uma conclusão: " a crise sobrevém,
pois, no momento em que as tendências acima descritas da taxa de lucro em queda se impõem às
tendências que, devido à procura aumentada, motivaram uma alta dos preços e do lucro."
134
(Hilferding (85), pág.248 ). Para o espanto de todos os autores que vêem, em Hilferding, um
teórico que relaciona a causa das crises com as desproporções, seu argumento é muito parecido
com o dos autores que identificam a lei da queda tendencial da taxa de lucro com a causa da
crise. São poucos os estudiosos do pensamento marxista sobre a crise que percebem esta
peculiaridade no pensamento de Hilferding. Zoninsein (85) chega a defender a tese de que
existiriam duas concepções contraditórias sobre a causa da crise em Hilferding: as
desproporções e uma outra baseada na lei da queda tendencial da taxa de lucro.
Logo, a única explicação para as crises está nas desproporções existentes na distribuição
do capital social , como afirmou Tugán-Baranovsky. Então, o que levou Hilferding a se
10
Para o autor, e é isto que o torna singular, a única coisa que mantém as relações de
proporção em um sistema de produção anárquica é o mecanismo ( lei) dos preços. É a variação
destes que regula a expansão ( contração ) da produção. Em outras palavras, a concorrência
entre os capitais, que origina a entrada (saída) destes em determinados setores, é fruto da
movimentação dos preços.
10 Hilferding leva às últimas conseqüências a aceitação dessa hipótese: "uma expansão demasiado rápida do
consumo leva necessariamente, de per si, à crise, da mesma forma como a produção invariável ou reduzida dos
meios produtivos." ( Hilferding (85), pág.243.
135
Entretanto, não é o preço absoluto que interessa para a análise, pois não é este que
regula a movimentação dos capitais. A concorrência tem como parâmetro o diferencial entre o
preço de mercado e o custo de produção, ou seja, o lucro, e não o nível absoluto do primeiro.
Note-se que o fundamental para Hilferding não seria o comportamento da taxa média de
lucro, como o é para os autores que relacionam a causa da crise com a lei da queda tendencial da
taxa de lucro. Para ele, o essencial é a diversidade de taxas particulares de lucro, que fazem com
que um capital saia de um setor e ingresse em outro, alterando a distribuição do capital social.
Essa movimentação de capitais gera desproporções, levando à superprodução de alguns setores.
É por isso que a hipótese de desproporções é obrigada a relacionar teoricamente crises parciais
com crises de superprodução generalizada.
palavra causa está no plural, assim como no título do capítulo XVII de O Capital Financeiro.
Uma observação mais superficial concluiria que, na concepção de Hilferding, a crise possui mais
de uma causa, o que respaldaria o argumento de Zoninsein; segundo este último, Hilferding teria
duas concepções contraditórias sobre a causa da crise .
11
Nesse sentido, são vários os fatores que, segundo Hilferding, perturbam o crescimento
proporcional dos setores, isto é, que alteram a estrutura de preços relativos. Em primeiro lugar,
a diversidade na composição orgânica do capital entre os vários setores provoca uma
concorrência entre os capitais, que buscam o lucro extraordinário. Essa diversidade produz um
alongamento diferenciado dos prazos de maturação dos novos investimentos e, portanto, do
tempo de resposta da produção frente a um estímulo de demanda. Isso define, em alguns setores,
uma dificuldade de adaptação da oferta em relação ao crescimento da demanda, o que tende a
elevar os preços. Com o tempo, capitais tendem a ingressar nesses setores. Como a produção
não é planejada ( é anárquica ), chega um momento em que a oferta tende a superar a demanda;
é a superprodução no setor, que se reflete em uma posterior queda dos preços de mercado. Essa
enorme flutuação dos preços gera desproporções na distribuição do capital social.
O segundo fator diz respeito à composição do capital entre capital fixo e capital
circulante. Quanto maior o volume de capital fixo, mais longo o tempo de reposição do capital e,
portanto, mais difícil é a adaptação às necessidades de consumo. Da mesma forma, quanto mais
essas necessidades superarem a oferta, maior os preços e maior o incentivo a acumular nesses
setores. Por outro lado, setores com menor volume de capital fixo se adaptam mais rapidamente
ao consumo. a alta de preços se mantém dentro de limites mais estreitos, fazendo com que o
ingresso de capitais nesses setores não seja tão intenso. Não bastasse isso, quanto maior o
volume da massa de capital, requerido por uma determinada técnica, em um setor, mais difícil é a
adaptação exata do aumento de produção frente a um aumento de consumo. Esta última
Um outro fator que, para Hilferding, impede a variação uniforme dos preços é a
descontinuidade técnica na oferta de matérias-primas. Restrições técnicas impedem que a oferta
de matérias-primas acompanhe sua demanda, o que gera grandes alterações nos preços desses
produtos.
12 A própria renovação do capital fixo pode gerar desproporções: " por conseguinte, na mera conservação do
capital fixo, pode dar-se uma desproporção na produção de capital fixo e circulante, quando varia - o que sempre
se dá na realidade - a proporção do capital fixo, que anualmente se extingue, para o capital que continua
funcionando." ( Hilferding (85), pág.237 ).
138
" Uma parte relativamente maior do lucro destina-se à acumulação, uma parte
relativamente menor, ao consumo. Isso quer dizer, porém, que o consumo não acompanha o
aumento da produção." (Hilferding (85), pág.252).
Desta forma, Hilferding coloca o subconsumo como um dos fatores que podem provocar
as desproporções que, por sua vez, geram as crises . É curioso notar como o autor leva às
13
últimas conseqüências o seu argumento. Para ele, qualquer coisa que perturbe a formação de
preços e, portanto, a distribuição do capital social, é observada como fator de desproporção.
Assim, tanto o subconsumo como o excesso de demanda por bens de consumo
("superconsumo") provocam desproporções.
O objetivo desta seção é observar qual a causa da crise para Hilferding. Todos os fatores
mencionados por ele provocam diferenças entre os preços de mercado e os preços de produção
nos vários setores da economia. Isto leva a uma intensa movimentação de capitais e à
perturbação na regulação da produção, ou seja, leva a desproporções. Estas, por sua vez,
causam as crises. Isto é o fundamental em sua obra, apesar da falta de rigor em algumas
ocasiões, ao denominar os fatores que provocam as desproporções de causas, quando na
verdade, em sua concepção, o que provoca as crises é a perturbação nas condições de
proporcionalidade.
13Lênin também percebeu isso em seus estudos sobre os esquemas de reprodução. Para isso, veja-se Lênin (79) e
Lênin (82), capítulo 1.
139
No entanto, este não é o pensamento de Hilferding. De fato, segundo ele, quanto maior o
volume da empresa, maior é também a resistência aos efeitos da crise. A grande empresa possui
um volume de produção tão grande que ela pode continuar a produzir uma parte dele também
durante a crise. Além disso, dada a massa de capital envolvida, a grande empresa pode sustentar
alguns períodos de maus resultados; a pequena empresa, pelo contrário, não tem meios para
sobreviver a um longo período com problemas de realização. A concentração bancária, por sua
vez, permite uma distribuição maior do risco de bancarrota do setor bancário, tendo em vista
que essa concentração pressupõe grande extensão de negócios e atuação sobre diversos setores
da economia.
Enfim, parece que Hilferding acredita que a formação de cartéis inibe a ocorrência das
crises. Mas não é isto o que ele pensa. Para Hilferding, quem acredita que os cartéis inibem as
crises por regular a produção está tratando a crise como mera superprodução de mercadorias. A
crise, entretanto, é superprodução não só de mercadorias, mas também de capital. Apesar dos
cartéis diminuirem os efeitos da concorrência em um setor, eles não mudam a própria natureza
da concorrência. Assim, eles "...nada podem mudar na concorrência dos capitais em busca de
áreas de investimento, nos efeitos da acumulação sobre a configuração dos preços e, por isso,
não podem impedir o surgimento das relações de desproporcionalidade." (Hilferding (85),
pág.278).
Ainda assim, seria possível conceber um cartel geral que planejasse toda a produção e
eliminasse as crises. Hilferding contra-argumenta:
140
Os cartéis, assim como o crédito, ao invés de inibir as crises, amplificam seus efeitos, ao
encobrir uma desproporcionalidade já formada, ao retardar a atuação do mecanismo de preços
como elemento que cuida de manter as relações de proporção em uma produção anárquica como
a capitalista.
Até agora já foi demonstrado que a lei da queda tendencial da taxa de lucro e o
subconsumo não podem ser a causa da crise. Depara-se agora com a quebra das condições de
proporcionalidade para explicar o aparecimento de crises.
uma parte das classes dessas sociedades constitui o sujeito da economia. Logo, é possível
imprimir na economia uma direção na qual se converte meios para satisfazer necessidades sociais
em meios para mera expansão da produção, desbaratando assim a finalidade, considerada por ele
como justa, de qualquer economia. O capitalismo pode chegar até a produzir apenas meios para
uma nova produção, já que sua lógica é a de produção de valor - acrescido de uma mais-valia -
não importando o valor de uso em que se materializa. Isto não quer dizer que Tugán-Baranovsky
não possuísse convicções socialistas; apenas que o socialismo não advém mecanicamente de
contradições no funcionamento econômico do capitalismo. Segundo Tugán, este último tem uma
contradição inerente insolúvel entre seu princípio econômico fundamental e uma norma ética
fundamental, que deve levar à superação do capitalismo. Desta forma, para este autor, a
superação do capitalismo passa a ser muito mais um problema ético do que de um
desenvolvimento de contradições no funcionamento do próprio sistema. Esse princípio ético de
Tugán é originado do pensamento idealista de Kant. Tugán faz questão de concluir seus
Fundamentos Teóricos do Marxismo com uma citação de Kant: " El hombre, y en general
cualquier ser racional, existe como fin en sí mismo, no sólo como medio para su uso discrecional
para tal o cual voluntad, sino que al mismo tiempo debe ser considerado como un fin, siempre y
en todas sus acciones orientadas tanto hacia sí mismo como hacia otros seres racionales." ( Kant,
citado em Colletti (78), pág.257 ). Esta primazia de um princípio ético, válido a priori, sobre a
análise concreta das contradições do capitalismo, demonstra que o pensamento de Tugán-
Baranovsky está longe de poder ser considerado como marxista . 14
" essa confusão da teoria da crise de Tugán-Baranovsky é exagerada. Ela considera apenas
as determinações econômicas específicas do modo de produção capitalista e não leva em
conta as condições naturais a toda produção, seja qual for sua forma histórica, e chega à
singular noção de uma produção que só existe para a produção, enquanto o consumo aparece
só como um acidente importuno. Ainda que isso seja uma "loucura", tem um método, a
14 Anteriormente, ficou claro que a incompreensão da diferença entre os fatores subjetivos e os objetivos na
formação do valor, não permitiam enquadrar o pensamento de Tugán-Baranovsky na tradição marxista.
142
Ainda no que se refere à comparação entre os dois autores, suas abordagens também
diferem quanto ao fator decisivo para a retomada do crescimento no ciclo. Tugán-Baranovsky
aponta a ociosidade do capital monetário, que não encontrou espaços de investimento, durante a
crise, como o mais forte propulsor da ampliação da reprodução. Hilferding atribui essa
concepção à tentação oriunda das aparências dos fenômenos. O que define o fator decisivo para
a retomada, segundo ele, é algo mais amplo: se é objetivamente possível ou não a ampliação da
produção.
Fora estas pequenas diferenças, o argumento destes dois autores, no tocante à natureza
das crises, é análogo. As crises são provocadas por desproporções na distribuição do capital
social. Hilferding foi um pouco além ao discutir os fatores que podem perturbar a
proporcionalidade, mas a causa da crise continua sendo a desproporcionalidade. De fato, a
análise feita na primeira seção deste capítulo, sobre os esquemas de reprodução, é bastante
sugestiva. O valor produzido pela economia será todo realizado se as ofertas das mercadorias
forem iguais às suas respectivas demandas. O desenvolvimento desta idéia levou às condições de
equilíbrio dos esquemas, segundo as quais a realização do valor seria completa se as trocas entre
os departamentos fossem iguais. Qualquer quebra destas condições de equilíbrio
(proporcionalidade ) provocaria a crise. O argumento é, aparentemente, bastante poderoso, o
que indicaria ser, realmente, a desproporcionalidade a causa da crise.
No entanto, se fizermos uma investigação mais profunda, o argumento perde sua força.
O primeiro ponto a ser ressaltado se encontra na estruturação do argumento das desproporções.
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Hilferding não encarou este problema diretamente. Mas, quando afirmou que a intensa
movimentação de capitais, provocada por perturbações no mecanismo de preços, levava a uma
distribuição desproporcional do capital, ele estava com uma dificuldade decorrente deste
problema. A idéia de Hilferding era a de que a movimentação de capitais tinha como parâmetro a
estrutura de preços relativos. Qualquer perturbação desta, isto é, qualquer empecilho à obtenção
do equilíbrio, provocaria desproporções e, conseqüentemente, a crise. Ora, a movimentação de
( concorrência entre ) capitais, via variação de preços e lucros, constitui a própria dinâmica da
economia capitalista. Logo, ela se apresenta em todos os momentos do ciclo, tanto na crise,
quanto na recuperação e na prosperidade. As desproporções não podem ser a causa da crise
porque são o estado normal do modo de produção capitalista, e não algo que ocorra
periodicamente. O estabelecimento de condições de equilíbrio é uma mera casualidade. A
concorrência entre os capitais faz com que a economia tenda a uma distribuição proporcional,
que não necessariamente é alcançada. As forças da economia levam a um ajuste que não é
instantâneo, mas sucessivo e cíclico. A concorrência entre os capitais faz com que os capitais
excedentes, em suas três formas (capital produtivo, capital mercadoria ou capital sob a forma de
dinheiro), seja destruído através de sua desvalorização, no período de crise. Durante a
recuperação econômica, a concorrência atua no sentido de incentivar os capitais a investirem em
busca de maiores lucros, o que provoca um efeito expansionista. A movimentação dos capitais é
característica de todos os períodos do ciclo, e não de apenas um deles.
contradições inerentes ao modo de produção capitalista, contradições essas que não podem ser
resolvidas por nenhum elemento externo às suas constituições. A crise não é conseqüência de um
descontrole voluntário entre as condições de produção e realização, provocado pela anarquia da
produção, que possa ser ajustado, mas de um descontrole necessário.
Com todos esses problemas, a hipótese das desproporções deve ser rejeitada, enquanto
causa das crises. Entretanto, a desproporcionalidade não pode ser abandonada na formulação de
uma teoria da crise.
Não se pode negar que as desproporções se intensificam na crise, por causa de problemas
de realização que se observam em determinados setores e que se alastram por toda a economia.
Como as condições de proporcionalidade (equilïbrio ) estabelecem que as demandas recíprocas
entre os departamentos devem ser iguais, qualquer quebra na demanda de um por outro,
intensifica a desproporção. Entretanto, isto não permite afirmar que as desproporções são a
causa da crise, até porque elas são o estado normal da economia capitalista.